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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Camilla Ayala Felisberto Silva O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: um estudo sobre o tratamento diferenciado e a possibilidade de equiparação do direito hereditário de ambos Belo Horizonte 2019 Camilla Ayala Felisberto Silva O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: um estudo sobre o tratamento diferenciado e a possibilidade de equiparação do direito hereditário de ambos Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação stricto sensu em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Walsir Edson Rodrigues Júnior Área de concentração: Direito Privado Belo Horizonte 2019 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Silva, Camilla Ayala Felisberto S586d O direito sucessório do cônjuge e do companheiro no ordenamento jurídico brasileiro: um estudo sobre o tratamento diferenciado e a possibilidade de equiparação do direito hereditário de ambos / Camilla Ayala Felisberto Silva. Belo Horizonte, 2019. 132 f. Orientador: Walsir Edson Rodrigues Júnior Dissertação (Metrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito 1. Direito de família. 2. Herança e sucessão. 3. Casamento (Direito). 4. União estável. 5. Cônjuges. 6. Companheiros (Direito de família). I. Rodrigues Júnior, Walsir Edson. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDU: 347.6 Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva - CRB 6/2086 Camilla Ayala Felisberto Silva O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: um estudo sobre o tratamento diferenciado e a possibilidade de equiparação do direito hereditário de ambos Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação stricto sensu em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direito Privado ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Walsir Edson Rodrigues Junior - PUC Minas (Orientador) ___________________________________________________________________ Prof.ª. Dr.ª Cláudia Fialho – PUC Minas (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Newton Teixeira Carvalho - Escola Superior Dom Helder Câmara (Banca Examinadora) Belo Horizonte, 8 de março de 2019. À minha eterna vovó Naná, fonte de toda força e inspiração. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, por me oportunizar vivenciar tamanha experiência na vida acadêmica, me permitindo acreditar a cada dia o quanto os sonhos são possíveis de serem realizados e que eles dependem apenas na nossa fé e confiança. À minha amada e eterna Vovó Naná, que desde sempre dedicou seu tempo a me ensinar e me mostrar que o esforço sempre é recompensado e que a vida deve ser vivida de forma intensa e deliciosamente proveitosa. À minha mãe, a maior das minhas inspirações pela escolha de lecionar, que com seu amor à sala de aula me contagiou a trilhar esse caminho. E ao meu pai, que com a sua dedicação e disponibilidade é minha base de sustentação para qualquer escolha que eu faça. Amo vocês! À minha irmã, por ser essa companheira de vida, que me ajuda, me apoia, me entende e esbanja afeto e alegria por onde quer que passe. Ao Pedro, pela parceria e paciência incomensurável durante todo o tempo. Pelo carinho, amor, dedicação e por sempre apoiar minhas escolhas. À Chris e ao Matheus, por serem os melhores amigos e melhores exemplos de esforço e dedicação acadêmica, por todo o compartilhamento de alegrias, tristezas, angústias, vitórias e realizações dentro de um mestrado. Vocês são essenciais em minha vida! Aos meus amigos pelo carinho, respeito, amizade e solidariedade durante todo esse período, principalmente à Ana Carolina, Stephanie, Ju e Luana. Aos meus tios por sempre estarem ao meu lado, se dedicando e me apoiando a cada degrau que eu subo na minha escada de realizações. Ao meu orientador, Professor Walsir Edson Rodrigues Júnior, por ser esse exemplo de profissional dedicado que inspira tantos discentes e docentes, pelos auxílios sempre que solicitado, por ter me dado à honra de acompanhá-lo em estágio de docência, que foi fundamental para que eu tivesse a certeza do caminho que venho perseguindo. Aos demais professores e colegas do PPGD – PUC Minas por compartilharem tantas ideias; e pelos amigos do SAJ por todo carinho, amizade e apoio. Agradeço, por fim, a todos e todas que torceram por mim nessa fase tão especial da minha vida, muito obrigada! “É necessário fazer outras perguntas, ir atrás das indagações que produzem o novo saber, observar com outros olhares através da história pessoal e coletiva, evitando a empáfia daqueles e daquelas que supõem já estar de posse do conhecimento e da certeza.” Mário Sérgio Cortella RESUMO O direito sucessório brasileiro no que diz respeito ao cônjuge e ao companheiro passou por um longo processo evolutivo, com significativa influência do direito português até chegar à fase atual, através do Código Civil de 2002. A codificação civil atual estabeleceu regras distintas ao direito hereditário das famílias constituídas por casamento e união estável, destacando-se que todo o regramento desta última fora inserido em um único dispositivo, o artigo 1.790, que inclusive fora objeto de discussão em sede de repercussão geral, em que se reconheceu a sua inconstitucionalidade nos Recursos Extraordinários 646.721 e 878.694, por entenderem os julgadores que o referido dispositivo tratava a matéria sucessória do companheiro de forma discriminatória e limitada em relação aos direitos sucessórios do cônjuge. Parte-se do pressuposto de que as famílias devem receber total proteção estatal, garantindo-se o respeito a princípios como a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a solidariedade familiar. A Constituição da República de 1988 coloca a união estável no mesmo patamar de espécie de família em que se encontra o casamento. Assim, utilizando-se do método dedutivo, por meio de pesquisa e investigação objetivando uma percepção geral, através de uma revisão bibliográfica de fontes presentes na doutrina do direito além da legislação e da jurisprudência, buscou-se analisar os aspectos do tratamento diferenciado atribuído ao direito sucessório do cônjuge e do companheiro no ordenamento jurídico brasileiro e a possibilidade de equiparação como solução, atendendo aos ditames constitucionais vigentes e aos anseios sociais modernos. Palavras-chave: Direito de Família. Direito das Sucessões. Casamento. União Estável. Cônjuge. Companheiro. Diferenças. Equiparação. ABSTRACT The Brazilian succession law about the spouse and the partner went through a long evolutionary process,with significant influence of Portuguese Law until culminating in that current stage, through the Civil Code of 2002. The current civil codification established different rules to the hereditary right of the families constituted by marriage and civil union, emphasizing that the entire rule of the latter was inserted into a single device, the article 1.790, which had even been the subject of discussion in general repercussions, where its unconstitutionality was recognized in Extraordinary Judicial Resources 646.721 e 878.694, to comprehend the judges that the said device treated the succession matter of partner discriminatory and limited manner in relation to the spouse's succession rights. It assumes that families must receive entire state protection, certifying respect for principles such as equality, dignity of the human person and family solidarity. The Constitution of the Republic of 1988 places the civil union on the same level as the kind of family in which the marriage is. Thus, using the deductive method, through means of research and investigation objectify at a general perception, through a bibliographical review of sources present in the doctrine of law further to legislation and jurisprudence, sought assay the aspects of the differential treatment attributed to the inheritance law of the spouse and the partner in Brazilian legal system and the possibility of equating as a solution, according with the current constitutional dictates and modern social desires. Keywords: Family Law. Succession Law. Marriage. Civil union. Spouse. Partner. Differences Equalization. LISTA DE ABREVIATURAS AC – Apelação Civil ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental AI – Agravo de instrumento Art. – Artigo Coord. – Coordenação C. Cív. – Câmara Cível Des. – Desembargador Ed. – Edição JDC – Jornada de Direito Civil Jul. – Julgamento n. – número Org. - Organizadores p. – página Rel. – Relator REsp – Recurso Especial REx – Recurso Extraordinário v. – Volume LISTA DE SIGLAS CC/16 – Código Civil de 1916 CC/02 – Código Civil de 2002 CJF – Conselho de Justiça Federal CNJ – Conselho Nacional de Justiça CR/88 – Constituição da República de 1988 CPC/73 – Código de Processo Civil de 1973 CPC/2015 – Código de Processo Civil de 2015 IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJRS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13 2 CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL: DIFERENÇAS E SIMILITUDES .................... 17 2.1 Espécies de Família ........................................................................................................... 22 2.1.1 Famílias matrimoniais .................................................................................................. 26 2.1.2 O reconhecimento da União Estável no Direito Brasileiro como entidade familiar ... 29 2.2 Principais semelhanças e diferenças legítimas entre casamento e união estável ........ 33 2.2.1 A definição dos marcos de constituição e dissolução .................................................... 35 2.2.2 A vênia conjugal ............................................................................................................. 36 2.2.3 A presunção legal de paternidade .................................................................................. 37 2.2.4 As implicações no Direito das Sucessões ....................................................................... 39 3 O DIREITO DAS SUCESSÕES E A PARTICIPAÇÃO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO ................................................................................................................... 43 3.1 Breve análise do Direito das Sucessões ........................................................................... 43 3.2.1 Aspectos históricos do Direito das Sucessões ................................................................ 45 3.2.2 Apontamentos sobre o sistema sucessório romano-germânico .................................... 45 3.2.3 Do Direito Português ao Direito Brasileiro ................................................................... 49 3.3 A evolução do Direito das Sucessões na legislação brasileira ....................................... 51 3.3.1 A sucessão legítima e a ordem de vocação hereditária ................................................. 56 3.3.2 A sucessão do cônjuge no Código Civil de 2002 ........................................................... 60 3.3.3 A sucessão do companheiro no Código Civil de 2002 ................................................... 66 3.4 Fundamentos justificadores e função social do Direito Sucessório .............................. 70 4 OS REFLEXOS DO TRATAMENTO DIFERENCIADO ATRIBUÍDO AO CÔNJUGE E AO COMPANHEIRO NO DIREITO SUCESSÓRIO ............................... 81 4.2 A defesa pela manutenção do tratamento desigual entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios ............................................................................................................... 90 4.3 A defesa pela inconstitucionalidade do regramento sucessório dispensado ao companheiro e a consequente equiparação ao cônjuge ....................................................... 94 5 A PERSISTÊNCIA DOS PROBLEMAS MESMO APÓS OS JULGAMENTOS DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS 878.694 E 646.721 PELO STF ............................. 109 5.1 Direito real de habitação ................................................................................................ 112 5.2 Reserva de quota-parte ao cônjuge sobrevivente na concorrência com filhos comuns ................................................................................................................................................ 115 5.3 Herdeiro necessário ........................................................................................................ 117 6 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 121 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 125 13 1 INTRODUÇÃO Em meio aos organismos sociais e jurídicos o conceito, a extensão e a compreensão de família tende a se modificar de acordo com o tempo dentro da sociedade. Conforme aduzem Almeida e Rodrigues Júnior (2012), são ―significações diversas condizentes com diferentes momentos históricos‖ (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 1), ou seja, não basta fechar o conceito de família atual quando já se tem ciência de que em pouco tempo ele tende a se modificar. Entretanto, independentemente do tipo de família, é dever do Estado protegê-la, sob o risco de incorrer em forte contrariedade ao disposto no art. 226 da Constituição da República de 1988. Diante da ampla proteção atribuída às entidades familiares em suas diversas formas através da Carta Magna de 1988, questionamentos acerca da aplicação das leis infraconstitucionais em sua literalidade – e ainda mesmo através da hermenêutica – vêm causando certo desconforto na jurisprudência, na doutrina e até entre os legisladores. Exemplo disso é a discussão acerca do tratamento diferenciado que foi atribuído ao cônjuge e ao companheiro no direito sucessório a partir do Código Civil de 2002. Carlos Maximiliano (1958, p. 19) define direito sucessório como ―o conjunto de normas reguladoras da transmissão dos bens e obrigações de um indivíduo em consequência de sua morte. No sentido subjetivo, mais propriamentese diria – direito de suceder, isto é, de receber o acervo hereditário de um defunto.‖ Ainda seguindo a ideia do referido autor, há que se reconhecer que a família labuta e colabora pelo interesse comum com relação aos seus bens, no intuito de aumentar o patrimônio não só individual, mas de forma geral, a fim de garantir o próprio futuro. E os legisladores tendo ciência e reconhecimento desse esforço mútuo, amparam e desenvolvem o direito hereditário. (MAXIMILIANO, 1958). Logo se vê a ligação do direito sucessório com a família, sendo a proteção familiar considerada atualmente, também, um dos fundamentos do direito sucessório. Em razão do princípio da solidariedade, que fundamenta os deveres de assistência do pai aos filhos, bem como do filho ao pai, diante do disposto no art. 229 da CR/88, a transmissão hereditária visa proporcionar a propriedade do antecessor, segundo o princípio da afeição real ou presumida. (PEREIRA,2018) 14 O direito sucessório relativo ao cônjuge sobrevivente perpassou por uma legislação inconstante e mutável até ser regulamentada pelo Código Civil de 2002, vigente até os dias atuais. A evolução do direito sucessório brasileiro se assemelhou muito, em matéria de vocação do cônjuge, ao direito português. E com o advento do CC/2002, por exemplo, permitiu ao cônjuge a posição de herdeiro necessário, sendo-lhe assegurada a legítima, além de ter alcançado direitos de extrema pertinência sob a égide da proteção constitucional às entidades familiares e seus membros. No que diz respeito ao companheiro, a sua sucessão obteve destaque nas disposições regulamentadas pelas leis n. 8.971 de 29 de dezembro de 1994 e n. 9.278 de 10 de maio de 1996. O CC/2002, por sua vez, trouxe praticamente toda a matéria pertinente à vocação hereditária do companheiro disposta no artigo 1.790. Partindo da premissa de proteção às famílias interligada ao direito sucessório, essa pesquisa visa estudar sobre o tratamento desigual que foi atribuído ao cônjuge e ao companheiro sobrevivente no Código Civil de 2002, a fim de analisar se a distinção estabelecida possui fundamento plausível no ordenamento jurídico. O assunto se tornou emblemático e a principal discussão que se tornou pauta nos tribunais pátrios fora a indagação a respeito da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002. O tema foi julgado pelo STF em sede de repercussão geral nos Recursos Extraordinários 646.721 e 878.694, sob relatoria dos Ministros Marco Aurélio e Luís Roberto Barroso respectivamente, obtendo, por maioria de votos decisão favorável à declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo legal. Entretanto, ainda que se considere o aludido artigo inconstitucional, continuarão existindo questionamentos sobre a sucessão do cônjuge e do companheiro de forma comparativa, tendo em vista que ao se declarar inconstitucional o referido artigo não se estará equiparando por completo o direito sucessório de ambos. Após a publicação dos acórdãos dos referidos recursos, houve ainda a interposição de embargos declaratórios suscitando clareza sobre a aplicação dos demais dispositivos que dizem respeito ao direito hereditário do cônjuge ao companheiro. Contudo, por unanimidade de votos, o STF rejeitou os embargos, não estendendo o julgamento à análise dos demais assuntos que diferenciam os direitos sucessórios de ambas as entidades familiares. A garantia do direito real de habitação ao companheiro bem como a sua colocação como herdeiro necessário e a reserva de quarta parte da herança são pontos que aparentam permanecerem nas linhas de discussões jurisprudenciais e doutrinárias, por exemplo. 15 Este estudo, portanto, objetiva aprofundar a análise sobre a possibilidade de equiparação dos direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro, a fim de reduzirem ao máximo, a ponto até mesmo de findarem, as vastas discussões que permeiam o tema há tantos anos. Para tanto, serão analisados os principais autores que escrevem sobre a matéria, fazendo-se, também, uma busca jurisprudencial a fim de analisar a atual realidade jurídica brasileira no que diz respeito ao tema proposto. Primeiramente, será feita uma análise sobre o Direito de Família, apresentando as diferenças e similitudes entre o casamento e a união estável, seguindo de um estudo sobre a evolução do Direito das Sucessões, com ênfase no sistema brasileiro sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente. Em seguida, o estudo adentrará em uma análise crítica apontando os problemas advindos do tratamento diferenciado que é atribuído ao cônjuge e ao companheiro no direito sucessório brasileiro, até a repercussão geral que chegou ao STF através dos Recursos Extraordinários aludidos, expondo partes dos votos dos Ministros e as consequências desses julgamentos. Por fim, serão apresentados os temas que se acredita que permanecerão sendo pontos de discussão entre os juristas mesmo após a decisão do STF sobre a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002. A pesquisa desenvolvida utilizou-se de uma abordagem metodológica dedutiva, através de métodos procedimentais comparativos e interpretativos, por meio de pesquisas bibliográficas em que foram analisadas informações contidas na doutrina e na jurisprudência brasileira. Dessa forma, o intuito é contribuir com a redução do acúmulo de demandas judiciais que trazem em seu bojo discussões comparativas sobre o direito sucessório do cônjuge e do companheiro, além de procurar preservar a segurança jurídica e as garantias fundamentais dispostas na própria Constituição da República, respeitando princípios constitucionais, almejando que a legislação pátria seja progressiva e que acompanhe a realidade fática vivida pela maioria dos brasileiros hodiernamente. 16 17 2 CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL: DIFERENÇAS E SIMILITUDES Considerada como a base fundamental da sociedade, a família pode ser considerada como uma das formações mais antigas e importantes da humanidade, pois o indivíduo por natureza tem necessidade em criar vínculos para a sua sobrevivência. Jacques Lacan (2002) traz interessante observação ao afirmar que: Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada de materna. Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, preside esta organização das emoções segundo tipos condicionados pelo meio ambiente, [...]. (LACAN, 2002, p. 13) A família primitiva era caracterizada por relações sexuais múltiplas envolvendo todos os membros do grupo (endogamia), de forma que essas relações impediam de estabelecer, com certeza, a paternidade, fazendo com que a filiação só pudesse ser contada pela linha feminina, de acordo com o direito materno. Passou-se, então, à monogamia, voltando-se a constituição da família através do relacionamento mantido entre um homem e uma mulher, por grande influência da religião. (ENGELS, 1984). De acordo com os estudos apresentados por Friedrich Engels (1984), a família consanguínea foi a primeira etapa da família: Nela, os grupos conjugais classificam-se por gerações: todos os avôs e avós nos limites da família são maridos e mulheres entre si; o mesmo sucede com seu filho, quer dizer, com os pais e mães; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns; e seus filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto círculo. (ENGELS, 1984, p. 37) Essa primeira etapa foi substituída pela família punaluana, designação advinda do termo ―punalua‖ que significa companheiro íntimo. Nesse tipo de organizaçãofamiliar foram excluídos os irmãos carnais das relações sexuais recíprocas. Essa família, também, foi responsável por indicar certos graus de parentesco, apresentando as designações sobrinho, sobrinha, primo e prima. Em seguida, a família punaluana foi superada pela família sindiástica, que adotava o sistema matriarcal, uma vez que a poligamia e a infidelidade 18 ocasional eram permitidas aos homens, fazendo com que só fosse possível distinguir de maneira acertada a linha ascendente materna. (ENGELS, 1984). Após, houve a substituição pela família patriarcal, caracterizada pelo aumento de riquezas do homem que o fez repensar sobre se colocar em posição mais importante que a mulher. Isso, porque, como o sistema era matriarcal, com a morte do pai seus filhos não herdavam, recebendo somente o que fosse deixado pela mãe. O patriarcalismo surge então caracterizando o: Desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu- se degradada, convertida em servidora, em escrava a luxuria do homem, em simples instrumento de reprodução. (ENGELS, 1984, p. 61) Surge, então, a família monogâmica, desempenhando ―um papel de impulso social em benefício da prole, ensejando o exercício do poder paterno.‖ (VENOSA, 2018, p. 3). Em Roma, a religiosidade era o pilar da família, baseada no culto aos mortos por meio da adoração aos antepassados. Fustel de Coulanges (2009) em sua clássica obra ―A cidade antiga‖ aduz que ―a família antiga é uma associação religiosa, mais ainda do que uma associação natural‖ (COULANGES, 2009, p. 53) e que o princípio da família não estava no afeto natural, mas sim na comunidade do culto. O autor afirma que não foi a religião que criou a família, mas foi ela quem lhe concedeu normas e, por isso, os sentimentos naturais não importavam para fundamentá-la. No que diz respeito ao direito brasileiro, houve forte influência do Direito Romano na codificação e criação do Código Civil de 1916, que se caracterizava por um modelo de família patriarcal e hierarquizado. A união de pessoas com o intuito de procriar e formar patrimônio para garanti-lo aos herdeiros era o resultado da compreensão de família como unidade de produção à época da Revolução industrial, importando-se pouco com as relações de afeto, priorizando os valores patrimoniais. No decorrer do tempo, os valores se modificaram e uma nova sociedade passou a ser arquitetada através das novas conquistas do homem e do avanço científico. Volta-se mais à garantia constitucional da dignidade do indivíduo, por meio de um modelo familiar descentralizado e igualitário, buscando acompanhar a realidade. Para Pietro Perlingieri: A família como formação social, como "sociedade natural", é garantida pela Constituição não como portadora de um interesse superior e superindividual, mas, sim, em função da realização das exigências humanas, como lugar onde se desenvolve a pessoa. A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana: ainda que diversas possam ser as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela pertencem. (PERLINGIERI, 2002, p. 243) 19 Como se percebe, a constituição da família se deu de forma espontânea no meio social, sendo posteriormente estruturada através do direito. A interferência estatal no âmbito familiar foi o ponto cerne que levou o legislador a se dedicar ao estudo das famílias e criar um ramo no direito totalmente dedicado a esse instituto. (DIAS, 2009). Ocorre que, apesar da tentativa legislativa em manter-se em constante atualização sobre o tema, o legislador não consegue acompanhar de forma imediata a realidade social que é mutável e que leva consigo as inquietudes das famílias: A sociedade evolui, transforma-se, rompe com tradições e amarras, o que gera a necessidade de constante oxigenação das leis. [...] No entanto, a mais árdua tarefa é mudar as regras do direito das famílias. Quando se trata das relações afetivas – afinal, é disso que trata o direito das famílias -, a missão é muito mais delicada em face de seus reflexos comportamentais que interferem na própria estrutura da sociedade. (DIAS, 2009, p. 29) Os princípios que regem o Direito de Família, diante da proposta da Constituição de 1988, também remodelam esse ramo jurídico com frequência. É por isso que o Projeto de Lei que pretende instituir o Estatuto das Famílias (PL 470/2013) – projeto esse em que grande parte das ideias são capitaneadas pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) – prescreve em seu art. 5º que são princípios fundamentais ao Direito de Família “a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar, a igualdade de gêneros, de filhos e das entidades familiares, a convivência familiar, o melhor interesse da criança e do adolescente e a afetividade.‖ (TARTUCE, 2017a, p. 6) Estabelecer o que caracteriza uma família hodiernamente está muito além da estrutura convencional que por tanto tempo foi modelo na sociedade: aquela formada por pai, mãe e filhos. A família atual é baseada no conceito eudemonista, rompendo com os paradigmas clássicos, estando baseada na busca pela felicidade e solidariedade. ―Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida.‖ (LÔBO, 2017, p. 15). E o Direito, portanto, tende a acompanhar essa premissa, a fim de conseguir proteger as famílias de forma ampla, como ordena a Constituição da República de 1988. O sistema jurídico, portanto, busca reconhecer e conceder proteção às relações familiares indiscriminadamente, ciente de que a família, no que tange aos seus referenciais, ―funda-se [...] em sua feição jurídica e sociológica, no afeto, na ética, na solidariedade 20 recíproca entre os seus membros e na preservação da dignidade deles.‖ (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 36) Ao afirmar que o Direito se ocupa com a importância social da família, a fim de garantir a harmonia das relações sociais, é necessário entender, primordialmente, o que é família para, assim, formular o tratamento que lhe será destinado. Conforme asseveram Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2012): Em síntese, se a compreensão da família se condiciona ao ambiente social e o Direito pretende dispensar-lhe tutela válida, imperioso é que este se mostre atento às eventuais alterações de significado pelas quais a família pode passar. Nessa perspectiva é que se creem válidas a verificação e a avaliação de cada um dos entendimentos jurídicos sobre a família, constatados no decorrer dos tempos. Por meio dessa visão crítica deparar-se-á com certas incongruências do Direito pátrio, e, ainda, concluir-se-á, diante do vigente ordenamento jurídico, acerca de um conceito, ao menos contemporâneo, de família. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 2) A família, ao longo da história, foi objeto de conceituações conforme lhe era atribuída a sua função, sendo ela religiosa, política ou até mesmo econômica. A estrutura, antes, patriarcal, conforme já observado, sobrepunha o poder masculino sobre o feminino, estabelecendo uma hierarquia rígida e baseada, principalmente, na religião. (LÔBO, 2017). Como bem observam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017): Para os romanos, o casamento era um estado de fato, que produzia efeitos jurídicos. Paralelo a ele, existia também a figura do concubinatus, que consistia em toda união livre entre homem e mulher na qual não ocorresse a affectio maritalis, efeito subjetivo do casamento, que representava o desejo de viver com o parceiro para sempre. [...] Com a decadênciado Império Romano e o crescimento do Cristianismo, houve uma gradativa alteração do significado da família. [...] Fundada essencialmente no casamento, que, de situação de fato, foi elevado à condição de sacramento, tal modelo se tornou hegemônico na sociedade ocidental. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 55) Se o objetivo era criar gerações que mantivessem as tradições, família passou a estar diretamente ligada ao casamento, por meio do qual a mulher se afastava da sua religião de origem para passar a fazer parte definitivamente da religião doméstica de seu esposo. A autoridade familiar se fundava no homem, por meio de uma estrutura altamente patriarcal e hierárquica. Foi esse o modelo que inspirou o Código Civil de 1916, obviamente contando com atualizações oriundas da evolução da própria sociedade da época, como, por exemplo, visando a perpetuação do patrimônio na família e não mais a veneração ao culto dos antepassados. Mas o que torna imperioso destacar é que a legislação brasileira focou em 21 considerar que a família se fundava estritamente no casamento e que seus membros tinham funções diversas sendo elas inferiores ou superiores conforme os valores da época. Com o passar dos tempos o conceito de família foi se modificando de acordo com o avanço da sociedade e da diversificação dos valores, assumindo, hoje, uma concepção plural que diz respeito a indivíduos ligados por vínculos biológicos ou não, no intuito de estabelecer o desenvolvimento da personalidade de cada envolvido, formando-se a partir de três elementos considerados principais: estabilidade, afetividade e ostensibilidade. ―Família é o núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo sócioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes.‖ (GAGLIANO; PAMPLONA, 2017a, p. 49). Para Luiz Edson Fachin (2003): o ente familiar é um corpo que se reconhece no tempo. Uma agregação histórica e cultural como espaço de poder, de laços e de liberdade. Uma aliança composta para representar harmonia e paradoxos. Uma agremiação destinatária de projetos e de discursos, especialmente da alocução normativa, junção que encarna o elo entre o direito, a família e a sociedade [...]‖(FACHIN, 2003, p. 3) O conceito de família vai trazer forte influência no direito sucessório, uma vez que as pessoas chamadas por lei a herdar são aquelas que compreendem o núcleo familiar. Assim como trará efeitos em outros institutos do Direito Civil, confirmando ser ela a ―célula social por excelência‖. (PEREIRA, 2017) Base de sustentação do conceito de família na contemporaneidade é caracterizá-la como eudemonista, em que se busca garantir, principalmente, a felicidade de cada sujeito que dela faça parte. Mister se faz compreender que a família assume diferentes funções a partir dos valores e circunstâncias de tempo e lugar, sendo um fenômeno que se mantém em um permanente processo de mudança e evolução: Ao mesmo tempo que é relação privada, é pública – cantada e decantada como base da sociedade. Família, um caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua constituição e consolidação em cada geração, que se transforma com a evolução da cultura, de geração para geração. (GROENINGA, 2003, p. 125) Norte de todo o ordenamento jurídico pátrio, a dignidade da pessoa humana é verdadeira cláusula geral de proteção do indivíduo, que traz consigo, dentro do texto constitucional, princípios como a igualdade, a solidariedade, a pluralidade das entidades familiares, a proteção da criança e do adolescente, a paternidade responsável, a isonomia dos 22 filhos e a tutela especial à família, todos relativos à família. Nas palavras de Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Leandro dos Santos Guerra (2007, p. 128), a família ―deve ser protegida na medida em que atenda a sua função social, ou seja, na medida em que seja capaz de proporcionar um lugar privilegiado para a boa vivência e dignificação de seus membros‖, independentemente de qual seja a sua formação. A partir da premissa de que a família existe em função de seus componentes, tem-se que a promoção da dignidade e a realização da personalidade de cada membro da família seja o intuito precípuo que o Direito tenha que garantir quando se volta à regulamentação desse instituto. Conforme asseveram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 33): ―Dúvida inexiste de que a família, na história dos agrupamentos humanos, é o que precede a todos os demais, como fenômeno biológico e como fenômeno social, motivo pelo qual é preciso compreendê-la por diferentes ângulos.‖ Nesse sentido, passa-se, então, a um estudo sobre as diferentes espécies de família no direito brasileiro, atribuindo ênfase ao casamento e à união estável, observando as similitudes e diferenças existentes entre elas, no intuito de estabelecer uma base coerente para o ponto central do presente estudo. 2.1 Espécies de Família Faz-se necessário partir de uma visão pluralista de família, que abrange os mais diversos arranjos de relacionamentos que se fundam por um elo de afetividade, para entender que o modelo atual de família vai muito além do casamento. Pelo caput do artigo 226 da Constituição da República de 1988 (CR/88) 1 percebe-se, sem questionamentos, que a família deve ser protegida pelo Estado de forma especial, tendo em vista ser considerada a base da sociedade. Nesse diapasão, segue o parágrafo 3º do referido artigo reconhecendo a união estável como entidade familiar, através do princípio da isonomia e o parágrafo 4º, atribuindo igual proteção às famílias constituídas por qualquer dos pais e seus descendentes. Como bem afirma Newton Teixeira Carvalho (2018a, p. 1), ―a Constituição de 1988 é inclusive, ou seja, preocupou com a camada da população que estava alijada do direito.‖ 1 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 23 Pode-se afirmar que o que conduziu este transcurso permitindo um abrigo constitucional à família plural fora o ―redimensionamento jurídico conquistado pela mulher e pela filiação, especialmente escudados no princípio da igualdade.‖ (FACHIN, 2003, p. 93). A partir dessa recepção de novos modelos sociais de condutas, garantir proteção às diversas arquiteturas familiares tornou-se constante intenção do legislador. Entretanto, há que se reconhecer que tal proteção, hodiernamente, não se assenta somente nas formas de família prescritas em lei. Conforme entendimento de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017), todas as entidades familiares formadas por seres humanos, baseadas na ética, no afeto e na solidariedade, ainda que não explicitamente elencadas na Constituição da República de 1988, devem ser admitidas pelo Direito das Famílias. Nesse sentido também coaduna Paulo Luiz Netto Lôbo (2002) ao afirmar que: Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstancias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana. (LÔBO, 2002, p. 46) Dessa forma, verifica-se que o rol elencado no artigo 226 da CR/88 não é taxativo, mas exemplificativo, podendo-se considerarque no Direito das Famílias são admitidas todas as formas de agrupamento de indivíduos que se baseiam na afetividade e no conceito eudemonista. Nas palavras de Paulo Lôbo (2002, p. 55): "Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição brasileira não encerram numerus clausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas [...]." Trata-se o referido artigo, portanto, segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017), de uma ―cláusula de inclusão‖, pois ―são o cotidiano, as necessidades e os avanços sociais que se encarregam da concretização dos tipos.‖ (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 73). Também para Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2012), qualquer formação dita como familiar deve ser protegida pelo direito, sem exceção: Tornar efetivo o direito fundamental de constituir família requer, dentre outras providências, ao menos partir do pressuposto de que famílias possíveis são todas aquelas que forem eleitas autonomamente pelos envolvidos, sejam, ou não, já 24 conhecidas juridicamente. Lembre-se de que, para proteção de tal direito, é dever do sistema jurídico – instrumento estatal – não impedir, em princípio, quaisquer formações familiares. Mesmo na incerteza, há que se tender para o reconhecimento destas. O paradigma há de ser: in dubio pro familae. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 62) O casamento foi o primeiro tipo de família constitucionalizado, por muito tempo considerado o único modelo familiar aceito. Divide hoje o espaço no artigo 226 da CR/88 com a união estável e as famílias monoparentais, explicitadas no referido dispositivo legal, como já aludido. As famílias matrimoniais e a união estável serão analisadas de forma mais acurada em momento oportuno deste estudo, razão pela qual se passa ao exame das famílias monoparentais e às demais formas de família existentes atualmente. Estando expressa a sua proteção no §4º do artigo 226 da CR/88, são chamadas famílias monoparentais aquelas onde há somente a presença de um dos pais na titularidade do vínculo familiar e sua descendência. Têm, portanto, como principal característica, a unilinearidade, ressaltando a relação de parentesco em linha reta como formadora de uma entidade familiar. Conforme já aduzido, a Constituição da República de 1988 não limitou os tipos de família, tornando imperioso, então, apresentar alguns dos demais arranjos familiares que hodiernamente fazem parte do cotidiano social e que já são plenamente reconhecidas pela doutrina brasileira. Famílias recompostas, também chamadas de famílias reconstruídas, pluriparentais ou mosaico (DIAS, 2009), são aquelas formadas por uma multiplicidade de vínculos, fomentados pela dissolução de um relacionamento anterior e união de novos sujeitos que trazem consigo seu antigo arranjo familiar e, muitas das vezes, acabam tendo filhos em comum. Que se trata de um modelo de família admitido atualmente não se tem dúvidas; mas, apesar desse fato, é um assunto que provoca outras questões doutrinárias que o tema aqui proposto não permite aprofundar. Vale, no entanto, asseverar que o número de famílias recompostas além de extenso cresce mais a cada dia e vem trazendo consigo algumas mudanças no ordenamento, como a Lei nº 11.924/2009 que admitiu que o(a) enteado(a) pudesse pleitear em juízo a averbação do nome do padrasto ou madrasta, acrescendo o sobrenome desse ao seu. (LÔBO, 2017) E em 2017, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento nº 63 (em 17 de novembro de 2017), que permitiu o reconhecimento da filiação socioafetiva diretamente perante o Cartório de Registro Civil, de maneira totalmente administrativa, desde que atendido os requisitos. Isso porque, com a recomposição das famílias, nasce, por muitas vezes, o interesse pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva, além de trazer discussões 25 acerca da multiparentalidade, que inclusive foi tese de repercussão geral (Recurso Extraordinário 898.060). Comumente conhecido como concubinato adulterino, denomina-se hoje família simultânea à existência de um sujeito que mantém mais de um núcleo familiar. Conforme afirmam Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2012, p. 72): ―A matéria é recheada de conturbações, sendo, muitas vezes, motivo até de reações perplexas. Tudo isso porque a discussão remonta a um dos parâmetros sociais de maior carga dogmática, qual seja, o ideal da monogamia.‖ Inobstante todas as discussões que permeiam o assunto, o Direito não pode negar a existência dessas famílias excluindo-as do âmbito do direito das famílias e sucessório, pois são relações que já repercutem no mundo jurídico. (DIAS, 2009) De acordo com Sérgio Resende de Barros (2003) anaparental é a família constituída sem a presença dos pais. Maria Berenice Dias (2009) vai além, afirmando que a convivência familiar para resultar na entidade anaparental independe se os sujeitos que a ela façam parte sejam parentes ou não. Fato é que para constituir-se uma entidade familiar tal realidade necessita cumprir os requisitos gerais necessários: ―que as pessoas estejam juntas porque mantêm entre si laços de afeto e, sobretudo, que o façam com pretensões de estabilidade, da qual naturalmente decorrerá a ostensibilidade.‖ (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 75) As uniões homoafetivas hoje são indubitavelmente reconhecidas como entidades familiares, mas para tanto foi necessário um vasto e prolongado embate entre doutrina, jurisprudência e legislação. O ordenamento jurídico brasileiro sempre foi expresso em afirmar que família somente se constituía entre homem e mulher, ignorando a existência de inúmeros relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, que preenchiam os requisitos de entidades familiares. Somente em 2011, pela ADI 4277, o STF decidiu que a união homoafetiva tratava- se de espécie do gênero união estável; e em 2012, a partir do REsp 1183378, o STJ deliberou sobre a legalidade e constitucionalidade do casamento direto entre pessoas do mesmo sexo, deixando a união homoafetiva de ser considerada entidade familiar autônoma, passando a ser determinada como família matrimonial ou como uma união estável. (LÔBO, 2017) As formas de família são, portanto, inesgotáveis. ―Tendo por epicentro o afeto e por centro o lar por ele constituído e mantido, os direitos humanos familiais – tanto o direito fundamental à família, quanto os direitos operacionais da família – não mais podem ser recusados a nenhuma forma de entidade familiar.‖ (BARROS, 2003, p. 154) A proteção, 26 portanto, deve ser ampla e acompanhar a evolução social atendendo aos anseios que ela despertar. A fim de concluir a base da presente pesquisa, mister se faz expor uma sucinta apresentação sobre as duas formas de família que são os pilares da discussão ora apresentada: as famílias matrimoniais e as uniões estáveis. 2.1.1 Famílias matrimoniais Até 1889, com o advento da República e a laicização do Estado, somente era aceito como casamento aquele instituído pela forma religiosa, de maneira que o casamento civil apenas surgiu em 1891. (DIAS, 2009) O Código Civil de 1916 praticamente definiu como família o casamento, fazendo com que qualquer modelo de família fora dos parâmetros do casamento fosse considerada ilegítima e sequer recebia proteção estatal, projetando efeitos apenas no âmbito obrigacional. A partir da Constituição de 1988 o próprio Estado reconheceu outras formas de família – artigo 226 e parágrafos da CR/88 – estabelecendo, também, a igualdade entre seus membros e rompendo por definitivo com a definição de casamento como sinônimo de família, passando a considerar família como gênero que abrange várias espécies de entidades familiares. O conceito de casamento por muito tempo foibaseado em uma definição que estabelecia a união entre homem e mulher apenas. Entretanto, conforme já aludido, tanto doutrina quanto jurisprudência já assentiram sobre a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, fazendo com que a definição do instituto, hoje, tenha por base a norma constitucional e a absoluta igualdade entre as pessoas humanas. Flávio Tartuce (2017) define casamento ―como a união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo Estado, formada com o objetivo de constituição de família e baseado em um vínculo de afeto.‖ (TARTUCE, 2017a, p. 47). Nesse sentido, também corroboram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017): Pode-se dizer que o casamento é uma entidade familiar estabelecida entre pessoas humanas, merecedora de especial proteção estatal, constituída, formal e solenemente, formando uma comunhão de afetos (comunhão de vida) e produzindo diferentes efeitos no âmbito pessoal, social e patrimonial. (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 176) Quanto à natureza jurídica do casamento ainda pairam divergências doutrinárias, existindo três teorias: teoria institucionalista, que se refere à natureza institucional do 27 casamento, ou seja, seria o casamento uma situação jurídica que, apesar de nascer da vontade das partes, reflete parâmetros pré-estabelecidos pelo legislador, recebendo da lei forma, normas e efeitos. (MONTEIRO, 2016); teoria contratualista, tratando o casamento com uma natureza puramente negocial, como um contrato de natureza especial, por se tratar de ato que decorre da vontade dos sujeitos. Tal teoria é defendida por Caio Mário da Silva Pereira (2017, p. 90) que ―considera o casamento um ‗contrato especial‘, dotado de consequências peculiares, mais profundas e extensas do que as convenções de efeitos puramente econômicos, ou ‗contrato de Direito de Família‘, em razão das relações específicas por ele criadas.‖; e para os doutrinadores que não concordam com nenhuma das duas teorias expostas em sua completude, como Flávio Tartuce (2017a), criou-se a teoria mista ou eclética, segundo a qual ―casamento é uma instituição quanto ao conteúdo e um contrato especial quanto à formação‖ (TARTUCE, 2017a, p. 49). Para tanto, acredita-se ser mais adequado definir a natureza jurídica do casamento considerando-o ―um negócio jurídico sui generis, por se formar a partir do consenso dos nubentes e por ter efeitos ex lege e efeitos ex voluntade.‖ (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 95). Merece, portanto, a importante observação trazida por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017): Parece-nos, via de consequência, que no alvorecer do século XXI, com a possibilidade de dissolução consensual do casamento em cartório, se tornaram despiciendas as discussões acerca da natureza jurídica do matrimônio, eis que o ordenamento jurídico brasileiro, de certo modo, confirma que a sua formação e a sua extinção dependem, fundamentalmente, da vontade das partes, o que é sinal indicativo indiscutível da sua natureza negocial. Naturalmente, trata-se de um negócio jurídico especial, de índole familiar, não se submetendo, diretamente, a todas as regras do direito contratual, em face de sua estruturação existencial. (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 180) Sobre as finalidades do casamento importante observar que, assim como seu conceito, trata-se de um tema que vem sofrendo constantes mudanças de paradigmas conforme a evolução da sociedade. Não cabe mais, por exemplo, falar-se em procriação como uma finalidade do casamento, uma vez que ter ou não ter filhos parte do livre planejamento familiar escolhido por cada casal, sendo inclusive assegurado pelo §7º do artigo 226 da CR/1988, de forma que é vedado ao Estado e às instituições privadas intervirem de forma coercitiva nesse planejamento. Nesse mesmo sentido também não são consideradas finalidades do casamento, como outrora, a legalização das relações sexuais, a atribuição do 28 nome ao cônjuge ou a reparação de erros do passado. Como Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017) afirmam, estabelecer comunhão de afetos pode ser considerada como a finalidade precípua do casamento, ou seja, é ter como base a autonomia privada para garantir o livre desenvolvimento de cada membro que faça parte da relação. O Código Civil de 2002 disciplina o casamento no Subtítulo I, nomeado ―Do Casamento‖, dentro do Título I (Do Direito Pessoal) que por sua vez encontra-se disposto no Livro IV, Do Direito de Família. Entre os artigos 1.511 e 1.590 estão regulamentados os assuntos basilares sobre o casamento, como capacidade, impedimentos, procedimento de habilitação, formas de dissolução entre outros, o que demonstra o cuidado que teve o legislador ao tratar dessa entidade familiar na legislação pátria. Dentre os assuntos relacionados à temática, mister se faz destacar sobre o regime de bens no casamento, que inclusive interfere diretamente no Direito Sucessório. Existem hoje expressamente contemplados no Código Civil brasileiro quatro regimes de bens: comunhão universal de bens, comunhão parcial de bens, separação de bens e participação final nos aquestos, estando dispostos entre os artigos 1.639 a 1.688 do referido códex. Entretanto, é permitido ao casal criar um regime por meio do pacto antenupcial, fazendo um regime misto utilizando mais de um dos elencados no Código Civil, ou até mesmo instituindo um novo não previsto em lei, conforme elucida o Enunciado 331 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: Art. 1.639. O estatuto patrimonial do casal pode ser definido por escolha de regime de bens distinto daqueles tipificados no Código Civil (art. 1.639 e parágrafo único do art. 1.640), e, para efeito de fiel observância do disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certificação a respeito, nos autos do processo de habilitação matrimonial. (Enunciado 331, IV JDC, CJF) Dentre os regimes de bens tipificados na legislação pátria, a comunhão parcial de bens é a regra caso os nubentes não escolham o regime, sendo esse caracterizado pela repartição ―entre três massas de bens: duas relativas aos bens próprios de cada cônjuge e uma aos bens comuns. Cada um deles compreende um ativo e um passivo.‖ (LÔBO, 2017, p. 316) A comunhão universal de bens compreende a união de todo o acervo patrimonial dos sujeitos existente tanto antes quanto após o casamento, de forma que, quando do fim da relação conjugal, todo o patrimônio é dividido igualmente entre os cônjuges. Na separação de bens ―cada um é titular de seu próprio patrimônio, quer tenha sido adquirido antes ou na constância do casamento. Quando da separação nada há a dividir, e cada um ficará com os bens que lhe são próprios.‖ (DIAS, 2009, p. 208) 29 A comunhão universal de bens se caracteriza pela universalidade patrimonial entre os consortes, de forma que todos os bens de cada um se agregam tornando-se uma única massa patrimonial. Essa comunhão, no entanto, não é absoluta, sendo alguns bens excluídos conforme apresenta o art. 1.668 do CC/2002. Pouco utilizado na prática, mas disposto no ordenamento jurídico pátrio, o regime de participação final nos aquestos consiste na conciliação da liberdade da separação de bens com a associação daquilo que é obtido de maneira lucrativa na constância do casamento, como ocorre na comunhão parcial. Trata-se de um regime de bens que sofre inúmeras críticas e questionamentos da doutrina em razão das dificuldades de sua implantação e aplicação de suas regras, mas não é um regime incompatível com a cultura brasileira. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012) Sendo o casamento uma comunhão de vida, dele ―emergem efeitos pessoais e patrimoniais, estruturando-se conjunto de direitos e deveres informado pelos princípios da igualdade substancial e da direção diárquica da sociedade conjugal.‖ (FACHIN, 2003, p. 174) Numerosossão, portanto, os efeitos jurídicos do casamento, que podem ser divididos entre efeitos pessoais, que estabelecem direitos e deveres recíprocos entre os cônjuges; sociais, que indicam a projeção de consequências da relação conjugal para com a sociedade; e patrimoniais, que dizem respeito aos impactos econômicos decorrente das núpcias, estando inteiramente ligados aos regimes de bens escolhidos pelos consortes. (FARIAS; ROSENVALD, 2017) Feitas tais considerações a respeito das famílias matrimoniais, para rematar a fase introdutória da presente pesquisa, passa-se então à análise dos principais aspectos do reconhecimento da união estável como família no ordenamento jurídico brasileiro, para que haja, futuramente, uma averiguação comparativa de ambas as entidades e os reflexos no direito sucessório. 2.1.2 O reconhecimento da União Estável no Direito Brasileiro como entidade familiar Apesar de ainda ser assunto constante nas discussões entre juristas, a existência de uniões estáveis remonta desde sempre na história da humanidade. No direito romano, a união que não fosse matrimonial era considerada uma espécie de casamento inferior, denominado concubinato (latim: concubinatus - cum (com) e cubare (dormir)) (LÔBO, 2017), 30 nomenclatura essa até hoje utilizada, apesar da recepção do ordenamento jurídico atual quanto às famílias não matrimoniais. Conforme aduz Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 223), ―a expressão 'concubinato' carrega consigo um estigma e um preconceito. [...] Historicamente, concubinato traduziu uma relação de 'menos-valia', menor, quase uma depreciação moral, principalmente para as mulheres.‖ Tal fato explica porque, inobstante a contemporaneidade e os avanços ocorridos, famílias não constituídas através do casamento ainda são tratadas de maneira inferior em certos aspectos. No ordenamento jurídico brasileiro houve significativa demora em reconhecer a união estável como entidade familiar, pois a sociedade tão somente compreendia como família aquelas advindas do casamento. (BIRCHAL, 2008) Somente com o advento da Constituição da República de 1988 é que houve o reconhecimento da união estável como família, no §3º do artigo 226: A união estável, nomenclatura adotada a partir da redação dada ao §3º do art. 226, da CR/88, chegou a este status também como resultado da evolução dos costumes de parte do povo brasileiro que, por escolha, optou por ela e, também, pelos cidadãos que, por falta de opção (às vezes em estado de miséria), estão unidos em entidade familiar, sem a dispendiosa e complicada habilitação e celebração do casamento civil, pois que gratuita somente é esta última, sendo dispendioso o processo de habilitação (quase um salário mínimo, fora as taxas de certidões). (BIRCHAL, 2008, p. 120) Compreendida, atualmente, como a convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas naturais com o intuito de constituir família, os direitos dos companheiros foram paulatinamente sendo concedidos conforme as alterações ocorridas na jurisprudência e nas discussões doutrinárias. (WELTER, 1999) A união estável somente recebeu específica regulamentação normativa através das Leis 8.971/1994 e 9.278/1996, criadas logo após a Constituição de 1988. Pela Lei nº 8.971/94, garantiu-se aos companheiros, entre outros, o direito a alimentos entre si e ao companheiro supérstite, em razão da extinção da união estável pela morte do outro, direito sucessório relativo à herança do falecido e direito à meação do patrimônio obtido pela colaboração das partes. Além disso, impôs como requisitos que os companheiros fossem solteiros, divorciados ou viúvos, que o relacionamento tivesse convivência mínima de cinco anos ou a existência de filhos. Em 1996 adveio a Lei nº 9.278/96, que alterou os pressupostos de constituição da união estável, além de incluir outros direitos e deveres aos companheiros, afastando a exigência temporal, mas sem fazer cessar a existência da lei anterior. 31 No Código Civil de 2002 essa espécie de família recebeu apenas cinco dispositivos específicos (artigos 1.723 a 1.727, CC/2002), o que demonstra que a iniciativa foi relevante, mas insuficiente: O atual Código Civil mesclou, nessa matéria, evoluções e retrocessos. Isso torna imperioso reiterar, uma vez mais, a necessidade de se tomar a Carta Magna, e seus respectivos princípios normativos, por parâmetro de coerência disciplinador, a fim de se prezar por uma exegese compatível com a qualidade familiar que a união estável tem e com as peculiaridades que lhe são inerentes. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 280) O reconhecimento da união estável, hoje, não depende de coabitação, conforme entendimento disposto na Súmula 382 do Supremo Tribunal Federal e se da por livre e espontânea manifestação da vontade das partes, podendo a matéria ser discutida em ação judicial própria. Aplicam-se à união estável os mesmos impedimentos legais relativos ao casamento e, importante reassaltar, que é possível converter a união estável em casamento, conforme inclusive preceitua a legislação no §3º do art. 226 da CR/88. Não tendo os companheiros adotado um regime de bens específico em contrato escrito, a relação é regida pela comunhão parcial de bens como regra, aplicando-se toda a legislação relativa ao casamento no que tange à matéria. Há, portanto, presunção legal de comunhão de bens adquiridos durante a união, não cabendo a discussão sobre a necessidade de prova do esforço comum, sendo a presunção legal absoluta. (LÔBO, 2017) Assim como ocorre no casamento, da união estável emanam-se consequências em campos diversos, trazendo efeitos de cunho patrimoniais e pessoais. No que tange aos efeitos pessoais, ―são aqueles mesmos existentes no espaço interno de qualquer outra relação familiar, dizendo respeito aos companheiros, nas relações entre si e para com a sociedade como um todo.‖ (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 488) Obviamente, os efeitos pessoais da união estável, inobstante semelhantes aos do casamento, possuem ressalvas nos aspectos em que as referidas entidades familiares se distinguem legitimamente; como, por exemplo, não há presunção de paternidade de filhos nascidos na constância da relação convivencial. A respeito dos efeitos patrimoniais da união estável, há que se ressaltar que, as consequências que decorrem depois de extinta a relação por morte, são assuntos amplamente discutidos e que serão mais bem abordados nos capítulos subsequentes deste estudo. Importante salientar que a Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, foram resultados de um 32 grande avanço quanto ao reconhecimento das famílias homoafetivas como uniões estáveis, o que foi de grande valia para a garantia dos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Assim como é imperioso asseverar, também, a Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça de 14 de maio de 2013 que dispôs sobre casamento civil ou conversão da união estável em casamento de pessoas do mesmo sexo. Afora todo o progresso alcançado no que diz respeito à união estável no ordenamento jurídico brasileiro, um interessante paradoxo é levantado por Rodrigo da Cunha Pereira (2006) no tocante ao constante hábito de sempre tentar-se adequar a união estável aos moldes do casamento: Por mais que a união estável seja o espaço do "não-instituído", à medida que é regulamentada, vai ganhando contornos de casamento. Com isso, aos poucos, vai deixando de ser uma "união livre", como, aliás, muitas vezes denominada, para ser uma união "amarrada" às regras impostas pelo Estado. Esse é um paradoxo com o qual teremos de aprender a conviver: ao mesmo tempo em que não querermos a intervenção do Estado em nossas relações mais íntimas, buscamos sua interferência para lhe dar legitimidade e proteger a parte economicamentemais fraca. Com isso, aqueles que não querem se adequar às formalidades e regras do casamento civil ficam sem alternativa, pois a regulamentação da união estável está cada vez mais próxima à de um casamento. (PEREIRA, 2006, p. 229) Entretanto, cabe asseverar que o que se pretende com esse hábito constante é garantir a tais famílias as mesmas proteções e garantias existentes às famílias matrimoniais. Não se pretende igualar casamento a união estável, até mesmo porque existem diferenças legítimas que os diferenciam substancialmente. Mas naquelas questões em que não existem fundamentos plausíveis que justificam o tratamento discriminatório, é necessário debater e procurar equiparar, sob o risco de ferir prontamente princípios basilares dispostos na Constituição da República. De acordo com dados estatísticos do IBGE, a população brasileira atualmente vive majoritariamente em famílias convivenciais, por meio da união estável. As estatísticas mostram um acentuado crescimento e até mesmo a superação numérica de relacionamentos estáveis em detrimento do casamento civil, e estudos sociais e jurídicos apontam diversas causas tidas como responsáveis pelo constante crescimento das famílias informais e, não obstante a importância desse crescimento das entidades familiares informais, mas que cada vez mais estão se formalizando por meio de contratos escritos de uniões estáveis, e do ponto de vista legal ainda seguem em vigor gritantes diferenças entre as duas principais famílias constitucionais, do casamento e da união estável. (MADALENO, 2016, p. 8) Partindo da premissa de que a afetividade é um dos princípios basilares da família, a finalidade da união estável é bastante similar, senão idêntica à finalidade do casamento. A 33 família eudemonista, que busca valorizar os interesses afetivos e existenciais entre seus integrantes, ganha constantemente espaço maior nos entendimentos recentes, fazendo com que casamento e união estável sejam, ao mesmo tempo, tão próximas e tão distantes em suas particularidades. 2.2 Principais semelhanças e diferenças legítimas entre casamento e união estável Diante da pluralidade familiar reconhecida pela Constituição de 1988 resta claro que não é somente o casamento que é reconhecido como família no direito brasileiro, mas inúmeras outras formas de uniões entre indivíduos que se unem no intuito de promover o desenvolvimento de seus membros, compartilhando experiências e fazendo realçar a liberdade de escolha e a dignidade da pessoa humana em suas relações. A própria Constituição procura proteger as famílias indistintamente, justamente por ter como fundamentos principais um ideário liberal, solidário igualitário e democrático, que deve ser aplicado a todo ordenamento jurídico. (VELOSO, 2010) Na comparação entre casamento e união estável percebe-se uma quantidade significativa de semelhanças, mas com algumas diferenças substanciais e extremamente pertinentes ao Direito. O casamento pode ser considerado o modelo de família mais bem protegido e disciplinado pela lei, certamente por ser, historicamente, a forma mais tradicional de se constituir família. É caracterizada por uma grande quantidade de formalidades que devem ser observadas para que possa ser considerada válida. Já a união estável, por sua vez, é a união livre entre pessoas cuja convivência seja pública, continua e duradoura, com o intuito claro de constituição de família, não necessitando de qualquer formalidade para a sua configuração. Diante das transformações que a sociedade vem sofrendo, uma similaridade entre casamento e união estável é o fato de que, para configuração dessas famílias, não se exige que tenham filhos ou que precisem viver sob o mesmo teto. É opção particular das partes envolvidas o planejamento da vida em comum no que diz respeito à filiação e à moradia em conjunto ou não. Os impedimentos matrimoniais dispostos no art. 1.521 do CC/2002 são também aplicáveis à união estável, conforme preceitua o §1º do art. 1.723 da mesma legislação. Maria Berenice Dias (2014), em sentido contrário, assevera que não se devem estender tais 34 impedimentos à união estável, pois essa entidade familiar padece de atuação estatal para se concretizar, tendo a sua existência condicionada ao mundo fático, não necessitando de intervenção do Estado para impor impedimentos como o faz com o casamento. Dentre os deveres recíprocos entre o casal, assim dispõe Código Civil de 2002: Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos. Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos. (BRASIL, 2002). Sem adentrar na seara de cada um dos deveres mencionados e a necessidade de estarem expostos na legislação vigente, percebe-se que entre o casamento e a união estável buscou o legislador assemelhar uma entidade familiar da outra. Ainda que disposto que, para os cônjuges, exista o dever de fidelidade recíproca, para o companheiro existe o dever de lealdade. E de acordo com o dicionário da língua portuguesa Silveira Bueno (2007), ao se procurar o significado de fidelidade, encontra-se como sendo sinônimo de lealdade. Logo, diante da equivalência conceitual de ambas as palavras, pode-se se afirmar que de fato há sim muito mais semelhanças que diferenças. Sobre a escolha do regime de bens, tanto no casamento quanto na união estável, se não há uma escolha expressa das partes sobre algum regime específico, a lei dispõe que será regido pela comunhão parcial de bens. Casamento e união estável encontram seus fundamentos em princípios e características comuns, tendo na essência mais conteúdos de aproximação que de divergência. Hoje, com o conceito eudemonista de família, cujo afeto é o pilar de sustentação de toda proteção jurídica aos membros que dela façam parte, pode-se afirmar que muitos são os pontos de congruência dos aspectos relativos a ambas as entidades familiares. Estabelecer os principais pontos de divergência entre casamento e união estável acaba por transmitir certa complexidade, na medida em que coloca interesses antagônicos no mesmo patamar: o princípio da proteção às famílias e a necessidade de tratamentos distintos ante a natureza de cada entidade familiar. Entre as principais diferenças legítimas existentes entre casamento e união estável, cabe apontar a formalidade e informalidade na constituição de cada uma dessas famílias, a 35 eficácia erga omnes do regime de bens, a presunção legal de paternidade e, principalmente, os impactos sucessórios desse tratamento desigual, que serão abordados separadamente neste momento. 2.2.1 A definição dos marcos de constituição e dissolução O casamento tem como característica a solenidade, sendo estabelecido através de ato formal, por meio de registro civil e é dissolvido, conforme preceitua o art. 1.571 do CC/2002, pela morte, divórcio, separação, anulação ou nulidade do casamento. Gera, portanto, um documento hábil e capaz de certificar o marco inicial da relação, instituindo imediatamente a família, tão logo cumpridas as formalidades constitutivas. Já a união estável, ao contrário, para comprovar o seu marco inicial, necessita preencher os requisitos estabelecidos no art. 1.723 do CC/2002 para que tenha seu reconhecimento deferido juridicamente. Ainda que exista um contrato de convivência, tal documento se presta a ―estipular regras patrimoniais específicas para nortear os efeitos patrimoniais da relação.‖ (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 508). Logo, a eficácia do contrato de convivência fica condicionada à presença dos demais requisitos constitutivos da união estávelpara caracterizar a existência da entidade familiar. Dessa forma aduz Paulo Lôbo (2017): Ao contrário do casamento que tem início em ato jurídico certo e público, a união estável, relação jurídica derivada de estado de fato, apresenta reais dificuldades em identificá-la. O termo inicial é importante tendo em vista que os deveres dos companheiros promanados de suas relações pessoais e patrimoniais dependem deles para sua exigibilidade. Desde quando há os deveres de lealdade e assistência Desde quando os bens adquiridos por qualquer dos companheiros ingressaram na comunhão? (LÔBO, 2017, p. 166) Assim, a partir do registro civil o indivíduo atesta seu estado civil de casado a terceiros, diferentemente da união estável, que, mesmo o companheiro possuindo um contrato de convivência, não será possível gerar efeitos erga omnes, além de permitir questionamentos sobre a real existência da união estável a qualquer momento. (RODRIGUES JÚNIOR, 2014). Verifica-se, portanto, que, naquilo que depender de comprovação da data inicial da união, esta não será possível assimilar às normas que regem o casamento. As diferenças entre ambas as entidades familiares, nesse aspecto, estão justamente no fato de que, na essência, o 36 casamento possui uma prova pré-constituída, um documento capaz de comprovar sua existência, ao contrário da união estável que necessita se subsumir a requisitos e evidenciar esses marcos por outros meios para reconhecer e dissolver o relacionamento. Esse fato implicará diretamente certos efeitos jurídicos distintos entre essas famílias. 2.2.2 A vênia conjugal Dentre as determinações expressas no Código Civil (BRASIL, 2002) a respeito do casamento, o artigo 1.647 é claro em dizer que, sem autorização do outro (salvo no regime de separação absoluta), nenhum dos cônjuges pode ―I - alienar ou gravar de ônus real bens imóveis; II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III – prestar fiança ou aval; IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.‖ (BRASIL, 2002). Trata-se da figura jurídica originalmente conhecida por ―outorga uxória‖, que atualmente é comumente chamada de ―vênia/autorização conjugal‖. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017a, p. 318) definem a vênia conjugal como ―a manifestação de consentimento de um dos cônjuges ao outro, para a prática de determinados atos, sob pena de invalidade.‖ Com o casamento e, consequentemente, a escolha pelo regime patrimonial, nascem efeitos sociais aos indivíduos que interferem, inclusive, nas relações com terceiros. Assim, no que diz respeito ao casamento, conforme aludido, dependendo do regime de bens adotado, certos atos só podem ser praticados com a autorização do outro cônjuge, sob o risco de anulação. Caso um dos cônjuges se negue ou esteja impossibilitado de conceder a vênia, caberá ao juiz suprir essa outorga. E, conforme preconiza o art. 1.649 do CC/2002, se nem mesmo o juiz suprir a falta de autorização quando necessária, o ato praticado tornará anulável e o outro cônjuge poderá pleitear a anulação, até dois anos após terminada a sociedade conjugal. No que diz respeito à união estável, a necessidade do consentimento do companheiro para a prática dos atos descritos no art. 1.647 do CC/2002 não é matéria pacífica. Para Paulo Lôbo (2017) as exigências do referido artigo devem ser estendidas à união estável, tendo em vista que a expressão ―no que couber‖ do art. 1.725 (―Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.‖) (BRASIL, 2002), que inclui a exigência de outorga entre as regras do casamento que são aplicáveis à união estável. Para esse autor, a falta de autorização do companheiro prejudica o ato e enseja a sua anulação. O terceiro de boa-fé que se sentir lesado em razão da ―omissão do estado civil de companheiro em união estável do alienante, 37 tem contra este, além da pretensão de devolução do que pagou, pretensão à indenização por perdas e danos.‖ (LÔBO, 2017, p. 171) Para uma segunda corrente, essa outorga pode ser exigida tão somente no casamento, ―por se tratar de norma restritiva de direitos que não comporta interpretação extensiva ou analogia.‖ (TARTUCE, 2017a, p.). Walsir Edson Rodrigues Júnior (2014) também aponta sobre a inconveniência de se possibilitar a anulação do negócio jurídico em detrimento do terceiro de boa-fé por gerar insegurança e até mesmo inviabilizar novos negócios jurídicos. Nessa mesma linha Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2017), que inclusive aduzem que, por não existir na união estável qualquer documento público capaz de gerar os mesmos efeitos de um registro de casamento, não se pode garantir proteção a terceiros de eventuais prejuízos. Como a união estável não compreende formalização constitutiva não é razoável exigir que terceiros tenham conhecimento da sua existência e a necessidade dessa autorização para viabilizar o negócio jurídico. Essa é, portanto, uma das diferenças entre casamento e união estável que pode ser considerada necessária, por ser uma diferença externa, em relação a terceiros e que gera efeitos à sociedade de forma geral. ―A relação convivencial é informal, não solene, não podendo estar marcada pelas formalidades típicas do casamento‖ (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 342) e ao terceiro de boa-fé não se pode impor a incumbência de ter ciência da existência de uniões estáveis. 2.2.3 A presunção legal de paternidade Presumem-se do marido os filhos concebidos na constância do casamento, conforme preconiza o art. 1.597 do CC/2002: Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (BRASIL, 2002) 38 A discussão se inicia, entretanto, quando surge o questionamento acerca da aplicação dessa regra à união estável. Isso porque, no que diz respeito ao casamento, há uma prévia comprovação da existência da relação conjugal capaz de sugerir que o filho concebido na constância do casamento é fruto do casal. Com a certidão de casamento é possível identificar se a presunção de paternidade deve ou não ser aplicada no caso concreto. Não havendo uma prova pré-constituída da família, não há como aplicar a presunção por total falta de controle jurídico para tanto. A união estável, conforme já aludido, não possui um registro público que comprove seu marco inicial e, ainda que os companheiros tenham feito contrato de convivência, esse se presta tão somente como um dos meios de provas para demonstrar a existência da união. Dessa forma, a princípio, aplicar a tais entidades familiares o dispositivo em questão poderia resultar em prejuízos patrimoniais a supostos pais de relacionamentos que sequer foram devidamente reconhecidos. Todavia, parte da doutrina defende a aplicação da presunção legal de paternidade a ambas as entidades familiares, baseando-se no texto constitucional que determina a proteção do Estado às famílias e a proibição de tratamento discriminatório entre filhos: Ao aplicar a presunção de paternidade somente no casamento, está o Código Civil criando duas diferentes categorias de filhos: os filhos de pessoas casadas (que gozam de presunção e podem exigir, automaticamente, os seus direitos decorrentes