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CORPOS NEGROS - REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NA PRODUÇÃO LITERÁRIA

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CORPOS NEGROS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAS NA PRODUÇÃO 
LITERÁRIA 
 
 
 
Esther Silva de Sousa1 
 
 
 
A literatura é um recurso de expressão que vai além de palavras sobrepostas, ela muito 
reflete as questões políticas e sociais de uma sociedade. Assim, da produção literária mais 
canonizada até a contemporânea, tem-se a possibilidade de traçar imaginários sociais que 
operam nas relações e interações humanas dentro do discurso colonial. Diante disso, na 
literatura contemporânea, começa-se a ganhar força as discussões no que se refere às 
vivências do corpo negro nesse ambiente de racismo cotidiano, que rasura aos poucos as 
paredes da opressão, tendo em vista que tem-se escritores não brancos expressando suas 
vivências na produção dessa literatura, no entanto, ainda há muita invisibilidade desses 
escritores e escritoras negras, como também no que tange aos personagens negros nas 
produções literárias, os quais, na maioria das narrativas, são inferiorizados e colocados de 
maneira estereotipada. 
Com isso, visivelmente a sociedade brasileira é fundada no racismo, a qual discrimina 
o corpo negro e cria estrategicamente estereótipos para fixar uma falsa representação desses 
sujeitos, baseados na reprodução desse imaginário colocado sobre o negro, que garante a 
“repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasada suas estratégias de 
individualização e marginalização [...]” (BHABHA, 1998, p. 106) Assim, a população negra é 
fortemente afetada dentro desse jogo de poder e silenciamento, uma vez que, a fixidez do 
estereótipo tira do sujeito a possibilidade de constituir sua própria identidade. Diante disso, o 
corpo negro é vetado de ocupar espaços os quais possuem direito, segundo Delcastagné 
(2008) essa população há séculos de racismo estrutural foi afastada dos espaços de poder e de 
discurso e isso só coloca em evidência o quanto esses corpos são violentamente apagados da 
sociedade. 
 
1 Discente do quinto semestre do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) 
Campus XVI Irecê. 
Nesse sentido, quando se trata da produção de uma literatura, logo acionamos a 
questão do cânone literário, o qual engessa autores consagrados e escolhidos por aqueles que 
detêm o poder, tendo em vista que o cânone é selecionado por uma preferência que é violenta, 
pois exclui o outro, colocando a diferença como não aceitável, haja vista que “a posição 
canônica é alheia a interesses democráticos, e considera haver, nas discussões recentes 
voltadas para o resgate de segmentos sociais uma “fuga ao estético”.” (GINZBURG, 2008, p. 
103) Com isso, esse conservadorismo estético é findado em uma superioridade das obras 
literárias canonizadas que, estrategicamente, inferioriza a literatura que não é dotada dessa 
estética, pois essa literatura que resgata os segmentos sociais marginalizados possui o poder 
de tensionar a realidade traumática e causar desconforto naqueles que pretendem mascarar os 
problemas presentes na sociedade. 
Nessa perspectiva, as escritoras e escritores negros chegam para provocar uma cesura 
no cânone literário, os quais por meio da escrita possibilitam o resgate da ancestralidade dos 
seus descendentes, da história do seu povo, ou causam tensão ao evidenciar o sistema racista 
brasileiro e, em um ato de coragem expressam suas dores. Entretanto, ainda há muita 
resistência quando se trata da publicação da literatura escrita por autores e autoras negras, 
conforme a pesquisa de Delcastagné (2008) 93, 9 % dos autores e autoras que possuem 
romances brasileiros publicados, são brancos, os “não brancos” ficam com a porcentagem de 
2,5 %. Diante dessas estatísticas, vê-se notavelmente como a população negra é negligenciada 
nesse sistema colonial, em que a supremacia branca tem a permissão de criar narrativas e 
discursos sobre esses sujeitos a fim articular falsas representações. 
 
 
Ele busca legitimação para suas estratégias através da produção de conhecimentos 
do colonizador e do colonizado que são estereotipados, mas avaliados 
atiteticamente. O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma 
população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a 
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. (BHABHA, 1998, p. 
111) 
 
 
Dessa maneira, os saberes do colonizador são colocados como válidos, em que ele tem 
o poder de manipular o que deve ser falado sobre o colonizado, como ele deve ser visto dentro 
da sociedade e como ele deve se vê, além do mais, os discursos criados por aqueles que estão 
no poder, são usados para estabelecer uma inferioridade que coloca em pauta a origem racial e 
nega a esses sujeitos a oportunidade de evidenciar toda a repressão que sofrem do racismo e 
do regime colonial, colocando esses sujeitos como indivíduos ausentes. Sendo assim, quando 
os autores e autoras negras adentram nesse espaço da escrita literária, eles causam rasuras, 
promovem representatividade, evidencia a teia opressiva das relações de poder e esse ato de 
coragem e resistência incomoda a supremacia branca. 
Assim sendo, o mecanismo do silenciamento esta vigente desde muitas décadas, um 
exemplo o qual podemos acionar, é o da escritora negra Firmina dos Reis, a qual sendo uma 
mulher negra, a autora publica romances como a narrativa de Úrsula (1859) evidenciando o 
sistema escravocrata da época, entretanto, segundo Duarte (2009) devido ao preconceito e as 
limitações que as mulheres sofriam, principalmente as mulheres negras, ela omite o seu nome 
da publicação do livro. Nessa situação, nota-se o silenciamento sofrido pela escritora negra, a 
qual não pública o romance com seu nome, tendo em vista o forte sistema racista que operava 
no período. No mais, há séculos o sujeito branco rouba a voz dos sujeitos negros, falam por 
eles e criam narrativas que discriminam esse corpo que é colocado sempre como inferior. 
 
Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes, graças a um sistema 
racista, têm sido sistematicamente desqualificadas, consideradas conhecimento 
inválido; ou então representadas por pessoas brancas que, ironicamente, tornam-se 
“especialistas” em nossa cultura, e mesmo em nós. (KILOMBA, 2020, p. 51) 
 
Dessa forma, o corpo negro se encontra como um sujeito sem voz dentro da produção 
de discursos devido ao sistema racista que utiliza do mecanismo do silenciamento para 
impedir o questionamento dos problemas sociais, preconceitos, discriminações dos próprios 
sujeitos e da sociedade em relação às dores que esses corpos sentem. Ainda segundo Kilomba 
(2020) quando um sujeito branco fala, o seu saber é colocado como norma, conhecimento 
válido, porém quando um sujeito negro fala, é silenciado com a justificativa da subjetividade, 
afirmando assim que esses indivíduos não podem falar de suas dores na produção do 
conhecimento, pois é visto pela supremacia branca como discurso desviante. 
No tocante, outra questão a ser analisada é no que tange a representação dos 
personagens negros e negras na literatura, os quais são colocados na narrativa como sujeitos 
marginalizados, ocupando papéis estereotipados. Conforme a pesquisa de Regina Delcastagné 
(2008) os brancos somam uma maior porcentagem, em que 56, 6 % dos romances não 
aparecem personagens não brancos, aparecendo com frequência os brancos como personagens 
e protagonistas. Além disso, na maioria ou quase em todos os casos, a mulher negra não 
aparece como protagonista, ela é sempre colocada em uma função inferiorizada, como 
empregada doméstica, dona de casa. Dessa maneira, vemos o quanto à supremacia branca está 
a todo o momento tentando apagar o corpo negro dos espaços de produção de discursos, 
tirando- os do caminho da possibilidade de promover representatividade. 
 
Talvez a resposta esteja nas formas de preservação do preconceito na sociedade 
brasileira,e um dos mecanismos dessa preservação é justamente a legitimação do 
racismo no interior dos discursos artísticos. Assim, o preconceito pode continuar 
sendo veiculado porque a sociedade se mantém preconceituosa, e ela se mantém 
preconceituosa porque vê seus preconceitos se “confirmarem” todos os dias nas 
diferentes representações sociais17. (DELCASTAGNÉ, 2008, p. 99) 
 
 
Nesse intuito, o racismo enraizado na sociedade brasileira reflete na produção literária, 
visto que esse é um espaço forte de produção e reprodução de discursos, os quais são 
produzidos no e pelo meio social. A maneira como o sujeito negro é demarcado em uma 
narrativa está diretamente relacionado com o modo que ele é colocado e visto na sociedade, 
pela branquitude, sendo ela que obtém o poder hegemônico e possui o comando para 
manipular os discursos produzidos dentro da literatura. 
Assim sendo, o sistema colonial se faz violento com os copos negros e, nesse sentido, 
na literatura as representações sociais refletem na produção da escrita sobre esses sujeitos, em 
que o poder hegemônico produz discursos coloniais, tendo em vista toda a estereotipação, 
silenciamento, apagamento e preconceito sofrido e depositado encima da população negra. 
Com isso, essa produção de discursos da branquitude sobre esses corpos se faz de maneira 
minuciosamnete estratégica, para que, dessa forma, a posição social desses sujeitos nunca 
mude. Em síntese, o espaço da produção literária se faz, muitas vezes, violento, 
principalmente na questão conservadora do cânone, que seleciona as escritas a partir de uma 
preferência que é excludente quando se trata de dar visibilidade aos escritores e escritoras 
negras e suas produções de discursos, mas aos poucos esses escritores conseguem rasurar esse 
muro da exclusão, com muita militância e apoio de um coletivo, fazendo-se, assim, evidente 
os seus discursos, as suas dores e vivências mobilizando vozes que provocam rachaduras 
nesse muro e ecoam. 
 
 
 
 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
BHABHA, Homi K. A outra questão. O estereótipo, a discriminação e o discurso do 
colonialismo. In: O local da cultura. UFMG: Belo Horizonte, 1998. 
DALCASTAGNÉ, Regina. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura 
brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.31, p. 87-
110, jan.-jun. 2008. 
 
DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-
brasileira (posfácio). In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Mulheres; Belo 
Horizonte: PUC, 2009. 
 
GINZBURG, Jaime. O valor estético: entre universalidade e exclusão. ALEA. n. 1. v. 10. p. 
98-107. Jan-jun. 2008. 
 
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: 
Cobogó, 2020.

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