Prévia do material em texto
METODOLOGIA DA DANÇA Bonine John Giglio Brito Fundamentos da dança Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever aspectos de conscientização corporal quanto ao espaço. � Descrever aspectos de conscientização corporal quanto ao tempo. � Descrever aspectos de conscientização corporal quanto à forma. Introdução A dança é uma forma de expressão artística, conhecida por atravessar séculos, culturas e gerações e por sempre estar presentes no domínio e na construção da cultura corporal do povo em que se insere, sempre possibilitando contar histórias, emoções e sentimentos pelo movimento corporal. A corporeidade da dança pode comunicar tanto quanto qual- quer outro meio de comunicação, mas para que isso ocorra é necessário conhecimento profundo sobre a maturação do corpo e sobre as formas de exploração do local onde a dança será executada. Portanto, neste capítulo você vai estudar aspectos de conscientização do corpo em relação à utilização do espaço, do tempo e da forma. Dessa forma, você entenderá como a montagem coreográfica é desenvolvida em relação a seus aspectos técnicos. Breve introdução à dança A dança sempre esteve presente em manifestações culturais, artísticas e re- ligiosas de diferentes culturas desde o início da civilização. Com o passar do tempo, seus métodos e estilos foram montados de acordo com as relações estéticas e sociais, por meio da invenção, da criatividade e da coreografia espontânea de diferentes povos. À medida que novas possibilidades coreográficas eram exploradas e am- pliadas, novas formas de movimentações corporais surgiam, aprofundando a diversidade de cada movimento de modo a tornar possível expressar e a evocar afetos e emoções (OLIVEIRA; OLIVEIRA; KODATO, 2013). Podemos entender a dança como uma expressão por meio de movimentos corporais organizados através de experiências significativas. Sendo assim, a dança é um patrimônio não material, uma manifestação artística encontrada em diferentes culturas ao redor do mundo, podendo ser produzida de maneira individual ou coletiva (STRAZZACAPPA, 2007). Ao longo do tempo, a dança sofreu diversas modificações, tornando-se uma atividade profissional amplamente estudada e praticada. Isto fez com que a mesma fosse entendida, investigada e transformada, passando-se a elencar seus elementos constitutivos e aspectos estruturantes. A consciência corporal na dança é expressa pelos bailarinos, ou seja, quem quer que se submeta ao processo da dança. “É através da consciência que a expressão corporal permite prosperar o abandono do verbalismo e reconduz a expressão do corpo vivido” (LE BOULCH, 1987, p 69). Ou seja, na dança a linguagem falada deixa de ser protagonista e a linguagem corporal toma conta da expressão em sua totalidade. Para que esta expressão ocorra de maneira eficaz, o bailarino desenvolve a conscientização de acordo com o espaço, o tempo e a forma, relacionados a fim de resultar em uma arte densa, plena e significativa. Por isso, precisamos entender de que forma serão tratados o espaço, o tempo e a forma na dança. Primeiramente, devemos esclarecer a definição de consciência corporal, que pode ser entendida como um instrumento pedagó- gico cuja proposta é abrir os canais de percepção sensorial, trabalhando com elementos constitutivos de uma organização sadia entre o corpo e a mente, de forma equilibrada, reguladora de tensões, organizadora da postura, promovendo uma interrelação entre o mover, o sentir e o pensar (IMBASSAÍ, 2003). Conscientização quanto ao espaço O indivíduo que possui orientação espacial é capaz de se situar e se orientar em relação aos objetos, às pessoas, ou ao seu próprio corpo. Na dança, a exploração dos espaços é fundamental para a amplitude de movimentos. Le Boulch (1987) afirma que o espaço é o primeiro lugar que o corpo ocupa e onde se desenvolvem os movimentos corporais. Este espaço deve ser vivido com limites suaves e passa a ser objeto de uma experiência emocional intensa. Fundamentos da dança2 Dentro da criação do esquema corporal é preciso que o indivíduo desen- volva a orientação do espaço corporal: a noção de posição e a organização espaço-corporal, meio pelo qual exercitamos as possibilidades corporais de coordenação, equilíbrio, destreza e inibição. A seguir, veremos as possibilidades de exploração do espaço de acordo com os elementos constituintes da dança. Níveis alto, médio e baixo De maneira geral, são movimentos possíveis do corpo, utilizando os espaços localizados acima da cabeça (alto), na altura da cintura (médio) ou abaixo dela (baixo). Dimensão A dimensão é uma extensão entre duas direções opostas, sendo um elemento básico da orientação no espaço. As três dimensões se dividem por amplitude (largura), comprimento (altura) e profundidade. Laban costumava chamar esses planos de plano de mesa (largura), plano de porta (altura) e plano de roda (frente/trás). Apesar de serem bastante parecidos, os níveis e dimensões são elementos diferentes. Mesmo assim, um está contido no outro: os níveis estão contidos nas dimensões e as dimensões estão contidas nos níveis. As dimensões se utilizam dos níveis para ganhar a forma de exploração espacial necessária ao elemento coreográfico. Dessa forma, é possível que uma bailarina posicione seus braços abaixo. Já no aspecto dimensional, seu movimento é dado de maneira curta, apesar de a aplicação de uma largura maior do conceito de baixo ser possível, acrescentando profundidade ao nível de utilização do braço, ressignificando o movimento. Direção A direção é uma trajetória traçada a partir do espaço, que indica o sentido que os movimentos seguem, partindo sempre do centro do corpo. As direções (sentido, para onde se vai) possíveis são: frente, trás, lado, diagonais, em cima, em baixo. 3Fundamentos da dança Ao final, os níveis, as dimensões e os deslocamentos estarão conectados, ou seja, a dança é o resultado da junção desses elementos, e esses mesmos elementos também são resultantes da junção de outros elementos entre si, como as direções traçadas acima. Por exemplo, direta-alta é a junção da direção (direita) com o nível (alto). Seria possível acrescentar a dimensão: direita (direção), alta (nível) e á frente (dimensão). As direções (Figura 1) podem ser classificadas como: � dimensionais: são os elementos mais básicos para a orientação espacial (frente, trás, direita, esquerda, cima, baixo); � diametrais: são compostas por 12 direções: direita-alta, esquerda-baixa, esquerda-alta, direita-baixa, direita-frente, esquerda-trás, esquerda- -frente, direita-trás, frente-alta, trás-baixa, trás-alta, frente-baixa; � diagonais: são compostas por nove direções: alto-direita-frente, baixo- -esquerda, trás-alto, alto-esquerda-frente, baixo-direita trás, alto-es- querda-trás, baixo-direita-frente, alto-direita-trás, baixo-esquerda-frente. Figura 1. Símbolos e direções espaciais. Fonte: Adaptada de Laban (1978). Diagonal direIta alta Frente Diagonal esquerda alta Lado esquerdo Lado direito Centro Diagonal esquerda baixa Diagonal direita baixa Trás Fundamentos da dança4 Deslocamento O deslocamento ocorre quando o indivíduo se encontra em palco ou em cena de dança e se desloca para um ponto específico de uma coreografia. Na dança contemporânea, por exemplo, não existe um ponto central ou um sentido único ou predominantemente simétrico no espaço. Em uma dança, os deslocamentos podem ser feitos de diferentes formas: saltando, correndo, andando, sendo carregado, carregando, se arrastando, ou girando, entre outras possibilidades. Os deslocamentos podem ocorrer por caminhos retos ou curvos, de forma individual ou coletiva. No movimento humano, as noções de corpo, espaço e tempo devem estar intimamente relacionadas. O corpo se coordena e se movimenta continuamente, dentro de um espaço determinado em função do tempo e em relação a um sistema de referência. A dança,conforme a época em que era executada, simbolizava tanto a manifestação do sagrado quanto do profano. A dança ressurgiu com os bailes aristocráticos do século XV, ainda utilizando sequências do balé clássico, o que de certa forma exigia um alto grau de rigidez. Conforme Oliveira, Oliveira e Kodato (2013, p. 191), [...] dois séculos depois, teve início um movimento no qual se abria espaço para outras possibilidades coreográficas que fugissem às regras rígidas do balé clássico. Deste modo, o corpo passou a ser utilizado de forma mais espontânea, como meio de criação, dando origem à dança contem- porânea, que permitia a livre expressão dos movimentos corporais. Esta nova modalidade surgiu através de bailarinas como Isadora Duncan e Martha Graham, as quais buscavam uma forma de dançar que fosse livre de regras rígidas, que explorasse as possibilidades de cada movimento corporal e que permitisse a expressão e a evocação de afetos e emoções. Havia uma busca por maior liberdade para movimentos inovadores e para improvisações criativas. Com a maior liberdade para a criação de movimentos na dança, foi possível explorar de uma maneira mais eficaz a conscientização do corpo. 5Fundamentos da dança Conscientização quanto ao tempo Alguns fatores são fundamentais para a dança e contribuem para o seu fun- cionamento, como o tempo. O tempo está diretamente relacionado ao ritmo, sendo praticamente impossível dissocia-los. Sendo assim, o ritmo pode ser definido como um movimento regulado de tudo aquilo que se move, permitindo a vivência total do movimento, o aperfeiçoamento da coordenação, além do aprimoramento da consciência corporal. Pode ser caracterizado de diversas maneiras, dentre elas o ritmo próprio, o ritmo grupal ou o ritmo mecânico, além do ritmo disciplinado e do ritmo biológico, como veremos a seguir. (ARTAXO; MONTEIRO, 2000). O tempo e o ritmo estão também relacionados às ações biológicas do nosso corpo, como a respiração. O ritmo e a intensidade do inspirar e ex- pirar ocorrem de maneira biológica, cada um ao seu ritmo, por exemplo, alguns possuem a respiração mais acelerada, enquanto outros possuem a respiração mais lenta. Ou quando corremos o ritmo da nossa respiração se altera ao mesmo tempo em que a respiração vai se tornando mais lenta quando relaxamos. Quando pensamos em relacionar o ritmo e a dança, logo remetemos à música e a estímulos sonoros, assim como o silêncio, visto que este é funda- mental para as pausas na escolha do ritmo, assim como guias na condução da composição coreográfica. É pela música que o artista recebe um direcionamento de tempo e intenção de movimento, além de servir como condução da movimentação. É pelo tempo que o artista começa a construir seus movimentos e seu ritmo interno. O tempo pode ser definido como a velocidade do movimento corporal, além dos contrastes e contratempos, que seriam as mudanças repentinas de movimentos em um pequeno espaço de tempo. É fundamental que o corpo sempre esteja aberto a mudanças temporais em momentos diferentes. (SFO- GGIA, 2010). A qualidade do tempo pode determinar o quão sustentado é um movi- mento, o que está logicamente relacionado à decisão que precisa ser tomada e à urgência do movimento. O tempo tem a grande função de operacionalizar, comunicando quando o movimento deve ser executado (SFOGGIA, 2010). O movimento em tempo lento pode expressar dúvida, por exemplo, enquanto o tempo rápido pode mostrar agilidade para tomar decisões. Dessa forma, é necessário refletir sobre três características relacionadas ao tempo: a duração (muito curto ou muito longo), a velocidade (muito rápida ou muito lenta) e a não definição da regulação da velocidade, criando assim a Fundamentos da dança6 oportunidade de variações entre acelerações e desacelerações em um mesmo movimento. As nomenclaturas de tempo são: tempo acelerado, rápido, desa- celerado, lento. O tempo na sequência de movimentos é resultante do compasso musical, e dentro dele é possível encontrar alguns de seus elementos constituintes, como por exemplo, a pausa: interrupção do tempo num compasso musical. A pausa dura exatamente igual a unidade de tempo equivalente. Está diretamente associado a métrica que faz parte do compasso ou pode também preencher um compasso inteiro. Logo, a pausa é um momento de silêncio na música como você já havia assimilado anteriormente. Qualquer ação corporal pode ser retida por um período de tempo. A du- ração da pausa pode ser medida por unidades de tempo que corresponda à movimentos introdutórios ou conclusivos, a partir do período de parada. O tempo-ritmo de uma sequência de movimentos é basicamente a combi- nação de durações iguais ou distintas de uma unidade de tempo. Os tempos- -ritmos são livres e não possuem relação com o tempo de toda a sequência de movimento. O mesmo ritmo pode ser executado em tempos diferentes, sem alterar a duração proporcional de cada unidade de tempo. A dança e o tempo Apesar de existirem termos técnicos que abordam o tempo da dança, preci- samos entender que essa relação vai muito além do controle sequenciado dos movimentos: ela também conversa com os sentidos e os significados, que transparecem na composição coreográfica. Isso quer dizer que o tempo não pode ser tratado apenas de maneira tangível, ou seja, apenas como um marcador de uma sequência, mas também de maneira intangível, isto é, ser analisado além do que está sendo visto e assim determinar o porquê da escolha daquele tempo e daquela forma, assim como o porquê de sua mudança. O tempo quando expresso de maneira lenta pode transparecer dúvida, enquanto o tempo ágil pode expressar certeza e agilidade na tomada de decisões. Quando olhamos o contexto da dança de um aspecto intangível, é possível enxergar dessa forma, porém quando observado de maneira mais lenta ou mais rápida, sem a precisão de um significado, apenas entendemos como uma movimentação qualquer. Por esse lado, o tempo é capaz de representar sensações e fazer suas relações de acordo com o espaço. Por exemplo, em uma apresentação de um corpo de dança contemporânea, o bailarino caminha por todo o espaço do palco rapidamente e, de repente, começa a correr (maior agilidade do tempo, ou da 7Fundamentos da dança sua falta de tempo). Ao se confrontar com os limites do palco, este bailarino é sustentado no ar pelo bailarino que se encontra nas adjacências do palco (pausa do tempo), e este, enquanto não estiver em contato com o bailarino ágil, gira ao redor do próprio espaço que ocupa, lentamente, em ritmo calmo, em uma temporalidade abaixo de qualquer padronização da vida. O espetáculo demonstra a confrontação do próprio tempo na vida coti- diana; por exemplo, em uma manhã de segunda-feira, quando todos acordam após um final de semana tranquilo, a passividade acaba, todos engravatados, apressados com a hora, precisando comer rápido, se contorcem no transporte, sentem dores nas costas pela má postura e estresse por conta das dificuldades no trabalho. Portanto, podemos entender que o tempo em relação ao espaço e à dança é um fator determinante no que tange a demonstração de aspectos corporais, fundamentais para se ultrapassar o sentido tangível da arte e fazer com que o espectador capte sensações de temporalidade e especificidade pelos movi- mentos do corpo do bailarino. A ginástica rítmica pode ser caracterizada como um esporte/arte, pois possui defini- ções de arte e de dança. A dança pode corresponder grande parte da responsabilidade desse esporte, pois comporta música e sequências coreográficas. Além disso, uma grande curiosidade sobre est esporte diz respeito ao tempo dentro da composição: o/a ginasta precisa estar altamente sincronizada com os movimentos corporais, atrelados ao manejo de aparelhos e às dificuldades corporais. Há o tempo e o espaço certos para o/a ginasta lançar seu aparelho em conformidade com a música, a obrigatoriedade de possuir partes rápidas e lentas, além da execução de exercíciose manejos de forma rápida. Nos equilíbrios, é necessário que o/a ginasta fique na pose durante um segundo para a demonstração da figura gímnica. Geralmente, essas figuras são demonstradas nas pausas musicais dos tempos e é neste momento que o/a ginasta tem a oportunidade de demonstrar suas habilidades e o ritmo adotado em sua série, seja um tango, uma polca ou um samba. Portanto, o tempo é extremamente relevante na dança e nos esportes que o enquadram. Fundamentos da dança8 Conscientização corporal quanto à forma É preciso considerar as diferenças corporais: existem pessoas altas, baixas, magras, gordas, fortes e fracas. Uma vez que é o corpo que movimenta a dança e este não se encontra numa condição padronizada, podemos dizer que os movimentos e as formas corporais de cada ato de dançar de corpos diferentes também não serão diferentes, ou seja, cada dança será moldada de acordo com as características de quem dança. Em uma sequência coreográfica na qual são determinados os mesmos movimentos para uma gama distinta de pessoas, com a mesma temporalidade e espaço, o resultado desse movimento será, mesmo assim, diferente para cada corpo dançante. Portanto, podemos afirmar que a forma é resultante da ação corporal que se projeta no espaço: é a estrutura e a arquitetura do movimento que, atrelada a um conjunto de sensações de sentidos e significados, poderá ser compreendida em toda sua totalidade, refletindo a intenção de sua função. A forma reflete a ação externa e perceptível de uma ação subjetiva, pela constante e infinita troca de formas que o corpo pode realizar em uma dança. Quando o indivíduo passa a entender e a assimilar essa forma de conscien- tização, ele se sente encorajado ao desafio da dança e passa a buscar novas perspectivas e formas de dançar. A seguir estão listadas as parcelas da quantidade de movimentações cor- porais possíveis. � Forma total: todo o corpo se move. � Forma parcial: partes do corpo se movimentam, enquanto outras permanecem estáticas. � Forma contínua: sempre é complicado distinguir onde termina e co- meça o movimento, devido a sua fluidez. � Forma curva: o movimento consegue desenhar linhas e formas curvas no ar. � Forma reta: as linhas do corpo formam ângulos e planos com o solo, a parede, o palco ou onde a dança estiver sendo apresentada. As formas de movimentação corporal não precisam necessariamente seguir uma ordem ou somente um tipo de forma: a dança, como arte, faz parte de uma série de criações que se utilizam dos movimentos e das técnicas, mas que não precisam utilizar formas e sequencias pré-determinadas. Em uma composição coreográfica, a bailarina pode iniciar seus movimentos de forma 9Fundamentos da dança parcial e bruscamente passar para a forma total ou se utilizar da forma parcial e contínua ou, ainda, da forma curva parcial. Segundo Neves (2008), as formas de movimentação também possuem partes integrantes, que podem ser classificadas conforme listado a seguir. � Variedade: a forma externa e visível de um movimento, a figura final. � Equilíbrio: mínimo contato corporal de apoio com o solo. Desenvolve o controle muscular e o poder de concentração, podendo ser estático ou dinâmico. � Sequência: sucessão de movimentos que seguem interligados, porém independentes entre si. � Repetição: número de vezes que um movimento ou uma sequência podem acontecer. Variam as possibilidades de execução em diferentes planos, níveis ou direções. � Harmonia: disposição ordenada dos elementos que compõem um movimento. Possui característica de regularidade, gerência e proporcionalidade. � Clímax: o ápice do movimento, geralmente uma ação inesperada, surpreendente, ou o grau máximo de progressão dessa ação, que pode ser isolada, associada ou consequente de outra ação. O tempo, o espaço e a forma: eis a dança Como observamos, o tempo e o espaço resultam na forma de dançar, ou seja, pelo modo como utilizamos o tempo na dança e exploramos o espaço, criam- -se formas infinitas de se dançar. Dentro de grandes espetáculos, pode-se observar como essa junção ocorre. O balé mundial é conhecido por capturar as emoções humanas de forma clara. O lago dos cisnes é um dos mais populares espetáculos de balé; coreo- grafado pelos russos Marius e Pepita, sua versão mais famosa caiu no gosto do público após uma sucessão de montagens com riqueza de movimentos. Dessa forma, esse grandioso espetáculo — que anteriormente estava fa- dado ao fracasso, devido a coreografia e cenografia pobres, associadas a performances sem brilho das bailarinas, que fez com que a primeira versão recebesse ferrenhas críticas à época — hoje é um grande sucesso. Ele conta a história do príncipe Siegfried, que se apaixona pela jovem Odette, uma rainha que foi transformada em cisne por um feiticeiro. Para que o feitiço seja quebrado, Odette precisa ser resgatada por um homem que lhe jure amor Fundamentos da dança10 eterno; o príncipe, em seu aniversário de 21 anos, acaba sendo enganado por outro feiticeiro. Este fez com que o príncipe declarasse seu amor eterno a Odile, gêmea malvada de Odette, mas quando ele se dá conta do ocorrido, volta desesperadamente ao lago, lutando contra o feiticeiro e recuperando sua amada, a quem jura amor eterno. Este é considerado um dos balés mais difíceis em relação a termos técnicos de execução, ainda mais se considerarmos que a bailarina que interpretava Odette/Odile na montagem original conseguiu realizar uma sequência de 32 fouettés (giros), deixando esse legado. Para alcançar tais habilidades técnicas, é preciso provocar o mesmo feito em qualquer reprodução de O lago dos cisnes. Eis então que ocorre o desafio de montagem. a peça é composta por quatro atos, como descrito a seguir. Primeiro ato: em uma caçada em comemoração ao aniversário de 21 anos do príncipe Siegfried, ele é interrompido pela rainha, sua mãe, que lhe determina a escolha de uma moça para casar. Ao por do sol, o jovem príncipe, junto com os trabalhadores do castelo, avista uma lago repleto de cisnes. Muito aventureiro, o jovem decide arriscar a caçada, enquanto os outros decidem retornar ao castelo, pois já estava muito tarde. Segundo ato: algumas horas depois, à beira do lago. Enquanto o príncipe Siegfried adentra a floresta para caçar, observa um belo cisne a voar. Ele cuidadosamente o mira, mas para sua surpresa, o pássaro se transforma em uma linda moça e ele se esconde por entre as árvores para observá-la. Incapaz de conter sua curiosidade, ele aparece e a assusta. O príncipe assegura que nenhum mal irá fazer a ela e pede que explique o fenômeno que acabara de presenciar. Impressionada com sua gentileza, Odette lhe conta sua história: é uma princesa, nascida em berço de ouro, que foi enfeitiçada por um feiticeiro e sua sina é viver como um cisne, se transformando em humana por apenas algumas horas da noite. O lago em que habita foi formado pelas lágrimas de sua mãe. Ela conta que está condenada para a eternidade e somente será liberta do feitiço se um jovem virgem lhe jurar fidelidade eterna e a desposar. No entanto, se ele a trair, ela permanecerá um cisne para sempre. Neste momento, o feiticeiro aparece. O príncipe apaixonado pega seu arco e flecha, mas Odette imediatamente protege o feiticeiro com seu corpo, pois sabe que se ele for morto antes do feitiço ser quebrado, ela também morrerá. O feiticeiro desaparece, e Odette se esconde na floresta. Siegfried percebe que seu destino está agora mudado. A alvorada começa a aparecer e Odette é mais uma vez tomada pelo 11Fundamentos da dança feitiço, retornando a seu disfarce de cisne. Siegfried vai embora, desesperado (MOLLOY, 1984, p. 57). Terceiro ato: na noite seguinte, no salão de festas. Convidados da realeza aparecem para a festa de aniversário, incluindo seis princesas e seus dotes, de que a rainha mãe escolhera como possíveis esposas para seu filho. A rainha ordena que o entretenimento comece, convidando as princesas paradançar. O príncipe dança com cada uma delas. Sua mãe então o ordena que se decida, mas ainda pensando em Odette, ele recusa todas, para o desgosto da mãe. A fanfarra anuncia a chegada do barão Von Rothbart com sua filha Odile. Siegfried se encanta com a beleza de Odile e é seduzido por sua semelhança com Odette e acaba declarando seu amor e fidelidade a ela. Rothbart e Odile, triunfantes, revelam sua decepção, e Siegfried percebe que foi vítima de um plano maligno. Ele foge, no meio da noite (MOLLOY, 1984, p. 57). Quarto ato: à noite, na beira do lago. Todos os cisnes estão ansiosos com o desaparecimento de Odette. Ela aparece e conta do plano de Rothbart, dizendo que antes do amanhecer ela deve morrer. Ouve-se o barulho de trovão. Siegfried acha Odette e implora seu perdão. Com a chegada próxima do amanhecer, Rothbart aparece mais uma vez disfarçado de feiticeiro. Odette conta a Siegfried que ela deve se matar, ou será eternamente um cisne. Siegfried, sabendo que seu destino está mudado para sempre, declara que irá morrer com ela, assim quebrando o poder de Rothbart. Os apaixonados se jogam no lago. Rothbart recebe um choque mortal e todo seu poder é exterminado. Por fim, o casal estará unido para sempre, na vida após a morte (MOLLOY, 1984, p. 57). É preciso lembrar que toda essa narrativa é complexamente representado sem que os bailarinos digam palavra alguma. A bailarina que representa os cisnes, por exemplo, utiliza os espaços de uma forma cautelosa, sempre alon- gando o pescoço, ampliando os braços, sendo muito incisiva nas articulações dos pés. Ao mesmo tempo, precisa ser incisiva quando interpreta o cisne mau, representando movimentos mais bruscos, com o pé em relevé mais tenso. Tudo isso em uma esfera de tempo e espaço enormes. A bailarina, com seus passos curtos, explora o espaço como um ser que está preso em um corpo no qual não se sente feliz nem realizada, à procura de uma saída para a felicidade. O tempo expressa a infelicidade de se estar presa ao corpo de um belo pássaro, mas também a angústia por não poder ser quem realmente é. O tempo também acaba demonstrando a aflição por conta dos acontecimentos e pelo fato de o príncipe ter caído em uma armadilha. Isso Fundamentos da dança12 faz com que o tempo também demonstre o suspense e a angústia. Por fim, é inacreditável como a forma de dançar e incorporar as personagens fazem com que a peça seja especial, ainda que representada de forma clássica. A interpretação da bailarina que representa o cisne é extremamente relevante para o espetáculo e é pode ser observada no filme Cisne negro (2010), do diretor Darren Aronofsky. A produção gira em torno do processo de criação da perso- nagem, que busca incessantemente a perfeição. As cenas do filme misturam a realidade a uma esfera fantástica, altamente metafórica, como na cena em que Nina, a bailarina que interpreta Odette (interpretada pela atriz Natalie Portman), se arruma e simultaneamente ganha asas de cisne, representando a vontade da bailarina de incorporar a personagem na sua mais perfeita forma. Acesse o link a seguir para assistir à competição de ginástica rítmica da seleção brasileira de ginástica rítmica na Copa do Mundo de 2018. Observe como os espaços, tempos e formas são desenvolvidos no esporte. https://goo.gl/9pDYjS Uma professora de dança em uma escola do Acre recebeu a importante missão de criar um espetáculo que retratasse rituais dos povos indígenas. A pedagoga da escola orientou que o espetáculo fosse desenvolvido no auditório, cujo palco teria um espaço médio. A professora teve a oportunidade de ensaiar a coreografia nesse mesmo espaço e os alunos identificaram a forma espacial e engrandeceram seus movimentos. Por se tratar de um espetáculo indígena, utilizaram o tempo de forma menos ágil, mas em momentos diferentes utilizaram movimentos bruscos, por ter o objetivo de demonstrar alguns rituais geralmente são dolorosos. A forma como esses elementos foram utilizados geraram movimentos sequenciados e repetitivos que remetiam à dança indígena, com poucas variações e movimentos corporais parciais, em que o tronco permanece a maior parte do tempo parado e as extremidades corporais executam movimentos pouco amplos, porém cadenciados. A professora utilizou elementos da dança (tempo, espaço e forma) em harmonia e para reproduzir um ritual indígena. 13Fundamentos da dança Por fim, observamos que os elementos estruturantes da dança estão in- terligados. O espaço é onde estabelecemos uma relação de movimentação, podendo ser grande, pequeno, largo ou estreito, alto ou baixo. Tendo criado a conscientização da relação entre o corpo e o espaço, passamos a determinar o tempo em que esse espaço será utilizado, por exemplo: explorar a parte baixa lentamente, e a parte, alta rapidamente; enquanto o meio será interligado com os planos diversos. Reunindo as assimilações de tempo e espaço, criamos a forma dos movimentos, pois a dança se movimenta de acordo com o corpo, dadas as formas de preenchimento espacial. No fim, podemos estar em um lugar amplo, realizar movimentos ágeis utilizando o corpo de forma totalmente harmoniosa e ampla, utilizando variedades figurativas, por repetidas vezes, sendo o clímax atingido na pose final. Dançar, definitivamente, é um sistema complexo de experimentação do corpo. ARTAXO, M. I.; MONTEIRO, G. A. Ritmo e movimento: teoria e prática. São Paulo: Phorte Editora, 2000. 48 p. IMBASSAÍ, M. H. Conscientização corporal: sensibilidade e consciência no mundo contemporâneo. In: CALAZANS, J.; CASTILHO, J.; GOMES, S. (coord.). Dança e educação em movimento. São Paulo: Cortez, 2003. (p. 47–57). LABAN, R. Domínio do movimento. 3. ed. São Paulo: Summus Editorial, 1978. 268 p. LE BOULCH, J. Rumo a uma ciência do movimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. 239 p. MOLLOY, S. Dos lecturas del cisne: Rubén Darío y Delmira Agustini. In: GONZÁLEZ, P. E.; ORTEGA, E. (ed.). La sartén por el mango. Puerto Rico: Huracán, 1984, p. 57–69. NEVES, N. Klauss Vianna: estudos para uma dramaturgia corporal. São Paulo: Cortez, 2008. 112 p. OLIVEIRA, C. M.; OLIVEIRA, R. G. V.; KODATO, S. Repesentações Sociais e Consciência Corporal no Movimento da Dança Comtemporânea. Perspectivas em Psicologia, Uber- lândia, v. 17, n. 2, p. 190–213, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/ index.php/perspectivasempsicologia/article/view/28569/. Acesso em: 10 abr. 2019. SFOGGIA, L. G. Rudolf Laban: uma visão de dança, de corpo e de movimento. In: SFO- GGIA, L. G. Corpo, análise e criação: uma abordagem indisciplinar da composição em dança através do sistema Laban/Bartenieff e da Motif-description. Orientadora: Dulce Aquino. 2010. 187 f. Dissertação (Mestrado em Dança) – Escola de Dança, Universidade Fundamentos da dança14 Federal da Bahia, Salvador, 2010. p. 24–58. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ ri/handle/ri/10606?mode=full. Acesso em: 10 abr. 2019. STRAZZACAPPA, M. M. Compartilhando um outro olhar sobre o ensino de dança. In: FALCÃO, J. L. C.; SARAIVA, M. C. (org.). Esporte e lazer na cidade: a prática teorizada e a teoria praticada. Florianópolis: Lagoa, 2007. p. 11–28. Leituras recomendadas BISSE, J. M. Dança e modernidade. Orientadora: Eliana Ayoub. 2008. 90 f. Dissertação (Mestrado em Educação) — Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Cam- pinas, Campinas, 2008. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/ REPOSIP/251794. Acesso em: 10 abr. 2019. GIELEN, P. Criatividade e outros fundamentalismos. São Paulo: Annablume, 2015. 128 p. LORDE, A. A transformação do silêncio em linguagem e ação. Modern Language As- sociation, Chicago, dez. 1977. (Palestra proferida no painel “Lesbianismo e Literatura”). Disponível em: https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-lingua- gem-e-acao/. Acesso em: 10 abr. 2019. LUCENA, A. S. Processos cocriativos em dança: ação corporal labaniana nas experiências do que nos é comum. Orientadora: Lenira PeralRengel. 2017. 123 f. Dissertação (Mes- trado em Dança) — Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/22688. Acesso em: 10 abr. 2019. 15Fundamentos da dança