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294 Ainda sob o regime militar, no início da década de 1980 cientistas e educadores das áreas de Geografia e de História mobilizaram-se pela volta das duas dis- ciplinas ao currículo escolar brasileiro. A Geografia Crítica, presente em muitos trabalhos acadêmicos do país, participava da luta pela redemocratização e pela justiça social. 5 NOVOS HORIZONTES TEÓRICOS A noção de que a Geografia Crítica, assim como a Tradicional, não considerava a subjetividade da relação humana e da sociedade com a natureza foi aos poucos ganhando atenção no meio acadêmico nacional. Ao mesmo tempo, no final da década de 1980, a crise do socialismo real colocou em xeque os postulados dos geógrafos críticos. A realidade em transformação expunha seus limites teórico-metodológicos. A queda do Muro de Berlim, a desagregação da União Soviética com a consequente crise do marxismo e “a falência dos paradigmas da modernidade na explicação da nova realidade em mudança, inclusive o da teoria social crítica, revolucionam o pensamento e a pro- dução geográfica em todos os sentidos e direções”6. A ênfase dada na Geografia a um entendimento historicista da sociedade implicou um obstáculo em adequar tempo e espaço (História e Geografia). O próprio Yves Lacoste apontava para a dificuldade de apoiar a Geografia em Marx. De acordo com Josefina Gómez de Mendoza (1942-), professora da Universi- dade Autônoma de Madrid, o enfoque marxista “não faz mais que extrapolar, para as estruturas espaciais, interpretações que remetem a estruturas econômicas e sociais, a reflexões da história e da economia política”7. Ainda segundo essa mesma autora, a concepção dos geógrafos marxistas revela a ausência de uma elaboração conceitual e analítica mais aprofundada dos aspectos ecológicos e energéticos8. Convém esclarecer, contudo, que essa lacuna vem sendo gradativamente preenchida pelos geógrafos críticos. A produção acadêmica na área de Geografia, nas últimas décadas, tem como característica fundamental a preocupação com as dimensões subjetivas da relação humana com a natureza. Nesse sentido, consideram- -se as culturas das sociedades e, consequentemente, as distintas percepções do espaço geográfico e as for- 6 OLIVEIRA, Marcio Piñon. Geografia e epistemologia: meandros e possibilidades metodológicas. Revista de Geografia, v. 14, p. 153-164, São Paulo: Unesp, 1997. p. 155. 7 Los radicalismos geográficos. In: MENDOZA, Josefina Gómez et al. (Org.). El pensamiento geográfico: estudio interpretativo y antología de textos; de Humboldt a las tendencias radicales. Madri: Alianza, 1982. p. 152-153. [Tradução nossa.] 8 Idem, p. 153. mas de sua construção, implicando os conhecimentos de outras áreas, particularmente os de Antropologia, Sociologia, Biologia e Ciências Políticas. Geografia Humanista ou da Percepção As experiências das pessoas e dos grupos humanos na relação que mantêm com o espaço passaram a fazer parte das pesquisas de geógrafos que, por meio delas, visam compreender os valores, as crenças, os símbolos e os comportamentos dessas pessoas e grupos. Esses estudos deram origem, em meados da década de 1960, à Geografia Humanista ou da Percepção. Nessa tendência, destaca-se a obra do geógrafo sino-estadunidense Yi-Fu Tuan (1930-), Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente9, centrada no estudo dos sentimentos de apego (topofilia) das pessoas ao ambiente natural ou construído em que vivem, buscando desvelar os elementos universais das percepções e dos valores sobre o ambiente por meio, entre outros caminhos, da identificação das respostas psicológicas comuns a todas as pessoas para, depois, mostrar que os mesmos tipos de respostas se manifestam na cultura dos povos. 6 O DESAFIO DA ATUALIZAÇÃO EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO ACELERADA O espaço geográfico gerado pelo fim da Guerra Fria e pelo acelerado processo de globalização eco- nômica e de criação de tecnologias, ao lado da nova configuração geopolítica, impôs à Geografia o desafio de uma atualização em ritmo bastante intenso. Diversos estudos surgidos nas últimas déca- das enquadram-se nessa tentativa. David Harvey (1935-), geógrafo marxista britânico, em sua obra Condição pós-moderna10, criou o conceito de “compressão do espaço-tempo”, processo vivido pela humanidade desde a década de 1970 e que exige mudanças nos mapas mentais, nas atitudes e nas instituições. Esse processo, segundo ele, não ocorre em simultaneidade com os empreendimentos técnico-científicos no espaço, gerando uma defasagem que pode implicar sérias consequências para as mais diversas decisões (financeiras, militares etc.)11. Além da contribuição das novas tecnologias, Harvey explora, nessa obra, a prática da descartabilidade dos produtos 9 São Paulo: Difel, 1980. 10 São Paulo: Loyola, 1993. 11 Idem, p. 275-278. TS_V2_Manual_ParteComum_289_322.indd 294 30/05/16 14:56 295 e a manipulação da opinião e do gosto, apoiada na construção de novos sistemas de signos e imagens12. Ao lado dele, incluem-se os pós-modernos bra- sileiros Bertha K. Becker (1930-2013) e Rogério Haesbaert (1958-). Os três encaixam-se na tendência que considera novas formas de gestão do espaço geográfico, em vista da transformação dos espaços militarizados da Guerra Fria em territórios onde, sob o império da competitividade, o poder está vinculado ao domínio de recursos tecnológicos, e que as lutas se dão entre lugares, e não mais entre nações. Em opo- sição ao âmbito global, em que existe um processo de coesão, de fusão de empresas, de criação de blocos econômicos, gerando a ideia de unificação, o âmbito local vive um processo de fragmentação, contando com suas próprias condições para se desenvolver. Para Becker, desde a Segunda Guerra Mundial a ciência e a tecnologia passaram a constituir o funda- mento do poder, valorizando o espaço com base em suas diferenças, processo que, nas mãos das redes transnacionais de circulação e comunicação, permite tanto a globalização como a diferenciação espacial13. Segundo Haesbaert, o processo modernizador implicado nos avanços tecnológicos e na aceleração da globalização econômica compromete gravemente vastas áreas do planeta. Uma imensa massa de des- possuídos vive sem a mínima condição de acesso às redes mundiais e de autonomia para definir seus circuitos de vida14. O brasileiro Milton Santos (1926-2001) e o esta- dunidense Edward Soja (1940-2015) estão entre os autores cujas obras contribuem para a definição do espaço geográfico em tempos de globalização. Em sua obra Geografias pós-modernas: a reafirma- ção do espaço na teoria social crítica15, Soja, baseando- -se em sua defesa da força do historicismo no desen- volvimento das ciências modernas, discute autores que tentaram fazer o resgate da categoria espaço e busca elaborar um método materialista histórico e geográfico, apoiando-se na inseparabilidade de espaço e tempo. Entre as diversas obras de Milton Santos, podemos destacar, para os fins de nossa análise, Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico internacio- nal16. Nela, o autor defende que a produção do espaço 12 Idem, Capítulo 17. 13 Geopolítica na virada do milênio: logística e desenvolvimento sustentável. In: GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L.; CASTRO, I. E. (Org.). Geografia: conceitos e temas. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 287. 14 Desterritorialização: entre as redes e os aglomerados de exclusão. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, L. L. (Org.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 166. 15 Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 16 São Paulo: Hucitec, 1994. p. 48-49. geográfico responde às demandas de quem o idealiza, visando ao fluxo de suas necessidades. O espaço geo- gráfico é, portanto, um “conjunto indissociável de siste- mas de objetos naturais oufabricados e de sistemas de ações, deliberadas ou não”, em que se materializam “a unicidade técnica, a convergência dos momentos e a unicidade do motor”, viabilizando, assim, a globalização. 7 POLÍTICAS RECENTES VOLTADAS PARA A MELHORIA DO ENSINO As mudanças políticas verificadas no Brasil desde o início da redemocratização tiveram reflexos na área da educação, tendo por indicativo essencial a publica- ção, em 1997, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), voltados aos ensinos Fundamental e Médio. O documento propõe a “desideologização” do ensino, principalmente com a desmistificação da manipulação realizada pela mídia. Em nível geral, ele reflete um obje- tivo básico: a formação para o exercício da cidadania. Quanto ao ensino específico da Geografia, os PCN apontam para a necessidade de, ao lado das contri- buições da Geografia Positivista e da Geografia Mar- xista, trabalhar com os avanços teórico-metodológicos na disciplina, destacando-se as contribuições da Geo- grafia Humanista ou da Percepção. Nesse sentido, os PCN propõem a não exclusividade da explicação empírica das paisagens ou da explicação política e econômica do mundo. O documento destaca, ainda, a necessidade de se ensinar uma Geografia que abranja de modo mais complexo o espaço geográfico, superando a mera descrição de paisagens. Em 2011, são aprovadas novas Diretrizes Curri- culares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), de 1998. Elas sustentam a necessidade de contemplar o ensino das diferentes dimensões da vida em sociedade, abordando trabalho, ciência, tecnologia e cultura como eixos integradores entre os conhecimentos de distintas naturezas. Apontam, ainda, para a necessidade de o currículo do Ensino Médio promover práticas educati- vas efetivas visando à formação integral dos estudantes. As políticas educacionais destacam também a necessidade de estabelecer um diálogo com os jovens e sua realidade, dando sentido ao apren- dizado dos conhecimentos construídos historica- mente pela humanidade. Assim, no Ensino Médio, a Geografia tem o papel fundamental de desenvolver nos estudantes competências e habilidades que lhes permitam analisar a realidade, para nela poder intervir propositivamente. TS_V2_Manual_ParteComum_289_322.indd 295 30/05/16 14:56 296 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Tendo esses pressupostos em mente, tomamos como norte a ideia de que a Geografia, por sua pró- pria dinamicidade, exige um processo contínuo de reaprendizagem do mundo construído, na medida em que o espaço geográfico, seu objeto central de estudo, resulta da vida em sociedade, dos seres humanos em busca da sobrevivência e satisfação de suas necessidades, dos intensos avanços tecno- lógicos, dos conflitos sociais e geopolíticos, em uma realidade em permanente mudança e marcada por fortes desigualdades sociais e espaciais. As rápidas e profundas mudanças ocorridas entre o final do século XX e o início do atual geraram uma nova e complexa configuração socioespacial, em que se alteraram as noções de tempo e espaço e se intensificou o ritmo de transformação das paisagens, exigindo a construção de uma relação diferenciada do ser humano com os meios natural e social. Se, durante algum tempo, acreditava-se que o desenvolvimento científico e tecnológico seria o cami- nho para gerar bem-estar geral, o que se tem hoje são problemas ambientais desafiadores num mundo em que se aprofundam cada vez mais as desigual- dades socioeconômicas, tanto entre as camadas de uma população quanto entre países ou continentes. A globalização tem sido responsável pela perda da importância das fronteiras econômicas e culturais e pela perda de identidade dos povos e mesmo das pessoas, cujas vidas passaram a ser afetadas por decisões e fatos ocorridos no mundo todo. As rela- ções, seja entre o ser humano e a natureza ou entre Estados-nação, tornam-se cada vez mais complexas. Ao professor de Geografia cabe, portanto, orientar os estudantes na compreensão dessas relações e, sobretudo por meio do entendimento da sua reali- dade, desenvolver sua consciência crítica e compe- tência intelectual, habilitando-os para apreender as características desse mundo complexo e dinâmico e para agir em prol das melhorias exigidas em seus contextos local e global. É com essa preocupação, e entendendo que a função do professor é mediar a apropriação do conhe- cimento pelos estudantes, que procuramos trabalhar metodologicamente esta Coleção, desenvolvendo-a de forma a estimular a compreensão dos temas aborda- dos, por meio de recursos visuais, seções e ativida- des variadas e contextualizadas. Buscamos também direcionar o trabalho com os conteúdos para uma formação social crítica e solidária, em que se propicia a aplicação do aprendizado pelos estudantes às espe- cificidades de seu meio físico, político, econômico, social e cultural. Nessa perspectiva, proporciona- mos situações em que eles terão oportunidades de aplicar os conteúdos visando a uma aprendizagem não apenas em termos conceituais, mas também procedimentais (saber fazer) e atitudinais (saber ser). A organização dos conteúdos e a sequência em que as unidades estão apresentadas nos três livros desta Coleção buscam atender a um encadeamento em que os diversos temas e conceitos não sejam fragmentados, mas estabeleçam relações que per- mitam uma análise mais abrangente da realidade. Importante, porém, destacar que a Coleção deve ser entendida como um facilitador para o trabalho do professor com os estudantes, respeitando-se suas especificidades, e não como um guia a ser seguido rigidamente (veja no item Estrutura da Coleção, bem como nas Orientações específicas deste manual, sugestões de caminhos possíveis de uso dos livros e suas seções). As abordagens partem de duas concepções prin- cipais sobre a Geografia: do espaço geográfico como processo de produção social em permanente trans- formação e da análise do espaço como um sistema de relações em suas diversas escalas: local, regional, nacional e global. São as atividades dos diferentes grupos sociais que definem a organização da produção e do con- sumo, as formas de apropriação dos bens produzidos, as relações de trabalho, as redes de circulação de mercadorias, pessoas e informações e dão vida aos elementos presentes na paisagem. A produção do espaço geográfico envolve natureza e sociedade de forma integrada, em um mesmo processo, e é dessa forma que buscamos desenvolver os conteúdos da Coleção. Temas e conceitos relacionados a natureza, inovação tecnológica, organização do trabalho, rela- ções de poder, questão ambiental são recorrentes no desenvolvimento dos capítulos e dão coerência às unidades que formam a Coleção. PROPOSTA DA COLEÇÃO TS_V2_Manual_ParteComum_289_322.indd 296 30/05/16 14:56