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Ética e Humanização em Saúde Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Karina Camasmie Abe Revisão Textual: Prof. Me. Luciano Vieira Francisco Humanização em Saúde • Introdução; • Fragmentação do Atendimento em Saúde; • Sociedade Líquida; • Ética e Humanização; • Desafios e Limitações dos Métodos de Humanização; • Sistema Único de Saúde e a Humanização em Saúde; • Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS. • Conhecer os conceitos envolvidos na humanização em saúde ; • Conhecer os principais desafi os e as limitações das ações de humanização ; • Discutir a evolução dos valores e comportamentos da sociedade contemporânea ; • Conhecer a política nacional de humanização em saúde lançada pelo Ministério da Saúde. OBJETIVOS DE APRENDIZADO Humanização em Saúde Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Humanização em Saúde Introdução Quando mencionamos humanização em saúde, podemos causar estranha- mento em muitas pessoas: “humanizar o quê? Por acaso não somos humanos?” – Foram perguntas feitas por uma auxiliar de Enfermagem de uma unidade básica de saúde de São Paulo, SP. Faz algum tempo que o assunto humanização chegou aos serviços de Saúde e a reação dos profissionais foi variada: algumas pessoas já estavam trabalhando sob essa ótica de ações humanizadoras e se sentiram valorizadas e reconhecidas; outras – que representavam a maioria – não tinham ideia alguma do que se tratava, reagindo com desdém ou indignação – “humanizar os humanos?” (RIOS, 2009a). Tais profissionais consideraram essa discussão como um insulto ao trabalho re- alizado. Porém, assim que se explicava que a humanização é a construção de um relacionamento ético e ampliado entre profissionais, pacientes e instituições, tendo por objetivo recuperar valores humanísticos esquecidos pela rotina, demanda de trabalho e o cotidiano, a inicial repulsa amenizava. Figura 1 Fonte: Getty Images A área da Saúde é caracterizada por uma prática dependente da ética. Ou seja, mesmo que a lógica do mundo seja contrária aos princípios éticos da benevolên- cia – e não agir com a intenção de causar o mal ao outro –; na área da Saúde é imprescindível a educação para a ética nas relações entre as pessoas, dado que isso faz parte de se realizar a missão a que se destina essa escolha profissional. Infelizmente, o tema ainda é pouco discutido e inserido no cotidiano da maioria das práticas de atenção em saúde e ensino. Em uma pesquisa com residentes do primeiro e último ano da residência médi- ca do Hospital Heliópolis, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, foram identificados dados interessantes: os pesquisadores detectaram que, ao ingressarem na residência, os médicos apresentavam vaga noção do que seria humanização, 8 9 considerando-a mais focalizada na qualidade da relação médico-paciente. No últi- mo ano de residência, porém, a maioria apresentou maior falta de informação e de interesse pelo assunto, inclusive, considerando que a humanização tem menor relação com o seu trabalho e mais com o voluntariado, a administração hospitalar, os psicólogos e assistentes sociais (RIOS, 2009a). Essa pesquisa mostra como é comum iniciarmos um trabalho pensando de uma forma mais integralizada ao meio e ambiente, de modo mais interdisciplinar e, no dia a dia, frente às dificuldades de recursos, de atuação, pressões de todos os tipos, é comum acabarmos nos limitando e fechando ao que é somente “ne- cessário” fazer. Você já deve ter ouvido algumas vezes as seguintes justificativas: “Isso não é o meu trabalho”; “Estou aqui apenas para fazer isso”; “Não tenho tempo para isso”. Os pesquisadores concluíram que os serviços de Saúde necessitam, urgentemen- te, de capacitação e incorporação de projetos de humanização e discussão sobre a conduta ética em Saúde (RIOS, 2009a). Essa pesquisa nos faz pensar sobre os nossos hábitos e condicionamentos quan- do estamos em determinadas circunstâncias. Apesar de entrarmos ou iniciarmos um trabalho/atendimento com a melhor das intenções, vontade e acolhimento, a rotina, o hábito, a pressão, o cansaço e a falta de diálogo e informação, assim como a incompreensão sobre onde se está e as consequências das próprias ações e responsabilidades podem ocasionar certos momentos de inconsciência, falta de reflexão e diálogo. Tudo isso influencia o modo como tratamos os outros – profis- sionais e pacientes – no ambiente de trabalho. Fragmentação do Atendimento em Saúde Estamos, cada vez mais, compartimentalizando os atendimentos e o modo como nos relacionamos. A Medicina, antes mais generalista, deu espaço aos avanços tecnológicos e se especializou em diversas partes do corpo – atualmente temos especialidades médicas para o tratamento de problemas do coração, da pele, dos pulmões, rins, da garganta, dos hormônios etc. Cada sistema do corpo humano possui mais de uma especialidade médica. A compartimentalização possibilitou inúmeros avanços em pesquisas e no trata- mento de doenças; porém, pode ter contribuído para a geração de inúmeros erros médicos e diagnósticos equivocados, pois o médico especialista apenas consegue analisar sobre a área que domina e o paciente dependerá do envolvimento desse profissional para se chegar ao diagnóstico ou encaminhamento correto. Por exem- plo: algumas vezes uma pessoa procura o serviço de Saúde por estar com forte dor de cabeça. Esse sintoma pode ser devido a uma série de fatores, ou seja, pode ser apenas uma dor de cabeça ocasionada por estresse, ou uma sinusite, problemas de pressão ou neurológicos, ou até mesmo um tumor. 9 UNIDADE Humanização em Saúde Figura 2 Fonte: Getty Images Por isso, a qualidade da atenção dedicada ao paciente é extremamente impor- tante para que as pessoas sejam vistas de forma integral – e não compartimenta- lizadas. Dito de outra forma, não se deve olhar o paciente e apenas ver a doença, sendo necessário conseguir enxergar o humano vítima dessa doença e todas as circunstâncias que o rodeiam. De forma prática, não existe procedimento técnico, clínico ou cirúrgico que não provoque emoções, sentimentos, lembranças e que não deixe as suas impressões, os efeitos e uma memória atrelada ao processo.Saber disso é importante porque os pacientes podem reagir ao contato com o profissional da Saúde de um modo comumente incompreensível, mas que se torna entendível se pensarmos que não se trata apenas de um sentir por vias neuronais. Comumente o simples toque ou estilo de abordagem significa um sentimento que pode re- meter e vir carregado de vivências, muitas vezes inconscientes até para o próprio paciente (RIOS, 2009b). Ex pl or É igualmente importante considerar que as condições de trabalho dos profis- sionais da Saúde podem vir a ser extremamente desumanizadoras, com falta de recursos básicos e infraestrutura, além da demanda em atendimento em poucos minutos – realidade que ocorre em muitos estabelecimentos e municípios. A carga emocional e de trabalho a que esses profissionais estão expostos é demasiadamen- te alta e, não raramente, pode-se encontrar profissionais da Saúde tratando com indiferença ou insensibilidade os seus pacientes e até mesmo os demais colegas profissionais. Isso também chama a atenção para olharmos a esse profissional como um ser humano que possui as suas limitações e dificuldades para lidar com questões emocionais e afetivas. Por isso, é importante promover a discussão e inserção de medidas que pro- movam a denominada humanização em saúde, resgatando as pessoas da rotina alienante e apatia aparente, fazendo-as refletir sobre a forma de se relacionar no meio em que estão inseridas. 10 11 Importante! Que muitos processos éticos são abertos nos conselhos profissionais a cada dia, com de- núncias sobre más condutas de profissionais da Saúde? Entretanto, o acompanhamento, monitoramento, diálogo entre esses profissionais, a capacitação a respeito de condutas humanizadoras e éticas em Saúde, assim como um canal legítimo de conversação e es- cuta ajudariam inúmeros profissionais a melhorarem as próprias práticas profissionais e o ambiente de trabalho. Você Sabia? Sociedade Líquida A atual sociedade possui acesso à tecnologia em uma velocidade nunca vista, o que modificou a forma de se relacionar, conversar, acompanhar e se comunicar. Há muitos choques de gerações e hábitos, principalmente tecnológicos, com adventos que prometiam ser estreitadores dos relacionamentos, mas que parecem causar efeitos colaterais na superestimação da individualidade. Os nossos maiores esforços, atualmente, correspondem a parecermos algo e divulgarmos essa perso- na nas redes ou para as pessoas às quais estamos ligados. Figura 3 Fonte: Getty Images Como analisado pelo pensador Zygmunt Bauman, a Era Pós-Moderna foi descrita como sendo de característica “líquida”, simbolizando os nossos frágeis laços típicos dessa época, representando um mundo cada vez mais incerto, inseguro e “movediço”. Bauman foi um grande pensador humanista, pois dedicou a sua vida a divulgar as suas reflexões a respeito da sociedade moderna, que caracterizou como uma sociedade de consumo, onde a única certeza é a incerteza da mudança e uma ca- racterística marcante desta época é o fato de as pessoas se relacionarem, muitas vezes, como se fossem produtos. 11 UNIDADE Humanização em Saúde A nossa sociedade pós-moderna passa por uma revisão de valores. Não é pos- sível pensar a humanização na Saúde sem antes dar uma olhada no que acontece no mundo contemporâneo (RIOS, 2009a). Uma das faces da proposta da humanização da área da Saúde seria, portanto, uma proposta de ampliação do atual olhar da assistência, incluindo em seus pro- cedimentos a atenção aos aspectos existenciais, sociais, culturais e religiosos. Isso possibilita uma mudança na maneira como os profissionais cuidam de seus pacien- tes, promovendo atitudes de acolhimento, maior disposição em ouvir o doente e entender as suas necessidades, além da construção de um elo de confiança e de um espaço para discutir a melhor opção de tratamento. Leia o seguinte trecho do livro Identidade, de Zygmunt Bauman (p. 78) e a forma como descreve a sociedade contemporânea: Com os fones de ouvido devidamente ajustados, exibimos nossa indiferença em relação à rua em que caminhamos. Ligados no celular, desligamo-nos da vida [...]. Defrontadas com momentos de solidão em seus carros, nas ruas ou em caixas de supermercado, mais e mais pessoas deixam de se entregar a seus pensamentos para, em vez disso, verificarem as mensagens deixadas no celular em busca de algum fiapo de evidência de que alguém, em algum lugar, possa desejá-las ou precisar delas. As agendas dos celulares ocupam o lugar da comunidade que nos falta, e a es- perança é que substituam a intimidade perdida. Espera-se que aguentem uma carga de expectativa que lhes é impossível levantar, muito menos sustentar. Nosso universo escapa a todo entendimento. Suas intenções são desconhecidas, seus próximos passos imprevisíveis. E assim, o medo cósmico é também o horror do desconhecido: o terror da incerteza e do desamparo. Ex pl or Ética e Humanização A ética, por enfatizar os deveres, direitos, valores e o modo como as pessoas conduzem as suas relações, constitui-se de uma dimensão fundamental para a hu- manização (BACKES; LUNARDI; LUNARDI FILHO, 2006). Imagine a enorme velocidade que as mudanças ocorrem atualmente. Se formos pensar que a penicilina foi descoberta em 1928, aumentando drasticamente a efi- cácia de cura e que em todo o período anterior a essa descoberta a sociedade não possuía o conhecimento desse tipo de medicamento para o tratamento de infec- ções microbianas, podemos pensar que a evolução das tecnologias em Saúde avan- çaram de forma rápida – talvez em uma velocidade que não conseguimos assimilar. O avanço da técnica e tecnologia fez com que a área da Saúde se distanciasse das Ciências Humanas e se aproximasse das áreas Exata e Biológica. As perspectivas de evolução da área da Saúde não devem ser vistas como ruins, no entanto, houve 12 13 demasiada concentração na parte técnica e nas perspectivas de que a Ciência con- seguiria resolver todos os nossos problemas da atualidade. A visão do ser humano como uma “máquina”, possível de ser “consertada” por métodos adequados e téc- nica, reforçou a abordagem cientificista, exata, compartimentalizada, separando-o de seu meio, sociedade, hábitos, entre outros aspectos. Grande parte do fenômeno que chamamos de desumanização deve-se justa- mente a essa experiência radical da tecnificação da Saúde e Ciência. Pense que, por um lado, uma parte da desumanização deriva das próprias experiências vividas pelos profissionais da Saúde, desde a sua formação até os exemplos que encontram em seu cotidiano; por outro lado, podemos pensar na frustração dos doentes, que se sentem desiludidos diante da limitação e incapacidade de todas essas tecnologias científicas não conseguirem lhe entregar o que pareciam prometer. Em situações de alta gravidade e de limitações de recuperação da saúde, tanto pacientes quanto profissionais possuem dificuldades em lidar com situações de fa- lência dos recursos técnicos e é, principalmente, nesses momentos que eventual- mente mostram as inaptidões do exercício das virtudes humanas (CLARAMONTE GALLIAN; PONDE; RUIZ, 2012). Ressalta-se aqui que a desumanização não é uma consequência de especial mal- dade dos profissionais ou pacientes, sendo todos vítimas dessa patologia moderna (CLARAMONTE GALLIAN; PONDE; RUIZ, 2012). É desse extremo que a Ciência e a área da Saúde tentam reestabelecer um novo equilíbrio, pois não se consegue retirar o homem do meio em que vive. Necessi- tamos de reflexão acerca de nossas ações e atitudes, voltando a estabelecer rela- ções éticas, culturais e existenciais com as pessoas à nossa volta (CLARAMONTE GALLIAN, 2000). Como explicado pelo pesquisador Claramonte Gallian (2000): “Ainda que quase todo mundo concorde teoricamente, na prática poucos são os que efetivamente estão conscientes de que a Ciência e a tecnologia não podem resolver todos os problemas da humanidade”. Nessa perspectiva, não temos dúvidas de que há necessidade de se humanizarnovamente a área da Saúde, não somente pela necessidade de formação e conduta ética, mas também é fundamental interligar os saberes e a evolução dos conhecimen- tos biológicos e físico-experimentais aos saberes e conhecimentos das outras áreas e profissionais, tais como historiadores, filósofos, antropólogos, psicólogos, literatos, pedagogos e alunos (CLARAMONTE GALLIAN, 2000). É urgente a necessidade de percebermos que o ser humano é constituído de todas essas faces e deve ser perce- bido como um ser físico, biológico, cultural, social, espiritual e relacional. O profissional da Saúde nunca estará afastado das determinações de seu papel social, do lugar imaginário, das demandas conscientes e inconscientes dos pacientes, de sua formação acadêmica e, como não poderia deixar de ser, principalmente de sua personalidade (RIOS, 2009b). Assim, deve-se constituir canais comuns de estudo, discussão e troca de experiências, tanto para pacientes quanto profissionais de Saúde. 13 UNIDADE Humanização em Saúde Quanto mais técnicos e pouco humanizados, mais fácil será sermos trocados por uma inte- ligência artificial, em um futuro não muito distante. Nesse sentido, leia a seguinte reporta- gem sobre um médico-robô que já realiza atendimentos desde 2018, na China: Médico-robô começa a tratar pacientes em ambulatório da China Um robô dotado de inteligência artificial com capacidade para diagnosticar pacientes e dar receitas de acordo com os sintomas começou a “trabalhar” em um ambulatório da província oriental chinesa de Anhui. O médico-robô, de aspecto humanoide, grandes olhos azuis e com um permanente sorriso, é capaz de lembrar diagnósticos e receitas de outros médicos que trabalham no Centro na hora de tratar seus pacientes, se baseando em passadas experiências. O robô já havia ganhado fama no ano passado ao se transformar no primeiro do mundo a superar o exame para obter a Licenciatura para trabalhar como médico. Figura 4 Fonte: Getty Images Ex pl or Fonte: https://glo.bo/398RjvM Desafios e Limitações dos Métodos de Humanização Devemos ficar atentos e manter sempre uma reflexão crítica para ajudarmos no desenvolvimento e aprimoramento das técnicas e Educação em Saúde. Por isso, programas de treinamento e capacitação são desenvolvidos para divulgar e promo- ver a chamada humanização, desde a base educacional até a sua prática. Entre- tanto, muitas vezes os estabelecimentos apenas propõem esse tipo de programa para atender a metas e resoluções externas, provocando a ineficácia da abordagem – que comumente é negligenciada. Sem fundamentar esses programas e treinamentos em uma interdisciplinaridade verdadeira, com elos e aplicações práticas, pode-se cair no erro de essas propostas serem mais um aprendizado técnico-cientificista, que precisam ser incorporados, 14 15 como se fossem um “pacote” de competências e habilidades exigidas, aumentando a alienação, angústia e ansiedade. Além disso, caso sejam mal implementadas, as ações de humanização podem contribuir, paradoxalmente, para a desumanização e perda dos valores, delegadas à indiferença ou como ensinamentos que não podem ser colocados em prática (CLARAMONTE GALLIAN; PONDE; RUIZ, 2012). A falta de ações e políticas, de fato, mais humanizadas no ambiente da Saúde pode levar a elevados índices de adoecimento daqueles que devem dar conta de demandas de altíssima complexidade com precários recursos materiais e subjetivos (REIS; MARAZINA; GALLO, 2004). Sistema Único de Saúde e a Humanização em Saúde Desde a sua criação, o Sistema Único de Saúde (SUS) é a estrutura que apresen- ta as contradições e heterogeneidades que caracterizam a nossa sociedade: por um lado, possui serviços modernos e de “ponta” tecnológica ao lado de serviços que estão sucateados. Assim, para tentar disseminar práticas mais humanizadas de atendimento, no ano de 2000 o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), estimulando a disseminação das ideias e ações humanizadoras de acordo com a realidade local. Esse programa foi inovador e tinha forte ênfase na transformação das relações interpessoais pela compreensão dos fenômenos no campo subjetivo. Em 2003, o Ministério da Saúde passou o PNHAH por uma revisão e apri- morou o Programa na Política Nacional de Humanização (PNH), que mudou o patamar de alcance da humanização dos hospitais para toda a rede SUS. A PNH se apresentou como um conjunto de diretrizes que norteiam as atividades institu- cionais que envolvam pacientes, profissionais da Saúde ou gestores, em qualquer instância de efetuação (RIOS, 2009). Muitos desafios são elencados para a humanização em saúde no SUS, sendo alguns os seguintes (REIS; MARAZINA; GALLO, 2004): • Fragmentação do processo de trabalho e das relações entre os diferentes profissionais; • Fragmentação da rede assistencial com outras redes; • Precariedade de interação entre as equipes e despreparo para lidar com a di- mensão subjetiva; • Sistema público de saúde burocratizado e verticalizado; • Baixo investimento na qualificação dos trabalhadores; 15 UNIDADE Humanização em Saúde • Poucos dispositivos de fomento à participação na gestão e nas decisões no ambiente de trabalho; • Desrespeito aos direitos dos usuários; • Formação dos profissionais distante da discussão e formulação de políticas de saúde; • Frágil controle dos processos de atenção e gestão do SUS; • Modelo de atenção “centrado na relação queixa-conduta”. Apesar de serem ações condenáveis e criticáveis, essas práticas são comumen- te encontradas nas instituições, contribuindo para a fragmentação do sujeito e atendimento, da burocratização do atendimento e do reforço ao individualismo . Aos profissionais isso pode ser compreendido como uma violência e um de- samparo em que, muitas vezes, sentem essa rotina e respondem com apatia e indiferença. É nesse círculo que devemos atuar para melhorar as condições de humanização e valorização do ser humano (REIS; MARAZINA; GALLO, 2004). Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS A PNH existe no Brasil desde 2003 e reforça os princípios do SUS no cotidiano das práticas de atenção e gestão, incentivando trocas solidárias entre gestores, tra- balhadores e usuários, qualificando a saúde pública no Brasil. A humanização é um processo de valorização dos usuários, trabalhadores e gestores envolvidos no setor da Saúde. E o que se entende por valorização dos sujeitos? Trata-se de proporcionar maior autonomia, ampliar a capacidade de transformação da realidade em que vivem, por meio da responsabilidade compartilhada, da criação de vínculos solidários, da participação coletiva nos processos de gestão e produção de saúde. Incentivando as mudanças nos métodos de gestão e cuidado, a PNH visa estimular a comunicação entre gestores, trabalhadores e usuários para construir processos e reflexões coletivas e relacionadas ao enfrentamento de relações de poder, trabalho e afeto que, muitas vezes, produzem atitudes e práticas consideradas desumanizadoras. Tais práticas inibem a autonomia e corresponsabilidade dos profissionais de Saúde em seu trabalho e dos usuários no cuidado de si (BRASIL, 2013). No Quadro a seguir estão descritos os princípios norteadores da política de humanização: Quadro 1 – Descrição e princípios da PNH Princípio Descrição Transversalidade Transversalizar é o reconhecimento e trabalho em conjunto das diferentes especialidades e práticas de saúde, incluindo a experiência do paciente. Juntos, esses saberes podem produzir ações mais corresponsáveis em saúde. A PNH busca transformar as relações de trabalho a partir da ampliação da comunicação e do grau de contato entre as pessoas e os grupos, evitando o isolamento e a hierarquização das relações. 16 17 Princípio Descrição Indissociabilidade entre atenção e gestão Atenção à saúde é influenciada, diretamente, pelas decisões tomadas pela gestão. As decisões da gestão interferem diretamente na atençãoà saúde. Por isso, profissionais e usuários devem se interessar em conhecer como funciona a gestão da rede e dos serviços de saúde, assim como participar ativamente do processo de tomada de decisão nas organizações de saúde e nas ações de saúde coletiva. Os usuários devem também se sentir corresponsáveis pelo próprio cuidado nos tratamentos adotados. Assim, assume-se o protagonismo na manutenção da sua saúde e de sua família. Protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos Os usuários não devem ser vistos apenas como pacientes, ou seja, uma visão passiva; assim também como os profissionais não devem apenas cumprir ordens, sendo necessário o protagonismo de todos para que as mudanças aconteçam, mesmo que demande tempo para que cada um reconheça o seu papel. Um SUS humanizado reconhece cada pessoa como legítima cidadã de direitos, valorizando e incentivando a sua atuação na produção de saúde. Fonte: Adaptado de Brasil (2013) Objetivos do HumanizaSUS Os principais objetivos da política nacional de humanização da atenção e gestão do SUS são assim resumidos (BRASIL, 2013): • Disseminar os princípios e as diretrizes da humanização entre profissionais, gestores e usuários do SUS; • Incrementar as iniciativas de humanização existentes; • Aumentar o relacionamento sadio e compartilhamento das práticas de gestão e atenção; • Aprimorar, ofertar e divulgar estratégias e ações de apoio a mudanças susten- táveis dos modelos de atenção e gestão; • Monitorar os processos de acompanhamento e avaliação, divulgando as expe- riências coletivas e o conhecimento bem-sucedido. Diretrizes do HumanizaSUS O Quadro a seguir resume as principais diretrizes do HumanizaSUS, descre- vendo o que são e como fazer: Quadro 2 – Diretrizes do HumanizaSUS Diretriz O que é? Como fazer? Acolhimento Acolher é reconhecer que a necessidade de saúde do outro é legítima. Manifesta-se principalmente a acolhida com uma escuta atenciosa oferecida pelo profissional de Saúde ao usuário. A escuta e compreensão adequadas podem garantir o acesso apropriado desse usuário a tecnologias dedicadas às suas necessidades, ampliando a efetividade das práticas de Saúde. A escuta adequada, no início, assegura, por exemplo, que todos sejam atendidos com prioridades a partir da avaliação de vulnerabilidade, gravidade e risco, não negligenciando a situação de saúde dos usuários e dando a devida atenção ao que é, de fato, grave e urgente. Gestão participativa e cogestão Cogestão significa incluir novos sujeitos nos processos de análise e decisão e a ampliação das tarefas da gestão. A organização e experimentação de diálogos em rodas é uma importante orientação da cogestão. A disposição em rodas favorece o ambiente para se colocar as diferenças em contato de modo a produzir movimentos de desestabilização. Isso favorece as mudanças, pois cada indivíduo possui voz e participa mais ativamente. 17 UNIDADE Humanização em Saúde Diretriz O que é? Como fazer? Ambiência Diz respeito a criar espaços saudáveis, acolhedores e confortáveis, que sejam respeitosos à privacidade e que propiciem mudanças no processo de trabalho. Esses ambientes devem ser lugares de encontro entre as pessoas. É possível realizar de forma a favorecer discussões sobre situações do dia a dia, tais como uma reforma, nova disposição dos espaços etc. Ouvir os usuários e trabalhadores de cada serviço é uma orientação que pode melhorar o ambiente de saúde. Clínica ampliada e compartilhada Trata-se de uma ferramenta teórica e prática, cuja finalidade é considerar a singularidade do sujeito e a complexidade do processo saúde/doença durante o seu tratamento. Uma clínica ampliada diminui a fragmentação do conhecimento e das ações de Saúde, diminuindo a sua ineficácia. Atualmente, há muitos recursos que proporcionam diagnósticos mais detalhados e melhora da qualificação do diálogo – tanto entre os profissionais de Saúde, quanto destes com o usuário –, de modo a possibilitar decisões compartilhadas e compromissadas com a autonomia e saúde dos indivíduos que utilizam o SUS. Valorização do trabalhador É importante dar visibilidade e reconhecimento à experiência dos profissionais e incluí-los na tomada de decisão, apostando em sua capacidade de analisar, definir e qualificar os processos de trabalho. O Programa de Formação em Saúde e Trabalho e a Comunidade Ampliada de Pesquisa são exemplos que facilitam o diálogo, a intervenção e análise do que gera sofrimento e adoecimento, assim como o diálogo do que fortalece os grupos. Defesa dos direitos dos usuários Os direitos dos usuários de Saúde são garantidos por Lei e os serviços de Saúde devem incentivar o conhecimento desses direitos e assegurar que sejam cumpridos, desde a entrada do indivíduo até a sua alta. Todo cidadão tem direito a uma equipe de Saúde que lhe dê atenção e que o informe sobre a sua saúde, ficando a seu critério a divulgação do seu estado. Fonte: Adaptado de Brasil (2013) A política de humanização em saúde deve ser um instrumento de transferência de um poder centralizado para um poder compartilhado, em que profissionais, pa- cientes e gestores possam sustentar o processo de prevenção e assistência (REIS; MARAZINA; GALLO, 2004). Em uma visão panorâmica, podemos notar inúmeros progressos em relação à denominada humanização da saúde. Muito há ainda a ser trilhado, pois também incontáveis são os desafios modernos; porém, vale lembrar que, em um passado não distante da história do Brasil, as pessoas com transtornos mentais e psiqui- átricos, por exemplo, recebiam tratamentos atualmente considerados absurdos e obscuros, em diversos hospitais psiquiátricos, em que [...] homens e mulheres eram submetidos a condições sub-humanas, per- diam o direito à cidadania e eram amontoados em hospitais superlotados que usavam de tratamentos violentos que, muitas vezes, resultavam em morte – os cadáveres eram vendidos para laboratórios de Anatomia de uni- versidades. Há registros de pelo menos 60 mil mortes entre homens, mu- lheres e crianças em hospitais psiquiátricos brasileiros. (FIOCRUZ, 2018) Atualmente, as pessoas com transtornos psiquiátricos são atendidas de maneira intensiva, porém, não de forma isolada e esquecida em manicômios. A maioria dessas casas foi fechada e hoje há outros programas de atendimento, como o sur- gimento dos centros e núcleos de atenção psicossocial. Muito há ainda a ser me- lhorado, porém, é necessária a participação atuante e consciente de todos, sejam profissionais, gestores ou usuários dos sistemas de saúde. Não deixe de buscar e se informar sobre outras ações de humanização, procurando compreender as evoluções históricas, como se desdobraram ao que atualmente conhece- mos; investigue informações sobre os avanços da inteligência artificial e como é utilizada na área da Saúde. Enfim, fontes não faltam, mas não se esqueça de realizar uma leitura e reflexão crítica sobre as quais, discutindo e percebendo diferentes pontos de vista. 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos HumanizaSUS Conheça as experiências do Sistema Único de Saúde (SUS) documentadas em vídeo. https://youtu.be/CygobCIwKIU HumanizaSUS – Permaneço eu, permaneço tu, permanecer SUS https://youtu.be/TMb9qQPUFF8 Leitura Política Nacional de Humanização (PNH) http://bit.ly/2I2vUs9 HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS http://bit.ly/32H9MgA Rede HumanizaSUS http://bit.ly/2I60uRA Humanização, humanismos e humanidades: problematizando conceitos e práticas no contexto da saúde no Brasil http://bit.ly/389GxE9 Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento http://bit.ly/2wgSNVX Melhor no passado: a verdadeira saúde da família http://bit.ly/32E8fb8 19 UNIDADE Humanização em Saúde Referências BACKES, D. S.; LUNARDI, V. L.; LUNARDI FILHO, W. D. A humanização hos- pitalar como expressão da ética.Rev. Latino-Am. Enfermagem, v. 14, n. 1, jan./ fev. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n1/v14n1a18.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Política Nacional de Humanização (PNH). Brasília, DF, 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2020. CLARAMONTE GALLIAN, D. M. A (re)humanização da Medicina. 2000. Dis- ponível em: <http://priory.com/psych/galli0500.htm>. Acesso em: 15 jan. 2020. ________.; PONDE, L. F.; RUIZ, R. Humanização, humanismos e humanidades: problematizando conceitos e práticas no contexto da saúde no Brasil. Revista In- ternacional de Humanidades Médicas, v. 1, n. 1, 2012. Disponível em: < https:// journals.epistemopolis.org/hmedicas/article/view/1293>. 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