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Editora do Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Ama- zônicas www.nepaneditora.com.br | editoranepan@gmail.com Diretor administrativo: Marcelo Alves Ishii Conselho Editorial: Agenor Sarraf Pacheco (UFPA), Ana Pizarro (Universidade de Santiago do Chile), Carlos André Alexandre de Melo (Ufac), Elder Andrade de Paula – (Ufac), Francemilda Lopes do Nascimento (Ufac), Francielle Maria Modesto Mendes (Ufac), Francisco Bento da Silva (Ufac), Francisco de Moura Pinheiro (Ufac), Gerson Rodrigues de Albuquerque (Ufac), Hélio Rodrigues da Rocha (Unir), Hideraldo Lima da Costa (Ufam), João Carlos de Souza Ribeiro (Ufac), Jones Dari Goettert (UFGD), Le- opoldo Bernucci (Universidade da Califórnia), Livia Reis (UFF), Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro (Ufam), Marcela Orellana (Universidade de Santiago do Chile), Marcello Mes- sina (UFPB/Ufac), Marcia Paraquett (UFBA), Marcos Vinicius de Freitas Reis (Unifap), Maria Antonieta Antonacci (PUC-SP), Maria Chavarria (Universidade Nacional Maior de São Marcos, Peru), Maria Cristina Lobregat (Ifac), Maria Nazaré Cavalcante de Souza (Ufac), Miguel Nenevé (Unir), Raquel Alves Ishii (Ufac), Sérgio Roberto Gomes Souza (Ufac), Sidney da Silva Lobato (Unifap), Tânia Mara Rezende Machado (Ufac). A864 Ateísmos, descrenças religiosas e secularismo: história, tendências e comportamen- tos / organização Fernando Mezadri, Marcos Vinicius de Freitas Reis, Ricardo Olivei- ra da Silva. – Rio Branco: Nepan Editora, 2022. 150 p. : il. col. E-book em formato PDF. ISBN: 978-65-89135-53-1 1. Ateísmo. 2. Secularização (Teologia). I. Mezadri, Fernando. II. Reis, III. Marcos Vinicius de Freitas, Silva, Ricardo Oliveira. IV. Título. CDD 22. ed. 211.5 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Maria do Socorro de O. Cordeiro – CRB 11/667 Ateísmos, descrenças religiosas e secularismo: história, tendências e comportamentos Organizadores Fernando Mezadri Marcos Vinicius de Freitas Reis Ricardo Oliveira da Silva Nepan Editora Rio Branco - Acre 2022 Sumário Apresentação ............................................................................................. 7 PRIMEIRA PARTE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DO ATEÍSMO E SECULARISMO CAPÍTULO I A secularização como condição para difusão do ateísmo na Modernidade Ocidental ..................................................... 10 Fernando Mezadri CAPÍTULO II O Ateísmo na historiografia inglesa ..................................................... 25 Ricardo Oliveira da Silva CAPÍTULO III O Ateísmo na ótica da Comunidade Carismática Católica Shalom ................................................................................ 40 Wilnéia Barbosa de Aleluia Marcos Vinícius de Freitas Reis SEGUNDA PARTE COMPORTAMENTOS SOCIAIS E EXPRESSÕES MIDIÁTICAS CAPÍTULO IV Educação e liberdade de descrença ........................................................ 58 Marcelo de Sant’Anna Alves Primo CAPÍTULO V O argumento ateu do Deus Alheio no jogo Fight of Gods: uma aplicação do processo dessacralizador .............................. 65 Ricardo Cortez Lopes Lis Yana de Lima Martinez CAPÍTULO VI Da periodicidade do ateísmo em vias de organização no Brasil: algumas considerações ............................................................... 79 Sabrina Testa CAPÍTULO VII Trajetórias para a formação da identidade ateísta ............................ 93 Fernando Mezadri TERCEIRA PARTE PERFIS PSICOLÓGICOS E COMPORTAMENTAIS DO ATEÍSMO CAPÍTULO VIII Ateísmo e saúde mental ..........................................................................108 Daniel Foschetti Gontijo Danilo Monteiro Firmino Douglas Flores Melquisedeque Oliveira de Castro CAPÍTULO IX Espiritualidade entre ateus: uma experiência possível? .....................122 Daniel Foschetti Gontijo Danilo Monteiro Firmino Douglas Flores Melquisedeque Oliveira de Castro QUARTA PARTE TRADUÇÃO DE FONTES CAPÍTULO X Razão e incredulidade: as contribuições do Barão d’Holbach para o Recueil philosophique ...............................................137 SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS ..............................................................148 7 APRESENTAÇÃO O e-book Ateísmos, descrenças religiosas e secularismo: história, tendências e compor- tamentos representa a primeira produção coletiva do grupo de pesquisa criado e cadastrado no CNPq no final de 2020. Esse grupo nasceu com o intuito de agregar pesquisadores e pesquisa- doras que estão desenvolvendo pesquisas com foco na temática do ateísmo, descrenças religio- sas em geral e secularismo, mas que se encontravam dispersas. A criação do grupo também ocorreu, além do fator das afinidades temáticas de pes- quisa, pela constatação da escassez de produções acadêmicas e de maior articulação das pes- soas voltadas para essa área de pesquisa. Nesse sentido, falamos na condição de um grupo de pesquisa que almeja uma maior atuação, produção e divulgação acadêmica dos trabalhos que contemplam o universo do ateísmo, descrenças religiosas e secularismo. Ateísmos, descrenças religiosas e secularismo é um grupo formado por um conjunto de pesquisadores cujas formações profissionais oferecem um perfil interdisciplinar, o que se refle- te no presente livro que é disponibilizado ao público. Há profissionais pesquisadores nas áreas de sociologia, história, filosofia, psicologia, letras e antropologia. Com base nessas distintas formações, o grupo de pesquisa elaborou linhas de investigação que se refletem na organização deste e-book: história e historiografia do ateísmo e secularismo; comportamentos sociais e ex- pressões midiáticas; e perfis psicológicos dos ateus brasileiros. Os capítulos do presente e-book têm a finalidade de oferecer aos interessados na te- mática do ateísmo uma visão ampla no que toca às diferentes intenções de pesquisa que vêm se materializando inspiradas por esse amplo espectro da descrença em formação no cenário brasi- leiro, tanto quanto o fenômeno religioso assim já se mostra consolidado como importante fonte investigativa desde longa data. Ressalta-se que, desde o Censo das Religiões ocorrido em 2010 conduzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o ateísmo vem ocupando ainda mais o repertório dos investigadores interessados nos fenômenos da descrença, seja em seu plano teórico-conceitual ou no universo das manifestações de natureza empírica. A primeira parte do e-book é intitulada História e Historiografia do Ateísmo e Secula- rismo. Reúne três capítulos com pesquisas que desenham um contexto para se pensar o ateísmo através de uma perspectiva tanto historiográfica quanto dos processos de secularização de par- te da modernidade ocidental. Em nível brasileiro, o catolicismo serve de referência como tipo de fenômeno da expressão da religiosidade nacional ao apresentar uma visão sobre o ateísmo. Em sua segunda parte, a obra traz a temática dos Comportamentos Sociais e Expressões 8 midiáticas. Reúne um conjunto de produções que apresentam, desde aspectos da descrença ateísta interseccionadas com o exercício da liberdade da descrença no âmbito de espaços for- mais de educação, passando por um processo de dessacralização dos deuses manifestado por episódios de batalhas entre figuras religiosas arranjadas sob a forma de jogos de videointerativi- dade. Abordagens sobre a dinâmica de agregação e desagregação dos indivíduos e grupos ateís- tas no Brasil, bem como, a compreensão das trajetórias individuais até a conversão ao ateísmo, integram e fecham a coleção das pesquisas nessa seção do livro. Ao aportar na terceira parte do e-book, apresentamos a temática Perfis Psicológicos e Comportamentais do Ateísmo. Contando com a contribuição de uma equipe de pesquisadores, a sessão dispõe de um repertório de conceitos e um conjunto de pressupostos que apontam para estados de bem-estar e saúde mental em ateus. Concomitante a esta produção, a espiritualida- de é tematizada e debatida. Sabe-se que os religiosossão seus portadores, contudo, traços de uma espiritualidade secularizada podem ser observados a partir da descrença ateísta. A quarta parte é intitulada Tradução de Fontes. Aqui, através do trabalho do professor Marcelo de Sant’Anna Alves Primo, apresentamos a tradução inédita de um texto do filósofo iluminista Barão de Holbach [1723-1789], autor que foi precursor na elaboração de uma cosmo- visão filosófica de índole ateísta na segunda metade do século XVIII. Com essa obra esperamos contribuir para a conquista de maior espaço acadêmico na produção e divulgação de trabalhos sobre os ateísmos, descrenças religiosas e suas relações com os processos de secularização. Além disso, acalentamos o desejo de que este trabalho possa aju- dar que novos pesquisadores e pesquisadoras venham a se interessar pela área de trabalho e que novas produções possam ocorrer, sob os princípios da laicidade e compromisso acadêmico que expresse a pluralidade das formas de pensar e agir existente na sociedade. Boa leitura!! Fernando Mezadri Marcos Vinicius de Freitas Reis Ricardo Oliveira da Silva Fevereiro de 2022 PRIMEIRA PARTE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DO ATEÍSMO E SECULARISMO 10 CAPÍTULO I A SECULARIZAÇÃO COMO CONDIÇÃO PARA DIFUSÃO DO ATEÍSMO NA MODERNIDADE OCIDENTAL Fernando Mezadri INTRODUÇÃO A modernidade acelerou o processo de secularização e como efeito, abriu ainda mais os caminhos da descrença para os ateístas trilharem. Do ponto de vista da ciência da sociologia, uma chave para o entendimento das relações entre Modernidade e Reli- gião passa pela aplicação da secularização como um paradigma que se apresenta como um modelo para compreensão de modos de vida relacionados à ação irreligiosa ou ao comportamento de não crença assumidos por determinados tipos de pessoas no contex- to da modernidade ocidental. Nesta era secular1, a condição de não crença aparece como um modo de vida entre tantos outros possíveis de serem vivenciados pelos indivíduos. O PARADIGMA DA SECULARIZAÇÃO Após esse breve intróito, estreitamos o caminho em três frentes compreensivas sobre a secularização enquanto paradigma. Em seguida, inserimos a temática do secu- larismo como complemento a esta discussão. Nesse bojo, merecem destaque: 1) a no- ção de secularização como subtração do componente religioso das esferas sociais, 2) a secularização como sinônimo de perda da influência da religião na esfera pública e 3) a proeminência de uma era secular como condição para a não crença. Ora, o exercício argumentativo daqui pra frente, é mostrar que a secularização - por ser um paradigma questionado2-, abre condições para outras concepções explicativas sobre a tessitura tramada entre religião e modernidade. O sociólogo francês Jean-Paul Willaime sustenta a tese de que, a secularização, como um paradigma questionado, sus- cita muitos problemas quando adotada de forma irreversível e unilinear3. Agora, vamos para alguns desses argumentos! 1 Taylor, Uma era secular, 2010. 2 Willaime, Sociologia das Religiões, 2012. 3 Willaime, Sociologia das Religiões, 2012. 11 A SUBTRAÇÃO DA RELIGIÃO Sobre esta perspectiva, a tese contida na obra O Dossel Sagrado4 destaca-se pela densidade conceitual e com grande penetração entre os estudiosos sobre o assunto, so- bretudo no Brasil5. Nesta obra, a referência à secularização se faz a partir da inserção do adjetivo processo para o entendimento da teoria, ou seja, para Peter Berger, a seculari- zação é um macro processo social que atingiu grande parte da modernidade ocidental trazendo consigo a eliminação gradual da influência da religião na sociedade. Dentro da concepção de secularização como subtração da religião, insere-se a complexa relação travada entre religião e esfera pública na sociedade. Nessa perspectiva, entende o autor que setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. [...] Manifesta-se na retirada das igrejas cristãs que antes esta- vam sob o seu controle e influência: separação da Igreja e Estado, expropriação das terras da Igreja, ou emancipação da educação do poder eclesiástico. [...] Ela afeta a totalidade da vida cultural e símbolos, todavia, afirmamos implicitamente que a secularização é mais que um processo socioestrutural. Ela afeta a totalidade da vida cultural e da ideação e pode ser observada no declínio dos conteúdos religio- sos nas artes, da filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascensão da ciência, como uma perspectiva autônoma e inteiramente secular, do mundo6. Em termos mais simples, significa escrever que, os espaços públicos foram “supos- tamente esvaziados de Deus ou de qualquer referência a uma realidade derradeira”7. Sem maiores pretensões conceituais, no plano teórico da secularização, aproxima- mo-nos do pensamento do sociólogo da religião Max Weber [1864-1920] quando afirma que o declínio da religião na modernidade deveu-se ao avanço da racionalização e por efeito, o aumento da autonomia das esferas sociais de valor (figura 1): do intelecto, da economia, da política, da estética, e do erótico em relação à religião8. A modernização trouxe consigo um elevado grau de cálculo (a racionalização) sobre as motivações in- dividuais e ações sociais, e como efeito dissolvente, promoveu o desencantamento do mundo9. Este conceito não é sinônimo de secularização, mas, consequência de um lon- go processo de racionalização e burocratização10 que veio sofrendo o mundo ocidental. Racionalização do mundo ocidental é uma das grandes teses da obra deste sociólogo. Sobre esse ponto, demos apenas uma pista quando nos referimos à autonomia das esfe- ras sociais. Secularização não é um conceito central na obra de Weber, portanto, só pode ser melhor compreendido dentro desse espectro mais amplo11. 4 Berger, O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião, 1985. 5 Mariano, Sociologia da Religião e seu foco na secularização, 2013. 6 Berger, O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião, 1985, p. 119. 7 Taylor, Uma era secular, 2021, p. 14. 8 Weber, Rejeições Religiosas do mundo e suas direções, 1982. 9 Pierucci,O desencantamento do mundo, 2013. 10 Weber, Rejeições Religiosas do mundo e suas direções, 1982. 11 Para ampliar esse entendimento, detalhes podem ser encontrados na obra: Sell, Carlos Eduardo. Max Weber e a racionali- zação da vida. Petrópolis: Vozes, 2013. 12 A secularização – em Max Weber -, é um movimento contínuo de eliminação dos elos mágicos que sustentam a relação entre os homens. Quanto a isso, a secularização colocou uma situação inteiramente nova para o homem moderno. Provavelmente pela primeira vez na história, as legitimações religiosas do mundo perderam sua plausibilidade não apenas para uns poucos intelectuais e outros in- divíduos marginais, mas para as amplas massas de sociedades inteiras12. O baldaquino sagrado que integrava a modernidade e mantinha as consciências homogêneas na centralidade da cosmologia religiosa cristã foi rompido. Sinalizam esse rompimento, além da autonomia das esferas sociais já citadas nesse texto, a já conhecida separação entre Igreja e Estado. Em face disso, a pertença religiosa revelando-se como uma tarefa de escolha individual13 nutre de maneira vigorante condições necessárias para o aparecimento tanto de religiosidades concorrentes – fruto do pluralismo religio- so nascente -, como para os próprios indivíduos modificarem suas convicções mais pro- fundas, dada a obsolescência dos discursos religiosos cada vez mais envoltos pela aura do ceticismo e da indiferença de tantos14. Figura 1 – Diferenciação das esferas sociais de valor15. Em suma, para Peter Berger [1929-2017], o processo de declínio do religioso na mo- dernidade levou as estruturas sociais e as estruturas subjetivas - inclusive as próprias consciências individuais -, à secularização em última instância. O significado conferido pelas teodiceias religiosas16, ou seja, o poder de atribuirsentido ao mundo imanente e transcendente – conferido pelas cosmologias religiosas - perderam força e abriu-se es- 12 Berger, O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião, 1985, p. 137. 13 Taylor, Uma era secular, 2010. 14 Mariano, Sociologia da Religião e seu foco na secularização, 2013. 15 Weber, Rejeições Religiosas do mundo e suas direções, 1982, elaborado pelo autor, 2021. 16 O problema da teodiceia, isto é, aquele conferido ao sentido último da existência ou da vida humana, é densamente aborda- do por Max Weber na obra Economia e Sociedade. Foi o que tentei fazer em Mezadri, Fernando. Sociologia do Ateísmo. Revista Relegens Thréskeia, [S.l.], v. 9, n. 2, p. 14-36, nov. 2020. ISSN 2317-3688. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/relegens/article/view/75562/42014. Acesso em: 30 out. 2021. https://revistas.ufpr.br/relegens/article/view/75562/42014 13 paço para o surgimento de outras cosmovisões vindas de diferentes fontes, quer fossem de natureza religiosa ou irreligiosa. Na esteira dos paradigmas da secularização, a tese de Peter Berger, chamada pelos seus críticos de tese dura (hard) da secularização, anos mais tarde sofre reformulação pelo mesmo sociólogo17. Helena Vilaça socióloga portuguesa18, ao narrar a trajetória in- telectual de Peter Berger, esclarece uma mudança ocorrida em sua tese Temos que falar nos dois Berger’s. O primeiro Berger, do Sacred Canopy, que com Thomas Luckmann e Bryan Wilson, foram três peças fundamentais da teoria da secularização [...]. Outra referência fundamental para mim, é o Peter Berger se- gundo. O mais velho. Que teve a coragem de questionar as suas próprias teses. Dirigia-se não mais à tese do desencantamento do mundo, mas para a tese de que estaríamos a viver num reencantamento do mundo. E, portanto, ele questiona até que ponto estaríamos numa secularização inevitável, chamemos assim [...]19. A afirmação proferida por Berger, é a “falsa suposição de que vivemos em um mun- do secularizado”20. Enquanto Helena Vilaça trata da noção de reencantamento, Ricar- do Mariano, sociólogo brasileiro trata como a dessecularização. Não discutimos neste capítulo as diferenças conceituais entre essas duas noções, contudo, o mote provocado por essa ligeira digressão é de encarar a secularização como uma tese explicativa para macros processos sócio-históricos com grande envergadura na modernidade ociden- tal. Nesse bojo, considera-se a vida social como dinâmica e não estática, o que levaria a um processo de não universalização da secularização. Ora, a secularização fica enten- dida como um tipo de “mutação sociocultural global”21. Peter Berger corrobora essa tese quando afirma que ela [a secularização], é “um fenômeno global das sociedades moder- nas, porém, com uma distribuição não uniforme entre elas. Cada grupo da população tem sido atingido de modo diferente”22. A própria evolução da modernidade refutou a tese do declínio da religião como efeito da secularização23. Na verdade, o tipo de entendimento que se faz sobre a moder- nidade interfere na forma de se compreender a secularização e o declínio da religião. Ao se deixar de ver a tese da secularização de modo universal implica em enxergar a diversi- dade de situações que envolvem a relação entre religião e modernidade. A religião “não é mais uma força motivadora independente nas condições impostas pela modernidade”24. De fato, vem ocorrendo uma transformação muito mais do que um declínio em algo muito significativo, que a maioria das pessoas reconhece pelo termo religião. 17 Zepeda, Secularização ou ressacralização? O debate sociológico contemporâneo sobre a teoria da secularização, 2009. 18 Para ampliar as informações sobre esta socióloga, consultar: https://sigarra.up.pt/flup/pt/func_geral.formview?p_codi- go=215773 19 Mezadri, Migrações e religião na Europa: o cenário complexo para os sociólogos da religião. Entrevista com a socióloga portuguesa Helena Vilaça, 2016, p. 325. 20 Mariano, Sociologia da Religião e seu foco na secularização, 2013, p. 236. 21 Willame, Sociologia das Religiões, 2012, p. 159. 22 Berger, O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião, 1985, p. 120. 23 Dutra, Universalidade da condição secular, 2016. 24 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 508. https://sigarra.up.pt/flup/pt/func_geral.formview?p_codigo=215773 https://sigarra.up.pt/flup/pt/func_geral.formview?p_codigo=215773 14 A secularização, quando observada sob a ótica de declínio da religião, não supor- ta as críticas, mas, ainda mantém a relevância enquanto conceito explicativo para as transformações que envolvem a esfera religiosa na modernidade. Nesse diapasão, para avançar ainda mais no debate, abre-se outra frente: a tese da secularização como dife- renciação funcional das esferas sociais25. A DIFERENCIAÇÃO FUNCIONAL DAS ESFERAS SOCIAIS A secularização refere-se à uma abordagem analítico-conceitual dos processos his- tóricos mundiais da modernidade. Essa abordagem, trazida pelo sociólogo da religião José Casanova na obra Public religions in the modern world [Religiões públicas no mun- do moderno]. Nela, faz referência a padrões histórico-empíricos, reais ou hipotéticos, de transformação e diferenciação da esfera religiosa em relação às outras esferas institu- cionais desde o início da modernidade até desembocar nas sociedades contemporâneas. Após um exercício de síntese sobre as teorias da secularização, o referido sociólogo criou a seguinte composição de arranjos (ver quadro 1) derivados da sua interpretação sobre secularização: [1] Diferenciação estrutural e funcional das esferas seculares em relação às instituições e normas religiosas. Secularização [2] Declínio das crenças e práticas religiosas. [3] Marginalização da religião para esfera privada. Quadro 1 – A composição dos arranjos de secularização26. Entre as três combinações, aquela que nos interessa é o conceito de diferenciação funcional, também chamado de autonomia das esferas sociais conforme mencionado no trabalho de Max Weber. Os termos declínio e marginalização, presentes no segundo e no terceiro arranjo recebem menor ênfase na ótica do autor, por considerar que o de- clínio das práticas religiosas na atualidade, até podem ser reduzidos ou extintos, entre- tanto, em contextos particulares da modernidade ocidental. O mesmo ocorreria com o deslocamento da religião para a esfera do mundo privado. Tal tese figura muito mais no campo do imaginário ideológico fruto do movimento iluminista do que uma tendência estrutural da modernidade27. Por diferenciação (das esferas sociais) entende-se “o processo pelo qual funções que originalmente eram executadas conjuntamente se cristalizam à parte e passam a fa- zer parte de esferas separadas, com suas próprias normas, regras e instituições”28. Nessa perspectiva, José Casanova elabora sua concepção partindo do contexto estadunidense em que na esfera pública o fato religioso não declinou e tampouco foi reduzido à esfera do mundo privado29. E por essa razão, pela forte aderência com experiências vividas “a secularização como diferenciação estrutural e funcional das esferas seculares com res- 25 Casanova, Public Religions in the Modern World, 2011b. 26 Casanova, Public Religions in the Modern World, 2011b, elaborado pelo autor, 2021. 27 Zepeda, Secularização ou ressacralização? O debate sociológico contemporâneo sobre a teoria da secularização, 2010. 28 Taylor, Uma era secular, 2010. p. 497-8. 29 Mariano, Sociologia da Religião e seu foco na secularização, 2013. 15 peito às instituições e às normas religiosas”30, não foi invalidada pelas evidências empí- ricas. Antônio Flávio Pierucci define e explica este processo da seguinte forma: a crescente diferenciação estrutural dos espaços sociais, que resulta acima de tudo na separação da religião da esfera política (numa palavra, em seu disestablishment – sua deposição, é como eu traduziria), dissociando a pertença à comunidade po- líticada pertença a uma religião (cujus régio ejus religio), mas também na perda sofrida pela religião da capacidade de apreensão sobre os rumos e os sentidos in- trínsecos da ciência experimental e da filosofia pós-metafísica, da arte moderna e da sexualidade desreprimida31. Constata-se que a teoria da secularização como diferenciação das esferas sociais se aplica sobremaneira à Europa Ocidental32. Ora, fora desta região, a secularização en- quanto fator de expurgo da religião não se aplicaria: “noutros países, é preciso conside- rar o papel exercido pela colonização europeia e pela difusão das categorias normativas e ideológicas, como o público e privado, secular e religioso”33. O chamado Terceiro Mundo estremece literalmente sob o ímpeto dos movimentos religiosos”34. Para situar o Brasil nesse lastro, a marca específica do caso Latino Americano é que a secularização não conduziu, como no caso europeu, à não crença, mas a desconcentração da oferta religiosa com a passagem de uma situação de monopólio católico para pluralização reli- giosa. A conclusão é que o Brasil não seria uma exceção ao processo universal de secularização que acompanha a passagem das sociedades tradicionais para as so- ciedades modernas35. Nesse sentido, a compreensão das relações entre modernidade e religião através da diferenciação funcional das esferas sociais, torna-se uma frente analítica relevante para comportar o complexo e ao mesmo tempo, ambíguo processo de secularização ociden- tal. É um conceito que amplia pontos de conexão com a realidade dos fenômenos práti- cos e serve de ponte para um outro conceito correlato: o secularismo. Esse conceito será tratado mais adiante em função das interposições existentes entre as diferentes esferas sociais, de modo particular às esferas da política e da religião. Como o processo de secularização não é unitário na modernidade ocidental, dife- rentes contextos sócio-políticos darão receptividade distinta ao processo da seculariza- ção. A secularização - no que toca ao processo de diferenciação estrutural e funcional das instituições -, explicada pela autonomia funcional das esferas sociais36 pode apresentar também contornos muito particulares em função de dinâmicas próprias interpretadas a partir das relações entre o público e o privado, entre o Estado e a Religião, entre as es- truturas privadas dos indivíduos e as macroestruturas que regulam e ordenam a vida do 30 Zepeda, Secularização ou ressacralização? O debate sociológico contemporâneo sobre a teoria da secularização, 2010, p. 133. 31 Pierucci, De olho na modernidade religiosa, 2008, p. 08. 32 Berger; Luckmann, Modernidade, pluralismo e crise de sentido, 2012. 33 Mariano, Sociologia da Religião e seu foco na secularização, 2013, p. 235. 34 Berger; Luckmann, Modernidade, pluralismo e crise de sentido, 2012, p. 50. 35 Sell, A secularização como sociologia do moderno: Max Weber, a Religião e o Brasil no contexto Moderno-Global, 2015, p. 26. 36 Casanova, Public Religions in the Modern World, 2011b. 16 ponto de vista institucional. Aqui, infere-se que a secularização vai estreitando os laços com o fenômeno da laicização, todavia sem serem sinônimos. No ano de 2008, o professor José Casanova - da Georgetown University nos Esta- dos Unidos -, ofereceu ao público o texto Public Religion Revisited [Religiões públicas revisitadas]. Neste escrito, além de ter respondido aos comentários recebidos sobre suas teses, alargou algumas reflexões sobre o alcance que a secularização como diferenciação de esferas seculares das instituições e normas religiosas pode ter para a compreensão de determinados processos locais de secularização. Nas palavras do autor: Existem múltiplas e diversas secularizações no Ocidente e múltiplas e diversas modernidades ocidentais, e elas ainda estão associadas principalmente a diferen- ças históricas fundamentais entre cristianismo católico, protestante e bizantino, e entre protestantismo luterano e calvinista. Como David Martin demonstrou, na área cultural latino-católica e, em certa medida, em toda a Europa continental, houve uma colisão entre a religião e as esferas seculares diferenciadas - isto é, entre o cristianismo católico e a ciência moderna, o capitalismo moderno e o moderno Estado37. Entre outras propostas para a resolução de deficiências nos três arranjos de secu- larização, o sociólogo aponta para múltiplas e diversas secularizações38 no Ocidente e múltiplas e diversas modernidades ocidentais39. A nosso ver, isso cria um espectro me- nos totalizante para a noção de secularização. Em outras palavras, não se recomenda – para fins analíticos -, a inclusão das sociedades ocidentais em um único processo de secularização, tampouco, a adoção do modelo de eliminação total da religião. Em outras palavras, o banimento exclusivo da religião para o foro privado ou íntimo fica fora de possibilidade. O que as evidências empíricas vêm apontando é um caminho para “múltiplos e muitos diversos padrões históricos de diferenciação e fusão das várias esferas institucio- nais, isto é, Igreja e Estado, Estado e economia, economia e ciência que se encontram ao longo da história da modernidade”40. Ora, a estrutura religiosa que sustenta a cosmolo- gia religiosa-cristã do mundo ocidental ainda não foi colapsada. Sobre o que foi apresentado até esse momento, juntam-se as ideias de Charles Taylor [1931 -] para ampliação do debate. Para esse filósofo canadense, a secularização não subtraiu a religião, mas fez algo distinto. A secularização transformou a moderni- dade em uma secular age [era secular]. Dentro dela, ocorreram ressignificações e novas estruturações que permitiram a coabitação de uma multiplicidade de cosmologias, in- clusive, a coexistência de religiosos e irreligiosos, de crentes e não crentes, de ateus e não ateus, entre tantas outras identidades de pertencimento. 37 Casanova, Public religions revisited, 2008, p. 07. 38 Para ampliar este conceito, importante consulta pode ser feita em: Wohlrab-sahr, Monika; Buchardt, Marian. Multiples secularities: Toward a cultural sociology of secular modernities. Comparative Sociology, Leiden, (Holanda), 11, n. 6, p. 875-909, 2012. DOI: 10.1163/15691330-12341249. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/274337916_Multiple_Secula- rities_Toward_a_Cultural_Sociology_of_Secular_Modernities. Acesso em: 31 dez. 2021. 39 Eisenstadt, Modernidades múltiplas, 2001. 40 Casanova, Public religions revisited, 2008, p. 06. https://www.researchgate.net/publication/274337916_Multiple_Secularities_Toward_a_Cultural_Sociology_of_Secular_Modernities https://www.researchgate.net/publication/274337916_Multiple_Secularities_Toward_a_Cultural_Sociology_of_Secular_Modernities 17 A MUDANÇA NAS CONDIÇÕES DE CRENÇA De maneira exemplar, o filósofo canadense Charles Taylor publica em 2010 a obra Secular Age. [Uma Era Secular]. Nela, ao apresentar um rastreio do processo de seculari- zação em diferentes etapas do desenvolvimento do mundo ocidental moderno, permite a compreensão de formas distintas da secularização. Isto é, da forma como determina- das sociedades, instituições e organizações sócio-políticas se ajustaram ante o afasta- mento da religião das práticas e condutas individuais e coletivas. A era secular, funciona como um “pano de fundo de problemas sociocognitivos e socionormativos, que se im- põe a todo tipo de prática religiosa e não religiosa”41. Nossa era se configura como uma condição secular moderna, contingente e historicamente excepcional; e isso “representa para todos nós que vivemos em uma única e mesma era moderna uma ruptura radical com a concepção de mundo pré-secular”42. Três são as facetas da secularidade propostas por Taylor: 1) a retração da religião da vida pública entendida também como a tradicional separação entre Igreja e Estado; 2) o declínio, também compreendido como o abandono em termos de convicções de fé e de práticas religiosas e 3) a mudança nascondições de fé, o que a torna uma opção entre outras tantas outras opções. Entre as facetas, o filósofo canadense adota a secularidade tipo três para amparar suas teses sobre a secularização na modernidade. Sobre essa vi- são que nos deteremos na sequência. Os indivíduos na modernidade ocidental, saíram de uma condição (pré-secular) em que era praticamente impossível não acreditar em Deus para aquela em que “a fé representa uma entre tantas possibilidades humanas”43. A razão para essa mudança, justifica o teórico canadense, passa invariavelmente pelas mudanças nas condições de crença. O autor de a Secular Age, trata sobre “o abandono de convicções e práticas reli- giosas, em pessoas se afastando de Deus e não frequentando a igreja”44. Essa mudança passaria pelas condições de fé. Nestes termos, a mudança para a secularidade nesse sentido consiste, entre outras coisas, na pas- sagem de uma sociedade em que a fé em Deus é inquestionável e, de fato, não problemática, para uma na qual a fé é entendida com uma opção entre outras e, em geral, não a mais fácil de ser abraçada45. Alinhando com a proposta deste livro, infere-se que para o indivíduo adepto do ateísmo, “a fé em Deus não é mais axiomática”46 e existem alternativas. E é provável que isso signifique também que, pelo menos em um determinado meio social, pode ser di- fícil conservar a própria fé . 41 Dutra, Universalidade da condição secular, 2016, p. 154. 42 Dutra, Universalidade da condição secular, 2016, p. 153. 43 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 28. 44 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 15. 45 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 15. 46 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 16. 18 A sociedade secular, em Taylor, estaria atrelada “às condições da experiência es- piritual e da sua busca”47. Ponto central em sua argumentação, é o de que em nossas sociedades, a grande questão relativa à religião é geralmente definida em termos de fé. Assim, se numa das facetas da secularidade está o declínio da fé, isso não quer dizer que outros tipos de crenças não possam emergirem, a exemplo da crença na ciência e na razão. Nesse lastro, o descrente – dentro de sua maneira alternativa de se viver -, encon- traria, em termos da potencialidade de um ser humano, sua plenitude compreendida naturalmente. Isso tudo “distinto do crente que possui Deus como uma referência, ou seja, algo além da vida e ou da natureza humana’’48. Para os descrentes modernos, “o poder de alcançar a plenitude está dentro de cada um, [...] na nossa natureza de seres racionais”49. Na era secular, com a alteração nas condições de crença dá-se vazão à vivên- cia de um tipo de movimento humanista tanto como alternativa/opção ao cristianismo, como meta de vida absoluta fornecendo condições para que a agência humana obtivesse significado mesmo “sem referência à valores transcendentais”, considerando que a des- crença já tenha se tornado “uma opção de vida normal em nosso mundo”50. Este tipo de atitude, ou modus vivendis, relaciona-se a uma perspectiva imanente e não transcendente. Fatores como: “expansão da educação, formação padronizada pela disseminação da alfabetização e, em consequência, de níveis mais elevados de escolari- zação e, mais recentemente, pelo forte incremento da preparação universitária”51 – pró- prio das elites –, tornou-se condição espiritual das massas por meio da difusão. Seguimos essa perspectiva da secularidade por permitir uma conexão com a ideia de que com a secularização, os indivíduos na modernidade passaram a ver a religião e a fé como opções entre tantas outras possibilidades disponíveis à sua escolha. A fé reli- giosa não é mais o “caminho autoevidente para a busca de sentido e orientação moral”52. Nesse novo horizonte cultural compartilhado, “a crença e a descrença surgem como opções, não podendo, mais a crença ser percebida ingenuamente como a única forma possível”53. Ancorando-se agora no sociólogo inglês Anthony Giddens [1938 – ] a modernidade não exclui a tradição em face ao moderno, mas, permite com que os indivíduos atuem em condições de escolha, entre uma e outra ou as duas. A modernidade não é condição social na qual os agentes anulam com modos de vida anteriores, mas é um momento histórico de descontinuidade o que evidencia a não homogeneidade em seu percurso. É na modernidade que o agente encontra condições para escolher, inclusive, para viver de uma forma pré-moderna, por exemplo. O indivíduo moderno é aquele em que a “re- flexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são cons- 47 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 16. 48 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 21. 49 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 21. 50 Dutra, Universalidade da condição secular, 2016, p. 154. 51 Taylor, Uma era secular, 2010, p. 496. 52 Dutra, Universalidade da condição secular, 2016, p. 154. 53 Dutra, Universalidade da condição secular, 2016, p. 155. 19 tantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas”54. Com a obra de Taylor, se amplia a compressão já feita por Max Weber sobre a se- cularização e seu consequente avanço na modernidade ocidental. Muito mais que uma compreensão da secularização, a tese de Charles Taylor se ocupa da compreensão das circunstâncias que emolduram as crenças dos agentes numa “condição singularmente moderna do ser social, alcançada historicamente”55. A era secular torna-se uma condi- ção generalizável sob qual se pode inserir experiências tanto religiosas quanto irreligio- sas; de crença e não crença. Nela, o ateísmo, por exemplo, pode ser escolhido e abraçado sem constrangimentos. SECULARISMO: A DINÂMICA ATIVA DA SECULARIZAÇÃO Para ampliar o entendimento sobre os processos de secularização na modernidade ocidental, insere-se a noção de secularismo como uma característica dinâmica e ativa da secularização. Entende-se como importante esse deslocamento no raciocínio da argumentação sobre secularização, pois, inspirado na obra Public religions in the modern world de José Casanova, uma conexão é estabelecida entre secularização e secularismo, e essa, a nosso ver, passa pela diferenciação funcional e estrutural das esferas sociais, demarcando a po- larização de dois territórios: o religioso e o secular. Por essa razão, justifica-se a inclusão do conceito de secularismo tanto para explicar quanto para justificar uma compreensão das interrelações entre as esferas do religioso e do secular. Corrobora essa nossa amplia- ção conceitual a ideia de que a privatização e marginalização da religião não ocorreu de modo pleno. As “tradições religiosas mundo afora têm-se recusado a aceitar o papel marginal e privatizado que as teorias da modernidade assim como as teorias da secula- rização têm reservados para elas”56. Nessa discussão, a ideia de secularismo permite encontrar um ponto de giro con- ceitual para compreensão de fenômenos observáveis empiricamente derivados das ten- sões entre Religião e Modernidade. Essa noção permite ainda, adotar um pressuposto conceitual que explique a atuação de indivíduos e grupos que depositam na esfera pú- blica suas demandas, a exemplo do ativismo de movimentos, grupos e associações de natureza secularista. O secularismo sustenta ações de natureza ideológico-políticas. No mundo do ati- vismo, esse conceito contribui para a explicação da lógica de ação dos seus atores. Secu- larização é conceito de maior envergadura para processos macrossociais de longo alcan- ce. Infere-se que, o secularismo, deriva da abordagem da secularização compreendida como diferenciação funcional das esferas sociais, argumentação que vimos adotando até essa etapa. Nessa toada, sobre a grande família dos termos relacionados à secularização, en- tende-se a inclusão da noção de secularismo que em muitos casos se aproxima do con- 54 Giddens, As consequências da modernidade, 1991, p. 45. 55 Dullo, Artigo bibliográfico após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo?,2012, p. 382. 56 Casanova, Public religions in the modern world, 2011b, p. 20. 20 ceito de laicidade, mas não é seu sinônimo e tampouco o substitui57. Nessa perspectiva, para uma rápida digressão explicativa acerca dos conceitos, a figura 2 dá a distribuição de quatro conceitos correlatos em língua inglesa: secularism, secularization, secularity e secularities. Figura 2 - Frequência da aparição dos termos correlatos à secularização58. O gráfico produzido pela ferramenta Google Ngram Viewer marca o percentual de aparições dos termos: secularização, secularismo, secularidade e secularidades. A apresentação está em língua inglesa, embora a ferramenta permita a busca em outros idiomas. A procura é feita em mais de 5,2 milhões de livros contidos no Google Books. O sistema faz uma contagem de palavras a partir dos livros armazenados em sua base de dados. Isso mostra que a aparição da frequência dos termos está em função da data (pe- ríodo) em que certos conceitos começaram a pulular com maior ou menor intensidade. O eixo x apresenta a delimitação temporal e o eixo y, o percentual das buscas. O gráfico aponta uma queda nas buscas do termo secularização a partir do ano de 1960 e um aumento pela procura do termo secularismo. Entre os termos buscados, seculariza- ção e secularismo se destacam. Importa saber que secularism é a tradução para o inglês de laicidade e secularity traduz-se para secularidade, no singular. Entendemos ser o secularismo diferente da laicidade que deriva do francês laicité. Laicidade é largamente usado no Brasil como chave explicativa para as relações entre Estado, política e Religião. Por esse motivo, interpreta-se que o termo secularismo - pela sua envergadura explica- tiva sobre os conflitos entre política e religião - tenha apresentado maior visibilidade entre as buscas no google segundo o Google Ngram Viewer. A secularização estaria para os países protestantes, enquanto a laicização seria o correspondente direto para os países católicos da cristandade latina em que a oposição laico/clerical apresentaria maior rigidez e a oposição entre religioso/civil mostraria sua força por meio do anticlericalismo59. É nesse contexto interpretativo que a religião fica restrita à esfera do privado como apregoa a perspectiva do iluminismo francês. 57 Para a ampliação das relações entre secularismo e laicidade, ver Mezadri, Fernando. A noção de secularismo em William Connolly como alternativa ao uso da laicidade na compreensão dos conflitos entre política e religião. Argumentos, Montes Cla- ros, v.14, n. 2, p. 67-82, 2017. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/argumentos/article/view/1113. Acesso em: 31 dez. 2021. O conceito de laicidade mostra-se insuficiente para dar conta do pluralismo político e religioso no Brasil, por isso, o secularismo vem como alternativa. 58 Google Ngram Viewer, 2021, adaptado pelo autor, 2021. 59 Casanova, Public religions in the modern world, 2011b. https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/argumentos/article/view/1113 21 Os processos de laicização e secularização, de emancipação das diversas esferas da vida social da religião, apresentam-se de forma diferenciada nos países católicos e nos países protestantes. Nos países católicos a emancipação é marcada pelo confli- to entre grupos clericais, religiosos e grupos laicistas, anti-clericais60. Para o caso francês, por exemplo, la laïcité, que significa “característica de laico, que não faz parte do clérigo. Princípio de separação da sociedade civil e da sociedade religiosa. Ausência de poder político por parte das Igrejas”61 serviria como modelo para- digmático e correspondente direto à laicização. A la laïcité quando traduzida para a lín- gua inglesa, temos a referência à secularism ou natural secular condição essa atribuída à estados políticos. cumpre observar ainda que, na literatura sociológica de língua inglesa, os vocábu- los secularism, secular State e secularist têm, em geral, o mesmo sentido de laici- zação institucional (do Estado e do ensino público), de Estado laico e de laicista, respectivamente. Isto é, tais vocábulos (derivados das mesmas famílias dos termos secularização e laicidade) contêm acepções análogas e intercambiáveis. E nenhum deles é mais ou menos preciso que seu par62. Tratar sobre o secularismo torna-se uma tarefa ainda mais difícil em virtude de sua proximidade com a noção de secularização, como já apontado anteriormente. Os termos têm significados distintos e propósitos analíticos diferentes. A distinção entre secularização e secularismo - de corte weberiano -, contribui na compreensão dos limi- tes entre um conceito e outro. O termo passou a estar associado à ideia de declínio da religião, quando, na verda- de, no próprio Weber ele aponta para uma ideia bem mais restrita e precisa, qual seja, a separação entre Igreja e Estado, ou seja, religião e política. Estado laico, não mundo sem religião, eis que significa a secularização em Weber, seja bem dito63. Na problematização do conceito, apoiemo-nos no capítulo dois da obra Rethinking Secularism (Repensando o Secularismo) em que José Casanova explicita a terminologia em contraste com o secular e a secularização. Em seu capítulo, intitulado The Secular, Secularizations, Secularisms, o sociólogo, grosso modo, expõe que, o secular, correspon- de à uma categoria epistêmica central para se pensar a modernidade do ponto de vista teológico-filosófico, político-legal, antropológico-cultural em vista de construções, sis- tematizações, compreensões e distinções de um domínio, distinto do religioso64. A secularização se desdobrou em três frentes analíticas, a saber: 1) o secular (já apresentado), 2) a secularização propriamente dita, como um processo inacabado da modernidade e 3) o secularismo “como uma doutrina política que sustenta o mundo se- cular e que se opõe à religião, sendo descrita por uns como ideologia e, por outros, como visão de mundo”65. Nesse terceiro aspecto, sustentamos ainda mais o nosso suposto de 60 Ranquetat Jr., Laicidade, laicismo e secularização: definindo e esclarecendo conceitos, 2009, p. 70. 61 Le Petit Robert, Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française, 2013, p. 809. 62 Mariano, Laicidade à brasileira. Católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública, 2011, p. 245. 63 Sell, Leituras de Weber e do Brasil: da política à religião, do atraso à modernidade, 2007, p. 247. 64 Casanova, The Secular, Secularizations, Secularisms, 2011a. 65 Dullo, Artigo bibliográfico após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo?, 2012, p. 383. 22 conceber secularismo como conceito apropriado para compreensão das ações de natu- reza ideológico-política operadas pelos indivíduos e grupos que orbitam as práticas de natureza não religiosa, de modo especial, aquelas identificadas com o ateísmo. O secularismo – dada sua maior conexão com o campo das ações humanas -, é compreendido como aquele conceito que abriga múltiplas e conflitivas interpretações e teorizações sobre o fenômeno da secularização66. Por hipótese, dizemos que aquele se tornou a dimensão situada e contextualizada deste. Por essa razão, “será o mesmo pro- cesso e o mesmo projeto sociopolítico em toda parte ou existirá uma ampla variedade de secularismos?”67. Além disso, na mesma medida com que se tem uma variedade de espécies de religião, existiria uma variedade de espécies de secularismos como nos casos dos Estados Unidos, China, Turquia, França, índia, Reino Unido e Brasil?68. A professora e pesquisadora sobre teorias do secularismo - Slavica Jakelic -, em um ensaio bibliográfico sobre a temática, circunscreve a amplitude do conceito a partir de duas compreensões distintas. Para esta pesquisadora, o secularismo pode indicar uma visão de mundo, uma ideologia, uma doutrina polí- tica, uma forma de política de governo, um tipo de filosofia moral, ou uma crença de que o método científico seja suficientepara compreensão do mundo em que vivemos69. Sobre a amplitude do conceito, damos destaque para dois modelos de secularismo: 1) aquele no qual a ciência é fundacional e 2) aquele cujo centro é o ordenamento da vida política. No científico, sugere-se a tipificada separação e confrontos entre religião e ciência70. Nesse aspecto, prevalece o modo padrão dos secularistas e antirreligiosos de se servirem da ciência em suas posturas, muitas delas, combativas à religião, como as expressas através do movimento New atheism. No segundo modelo, “o secularismo serve como um princípio organizacional de uma comunidade política. Faz referência à separação entre política, instituições estatais e religião”71. Efeito desse modelo, subjaz a “criação de uma esfera pública aberta a todos os indivíduos como cidadãos iguais, inde- pendentemente de suas identidades particulares”.72 Ora, a “história do secularismo no Ocidente é uma batalha da razão, do progresso e modernidade contra a religião, con- servadorismo e tradição”73. A fortiori, essa concepção de secularismo acaba por servir de referência mais usual para a compreensão entre modernidade e religião. CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate realizado entre concepções de secularização e secularismo, apoiado nos teóricos e sociólogos nacionais e internacionais, confluem para ampliação do frame 66 Castro, Redefiniendo el secularismo en democracias profundamente pluralistas, 2012. 67 Dullo, Artigo bibliográfico após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo?, 2012, p. 384. 68 Dullo, Artigo bibliográfico após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo?, 2012. 69 Jakelic, Secularism: a bibliographic essay, 2010, p. 49. 70 Jakelic, Secularism: a bibliographic essay, 2010. 71 Jakelic, Secularism: a bibliographic essay, 2010, p. 52. 72 Jakelic, Secularism: a bibliographic essay, 2010, p. 52. Observa a autora que os exemplos desses secularismos democráticos, a saber: EUA, Europa ocidental, Turquia, Síria, Índia, etc; apontam experiências menos democráticas. E é este secularismo que se encontra em crise no mundo, efeito direto, é o surgimento de experiências fundamentalistas religiosas. 73 Jakelic, Secularism: a bibliographic essay, 2010, p. 50. 23 compreensivo sobre o fenômeno da irreligiosidade dos indivíduos na contemporanei- dade. O comportamento ateísta, enquadra-se nesse bojo como um tipo de vivência alu- siva à não crença, que por sua vez, dotado de um largo repertório de fenômenos de na- tureza empírica, une-se de maneira estreita às experiências de secularismo no campo do ativismo. A dinâmica destes indivíduos e grupos irreligiosos heterogêneos, evidenciam o tipo de engendramento existente entre política e religião num determinado lócus só- cio-histórico. Isso aponta para as especificidades do secularismo e as muitas facetas das secularidade locais. Quanto ao entendimento sobre a secularização, mobilizar e enfatizar Taylor, signi- fica dar atenção a um aspecto generalizante da abordagem conceitual, ou seja, a Era Se- cular. “A universalidade da era secular é, portanto, a universalidade da diferença entre o religioso instituída pela diferenciação funcional da sociedade, e não a universalidade de qualquer discurso ou ideologia secularista”74. Para Taylor, o que é generalizável, a nosso ver, é a diferenciação funcional que imputa quadros de construção imanentes e não a concepção de privatização da religião e tampouco o declínio da religiosidade individu- al. Nesta concepção, a religião não desaparece, mas se torna apenas uma opção a mais para as escolhas dos indivíduos na Secular Age. Pontos de tensão no binômio imanente e transcendente ficam mais frágeis, o que dá condições para a atuação dos indivíduos realizarem suas escolhas. Esta condição generalizante funciona como um grande guarda-chuva sob o qual se abrigam a heterogeneidade das diferenciações funcionais que é relativa, específica e contextualizada. É nessa heterogeneidade que se pode pensar nas vivências secularistas dos indivíduos e grupos. Protegidos por este grande guarda-chuva encaixam-se a varia- bilidade de configurações entre o religioso e o não religioso nas sociedades modernas; a diversidade de crença e não crença, inclusive as experiências de autoidentificação ate- ísta. Sob a condição imanente da era secular entendem-se as experiências de contextos locais. A abordagem não generalizável (secularismo) aponta para a dimensão empírica dos fenômenos sociais entre religião e modernidade. Grosso modo, a secularização al- terou as condições de crença instaladas pela era secular75 e o secularismo catapultou diferentes vivências secularistas. REFERÊNCIAS BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião. 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Em vista disso, pensei em compartilhar neste capítulo uma amostra dessa pesquisa a partir de obras acadêmicas oriundas da historiografia inglesa das últimas décadas. Essa escolha se deu, em parte, pelo fato de ter encontrado a maior quantidade de estudos sobre o ateísmo no conjunto de estudos históricos desse país, pelo menos até o momento. Por outro lado, acredito que o itinerário e o perfil dos estudos sobre o ateísmo na história profissional britânica podem contribuir na fermen- tação de reflexões propositivas para que essa temática ganhe maior projeção na própria historiografia brasileira. Indicado o tema e os propósitos do capítulo, informo que este foi organizado com base em três tópicos, os quais têm como finalidade: a) destacar o conceito de historio- grafia e de ateísmo; b) oferecer um panorama geral da historiografia inglesa (itinerário e características) e da inserção do ateísmo em suas pesquisas; c) exposição dos estudos históricos sobre ateísmo nas coletâneas Um mundo sem Deus: ensaios sobre o ateísmo e The Oxford Handbook of Atheism, ambas publicadas no começo do século XXI. AS DEFINIÇÕES DE HISTORIOGRAFIA E DE ATEÍSMO Uma vez que a historiografia foi escolhida como principal tema para este capítulo, é oportuno oferecer uma definição sobre ela. Escrita da história é expressão que se refere à historiografia, a qual, nas palavras de Jörn Rüsen, “[...] pode ser caracterizada como o processo da constituição narrativa de sentido, na qual o saber histórico é inserido (me- diante narrativa) nos processos comunicativos da vida humana prática”.1 Para Jörn Rüsen2, o processo de constituição narrativa de sentido da historiografia inclui o campo da vida prática, ou seja, o da busca por orientação existencial, e o campo da ciência especializada, constituído por ideias pelas quais se almeja interpretar as ex- 1 Rüsen, História Viva, 2007, p. 43. 2 Rüsen, História Viva, 2007. 26 periências do passado, os métodos de pesquisa empírica e as narrativas que expõem o resultado da investigação. Um elemento que eu sublinharia a partir dessa definição é o destacado por Michel de Certeau de anuncia que toda produção historiográfica se arti- cula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural: “É em função deste [sic] lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhe são propostas, se organizam”3. O fato de o ofício do historiador estar associado a um lugar de produção indica uma historicidade desse labor que é importante conhecer para entender condicionantes que favorecem ou impedem surgimento de determinadas pautas. Aqui, estou pensando no caso do ateísmo; mas, antes de tratar disso, um dos objetivos do próximo tópico do capítulo, gostaria de aclarar a definição de ateísmo que orienta minha análise sobre ele quando o penso como um fenômeno presente em diversas sociedades ao longo do tem- po. A origem etimológica da palavra ateu (do grego, atheos) remete à noção de ausência de crença na existência de Deus/deuses ou à crença na inexistência de Deus/deuses. Para Ethan G. Quillen4, a bibliografia que analisa o ateísmo como conceito o apre- senta em perspectiva histórico-lexical ou teórico-essencialista, sendo que “o primeiro consiste em definições baseadas em exemplos de primeira ordem, em que o ateísmo descrito é baseado nas maneiras pelas quais os ateus foram definidos por outros, ou se definiram, dentro de contextos históricos particulares”.5 Já o segundo caso consiste em tentativas de combinar as definições históricas em quadro mais geral que possa ser apli- cável em campo contextual amplo. Já as definições do tipo teórico-essencialista são base para construção de signifi- cados, como ateísmo negativo (ausência de crença em qualquer divindade) e ateísmo positivo (crença e, portanto, possibilidade de provar que nenhuma divindade existe). Na historiografia a que tive acesso, ainda que a perspectiva teórico-essencialista apareça como referencial para o entendimento do fenômeno da descrença religiosa, as defini- ções histórico-lexicais são privilegiadas pelo fato de realçarem a dimensão de histori- cidade na maneira como indivíduos e grupos entenderam o que seria o ateísmo. Essa segunda definição também norteia minha análise sobre esse objeto. A HISTORIOGRAFIA INGLESA E O TEMA DO ATEÍSMO Entre os historiadores que se interessam pelo estudo do ateísmo, é recorrente a afirmação sobre a escassez de pesquisas. Tratando-se de Inglaterra, encontrei menção a tal em dois livros publicados na segunda metade do século XX. Em deles é Breve história do ateísmo ocidental, lançado por James Thrower em 1971, em que o autor afirma que “é precisamente esta história da descrença, que está ainda por fazer e da qual praticamente não existem registros, que pretendo examinar nas páginas que se seguem6.3 Certeau, A Escrita da História, 2008, p. 67. 4 Quillen, Discourse analysis and the definition of atheism, 2015. 5 Quillen, Discourse analysis and the definition of atheism, 2015, p. 26. Tradução da citação feita por este autor. No original: “[...] the former consists of definitions based upon first-order examples, wherein the Atheism being described is based upon the ways in which Atheists have either been defined by others, or have defined themselves, within particular historical contexts”. 6 Thrower, Breve história do ateísmo ocidental, 1982, p. 15. Observação: O livro de James Thrower foi originalmente publicado em 1971. Contudo, para o capítulo uso a edição portuguesa de 1982. 27 Já pelo que se lê na introdução de A history of atheism in Britain: from Hobbes to Russell, publicado em 1988 pelo historiador David Berman, o que se conclui é que o livro de James Thrower ainda não havia inspirado novos pesquisadores a se engajarem nessa tarefa. “Na verdade, a história do ateísmo foi amplamente ignorada; e, quando não é ignorada, está sujeita a sérias distorções”7. Para David Berman, alguns supunham que o ateísmo existia desde tempos imemoriais, enquanto outros afirmavam que nunca houve um ateu de verdade. Como consequência, ambas as visões confundiam a histó- ria do ateísmo e ajudavam a impor uma atitude de indiferença ao assunto. “Pois de que adianta considerar a história de algo que ou nunca nasceu ou nasceu prematuramente envelhecido?”8. Acredito que, para entender a ausência do ateísmo na historiografia inglesa, seja oportuno conhecer a trajetória e o perfil da pesquisa histórica no país. O ofício de his- toriador na Inglaterra, naquela configuração salientada por Certeau, ganhou força no século XIX. Essa atividade floresceu em um país com hegemonia do pensamento liberal após as revoluções burguesas do século XVII e a Revolução Industrial no final do XVIII. Esses acontecimentos fortaleceram no país a ideia de que as ações individuais funcio- nariam como grande fio condutor do processo histórico. Sendo assim, a atividade do historiador não se resumia ao acúmulo das evidências observáveis, “mas principalmente daquelas relacionadas às grandes figuras, aos eventos marcantes e até mesmo às insti- tuições nas quais os indivíduos deixavam suas marcas”9. O perfil da historiografia inglesa do século XIX estendeu-se à centúria seguinte. Contudo, o novo século testemunhou a ascensão do trabalho dos historiadores do Par- tido Comunista da Grã-Bretanha (CPGB) nas décadas de 1940/1950, entre os quais cito Edward Palmer Thompson, Eric Hobsbawm, Rodney Hilton e Christopher Hill. Em uma conjuntura impactada pela atuação decisiva dos soviéticos na derrota do nazifascismo na 2ª Guerra Mundial (1939-1945), empunhando a bandeira da união dos trabalhadores na luta pelo socialismo, esses historiadores marxistas propunham um “projeto coletivo de construção de uma história britânica a partir da perspectiva nacional-popular”10. Os historiadores marxistas britânicos deixaram como legado 1) o estabelecimento de uma história social e uma “história de baixo para cima”, ou seja, a incorporação de movimen- tos e formas de expressão populares como parte ativa do processo histórico; 2) a crítica contra uma visão hagiográfica da história; 3) a redefinição dos debates sobre a Revolu- ção Inglesa do século XVII, com ênfase na participação dos setores populares e propos- tas alternativas ao projeto burguês vitorioso.11 Nas últimas décadas do século XX, a história social inglesa passou a ser alvo de crescentes críticas sob o argumento de que esta se basearia em modelos de comporta- 7 Berman, A history of atheism in Britain: from Hobbes to Russell, 1988, p. VIII. Tradução da citação feita por este autor. No ori- ginal: “In fact, the history of atheism has been largely ignored; and when not ignored it has been subject to serious distortions”. 8 Berman, A history of atheism in Britain: from Hobbes to Russell, 1988, p. VIII. Tradução da citação feita por este autor. No original: “For what is the point of considering the history of something that has either never been born, or was born prematu- rely aged?”. 9 Mauro, Maurice H. Dobb: contribuições para a historiografia econômica inglesa no século vinte, 2020, p. 03. 10 Fortes; Negro; Fontes, Peculiaridades de E. P. Thompson, 2012, p. 34. 11 Fortes; Negro; Fontes, Peculiaridades de E. P. Thompson, 2012. 28 mento coletivo que teriam, nas condições sociais e econômicas, as determinações de- cisivas da experiência humana. Algumas mudanças na história social se verificaram a partir das críticas: 1) maior foco na investigação do simbólico, da retórica e do discurso para entender como homens e mulheres comuns compartilham experiências e criam rituais de resistência ao poder. Algo que já era feito por E. P. Thompson; 2) uma guina- da contextualista em afinidade com a história intelectual de Quentin Skinner e John Pocock, com a afirmação de que formas de identidade social não existem separadas de linguagens políticas específicas por meio das quais elas são articuladas; 3) defesa de as formas de experiência e subjetividade serem construídas por narrativas nas quais os in- divíduos imaginam a si mesmos e a seu lugar na ordem política e social12. Do que foi exposto, pode-se inferir que os interesses historiográficos na Inglaterra do século XX não foram favoráveis ao estudo do ateísmo. Quando Thrower publicou Breve história do ateísmo ocidental, escreveu que seu objetivo era investigar “aqueles pensadores e escolas a que se chamou, ou a que se poderia ter chamado, agnósticos ou ateus, partindo das origens da tradição intelectual ocidental tal como se encontram na Grécia e em Roma [...]”13. O livro, que possui um caráter de síntese histórica, se detém em mapear os sentidos da descrença religiosa na produção intelectual da elite europeia letrada, algo distante, por exemplo, do radar dos historiadores marxistas britânicos, muito mais atentos ao protagonismo das camadas populares. Os livros de Thrower e Berman, especialmente do primeiro, estão mais próximos de uma história das ideias ateístas que destaca uma análise da obra dos chamados gran- des pensadores. Contudo, os historiadores que se projetaram no meio acadêmico inglês na segunda metade do século XX mediante investigações sobre o universo das ideias, fizeram-no de outro modo. Um caso foi o de Skinner, o qual, sob influência da filosofia da linguagem, traçou como meta conhecer as convenções linguísticas de contextos es- pecíficos para compreender a intenção autoral na obra dos autores. Outro exemplo foi Pocock, historiador que defendeu o estudo das linguagens políticas via “reconstrução dessas linguagens e o estudo de sua mutação no tempo, de modo que um determinado autor sempre deve ser estudado em relação às linguagens políticas de sua época e de seu contexto”14. Além do que já foi citado, penso que também pode ser agregado, como hipótese ex- plicativa para a ausência do ateísmo na historiografia inglesa do século XX, o estigma so- cial que o tema carrega, cujas raízes são multisseculares, e que pode ter influenciado na inibição de investimentos acadêmicos; ou a ideia de que o ateísmo, por historicamente ser entendido como negação do teísmo, não possui conteúdo próprio. Mas, apesar des- sas adversidades, foi no mercado editorial inglês dos últimos anos que apareceram pro- jetos de publicação envolvendo a história do ateísmo, o que sinaliza uma ampliação do leque dos objetos e abordagens em um contexto em que a comunidade historiográfica, 12 Taylor, As guinadas linguísticas na história social britânica, 1998. 13 Thrower, Breve história do ateísmo ocidental, 1982, p. 15. 14 Jasmin; Feres Júnior, História dos conceitos: dois momentos de um encontro intelectual, 2006, p. 20. 29 não apenas a inglesa - diga-se de passagem -, revê práticas e pressupostos teórico-meto- dológicos na busca de maior sintonia com as demandas do tempo presente15.Nas próximas páginas, trago um panorama do estado da arte das pesquisas sobre a história do ateísmo que estão reunidas em duas coletâneas. A primeira delas é Um mundo sem Deus: ensaios sobre o ateísmo, publicada em 2007 sob a organização do filósofo Michael Martin. Já a segunda coletânea, de maior fôlego, chama-se The Oxford Handbook of Atheism e foi lançada em 2013 pelo sociólogo Stephen Bullivant e o filósofo Michael Ruse. AS COLETÂNEAS UM MUNDO SEM DEUS: ENSAIOS SOBRE O ATEÍSMO E THE OXFORD HANDBOOK OF ATHEISM Um mundo sem Deus: ensaios sobre o ateísmo foi publicado originalmente pela Cambridge University Press. De acordo com o organizador, Martin, a obra tem como propósito “dar ao leitor comum e aos estudantes avançados uma introdução ao ateísmo: a sua história, contexto social atual, implicações legais, argumentos que o sustentam, implicações para a moralidade e relação com outras perspectivas”16. O livro é dividido em três partes. Na terceira, constam textos que abordam o ateísmo do ponto de vista das ciências sociais. Na segunda, a que apresenta a maior quantidade de capítulos, o foco recai no debate sobre a existência de Deus - em linhas gerais, a concepção do Deus cris- tão. Já a primeira parte da coletânea é a que contém três capítulos que tratam da história do ateísmo: o primeiro, escrito pelo historiador Jan N. Bremmer, é sobre o ateísmo na Antiguidade; o segundo, do especialista em estudos religiosos Gavin Hyman, tem foco no ateísmo na Idade Moderna; e o terceiro, redigido pelo sociólogo Phil Zuckerman, desenha um panorama sobre o ateísmo no início do século XXI. Bremmer17 trilha o caminho mais próximo de uma história intelectual para falar do ateísmo na Antiguidade Greco-romana, privilegiando manuscritos produzidos por filósofos da época e afirmando que os gregos deram origem ao ateísmo teórico, ou seja, às primeiras especulações que formularam referências não-religiosas para entender o mundo. Exemplos de pensadores que desbravaram esse caminho foram Protágoras de Abdera (490-420 a.C.) que, sobre os deuses, afirmou não saber se existiam ou não; Ana- xágoras (500-428 a.C.), que contestou a natureza divina do Sol, sendo que, para os ate- nienses, o Sol era a representação do deus Hélio; Epicuro (341-250 a.C.), para quem os deuses existiam, mas eram indiferentes ao destino dos seres humanos. Apesar da inovação do ateísmo teórico, os gregos e romanos antigos viviam em um cenário em que a religião ocupava um lugar central como elemento estruturante da vida social e fonte de sentido existencial. Por isso, para Bremmer, o ateísmo nunca se tornou popular: “Tudo o que temos na Antiguidade é o indivíduo excepcional que se atrevia a dar voz a sua descrença ou filósofos corajosos que propunham teorias intelectuais sobre a origem dos deuses sem que [...] rejeitassem completamente as práticas religiosas”18. O 15 Bentivoglio; Avelar, O futuro da história: da crise à reconstrução de teorias e abordagens, 2019. 16 Martin, Introdução geral, 2010, p. 09. 17 Bremmer, O ateísmo na Antiguidade, 2010. 18 Bremmer, O ateísmo na Antiguidade, 2010, p. 19. 30 autor também destaca que, ao longo da Antiguidade, a palavra grega atheos (ateu), que originalmente se referia a pessoas que “viviam sem ou abandonada pelos deuses”, tor- nou-se sinônimo de acusação em meio a embates políticos e religiosos, sem apresentar um maior rigor conceitual e de tal modo disseminado que “gregos e romanos, pagãos e cristãos, depressa descobriram a vantagem do termo ‘ateu’ como meio de rotular os oponentes”19. Hyman20 toma como referência a filosofia e a teologia para explicar a origem do ate- ísmo moderno. O autor parte da premissa de que “o ateísmo será sempre uma rejeição, negação ou recusa de uma forma particular de teísmo”21. Na Europa da Idade Moderna, as reformas religiosas do século XVI e as posteriores guerras religiosas entre católicos e protestantes tiveram efeitos psicológicos devastadores para quem acreditava no cris- tianismo como pilar da verdade universal. Esse cenário ajudou a pressionar pela busca de uma epistemologia que pudesse reestabelecer uma anuência universal, já que as dis- cordâncias em torno da interpretação da Bíblia impediam isso. Essa foi uma das tarefas do filósofo Descartes (1596-1650), o qual estabeleceu a existência de Deus em uma base racional, e John Locke (1632-1704), que perseguiu o mesmo objetivo, mas em uma base empirista, sugerindo que os atributos de Deus seriam resultado de ideias recebidas das sensações e da reflexão. Essas ideias impactaram o debate teológico: Os teólogos modernos continuavam a insistir na transcendência de Deus, mas essa diferença era qualitativa e não quantitativa, resultando daqui que a transcendên- cia se tornou epistemológica em vez de ontológica. Ou seja, porque se considerava que o “ser” de Deus era da mesma qualidade que o “ser” humano [...], a alteridade de Deus passou, em seu lugar, a ser preservada, sublinhando sua transcendência epistemológica [...]22. É nesse sentido que “o ateísmo moderno foi a rejeição de uma forma moderna de teísmo, na qual Deus era uma substância que podia ser inequivocamente referida e ao qual se atribuía um lugar e função específicos no mundo natural”23. Isso tornou possíveis críticas como as de Feuerbach (1804-1872), para quem o Deus cristão era um amálgama incoerente de atributos humanos, e de Karl Marx (1818-1883), que viu a religião como parte da ideologia que legitimava a dominação da classe burguesa na ordem capitalista. No entanto, para Hyman, teria sido a própria teologia medieval que amainou a di- ferença ontológica entre Deus e os seres humanos. E uma das referências dessa mudan- ça foi o teólogo franciscano do século XIV João Duns Scoto que, divergindo de Tomás de Aquino, para quem o ser de Deus e o da humanidade eram distintos, afirmou que o ser era unívoco ao criado e ao incriado e, com isso, estabeleceu, ainda que não tenha sido sua intenção, as bases de um teísmo moderno que permitiu aflorar uma cosmovisão ateísta: “Como é apropriado de um termo negativo e parasitário, o ‘ateísmo’ não emergiu 19 Bremmer, O ateísmo na Antiguidade, 2010, p. 32. 20 Hyman, O ateísmo na história moderna, 2010. 21 Hyman, O ateísmo na história moderna, 2010, p. 41. 22 Hyman, O ateísmo na história moderna, 2010, p. 54. 23 Hyman, O ateísmo na história moderna, 2010, p. 55. 31 autonomamente como um modo independente de pensar, emergindo antes como um resultado de certos movimentos intelectuais no seio da teologia [...]”24. O último capítulo sobre história do ateísmo em Um mundo sem Deus [...] apresen- ta uma abordagem de viés sociológico. Zuckerman aborda o ateísmo da virada do século XX para o XXI a partir de um conjunto de dados estatísticos que mapeou o perfil da crença e descrença religiosas em diversos países. Inicialmente, aponta algumas dificul- dades metodológicas, como o baixo percentual de respostas, climas políticos adversos para pessoas posicionarem-se publicamente sobre religião e o preconceito em torno do ateísmo: “Por exemplo, a designação ‘ateu’ está estigmatizada em muitas sociedades; mesmo quando as pessoas afirmam diretamente não acreditar em Deus, evitam desig- nar-se como ateias”25. Apesar disso, foi possível coletar dados a ponto de concluir que, na virada do milênio, em torno de 750 milhões de pessoas no mundo não teriam crenças em divindades: “os descrentes como grupo ficam em quarto lugar depois dos cristãos [...], muçulmanos [...] e hindus [...] em termos de posição mundial de sistemas de cren- ças comuns”26. Um dos resultados das pesquisas estatísticas é que a maior parte da população que não comunga de crença religiosa vive nos países do globo economicamente mais ricos, o que leva Zuckerman, na parte final do capítulo, a expor hipóteses para explicar esse fenômeno, sendo uma delas a de que em sociedades que “se caracterizam por terem uma distribuição abundante de comida, saúde pública excelente e habitação