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© JOÀO BÉNARD DA COSTA (1990) E ASSÍRIO & ALVIM COOPERATIVA EDITORA E LIVREIRA, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67-B, 1100 LISBOA EDIÇÀO 299, NOVEMBRO DE 1990 DEPÓSITO LEGAL Ne. 34015/90 ISBN 972-37-0260-6 ESTE LIVRO FOI COMPOSTO POR MARIA DA GRAÇA MANTA E IMPRESSO NA GUIDE - ARTES GRÁFICAS, LDA. Os Filmes da Minha Vida João Bénard da Costa Os Meus Filmes da Vida NOTA INICIAL Neste volume, reúnem-se as 52 crônicas e um prefácio que, entre 27 de Maio de 1988 e 30 de Junho de 1989, publiquei n' O Independente, sob os títulos «Os Filmes da Minha Vida» e «Os Meus Filmes da Vida». Durante aquele período, esses títulos alternaram, semana a semana. Neste livro, agrupei-os de forma diversa. Começa-se com «Os Filmes da Minha Vida» e acaba-se com «Os Meus Filmes da Vida». 26 textos para cada lado. A última crônica da série final — «O Meu Filme Independente»—pode ser lida como conclusão. A ahrír o volume, hâ o tal prefácio chamado «A Casa Encantada», que foi crônica inaugural. Numa e noutra se explica tudo o que há para explicar. Quaisquer outras palavras são desnecessárias. Não é necessário— mas é bom — agradecer ao Miguel Esteves Cardoso. Foi ele quem me convidou para O Independente, foi ele quem aceitou os meusfilmes e a minha vida efoi ele quem mepropôs que agora reunisse isto tudo num livro. Por isso, é também uma das aventuras dele. Não sei se terá as mesmas consequências. Mas teve os mesmos riscos. E o mesmo gosto. Joào Bénard da Costa 8 JOÀO BÉNARD DA COSTA PREFÁCIO / A CASA ENCANTADA Como David Copperfield, gosto de começar pelo começo, quando falo de vidas ou da minha vida. Apesar disso, A Casa Encantada, título português de Spellboundde Hitchcock, não foi o primeiro filme que eu vi na vida, nem o primeiro filme da minha vida, nem o meu primeiro filme da vida. Quando o vi, na estreia, no Tivoli, em fins de 1946, já tinha 11 anos e muitas horas passadas em quartos escuros desses. Isto para me situar e para vos situar. Ignoro mesmo qual foi o primeiro filme que vi na vida. A acreditar em recordações familiares, mas nào minhas, talvez tenha sido o Pinocchio. Pelo menos, sempre ouvi contar que tiveram que me levar à força da sala do cinema cá para fora (o mesmo Tivoli, já é predestinação) porque chorava demasiado desmedidamente. Parece que mais desmedidamente chorei no foyer, a pedir que me deixassem voltar lá para dentro. Mais razão tinha eu do que os zeladores das minhas lágrimas, como futuras visões do Pinocchio me ensinaram. Mais tarde, continuei a chorar com o Pinocchio (até sob a forma da variante-livro, que eu conheci pelo título As Aventuras de Polichinelo') sem perceber por que é que o Geppetto construía o boneco e depois o deixava entregue a Gatos, Raposas e Grilos, causadores de tantos males. E aquela história dos meninos transformados em burros e do Pinóquio a zurrar quando só queria pedir desculpa, ainda hoje me parece metáfora adequada à injustiça humana. Tamanha aflição. Por ela e por todos os que ficaram tão aflitos como eu, bendigo Walt Disney. Louvado seja, por ter dado technicolor e animação aos pesadelos que tive e tão bem me fizeram. Guarde-o Deus e precipite no inferno a geração de pedagogos que a certa altura andou por aí a dizer que os filmes dele faziam mal às criancinhas. Nào percebiam nada de nada. Ele percebeu tudo de tudo. Ainda hoje me maravilho, sem querer psicanalisar nada, que tivesse havido alguém com a ideia de fazer crescer coisas ao Pinóquio, de 9 1 0 cada vez que pecava. Isto é, de cada vez que mentia, único verbo que em criança se traduz por pecar. Eu que o diga, que aldraboso e mentirão fiquei pela vida fora (por que é que se diz assim e nào pela vida dentro?). Não anda longe desta conversa a minha mais remota lembrança de idas ao cinema. Uma tia velha quis levar-me a ver a Branca de Neve. Mas era um programa duplo, num cinema de reprise. E o programa incluía também (a gente das Cinematecas muito podia aprender com os programadores desse tempo) a Queen Cbristina do Mamoulian, com a Garbo. A minha mãe achou que essa fita não era para a minha idade e não me deixou ir. Na minha memória, tal cena mistura-se com imagens de uma telefonia a dar notícias e de um velho a dizer que tinha morrido o Papa. Se não confundo tudo, só podia ter sido Pio XI. A data 1939 e eu com 4 anos. Dias depois, saía fumo branco por Pio XII, que muito, muito mais tarde, seria meu Geppetto e meu Grilo, antes de morrer aos soluços a ouvir o «Allegretto» da Sétima Sinfonia de Beethoven, se acreditar na dedicatória de um soneto de Jorge de Sena. Esse que começa com o verso: ■Como de Vós meu Deus, me fio em tudo». Eu também. Essa história dos filmes que não eram para a minha idade, durou até acharem que devia acabar. Julgo que até aos 15-16 anos. Lembro-me de alguns requintes. Levarem-me ao Ginásio para ver um documentário alemão sobre a Galeria de Dresde e fazerem-me sair da cadeira vinte minutos depois do «filme grande» começar, porque iam também começar a acontecer as coisas que não eram para a minha idade. O requinte não estava na visão do documentário (de museus sempre gostei tanto como de filmes) mas em me interromperem o prazer que estava a ter. E lembro-me de imensos filmes proibidos, com títulos portugueses mais do que suges tivos (Almas Perversas, Amar Foi a Minha Perdição, O Pecado de Cluny Browri) que eu imaginava — tanto quanto podiam chegar os meus conhecimentos — com imagens não muito diversas dos actuais Coxas Quentes, Orgias Escaldantes ou Bombeiros do Sexo. Desde essa altura, amei esse filmes tão antes de os conhecer, respectivamente, por Scarlet Street, Leave Her to Heaven e Cluny Brown e saber que eram de Fritz Lang, John M. Stahl e Ernst Lubitsch. Porque será que os pais nunca se enganam? Talvez por isso, ir ao cinema — sobretudo quando ia sozinho, o que começou a acontecer cedo — teve sempre foros de coisa perigosa, ou até mesmo pecaminosa. Depois, tudo se fazia escuro e começava a magia. O «spell» do tal filme de Hitchcock, disparatadamente traduzido, mas certei ramente conduzindo à «casa encantada». Que, no caso, era nào só a casa do dr. Edwards (clínica para doentes mentais e ninfomaníacas) mas o «décor» pintado por Dali para o primeiro sonho à Freud do cinema: era nesse sonho que se ficava a perceber — como muito, muito tarde percebi — que o doente mental nào era o médico mau Leo G. Carroll mas o médico bom Mikhail Chekhov (que, de resto, tinha a quem sair, pois era sobrinho de Tchekov) e a ninfomaníaca nào era a rapariga má Rhonda Fleming mas a rapariga boa Ingrid Bergman. Sem ofensa para ninguém, antes pelo contrário, pois doentes desses foram sempre os que me curaram melhor. E deve ser essa a razão — umas das razões — para, logo que me falam em filmes da minha vida, me lembrar de Spellbound. E a música de Miklos Rozsa para esse filme ainda hoje é a que mais me diz a zonas sombrias. Por isso, comecei estas crônicas sob o signo desse Selznick-Hitchcock Film e deixei-me ir. Prometo para as próximas ser mais organizado. E, como combinei com os donos desta casa, alternar as crônicas chamadas «os filmes da minha vida» com as que levarão por nome «os meus filmes da vida» k Nas primeiras falarei de filmes. Nas segundas, falarei de vidas. Terei levado a água ao meu moinho se, ao fim de 52, começarem a perceber que nào há diferenças. De resto, para vosso e meu desassossego, nào vào perceber nada que seja propriamente original. 1 Neste livro, como explicado na Nota Inicial, nào sucederá assim. 1 1 OS FILMES DA MINHA VIDA 1 4 ,/O.ÍO 13ÉNARD DA COSTA LILIOM: UMA VEZ É NENHUMA VEZ Liliom (1934) é um dos mais ignorados filmes de Fritz Lang. Data da sua breve passagem por França (Abril de 1933 a Junho de 1934) depois de fugir a Hitler e antes de se fixar nos Estados Unidos. É um estranhíssimo filme, adaptado de uma peça de teatro do húngaro Ferenc Moinar, em que metade das coisas se passam no Além. Liliom é nome do protagonista, interpretadopor Charles Boyer, entào muito novinho, muito bonitinho e ainda sem os tiques que apanhou em Hollywood quando o puseram a fazer de Napoleão e a seduzir quantas Greta Garbo por lá havia. Liliom, nas categorias de Kundera (leiam o livro mas nâovejam o filme), era um «ser insustentavelmente leve». Festas, copos e mulheres, sustento e glória da sua humanidade. Além disso, desordeiro e ladrão, com algum cadastro às costas. Até que encontra Julie, «ser insustentavelmente pesado» que lhe conhecia bem o curriciilum. Julie surpreende-o, quando aceita viver com ele. «Não tens medo?» pergunta-lhe Liliom. «Quando amo uma pessoa, não tenho medo de nada.» Se Liliom percebe que Julie é um caso diferente, a total dedicação da rapariga começa a dar-lhe complexos de culpa. Passa as noites fora de casa, gasta em copos o dinheiro que ela se esfalfa a arranjar e um dia, mesmo, chega-lhe valentemente a roupa ao pêlo. Até que a «leveza» de Liliom vai longe de mais. Ao saber que Julie está de esperanças, decide-se a ganhar muito dinheiro para a criança ter vida fácil e aceita a proposta de um amigo de assaltar um cidadão de carteira supostamente bem recheada. Era armadilha da polícia, decidida a ajustar contas. Tiros, fuga e Liliom, em cima de um monte e recortado contra o céu baço, prefere cravar no próprio peito uma faca do que ser preso. Eis, pois, o protagonista, insolitamente morto, a meio do filme. 7 Mas é nessa altura que se passa para «outra dimensão». Junto ao corpo, aparecem três «polícias de Deus». Se a morte resolvesse tudo, era cômodo. Que seria da justiça, se morrer fosse tão fácil solução para fugir a ela? E levam-no céu fora, ou céu acima, deixando Julie a chorar junto ao cadáver assim desdobrado. O Além parece-se singularmente com a esquadra de que Liliom era habitual frequentador. A única diferença é que os polícias têm asas. Para o julgarem, recorrem a um método assaz original e assaz premonitório em 1934, mesmo considerando que estamos em Sítio onde não há tempo. Projectam-lhe em ecrã de televisão o filme da vida dele, graças, certamente, a antenas hiperparabólicas. Volta-se a ver a cena das estaladas. Mas em double-band. Isto é, não só se vê e ouve o que Liliom fez e disse, mas também o que pensou enquanto fazia e dizia tais coisas. E «quando aquilo que a gente sente / cá dentro passa a ter voz», ouvimos Liliom autochamar- -se alguns nomes feios e admitir que Julie tinha toda a razão e ele nenhuma. E em vez de, como diz a cantiga, muita gente, toda a gente passar a ter pena dele, Liliom fica em piores lençóis. Ele próprio se autocondenara. Uma pena de 16 anos de Purgatório. Findo esse prazo, poderá voltar à Terra, por um dia, para ver a filha e, eventualmente, Julie. Dezasseis anos depois, Liliom consideravelmente envelhecido, volta a este mundo com os três guarda-costas. Conhece a filha, que obviamente o não conhece a ele, e lhe diz que o pai morreu na América e era homem de sumas virtudes. Liliom, em conhecimento de causa, permite-se duvidar. A rapariga não admite ao desconhecido tais reservas. Não só lhe responde espevitada e malcriadamente, como se recusa a aceitar «o mais belo dos presentes»: uma estrela que Liliom roubara do céu para lhe dar. Atira-a para uma sarjeta e a estrela apaga-se. Sempre impulsivo e sem pachorra, Liliom usa do direito paterno e dá-lhe um tabefe. Logo os guardas o agarram e o voltam a levar «para cima». Dezasseis anos de amarelas chamas não serviram para o emendar e lhe corrigir o feitio. Debalde, Liliom se queixa da maldita justiça. Os «carcereiros» são im placáveis. Mas nova «transmissão», desta vez «em directo», vem mudar a situação. É a «reportagem» da chegada da filha a casa, a contar à mãe o caso do dia. Quando refere a bofetada, observa, com espanto, que não lhe doeu1 6 nada. Como é possível, pergunta. Nostálgica, recordando o marido e a sova, Julie responde com doce sorriso: «Houve um homem que me bateu e foi tão bom.» Liliom, ao ouvir desta, sorri triunfantemente para os anjos. A balança dos seus feitos começa a equilibrar-se. Há, neste filme, pelo menos, duas coisas assaz extraordinárias. A primeira é a «visão celestial» de Fritz Lang. Iniciando uma moda — que depois surgiu em variadíssimos filmes dos anos 40 — o Além é tudo menos lugar aprazível. É o mundo da supertecnologia, com um aparato de sofis ticação electrónica que, à época, nem em filmes de ficção científica se via. Essa informatização serve a eficiência e a eficiência serve a justiça. Por isso, o Além é mundo de regulamentos e proibições, em que de nada va le — como tenta Liliom — apelar para a Administração. Como já lhe tinham respondido na terra — nas esquadras — a Administração é, por definição, irresponsável. O Além é sistema policial, arquivo de confissõese sentenças e onde o amor não mete bedelho (quando o mete é transgressor). Já sabíamos, desde o século XV e da história da pintura ocidental, que qualquer visão do Inferno (e nem é preciso ir até Bosch) excitou muito mais a imaginação dos artistas do que homólogas visões do céu. Apesar dos tormentos e suplícios (ou por causa deles) tais quadros e frescos — que, entre outras coisas, permitiram mostrar corpos nus, impensáveis noutras paragens — foram sempre mais sugestivos do que representações celes tiais, castas e estáticas, sem sexo nem vida. Fra Angélico foi um grande pintor, mas nem todos os seus azuis e dourados deram resposta, estética ou ética, às delícias do paraíso ou à «eterna felicidade». Asinhas e muita música parecem pouco para preencher tempos infinitos. Nisso os muçulma nos foram talvez mais sagazes, embora eventualmente mais contraditórios. Dante, na Divina Comédia, também se deu conta dessa dificuldade e teve que inventar Beatriz para que o poema não decaísse de acção e interesse ao chegar ao canto celestial. O cinema ainda não nos deu Caldeiras de Pêro Coelho ou Campos Elíseos. Mas, de cada vez que foi para essas zonas (e pensem em todos os filmes do céu que viram) deu dos Aléns uma visão decalcada da de Lang em Liliom. No fundo, a parábola de Liliom é a que serve de justificação à própria ideia de inferno e subjaz a múltiplas querelas teológicas acerca da 1 7 incompatibilidade entre o Deus supremamente bondoso e o Deus supre mamente justiceiro. Para lá da morte, o que nos espera é uma omnivisão implacável. Especularmente, a ordem moral, com a permanência da culpa, acciona idênticos mecanismos de destino, sem as liberdades (falhas técnicas ou humanas) que nesta vida ainda podem acontecer. E daqui decorre a segunda e ainda mais insólita surpresa deste filme. Para julgar a vida, os «polícias de deus- recorrem ao cinema, como infalível testemunho do real. O céu é audiovisual e há «cassettes» prontas para responder a todas as dúvidas. Só que não respondem a dúvidas nenhumas, porque o filme apenas repete, mecânica e etemamente, a visão que já conhecíamos. Mesmo quando lhe acrescentam a double-band, esse acrescento é parcial. Porque se ouve o que Liliom pensou (e só confirma o que tinha dito), mas não o que os outros pensaram, neste caso o que Julie pensou. As representações parciais são sempre mais totalitárias e mais im placáveis do que as representações integrais. Quanto mais se fixa mais se condena. O cinema é, nesse sentido, uma arma mortal. Se as cenas da Terra são fugazes, o filme delas não o é. A única mudança só pode vir de mais vida, ou seja do que acontece de novo. Essa é a suprema astúcia de Lang. Quando Liliom já não tem salvação chega ao Além a «transmissão em directo» que modifica a «transmissão» fixa. O que o salva não é o filme dele, mas o filme de Julie, o filme de outra vida. No fundo — e daí a aproximação que fiz com Kundera — a tragédia de Liliom é que a sua vida só se pode repetir além e aquém. Voltar à terra de nada lhe serve, porque ele é sempre o mesmo. Viver uma vez não é viver vez nenhuma («Einmal ist keinmal»), E isso é tão verdade para a vida, como para o cinema. Só que neste — atransmissão em directo — são possíveis surpresas que podem fazer vacilar a balança do destino. Sem essa novidade (a novidade do amor) a única possibilidade de Liliom — ou para Liliom — era o eterno retorno. Outra forma de não haver nenhuma possibilidade. Mas, devido a uma nova vida, uma segunda vida, é Julie, ao contrário de Eurídice, quem vai aos Infernos salvar Orfeu. O cinema é a única variação possível do mito, porque, ele próprio, anula o mito. Com Liliom 1 8 tudo se repete na vida e nada se repete no cinema. 0 VALE ERA VERDE Nào há filme que me faça mais saudades. Não é o melhor fime de John Ford. Para a tal «ilha deserta», cinéfilo que se prezasse — e eu prezo-me — teria que levar antes Young Mr. Lincoln, Stagecoach, The Grapes of Wrath, MyDarlingClementine, TbeQuietMan, The Searchers, TheWingsofEagles, Two Rode Together, TheMan WhoShot Liberty Valence, Donovan 's Reef ou a trilogia «cavaleira» de 48-50. Talvez até esse secretíssimo The Last Hurrah que o João César Monteiro me ensinou estar para a obra de Ford como Gertrud para a de Dreyer. Mas eu falo dos filmes da minha vida e a regra do jogo desobriga-me de hierarquias genealógicas. São as minhas memórias. Não são árias do catálogo. E, nos comigos de mim, How Green Was My Valley— como Wagon- master ou The Sun Shines Bright, para não sair de Ford — é o filme que me lembra de mais coisas. Estreou-se em 1941 e levou cinco oscars. Melhor filme, melhor realização, melhor interpretação masculina secundária (Donald Crisp, O Pai), melhor fotografia (Arthur Miller), melhores décors (Day, Juran, Little). Concorrente directo era o Citizen Kane de Welles e, durante quarenta anos, quatrocentos mil críticos nos ensinaram que a preferência da Academia pelo filme de Ford era o mais óbvio sinal do congênito reaccionarismo dela. Vitória do antigo sobre o moderno. Cada vez estou menos certo de certezas dessas. Mas é verdade que essa guerra não ajudou nada John Ford. No fim da outra — a que nesse ano de 41 co meçou para a América — proclamaram-lhe morte prematura e tardaram muito tempo a ressuscitá-lo. Por outro lado, os filmes de Ford imediata mente anteriores ( The Grapes of Wrath, The Long Voyage Home, Tobacco Road, baseados, respectivamente, em Steinbeck, O’Neill e Caldwell) ti nham valido ao cineasta uma reputação engagée que lhe era assaz alheia. À época, pareceu viragem de 1802 que o «revoltado» Ford das Vinhas da Ira (que não chegou a ser título português de The Grapes of Wrath porque 19 a censura se encarregou de o proibir) aparecesse em How Green Was My Valley a defender os valores menos associados à revolta: Deus, Pátria e Família. É neste filme que Donald Crisp chama à greve «socialist nonsense» recusando-se a aderir a ela e tentando proibir os filhos de o fazer. A discussão azeda em torno da velha mesa patriarcal. E o Pai proíbe que continue. Quem quiser coisas dessas não tem lugar naquela casa. E é então que, um a um, os cinco filhos mais velhos se levantam e saem. Fica só o mais novo — Roddy McDowall — criança ainda e fica um enorme silêncio perante aquele primeiro «assassinato do pai». Depois, o miúdo tosse e, sem o olhar, Donald Crisp diz muito devagar: «Ti?s, my son, I knoir you are there.» É Roddy McDowall, muitos, muitos anos depois, quem nos conta toda a história, o tempo em que o vale era verde, no País de Gales e na família de mineiros. O que ele recorda, nas duas horas de filme, é o acordo entre uma sociedade e uma terra, acordo que não volta mais, é a harmonia entre o vale e os homens e mulheres nascidos nele. Desde o início, o filme é inscrito numa soberana harmonia entre o olhar e o olhado, entre o dito e o visto. Recorrendo à voz offáe uma criança (co mo em tantos outros filmes áos forties) a magia começa quando o narrador começa a evocar a vida que se vivia cinquenta anos antes. E sobre as ima gens da única rapariga da família — Maureen O’Hara — e do pai com a mão pousada no ombro do filho (imagem que voltará com outras, no final, num efeito de recorrência tão típico de Ford) ouvimos os cânticos do País de Gales e ouvimos o miúdo dizer que «cantar está no meu povo, como ver está nos olhos». Depois, essa tão grande nostalgia que todo o filme «respira» é dada em breves planos do quotidiano (o dinheiro que os filhos ganham a cair no avental da mãe, os banhos, as refeições, a rapariga crescida no meio de homens sem falsos pudores). Nunca, talvez, uma figura de «passado indefinido» tenha sido tão poderosamente criada em cinema. Tudo o que vemos no presente ao passado pertence, tudo o que sucede é já efêmero e perecível. Dantes (um dantes anterior ao próprio filme) fora a imobili dade do vale. Há 50 anos, tudo tinha começado a mudar e Roddy McDowall é a última testemunha dessa transição fatal e letal. Como diria Agustina, há coisas que fazem tanta pena. Todo o filme está nessa pena, nesse espaço20 OS FILMES DA MINHA VIDA 21 «entre». Donde a sua maravilhada e maravilhosa nostalgia só susceptível de ser partilhada por quem se situe também nesse «entre». Ao princípio, é o primeiro casamento. Bronwen (Anna Lee), a tão bela Bronwen, vem para casar com um dos filhos do vale. E o miúdo diz-nos que imediatamente se apaixonou por ela. Ifsperhapsfoolish a cbild being in love, mas aconteceu. E esse casamento — sem que ninguém o saiba — é o último «momento verde» da vida da família, com a portentosa festa e a portentosa alegria. Mas só está no filme para fazer funcionar «em negativo» as segundas bodas. No dia desse júbilo, Angharad (oh! espantosa Maureen O’Hara) apaixonou-se pelo novo padre (Walter Pidgeon). Mas o pastor protestante tem idéias católicas sobre o celibato sacerdotal. O casamento é, para ele, incompatível com a missão. Se defende a mulher adúltera (genial breve apontamento da grande actriz chamada Ann Todd) não consegue assumir o ama et jac quod vis. E renuncia a esse amor, prenunciando toda a discórdia que se vai abater sobre o vale. Depois, o filho do senhor vem a casa de Crisp pedir a mão de Maureen O’Hara. Esta ainda tenta convencer o padre. Quando se separam, levanta a cortina de tule para o ver afastar-se e depois deixa-a cair devagar num dos mais belos grandes planos da história do cinema até se apagar a imagem fabulosa que antes fora. Quando se casa vai amortalhada, sem música, já doente inside. Segue o marido para longes terras e vinte minutos está ausente do filme, vinte minutos em que tudo e todos se dividiram. Quando regressa — sozinha — sepulta-se na casa grande. Depois, começam todas as mortes até à morte do pai, embora a voz off nos diga no fim que homens como o meu pai nunca morrem. Quem disser que este filme é reaccionário é porque nada sabe do sagrado. Filmado com a luz de Dreyer, em tomo da mesma linha fundamental (as verticais) How Green Was My Valley é a obra que mais comoventemente mostrou em acções concretas e planos americanos sentimentos tão simples — ou tão complexos — como a dignidade, a liberdade e a frontalidade. Nunca deixarei de me espantar com olhar tão limpo e tão límpido. Como Roddy McDowall diz do pai, nenhum filme me existe na memória tão real como na vida, amando e amado sempre. E não há filme que me faça mais saudades.22 A PALAVRA DA RESSURREIÇÃO Alguns leitores destas crônicas têm-me perguntado, a sério ou a brincar, porque é que eu só falo de filmes do tempo da Maria Cachucha. A reacção já eu a esperava, mas é típica das resistências à fé no cinema e ao amor do cinema. Se estas crônicas se chamassem «os livros da minha vida», «os quadros da minha vida» ou «as músicas da minha vida», ninguém levantaria a questão mesmo que eu escolhesse A Ilíada, A Crucificação de Cimabue ou o Combattimento di Tancredi e Clorinda de Monteverdi. Mal parecería mesmo que deles não se falasse. Era sinal que bem pobre fora a minha vida. Mas, no cinema e com o cinema, arte que ainda não fez cem anos, tudo parece passar-se a outra dimensão, mesmo para os que explicitamente lhe não conferemum estatuto menor. Os filmes passam e nós com eles. E a consciência de uma história (nossa história, também) parece, as mais das vezes, consciência arqueológica. Coisa para saudosistas, cinéfilos (termo que tem algo que ver com necrófilos) ou gente bizarra que finge ignorar a evolução da técnica e é capaz de preferir um velho filme mudo a Tbe Last Emperor. Chamados à razão lá se convencem, mas não se vencem. Não deixa de ser algo melancólico para quem, como eu, faz parte de uma geração que orgulhosamente proclamou, pela voz de Godard, ser a primeira que tinha a consciência de descender de Griffith. Esse grito de vitória foi, afinal, prematuro. A actual geração pressente até que será a última a ir ao cinema, cujos dias estarão contados. Uns como os outros, nós como eles, apenas estamos a repetir o que as outras artes mais velhas vezes sem conta conheceram. Somos um acidente face a obras que não o são. Hoje, «o filme da minha vida» não é só caso subjectivo. Objectivamente, é das maiores obras de arte deste século, embora só uma pequena minoria o conheça. Mas quem o conhece reconhece-o. Chama-se Ordet, palavra que em dinamarquês quer dizer A Palavra e foi mostrado, pela primeira 23 vez, no Festival de Veneza em 1954 (a Portugal só chegou nos finais dos anos 60). É o penúltimo filme de Carl Theodor Dreyer (1889-1968). Dreyer era um nome mítico para a minha geração. No caso dele, nào era a censura que impedia a visão dos filmes, mas a generalizada convicção de distribuidores e exibidores que, se o mostrassem, as salas iriam abaixo com pateadas ou ficariam desertas. Quando Ordetse estreou, lembro-me de ter recebido uma carta do Jorge Ritto — normalmente atento antes de outros ao que anos depois todos os outros falariam — a queixar-se da grande improbabilidade de vermos o filme por cá. Ainda nào havia a Cinemateca nem a Gulbenkian e os cineclubes não tinham dinheiro para importar cópias vindas de fora. Mais uma vez a solução, para alguns afortunados, estava numa viagem a Paris, nesses anos 50 e 60 em que, para alguns, Paris era a cidade de cinco filmes por dia. Não exagero. Nos anos 60 — com gente mais educada — cá chegou, como disse. A Cinemateca do Dr. Félix Ribeiro dedicou-lhe uma retrospectiva. E alegre mente se passou à convicção que Dreyer toda a gente conhece de cor e salteado e pode ser arrumado entre as velharias inúteis. Sempre fomos um país de gente rápida. Rápido nào é Ordet, filme centrado no mistério da Fé. Os prota gonistas são um velho viúvo, três filhos dele, e a família do mais ve lho —Mikkel — o único casado e pai de duas raparigas, uma das quais ainda criança. Todos são homens e mulheres de crença (tão sectária e tão globalizante como o pode ser em certas seitas protestantes), à excepção de Mikkel, que a vida tornou consideravelmente mais céptico. Mas um irmão dele perdeu mesmo a razão por tanto ler Kierkegaard e arrasta uma existência de «tontinho», julgando-se reencarnaçâo de Cristo. Ao velho Borgen (Morten Borgen) falta um neto varão. Deus o da rá — acredita — na criança que a mulher de Mikkel —Inger chamada — espera. Inger é a única presença feminina da casa e o seu centro de amor. Mas o parto não correu como se esperava. O bebé — de facto um rapaz — morre à nascença e Inger poucas horas lhe sobrevive. Deus os deu, Deus os levou e a cerimônia fúnebre, com a reconfortante presença do pastor, vestido tradicionalmente, com aquelas golas dos quadros do século XVII, 2 4 é a encenação geométrica da resignação cristã face à morte. Nada é absurdo OS FILMES DA MINHA VIDA 2 5 porque tudo são insondáveis desígnios de Deus. Choremos pelos vivos, mas não por aqueles que estão já na glória eterna e a quem um dia nos juntaremos. A única violenta revolta — tão mais violenta quanto é contida — vem de Mikkel. Quando o pastor, querendo atalhar uma despedida já excessivamente longa, lhe diz que a alma dela está junto de Deus, ouve como resposta a única frase a que não se pode objectar. «Não amava apenas a alma, amava-lhe também o corpo.» É então que o irmão «tontinho» (Johannes) irrompe na câmara mor tuária, sem quaisquer sinais exteriores da loucura que manifestara durante todo o filme. E pergunta se alguém se lembrou de pedir a Deus que ressuscite Inger. Blasfêmia? Blasfêmia é, como ele diz, não haver já entre os crentes alguém com fé. E enquanto parece desistir («apodrece, porque este é um tempo de podridão») aproxima-se dele a criança (que sempre manifestara, face à morte da mãe, absoluta paz, que os crescidos atribuíam à infância e ao facto de «ainda não perceber nada») a pedir-lhe que se despache e acorde Inger. «Crês que o posso fazer?» Perante a absoluta certeza da criança — um leve e curioso sorriso —Johannes ordena à morta, em nome de Jesus Cristo, que volte à vida. Há um terrível silêncio à roda. Há um plano fabuloso de Inger no caixão, coberta com um lençol de linho branco, luminosissimamente branca e há um contraplano da criança. Nada, ninguém se move. Até que a criança começa a sorrir e olha para o tio com o desarmante aplauso de quem nunca duvidou do desfecho. Depois, vemos Inger soerguer-se e ser recebida nos braços de Mikkel. Os velhos comentam que na verdade este é o velho Deus de Elias, eterno e sempre igual e a palavra final, dita enquanto Inger beija camalissimamente o marido, é vida. No cinema não há nada mais fácil do que conseguir um milagre. Todos sabem que a actriz que está a fazer de Inger não está morta e que ressuscitá- -la depende apenas de uma ordem do realizador. Mas o prodígio daquela «mise-en-scéne» (desde a composição dos planos à sua iluminação) é fazer mos acreditar que, na verdade, vimos um milagre e vimos um corpo morto ressuscitar em toda a glória da vida. Na mais clássica das planificações torna-se evidente para nós a promessa de Cristo. «Se um dia, com verdadeira fé, disseres àquela montanha que se mova, a montanha mover-26 -se-á». As montanhas nunca se moveram, como os mortos nunca ressusci taram (a não ser no «caso especial» de Cristo também evocado no filme). A única vez que vi isso acontecer (e é, sem dúvida, o mais pasmoso dos milagres) foi neste filme. Se me disserem que é cinema eu respondo que não é, não. São luzes que tornam tudo transparente e tudo iluminam «como se fosse uma janela / à noite, vista do exterior». Estou a citar — mal — um poema de João Miguel Fernandes Jorge que faz parte dos «Três poemas de A Palavra de Carl Theodor Dreyer». E estou-me a lembrar do som do filme. Quando Inger morre, o cunhado mais novo pára o pêndulo do relógio, cujo «tic-tac» fora o único ruído dessa sequência de agonia. Quando Inger ressuscita — durante o último plano — ele mexe os ponteiros para acertar, de novo, o tempo. À morte chamara Johannes o «homem da ampulheta». Tudo está na areia que escorre, na passagem das horas. «E então o tempo, sim foi coisa que passou»: Só a Palavra e a Imagem o podem suspender assim. E, por isso disse S. Paulo que, maior do que a fé, era o amor. Ordet de Dreyer é o filme desse amor. OS FILMES DA MINHA VIDA 2 7 OS AMANTES CRUCIFICADOS Nào sei quem é que inventou a história do «sorriso do eterno feminino» a próposito da Gioconda. Sei é que há quase cem anos ninguém pára no Louvre diante do quadro, sem observar primeiro o sorriso, depois o eterno e por fim o feminino. E, só depois de os ter inventariado todos, é que balbucia um lugar-comum qualquer sobre a impressão geral que a chamada Mona Lisa, vista ao natural, lhe provocou (hoje, com aqueles enormes vidros à prova de bala que para lá puseram, é cada vez mais difícil ter qualquer espécie de impressão). Visitantes mais sofisticados já nào vão nessa do «eterno feminino». Mas páram mais ao lado, em frente de A Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana, 2 8 para descortinar, nas três figuras, o abutre «sobreimpresso» que Freud lá viu e deu origem a um dos seus mais célebres ensaios sobre conteúdos manifestos e conteúdos latentes. Depois da «leitura» de Foucaultde Las Ninas (quanto a mim, com pletamente despropositada, mas essa é outra história) quantos visitantes foram ao Prado, não apenas para ver o quadro de Velázquez, mas para o comparar com a interpretação feita em Les Mots et les Chosesl Eu próprio já levei um dia Os Cadernos de Malte LauridsBriggepara o Museu de Cluny para reler as páginas de Rilke sobre as tapeçarias de La Dame à la Licome enquanto as revia com os olhos dele. Proust foi talvez quem melhor escreveu sobre estas duplas visões: a do autor de uma obra e a do voyeur dessa obra. E, ele próprio, acrescentou à visão de Delft de Vermeer o «petit pan de mur jaune», hoje quase tâo célebre e quase tão citado como o próprio quadro, embora durante cerca de 250 anos ninguém o tivesse visto. É completamente irrelevante perguntarmo-nos, como fazem alguns, mais cépticos ou mais cegos, se o que Freud viu, o que Rilke viu, o que Proust viu, está ou não está na obra em que o viram. Toda a visão é ideal (como toda a obra de arte) e só por simpatia (no sentido etimológico da palavra) nos aproximamos dela. Se bastasse ter olhos para ver, os cegos seriam bem mais desgraçados e bem mais minoritários. Também nada adianta perguntar — como muitas vezes se pergunta quando a evidência das duas visões é irrecusável — se tal pormenor ou tal sentido teriam sido «premeditados» pelo autor. A Gioconda pode continuar a ser o «eterno feminino», mesmo que se venha a provar (como alguns sustentam) que o retrato não é de uma mulher mas de um rapazinho; o quadro de Vermeer continua a dar-nos Delft em 1665, mesmo que em Delft nunca tenha havido tais cor-de-tijolo e tais cor-de-rosa e que Vermeer ficasse imensamente estupefacto se lhe falassem de um «petit pan de mur jaune». Sempre outras mãos pintaram ou escreveram pelas nossas mãos e sempre o amador se transformou na coisa amada. Vai muito longo o preâmbulo. A coisa amada que hoje vos queria dar a ver chama-se Chikamatsu Monogatari. Baptizaram-na no Ocidente como Os Amantes Crucificados (em Portugal nunca foi distribuída comercial mente) e realizou-a o japonês Kenji Mizoguchi ou Mizoguchi Kenji. Em 1954. 29 Mizoguchi é um dos meus «autores de cabeceira» (esta também é re- -citação) e Os Amantes Crucificados o meu filme favorito dele. Chikamatsu, referido no título original japonês, era um autor dramático. Sei que viveu no século XVII (como Vermeer) e que os europeus que o leram o compararam — sem razão nenhuma, com toda a razão — a Shakespeare. A peça que Mizoguchi adaptou (misturada com a adaptação de outro conto clássico japonês, esse, obra de Ihara Saikaku) conta a velha história de dois jovens de classes sociais diferentes, apaixonados um pelo outro. Além da classe, há outro óbice. Ela (a Senhora) é casada com o Suserano (se a tradução vale) da oficina onde ele (o rapaz pobre) trabalha. O filme começa por nos dar a informação (e a premonição) do que acontecia, nesses tempos, no Japão, a adúlteros apaixonados. A protago nista vê, do seu palácio, um casal desses ser crucificado. Porque é que a Cruz é símbolo de Paixão no Ocidente e no Oriente, no judeo-cristianismo e no xinto-budismo, não me perguntem. São outras obscuras visões, outras obscuras correspondências. É muito depois que começa a história de amor e que Osan (a mulher) se decide a fugir ao marido, por uma noite de lua. Começa então a implacável perseguição, por lagos, florestas, cabanas, todos os locais do imaginário, convocáveis por paixões tão intensas quanto efêmeras, tão labirínticas quanto fatais. Durante a fuga, há uma extraordinária cena de amor num lago. Mizoguchi, a propósito dela, pegou-se com o argumentista, o grande Yoda Yoshikata que lhe escreveu quase todos os filmes. Acusava a cena de não ter intensidade dramática. Quando Yoda, desiludidíssimo, pois, na opinião dele, jamais fizera melhor trabalho, lhe perguntou o que queria dizer com isso, Mizoguchi respondeu: «Olha, vê, por exemplo a cena em que os amantes fazem amor no barco, depois de terem decidido suicidar-se. É idiota e ridícula. Se querem matar-se, é inimaginável que pensem em fazer amor. Metem-se no barco pensando apenas na morte. Tanto basta para mostrar o estado de alma deles naquela altura. Chegam ao meio do lago. E, subitamente, deixam de querer morrer. Não porque tenham medo da morte. Mas porque, ao contrário dos melodramas em que os breves momentos roubados à morte são os mais doces da vida, o valor da exis-30 tência dos momentos futuros — por poucos e breves que venham a ser — extinguiu a tentação da morte, constituiu a única e verdadeira abertura. Nào podemos morrer assim, é isso que os amantes devem pensar. E isso que é verdadeiramente trágico.» Esta passagem esclarece o famoso sentido da elipse na obra de Mizoguchi e o que, através dela, o realizador queria alcançar e alcançou. Tudo cabe em momentos, onde tudo se revela e tudo se abre, iluminando passado e futuro, quaisquer que sejam. É por isso que o prodigioso final do filme — a marcha dos amantes, presos e acorrentados, para as cruzes — é um dos mais gloriosos finais de amor da história do cinema. E a suprema afirmação da força da vida, superando as antíteses da arte ocidental, entre visões clássicas, visões líricas e visões românticas. Tudo isso, quanto a mim, está contido, muito antes, num breve plano (que nunca vi comentado) e que em Os Amantes Crucificados é o meu petit pan de murjaune. E quando Osan decide fugir e percorre sozinha os pátios do palácio, ocultando-se para não ser vista pelos guardas do marido. A certa altura, a lua é encoberta por uma nuvem e fica só — como única fonte luminosa — uma janela onde persistiu uma vela ou candeeiro acesos. Osan olha-a (um segundo) e pára. Logo, continua. Para mim, foi nesse momento que ela teve a última tentação de ficar e mediu (vela, interior, quotidiano, protecção) tudo o que perdia, tudo o que nunca mais voltaria a ter. E o trocou pelas trevas exteriores, o ranger dos dentes, a luz dos corpos, a cruz, a morte. Imensas vezes tenho falado desse plano da janela acesa, tenho sonhado com ele. Vária gente, que ama o filme tanto como eu, parece não o ter visto ou não se lembrar. Existiu só para mim? Existe mesmo? Comecei esta crônica a dizer que isso não tem importância nenhuma. Acabo da mesma maneira. É com momentos desses, com planos desses, que as crianças passam do tempo em que tinham medo do escuro a amar o escuro. E só então podem aprender a história dos Amantes Crucificados e a pouco e pouco (às vezes demora uma vida inteira) a compreendê-la melhor. Como escreveu Camilo: «Seja assim. Eu assim fui. Todos os que vi morrer assim foram.» 31 A REGRA DO JOGO Nunca houve filme mais odiado. Nunca houve filme mais amado. Ódios e paixões que surpreenderam mais do que todos Jean Renoir, o autor de La Règledujeu. F.m 1939, quando o filme se estreou, Renoir estava no auge da reputação. «Cette sacrée Grande Ilhision» (Renoir dixit, referindo-se ao celebérrimo filme de 1937) tinha-lhe posto aos pés crítica e público. De La Marsellaise (38) gostou muito o público e menos a crítica; La Bête 3 2 Humaíne, do mesmo ano, foi pior recebido pelas platéias, mas os senhores críticos explicaram-lhes que não tinham razão. Esqueceram-se de explicar — ainda hoje o esquecem, com menos desculpa — que este último filme anunciava, ou prenunciava, uma «mudança de tom» e que a caução de Zola (adaptado nessa obra) não disfarçava que ao realismo se sobrepunha a estilização, à clareza as sombras, à organização do espaço a organização do gesto. Com La Bête Humaine regressava o Renoir anárquico e cáustico de La Cbienne (1931), La Nuit du Carrefour (1932), Boudou Sauvé des Eaux (1932). Mas regressava mais maduro, mais sóbrio, mais sereno. Com esse filme, começou o tempo dos grandes rituais. Nunca se dá logo por isso. Não se deu. E a tempestade desabou com La Régle du Jeu, aparentemente o filme que menos a fazia esperar. Renoir não era «malcriado» como nos filmes do início do sonoro(esses sim, contra as regras do «bom cidadão» e do «bom realizador»), não absolvia operários em ajustes de contas com patrões (Ze Crime de M. Lange, 1935), não defendia uma grande causa (a Paz) com uma grande tese (La Grande Illusion) não cantava a revolução (La Marsellaise~) e muito menos se entregava a militâncias como as que o haviam levado a fazer, em 1936, em ano de «Frente Popular», La Vie Est ã Nous, para o PCF. Era um divertisse- mentque, segundo o próprio Renoir (quem ainda não lhe leu as memórias, Ma Vie et mes Films, deve lê-las), lhe surgiu de muito ter ouvido, nesses anos, Couperin, Rameau e tudo o que vai de Lully a Grétry. «Não posso dizer que a música barroca francesa me tenha inspirado La Régle du Jeu, mas contribuiu para me fazer ter vontade de filmar personagens movendo- -se ao ritmo dessa música». E havia, ainda, a ideia de transpor Les Caprices deMariannede Musset para 1939. E havia, também, a referência ao Figaro, quer às Noces de Beaumarchais quer às Nozze de Mozart. E havia, mais, uma frase de Lestringuez: «Si tu veux décrire la vérité, mets-toi bien dans la tête que le monde n’est qu’un foutoir. Les hommes ne pensent qu’à une chose, c’est à baiser, et ceux qui pensent à autre chose sont fichus. Ils se noient dans les eaux bourbeuses du sentiment.» E assim se chegou à estreia de La Régle du Jeu. Vou citar Renoir: «A minha estupefacção foi total, quando este filme, que eu queria amável, começou a agir a contra-pêlo sobre a maioria dos espectadores. Foi uma bofetada e das grandes. O filme foi acolhido com uma espécie de ódio. Apesar dos comentários elogiosos de alguns críticos, o público considerou- -o como um insulto pessoal. E nào se tratava de uma cabala: os meus inimigos nada tinham que ver com este malogro. A cada sessão, conseguia estabelecer a unidade do público na reprovação. Tentei salvar o filme, encurtando-o. Cortei, primeiro, cenas em que o meu próprio papel era maior, como se tivesse vergonha, depois do meu “falhanço”, de me mostrar na tela. Tudo em vão: o filme foi retirado da circulação, sendo considerado "desmoralizador”». A história nào ficou por aqui. Quando, um ano após a estreia da Règle. os alemães entraram em Paris, exigiram a destruição do negativo e de todas as cópias. Na maior parte dos países, foi proibido (em Portugal, por exemplo, a proibição durou até 1972). Novas cópias recuperadas e exibidas em França, em 45 e 48, nào tiverem melhor sorte. Só nos anos 60, quando, graças a esforços vários, se reconstituiu a versào original — dedicada à memória de André Bazin, o mais constante e acérrimo dos defensores da Règle — o filme (já lendário) se tornou no «crédo des cinéphiles», «le film des films», para usar expressões de Truffaut e foi — finalmente e mais de vinte anos depois — um sucesso comercial. Explicar tudo isto, em 1988, não é nada fácil. Talvez o menos difícil seja desmontar o lugar-comum que atribuiu as reacções ao facto de a Règle ser «o retrato impiedoso de uma classe agonizante». Há, nessa frase, quatro disparates, dois para os substantivos e dois para os adjectivos. Em primeiro lugar, nào há retrato nenhum. La Règle é um filme de músicas, uma opera-buffa (exactamente como Mozart chamou a LeNozze cli Figaro, eventualmente a única grande obra da arte ocidental dos três últimos séculos que lhe é comparável) em que o que se nos diz é que -tudo isto» é uma «palhaçada» de sentido extremamente obscuro, com a morte no rpincípio, no meio e no fim. Underthe Volcano, ou Overthe Volcano: tanto faz, que é para vomitar. «Le custa estejardin?» Se lhe custa o melhor é fingir que não repara, pelo menos se se está em La Sologne, região pantanosa do centro de França, «décor perfeito para um conto de Andersen» (Renoir), onde emerge o belíssimo solar setecentista do Marquês da la Chesnaye. Em segundo lugar, Renoir nunca foi impiedoso. Menos do que nunca o foi em La Règle, em que não há um só personagem que seja maltratado, um só personagem que não seja profundamente amado. E é neste filme, pela boca do marquês, que se diz: «O que é terrível nesta terra é que toda54 a gente tem as sua razões». Mais terrível é o filme mostrar-nos que assim é, que todos têm as suas razões. Todas terríveis, embora nenhumas melhores ou piores do que as dos outros. A Règle è a suprema ilustração da velha história favorita dos cépticos gregos, quando um juiz, na presença do filho ainda criança, dava razão às duas partes absolutamente contrárias que para ele apelavam. Observava o miúdo que as duas não podiam ter razão ao mesmo tempo. «Também tens razão, meu filho» era a resposta do pai. Em terceiro lugar, La Règle não trata de uma classe. Se há por lá muitos e muitas filhas d’algo, não há menos criados e criadas. Se há poucos burgueses, o mais significativo de todos eles chama-se Octave e foi interpretado pelo próprio Renoir, em meses em que se achou mais pachorrento. E os marqueses e os seus convidados não são mais impor tantes na narrativa do que os criados, quer os que com eles levaram de Paris, quer os que já estavam em La Sologne. E, num e noutro desses níveis sociais, o jogo é o mesmo e as mesmas as regras. Em quarto e último lugar, nada nem ninguém está agonizante na Règle (e os que por acaso o estavam, como André; o aviador, «cri de coeur de Madame», não o sabiam). Não o está a classe cuja agonia se proclama há 200 anos e nos há-de enterrar a todos. Não o estão os guardas florestais e caçadores clandestinos, que continuarão, por eternidades, os seus jogos de gato e rato, de representação da autoridade e de representação da transgressão. Não o está o deus ex-macbina, ou in-macbina, que move, como as peças da caixa de música, as caçadas, as guerras dos sexos, a luta de classes ou a dança da morte para que todos foram convocados. E não o está nem o teatro nem o cinema dessas várias representações, entre as quais não há qualquer diferença. Por isso, nada pode terminar. E, por isso, a ingênua ordem do marquês: «Faites cesser cette comédie» só admite como réplica a questão do criado: «Laquelle Monsieur?» Ainda hoje não encontrámos resposta para tal pergunta. O que talvez se tenha perdido — pelo menos até que apareça novo Renoir—é outra acepção da palavra «classe». Aquela a que, por duas vezes, se refere o general, Todas as culpas serão desculpadas a quem tiver «de la classe». «Et ça devient rare à notre époque, ça devient vraiment rare à notre époque.» 3 5 DUMBO KOOTCHY KOOTCHY Como acontece a quase toda a gente, preconceitos e modas considera dos progressistas têm-me levado a dizer e fazer muita asneira. Assim, de repente, lembro-me de duas em que ninguém me pode atirar pedradas: nunca defendi a abolição de casacas, smokings ou fatos compridos para a ópera em São Carlos; nunca disse mal de Walt Disney. Procurando ser tão sincero quanto possível, talvez algumas vezes me tenha calado em discussões dessas, ou talvez algumas vezes tenha aberto a torneira de Pilatos. Talvez tenha pecado por omissões, nunca por pensamentos, palavras ou obras. Pensando bem, a associação não é tão gratuita quanto parece: num caso 3 6 como noutro, trata-se de amar rituais, animações e prestar obscuras vénias aos deuses de espectáculos que vivem do seu próprio convencionalismo. Num caso como no outro, tocar na forma é tocar no fundo. Um bocado a mesma coisa do que comer peixe com talheres de carne. Já numa destas crônicas, tive a ocasião de abençoar a memória de Walter Elias Disney de quem foi moda entre 1940 e 1970 (e em muitos meios continua a sê-lo), dizer que corrompera várias gerações (no fundo, todos os que, hoje, são menores de 60 anos) com animações antropomórfi- cas. Histórias que infligiam ao público infantil traumas duradouros, introduzindo-o a mundos de culpas e expiações, quando não mesmo a um universo de terror, com uma moral partilhada entre o prazer, sempre punido, e o esforço, sempre premiado. Era — é — a conversa gênero «psicanálise de contos de fadas» que sem preteve o condão de me irritar singularmente. Não porque seja descabida nas premissas; mas porque é falaciosa nas conclusões. Contra toda essa conversa, persiste a evidência de que é dessas histórias que as crianças gostaram, gostam e gostarão. Fiz inúmeras vezes a experiência para não estar certo dela: quem conta o Capuchinho Vermelho ou a História da Carochinha elidindo — em hipotético benefício da sensibilidade infan til — que o lobo comeu a avó ou que o João Ratão morreu cozido e assado no caldeirão, jamais consegue, junto das crianças, a mesma sedução que o narrador que não se arma em censor. Todos gostamos que nos metam medo, muito medo. Menino sem pesadelos não é menino. E nunca será homem. Nem mulher. Educado a Walt Disney — como todos nós — tentaram desconvencer- -me do homem e dos bonecos dele, quando comecei a ver cinema com olhos de ver. Propuseram-me como contraveneno o laborioso experimen talismo de McLaren, o sofisticado humor de Bosustow (UPA e Magoo), ou o moralismo vindo do frio, gênero Trnka. A espécie de reportório de que Vasco Granja tem sido, na RTP, há mais de 30 anos, incansável paladino. Não discuto os méritos. Verifico é que nunca conheci criança que não se chateasse de morte. E eu mesmo... Cala-te boca. Pelo contrário, o Rato Mickey (n. 1928) e o Pato Donald (n. 1936), com os seus 60 e 50 anos, são as estrelas de cinema com maior longevidade. Basta pensar que o primeiro nasceu mais ou menos ao mesmo tempo do que Greta Garbo e o segundo 3 7 38 tem pouco mais ou menos a idade de Bogart. A Garbo levou sumiço e continua a esconder-se de óculos escuros de quem nunca a viu mais gorda; Bogey morreu há mais de trinta anos. Mickey e Donald mantêm a assinalável forma que ainda em Março vimos na cerimônia dos Óscares. Se os deuses se definem por não envelhecer, são mesmo os únicos que à divindade chegaram. Quem se lembra do pitosga Magoo? A minha geração. Quem ignora Mickey e Donald? Ninguém. Puxei-me pela língua e já lá vai metade do meu precioso espaço e do vosso precioso tempo. E eu, hoje, não vinha para falar nem do rato nem do pato, mas do elefante. Dumbo. Quando o filme começava (ou muito me engano, que não o vejo há que tempos, com um mapa da Florida, com que, desde então, fiquei a simpatizar) era o Desejado no circo dos Jumbos e das Jumbas (desde que um célebre elefante do Zoo de Londres assim fora baptizado, tal nome ficara para sempre associado aos mais ilustres exemplares da espécie, cognome supremo). Ao princípio, o Desejo parecia ter-se feito carne. Jumbo Júnior, de olhos muito azuis, era mais bonito e mais apetitoso do que tudo o que se podia esperar. «Kootchy, Kootchy» — como lhe diz a terceira fada-madrinha- -elefanta que presidia ao nascimento dele — é o momento final de tal júbilo. De repente, o elefantezinho espirra. E, quando espirra, caem-lhe para a frente as orelhas. Horror dos horrorres. Não eram orelhas normais de elefante normal, mas orelhas imensas, imensas. Tão grandes como todo o resto dele, tromba incluída. E às palmas seguem-se os apupos. Nem Jumbo mereceu ser chamado, mas Dumbo (de dumb, pateta). Tão triste que ficou Mrs. Jumbo, apertando contra ela o freak. Uma desgraça nunca vem só. Às enormes orelhas juntava-se em Dumbo uma falta de jeito para o negócio (acrobacia, evidentemente) tão desme dida quanto aquelas. Dumbo é relegado e renegado. Por essa altura do filme, que vi pela primeira vez quando tinha sete anos, já Dumbo era a criatura cinematográfica que me introduzira ao que, muitcxdepois, Edgar Morin me ensinou chamar-se «fenômeno de identificação». Até me aparecer Van Johnson («thafs another stoty») não me sucedeu caso semelhante. Dumbo era a minha alma gêmea. Aparecia então o rato Timóteo. Por causa dele, fiquei sempre a querer conhecer um Timóteo, o que tardou a suceder e teve sempre nomes mais prosaicos. Timóteo era o único a achar que as orelhas de Dumbo eram cute. E fornece-lhe longa lista de personagens célebres de grandes orelhas. Seria impudico da minha parte acrescentá-la aqui e agora, como se dizia nos anos 50. E Timóteo convencia Dumbo a sonhar. A dança dos elefantes cor-de-rosa é o mais belo sonho dos filmes de Walt Disney. É o mais belo sonho da história do cinema. O champanhe ajudava, com muitas, muitas bolhinhas. Timóteo começava a ficar muito grande e a sombra dele assustava imenso Dumbo (outro traço apai- xonante dele era o medo que tinha). E, com a ajuda de pássaros e corvos, de uma bandeirinha mágica e de um chapéu, Dumbo descobria que as orelhas eram asas. O clímax, depois dessa prodigiosa dança, era a «sequência» em que os corvos empurravam o assustadíssimo Dumbo da árvore abaixo, espécie de premonição da «prova do galho» de Mafra dos meus azares. Dumbo não acreditava que podia voar. Resistia quanto podia. E, a certa altura, lá ia pelo céu azul, azul, tão azul como os olhos dele. Terrível era quando a bandeirinha caía. Mas Timóteo grita-lhe: «Abre mais as orelhas. A bandeira era a brincar. You canfly, honest, you can». E Dumbo voava, voava, com o complexo de ícaro, todo solto. Helen Aberson e Harold Pear tinham escrito a história original. Os elefantes vinham da «Dança das Horas» da Fantasia (genial Norman Ferguson). Vladimir Tytla, a quem já se chamou o «Miguel Ângelo da animação», concebeu o pesadelo das chamas, como concebeu o inferno de «Uma Noite no Monte Calvo», na Fantasia. Mas Dumbo nasceu com má sorte. Devia ser a capa do Time Magazine em Dezembro de 1941. Em vez dele, apareceram aviões japoneses a voar e a deitar bombas sobre Pearl Harbour. Ficou só uma pequena foto, a preto e branco, no interior. Correu mundo em 1942 (o mundo não fechado ao mercado americano). No pior ano de guerra para os EUA, foi pouco visto e as pessoas andavam com outros pesadelos na cabeça. Mas de todos os Walt Disney, Dumbo é quem mais amo. Um elefante com orelhas-asas, uma tromba etça trompe, ça trompe, ça trompe. «Pauvre petit Dumbo à 1’âme délicate». Kootchy- -Kootchy. 39 40 JOÃO BÉNARD DA COSTA SENSO»: A PAIXÃO EM VENEZA Afinidades entre o cinema e a ópera — duas artes «parasitárias», duas «artes de acréscimo», ou as duas artes que mais tendem para a «obra de arte total», sonhada por Wagner — têm sido pressentidas, notadas ou subli nhadas por muitos e desde há muito. Ultimamente tem-se generalizado outra e mais equívoca forma de aproximação. Quem fala da «morte do cinema» terá tanta razão ou tão pouca como quem fala da «morte da ópera». E verdade que, no caso desta última, nada de radicalmente novo aconteceu desde a estreia de Capriccio de Richard Strauss em 1942 ou, magnanimamente, desde a de The Tum qf theScrewde Benjamin Britten, em 1954. Mas também é verdade que nunca, como hoje, tão vastas audiências viram e ouviram ópera e, mesmo por um balúrdio, é difícil conseguir um lugar para as temporadas dos principais teatros líricos do mundo ou para os grandes festivais. Nunca a ópera foi tão cara, nunca se pagou tanto aos seus intérpretes e nunca as lotações estiveram tão esgotadas. Normalmente — com excepções que apenas confirmam a regra — para se escutar e olhar um reportório escrito há mais de cem anos. Há quem diga que o mesmo está a acontecer — ou vai acontecer — ao cinema. Talvez este nunca mais tenha os seus Verdi ou Wagner, talvez o lote de novos grandes filmes seja escasso, mas num futuro não muito distante, as salas encher-se-ào para rever periodicamente o que foi realizado na idade heróica dele. A hipótese parece-me aventurosa e pouco fundada, mas o simples facto de ser ponderada demonstra mais uma das analogias entre os dois «reinos»: quem o diz reconhece a ambos — cinema e ópera — uma aproximável localização em paragens limiares e liminares, onde partilham a luz e as sombras, a celebração da vida e a súplica da morte, a encenação da nostalgia e o apelo a uma recôndita harmonia. 4 1 Apesar disto — ou por causa disto —, de cada vez que o cinema tomou a ópera como texto, os resultados nào foram brilhantes.Por um lado, sào raríssimos os exemplos de óperas escritas propositadamente para o cinema. Que eu saiba há apenas três. The Robbers Sympbony. ópera e realização do alemão Friedrich Feher em Inglaterra, 1936; Give Us íbis Nigbt, ópera do alemão Erich Wolfgang Korngold e realização do americano Alexander Hall, em Hollywood, 1944; e Os Canibais, realização e ópera dos portugueses Manoel de Oliveira e João Paes, em Portugal, 1988. Por outro lado, sào igualmente raríssimos os exemplos conseguidos de transposição para o cinema de uma ópera. Julgo que somente Die Verkaufte BrautlA Noiva Vendida, de Max Ophuls, 1932), The Tales of HoffmaníPoweil e Pressburger, 1951), Bluebeard'sCastle (Michae\ Powell. 1964), Trollflõjten (A Flauta Mágica, de Ingmar Bergman, 1974). Mosesund Aaron Qean-Marie Straub e Danièlle Huillet, 1974) ou Parsifal (Hans- Jürgen Syberberg, 1982) merecem ser retidas como excepçào. Mas o filme-ópera, a ópera feita cinema ou o cinema feito ópera, não é nenhuma das obras citadas. É o Senso de Luchino Visconti (1954). Por isso — sobretudo, por isso —, é um dos filmes da minha vida. Na ópera (Teatro La Fenice, de Veneza) começa o filme, situado na Primavera e no Verão de 1866, durante os últimos meses de ocupação austríaca do Veneto, pouco antes do Risorgimento lá chegar. Estamos no palco e ouve-se e vê-se o final do acto III de II Trovatore de Verdi. Ainda corre o genérico, quando Leonora e Manrico, na varanda de Castellor, cantam “1'onde de’ suoni mistici», «gioie di casto amor», primeiro sinal para as paixões paroxísticas que vão explodir durante o filme. Pouco depois — sempre no genérico — Ruiz vem avisar Manrico de que se preparam para lhe queimar a mãe. Este arranca-se dos braços de Leonora e vem até à boca da cena cantar o celebérrimo «Di quella pira». Precisa mente nesse momento, a câmara, até aí fixa sobre o palco da ópera, acompanha-o no seu movimento e, do ponto de vista dele, descobre-nos o teatro, da platéia à geral, em amplos movimentos concêntricos. São eles que, no fim do acto e coincidindo com os aplausos, conduzem essa representação a outra representação: a manifestação política das galerias contra o ocupante austríaco.4 2 Ópera só voltará a aparecer em Senso alguns minutos depois, quando, acalmados os ânimos e presos alguns manifestantes, começa o acto IV. Durante esse intervalo, conhecemos os protagonistas: a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) e o seu velho marido (Heinz Moog); o marquês Roberto Ussoni (Massimo Girotti), primo da condessa, seu platônico protegido e chefe dos patriotas italianos (por ele e contra o marido, escolhera a condessa o abraço revolucionário); o jovem e belo tenente Franz Mahler (Farley Granger) que insulta os italianos, se recusa cobarde- mente a aceitar o repto de Ussoni para um duelo e, depois, o denuncia à Polícia. Quando começa o acto IV de II Trovatore, Livia Serpieri chama o tenente ao seu camarote, para o tentar convencer a deixar Roberto em paz. Mas durante o breve diálogo com o oficial «de quem falavam todas as senhoras de Veneza», estabeleceu-se entre eles outra espécie de corrente. No palco, já muito, muito ao fundo, ao pé da torre onde Manrico está preso, Leonora, disfarçada, canta que «In quest’ oscura notte rawolta / Presso a te son io. E tu nol sai!» Nem nós, nem os protagonistas do filme lhe damos muita atenção. O primeiro plano já pertence a Livia e Franz. É para nós e para eles que uma «oscura notte rawolta» vai começar. Nunca mais se ouve ópera no filme. Mas a ópera, o drama per musica, vai começar quando Livia abandona o teatro e, sobretudo, quando volta a encontrar o tenente, a um canto da Piazza di San Marco, onde fora despedir-se do primo, condenado a um ano de exílio. E quando Franz Mahler se oferece para a acompanhar pelas ruas de Veneza (oferta recusada, recusa não aceite) principia a ouvir-se a verdadeira música desta ópera: a Sétima Sinfonia de Bruckner (oadagio e o scherzò). E começam os «duettos» de Franz e Livia, ou as «árias» de cada um deles. Não são cantadas. Mas nào há termos mais adequados para o que murmuram («tu parli talmente piano», diz três vezes Franz a Livia) ou para o que gritam (os uivos de Livia, no final, clamando por Franz, depois de o ter mandado para o pelotão de fuzilamento, em Verona). E sempre o que os personagens dizem em-cantado é sustentado a Bruckner, e sempre as vozes são tão inseparáveis dessa música como na ópera o são. Depois de se ter visto Senso, nunca mais se pode ouvir a Sétima de Bruckner sem «sentir» que lhe falta essa dimensão de vozes. Depois de se ter visto Senso, é impossível pensar nas suas imagens sem «ouvir» Bruckner. Por isso, e num dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso não é cinematográfica, mas operática. Se se quiser pensar numa posteridade para este filme, ela não está em nenhum outro (nem sequer em Morte a Venezia, onde Visconti tentou com a Quinta Sinfonia de Mahler um efeito semelhante e muito mais célebre), mas nas encenações de 1955 ou de 1956 com que o mesmo Visconti revolucionou todos os caminhos da encenação operática neste século. A espantosa criação de Alida Valli no papel da condessa Livia Serpieri só teve sequência nas da Mulher para quem Visconti fez essas encenações: Maria Callas. No Senso, a voz e a imagem de Alida Valli preparam os caminhos para a voz e para a imagem da Callas. As ruas de Veneza (quem nunca viu Senso nunca viu Veneza), os celeiros de Lonedo (quem nunca viu Senso nunca viu Palladio), as praças de Verona (quem nunca viu Senso nunca viu Sanmicheli) foram, em 1954, os palcos excessivos, exacerbados e exorbitados para a mais fantomática presença da mais fantomática das vozes. 44 JOÃO BÉNARD DA COSTA JOHNNY GUITAR Era inevitável. Tinha que ser. Se escrevo sobre «os filmes da minha vida», como podia ficar de fora «o filme da minha vida», my Jobnny Guitar? Só mesmo quem não me conheça nem mais gordo nem mais magro, podia supor que um dia destes — mais cedo ou mais tarde — o Jobnny Guitar não enchia esta página. Faz parte das minhas lendas — como essa de dizer-se que eu sabia o Larrousse de cor aos sete anos — atribuirem-me centenas de visões do Johnny Guitar. Num caso como noutro há exagero. Só vi o Jobnny Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988. Dá para saber de cor? Nunca se sabe o Johnny Guitar de cor. Cada vez é uma nova vez. Como gênero, é classificado entre os westerns. Estreou-se na América, a TI de Maio de 1954, sob o signo dos Gêmeos. É um filme de Nicholas Ray, que tinha 42 anos, 9 meses e 20 dias na noite dessa estreia. Na filmografia do autor iniciada em 1948 é o «opus 9». Depois dela assinou mais 13 longas-metragens, até morrer, «lightning over water», num filme de Wim Wenders, em 1979. Johnny Guitaríoi feito para uma pequena companhia — a Republic — e custou pequeno dinheiro. A crítica americana tratou-o com os pés («the silliest film of the year»), mas o público, sem que ninguém conseguisse explicar porquê, encheu as salas meses a fio. Herbert J. Yates, produtor da obra, abarrotou os bolsos. Quando o filme chegou à Europa — em 1955 — as posições críticas extremaram-se. Alguns — poucos — apanha ram o micróbio a que há mais de 30 anos dou casa e pucarinho. A maioria achou que só gente gravemente perturbada ou gravemente analfabeta po dia gostar. Ou, então, cegos, surdos, mudos, paralíticos e aleijadinhos dos cornos. Eu e mais alguns passámos vexames, quando a polêmica chegou a Portugal. O nosso delírio provocava. Quem provoca maiorias ou o senso- -comum acaba sempre por levar mais do que dá. 4 5 Só que, no caso de Jobnny Guitar, vivi o bastante para ver o mundo dar as tais voltas. Quando, em 1981, programei o filme para a Gulbenkian. num ciclo de cinema americano dos anos 50, a enchente foi tal que teve que haver bis. Depois, de cada vez que o filme passa na Cinemateca (e tenho-o programado com razoável frequência), não cabe um alfinete. Unsmilhares de portugueses vão hoje por Nick Ray. Aconteceu o mesmo por toda a parte. «La Belle et la Bête du western, como à época escreveu Truffaut, transformou-se na própria definição de cult movie. Nick Ray, que também viveu o suficiente para assistir a esta viragem, adiantou um dia algumas razões para explicar este fenômeno: 1) foi a primeira vez num western, que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; 2) é um filme cheio de luz e de calor. Opunha-se ao estilo do «cinema negro» que predominava nessa época; 3) é um filme em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitectónica; 4) foi o primeiro filme a utilizar a cor em toda a sua potencialidade; 5) utilizou o décor e a paisagem para potenciar ao máximo a imagem. Não serei eu quem o desminta, mas muitas dessas coisas foram à época das que mais serviram para atacar a obra. Odiaram as mulheres (Joan Crawford e Mercedes McCambridge), acharam a cor (um processo chama do trucolof) de insuportável mau gosto, berrante e exageradíssima. Por mim acho que não vale a pena tentar explicar. De Johnny Guitar só sou capaz de falar delirando. Deus e tantos — amigos e inimigos — sabem como é quando me largam... Disse-se, por exemplo, que era o filme com mais belo diálogo da história do cinema (eu, pelo menos, disse-o). Alguns convenceram-se por esse lado e recordo programas de cineclubes, ou artigos de revistas, que publicaram aquele famoso encadeado de perguntas e respostas, entre Guitar (Sterling Hayden) e Vienna (Joan Crawford) quando começam a evocar o passado, na noite da chegada de Johnny ao saloon de Vienna. É quando ele lhe pede para ela dizer «sometbing nice-, quando ele lhe pede para ela lhe mentir. ■Tell me you love me like I love you». Mas, reduzido a escrito a a seco, o diálogo é confrangedoramente banal. Se as pessoas46 ficam com tal memória dele é pelo concerto das vozes — raspante. a de Crawford, átona a de Hayden — que se ouve no filme e pela associa ção delas à fabulosa partitura de Victor Young. É pelo modo como a câmara e os corpos se movem durante, é pelo contraste dos encarnados, dos verdes e dos castanhos. É pela prodigiosa presença daquele décor gruta, alucinantemente barroco, simultaneamente mausoléu e casa de feitiços. Muitas vezes ouvi a banda sonora de Jobnny Guitarsem ver as imagens. Tudo vem, por acréscimo, toda a memória do filme se repovoa. Mas, para que isso suceda, é preciso haver memória, é preciso ter-se visto o filme. Se é verdade que Jobnny Guitarê também uma ópera, não o é menos que está dependente daquela única e irredutível mise en scène. Rever as imagens (ou os sons) do Jobnny Guitarê rever a recordação delas. Para quem o vê pela primeira vez é ainda de rever que se trata. 4 7 Porque todas os personagens — os doze actores principais, cada um deles essencial — não fazem outra coisa. Quando o filme começa — na tarde em que mataram o irmão de Emma (Mercedes McCambridge) — Johnny Logan, que se irá chamar Johnny Guitar, volta para o pé de Vienna, de quem se separou há cinco anos. Porque se separaram? Porque o mandou chamar ela? Porque volta ele? Nunca, no filme, nos são dadas respostas a tais perguntas. Também nunca sabemos o que com cada um deles se passou nesses cinco anos em que não se viram, entre uma tarde no Hotel Aurora (desse hotel, sim, se fala no filme) e a tarde em que Johnny regressa. Mas nesses cinco anos se fabricou o sentimento dominante de cada um dos protagonistas: a amargura de Vienna, o cansaço de Johnny, o ódio de Emma, ou o amor por Vienna daquele miúdo loiro que acaba com o pescoço rasgado, no cavalo e na forca, a pedir que cumpram a promessa que lhe tinham feito de o salvar. Jobnny Guitar é um filme construído em Jlasb-back sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash que não pode come bac& Ou será que é tudo a mesma coisa? Não vou continuar. Como as coisas muito grandes, Johnny Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo está certo nelas. É a Imitação de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso e encontra-se a frase certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra- se a resposta certa para o que se está a viver. Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: «Keep the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin.» No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projeccionistas: «Keep the film spinning. I like to see it spin.» Tanto, tanto. 48 JOÃO BÉNARD DA COSTA AURORA-MURNAU A 28 de Dezembro de 1988 — dia dos Santos Inocentes — faz cem anos que ele nasceu. «É a inocência que enche este vazio de tudo / É a inocência que cura», disse Charles Péguy — traduzido por Alberto Vaz da Silva — dos nativos desse dia, aos quais profetizou (no poema dito «Le Mystère des Saints Innocents») um percurso no «caminho das quedas» e o pressentimen to dos «pântanos doentes / em clara entrega sem medida». «E àquela experiência, à vossa experiência, eu chamo / declínio e coisa perdida sem esperança». Falo de Friedrich Wilhelm Plumpe, que escolheu o nome de Murnau em memória de uma aventura amorosa que terá tido na cidade bávara as sim chamada. Realizou 21 filmes entre 1919 e 1931, o ano em que morreu, com 42 anos, num desastre de automóvel. Ao que se diz por demasiado absorver um efebo filipino que servia de improvisado chauffeurao volante do Packard que o devia levar à estreia de Tabu, a última das suas obras. Desses vinte e um filmes, sobrevivem-lhe, hoje, 14. Vão poder vê- -los — prometo desde já — nas magníficas cópias de Munique e de Patalas, em Fevereiro de 1989, na Cinemateca. Se todos os que conheço — e apenas desconheço um — são sublimes, um há que é suserano de muitas das minhas emoções. Chama-se Sunrise, estreou-se em 1927 e foi o primeiro da tetralogia final, que filmou em Holly- wood, onde se fixou em 1926 na esteira do fabuloso sucesso mundial de DerLetzteMann (1924) por muitos considerado o apogeu do filme mudo. Sunrise foi feito para a Fox que lhe deu o que raramente Hollywood dava e não mais lhe voltou a dar: carta branca e plenos poderes. William Fox proclamava-o «o gênio alemão» e dele esperava, segundo o exaustivo ensaio que a admirável Lotte H. Eisner lhe dedicou, «um filme infinitamente culto, simbólico, ou seja, cem por cento europeu». Se a crítica se rendeu incondicionalmente, se Sunrise obteve o Óscar — «melhor produção de qualidade artística» — no ano I das famigeradas estatuetas, o público não 49 reagiu com o mesmo entusiasmo. E os dois filmes seguintes de Murnau na América (Tabu ê outra conversa) foram já marcados por todos os acidentes de produção com que nesses finais dos twenties os estúdios pagavam a gênios. De Four Devils (1928) não se conhece hoje qualquer cópia (é um dos muitos missingfilmsde Murnau); CityGirl (19Ò0), também conhecido por OurDailyBread, é uma obra quase inteiramente cozinhada nas costas de Murnau, reconhecível apenas em meia dúzia de planos. Não reclamo qualquer originalidade na minha preferência por Sunrise. Faz agora 30 anos que os Cahiers du Cinema, em resposta à lista dos «12 melhores filmes de todos os tempos-, estabelecida, oficialissimamente, em Bruxelas, o elegeram à cabeça da sua marca de gosto, inscrevendo-o, polemicamente, como «o melhor filme de todos os tempos». Trinta anos é muito ano. Mas se os homens dos Cahiers mataram os pais com essa lista — em 1958 tão provocante — ainda não houve filhos para os matar a eles. Muitos tentaram, é certo. Mas faltou-lhes o saber e o gosto. A coerência, também. De modo que há três décadas (ou há seis) Sunrise segue sendo o apogeu de uma certa concepção de cinema: aquela em que prevalece, acima de tudo, o queum cineasta é capaz de dizer com movimentos de câmara e de corpos, com luzes e sombras, com composição e ritmo dos planos. Para os que consideram o cinema uma arte narrativa, Sunrise. sendo embora um filme admirável (tal adjectivo ninguém em seu juízo Iho poderá retirar), foi ultrapassado muitas vezes, antes e depois. Para os que olham um filme como arte plástica (o que não é sinônimo de arte visual) é muito difícil deixar de repetir o juízo dos anos 50 e 60: Sunriseé o mais belo filme do mundo. Há outra maneira de o acharmos assim. É a daqueles que pen sam — como Henry Miller pensava — que o cinema é uma arte que nasceu demasiado tarde, «precisamente no momento em que morremos». Miller dizia que ele «funciona como um eunuco, agitando um leque de penas de pavão diante dos nossos olhos sonolentos». Para quem assim pense, nenhum cineasta, como Murnau, nenhum filme como Sunrise, tornou tão sensível ao nosso olhar essa «grande curva retrospectiva orientada para o ventre», que é um dos nomes possíveis da Morte. Continuando a citar Miller, os filmes de Murnau — e Sunrise tão em especial — são a relativa com pensação para o terror que a vida inspira. Quem julgar que é essa a única5 0 finalidade possível de uma obra de arte, nunca se cansará de ver Sunrise. Sunrise, filmado embora no lago Arrowhead, é um filme implantado em décors totalmente alemães (a aldeia e a cidade foram construídas casa a casa por uma equipa germânica). Na ficha técnica, quase todos os nomes são alemães. É uma adaptação da novela de Herman Sudermann (1857-1928), Viagem a Tilsit, que figura na colectânea Histórias Lituanas. Americanos, no filme, quase só actores. Os protagonistas — Janet Gaynor e George O’Brien — eram, então, celebérrimos. Mas Janet Gaynor — a Indre de Sunrise— com a cabeleira loura postiça, é a mais letal visão das virgens germânicas. A mais mozartiana das stars, «oiseaux si tous les ans», com pintas nos olhos e a colecçào de saleiros, sorriso imenso nas bocas do corpo, é a imagem aparentemente louçã e distantemente doentia que emerge de um fundo muito antigo, esse que gerara as Carlotas de Goethc e as jungfrau de Schiller. Só quem lhes ignora a pele e o perfume se pode sentir não 5 1 ocultamente comovido. Homo americanus, actor de Ford, George O’Brien foi dobrado ao peso do próprio corpo para -representar com as costas». Dele fica sobretudo o volume, a massa (diz-se que Murnau lhe meteu 10 kg de chumbo nos sapatos para obter a imagem de gorila, pernas afastadíssimas). Entre o casal —casal campónio — interpõe-se, vampiro ávido, Margaret Livingstone, bicho da terra vil e não pequena, rastejando como a serpente bíblica, muito semelhante a Louise Brooks. Mas se, no conto, a vertente naturalista domina, no filme tudo é mais poético para ser mais verdadeiro. Sudermann seguiu uma exposição clássica: a vamp seduziu Ansass (George O’Brien) e juntos congeminaram matar Indre, bela e pálida como uma madona. Decidem afogá-la no lago, no regresso do passeio a Tilsit, a cidade que ela tanto queria conhecer. É durante essa visita que Ansass, comovido pela ingenuidade e confiança da mulher, se arrepende do plano, de que jamais Indre se apercebe. Mas, no regresso, espera-os mesmo uma tempestade. O barco vira-se, como fora desejado, mas é Ansass quem morre para salvar a mulher. No filme, pelo contrário, é na viagem de ida e não na de volta que Ansass tenta matar Indre. E nessa espantosa sequência no lago (mais tarde imitada, por tantos, de Sternberg a Stevens) Indre percebe as intenções do marido e foge-lhe apavorada, num eléctrico irreal que conduz do lago à cidade. Entre travelings — nunca vimos tão belos —■ Ansass persegue-a para lhe dizer da sua culpa, do seu medo, da sua vergonha. E quando chegam à cidade, aquele homem que queria matar aquela mulher, aquela mulher que sabe que aquele homem a queria matar, esquecem a morte para redescobrir o amor e, como duas crianças, perdidamente se reapai- xonam, irmanados na mesma inocência nova. A chuva os baptizará. Como crianças cansadas e felizes regressam ao barco e ao lago. A tempestade é a última maldição. Indre cai à água e Ansass julga-a morta. O milagre final é o único desfecho possível para este filme de milagres e de renascimentos. Sunrise significa exactamente isso. Descobrir uma linha de fuga (o eléctrico) e um espaço mágico (a cidade). Então, tudo pode começar de novo, maravilhosamente de novo. Voltando a Péguy: -A criança é grande e o homem é nada / vazio como um tonel vazio ou como um grande fruto despejado / É assim, diz Deus, que a vossa experiência 5 2 cabe em mim.» A RAPOSA Em Inglaterra, chamaram-lhe Gone to Earth. Na América, The Wild Heart. Como sempre fomos galicistas, em Portugal traduziu-se o título francês e chamou-se A Raposa. Não há filme mais obnóxio, não há filme mais esdrúxulo do que este que hoje convoco entre os filmes da minha vida. Dizê-lo não é dizer pouco, porque obnóxios e esdrúxulos são quase to dos os filmes assinados por tão estranha parelha qual foi a formada por Michael Powell e Emeric Pressburger. Quem os conheceu, descreve Powell (hoje com 83 anos) como um «country squire», arquetipicamente britânico, normalmente vestido com casaco de abas largas, à Sherlock Holmes, e usando, sempre, um boné semelhante ao do detective. Alto, magro, careca, bigodinho à Chamberlain, um olhar azul, perscrutante e irônico. Nasceu em Canterbury (simpatizo com a velha tradução portuguesa em que se diz Cantuária), terra de Chaucer e de arcebispos assassinados em catedrais. Emeric Pressburger (morreu este ano com 85 anos) era austro-húngaro, nascido em Miskalc. Só se fixou em Inglaterra, em 1936. Muito baixinho, muito redondinho, grandes bochechas, grande barriga. Dizem que falava inglês com um sotaque de cortar à faca. Mas dizem também que com o tempo se tornou «mais britânico do que os britânicos, numa época em que os britânicos eram cada vez menos britânicos». Mas quem o disse nào foi um britânico, foi George Mikas, o autor de How To Be a Decadent, que, aliás, lhe dedicou essa obra por ele ser «o único homem que conheço que não é decadente», »e com a esperança de que venha a conseguir sê- -lo». Fisicamente, Pressburger e Powell fizeram um par parecido com o Bu cha e o Estica. O par formou-se em 1942, ano de One of Our Aircrafts Is Missing, primeira obra que assinaram juntos, e desfez-se em 1956, ano de TllMetbyMoonlight, último dos quinze filmes a serem rubricados pelos PP. 53 A Raposa, estreado em 1950, é o décimo e passou por muitas mãos antes de chegar à deles. Tudo começou com David O. Selznick, o celebérrimo produtor americano, o homem do Gone With the Wind. Arquitectos de tais monumentos sonham sempre voltar ao local da glória e dificilmente acreditam que a história não se repita. Selznick foi desses. E depois de ter estado quase, quase (em 1946, com Duel in the Sim, de King Vidor) resolveu aliar-se a outro mogul para tentar a grande sorte em solo europeu e em tempos propícios a co-produçòes. Esse outro chamava-se Alexander Korda, era húngaro como Pressburger e edificara nos inícios dos anos 30 a London Film Productions. Com o Big Ben em cada genérico — Selznick tinha nele a imagem ática do seu estúdio — Korda foi o primeiro a conseguir que o cinema britânico parecesse que o era. Hollywood estre meceu um bom bocado com a concorrência. Mas, nos finais dos «forties», também essa fama era razoavelmente passada. Qualquer deles, grandes vencedores de antanho, perseguia a segunda «chance». Cheiraram a terminação num clássico célebre ( The TbirdMan, de Carol Reed, em 1949) ao som da citara de Anton Karas, na Viena de Korda, mas o «jack-pot» foi mais de estima do que de metal. E, logo a seguir, o húngaro acenou ao americano com uma história de Mary Webb (1881-1927) assaz estranha alegoria, em que o esteticismo pré-rafaelita e o neo-romantismo se combinavam para evocar uma mulher de selvática vida e selvática morte, atraída por maravilhas e obcecadapor demônios que, como os dos Evangelhos, se multiplicavam por sete quando conseguia expulsar um. Aqui, saltou Selznick e salto eu. Porque essa mulher estava evidentemente destinada a ser Jennifer Jones, nossa paixão comum. Selznick apaixonou-se por Jennifer em 1942, quando esta era ainda uma desconhecida e ainda usava o nome com que nascera, Phyllis Isley. Apresentou-a à imprensa como a futura estrela de The Keysofthe Kingdom ou como a futura JaneEyre, mas não lhe conseguiu esses papéis. Em troca, alcançou-lhe o de Bernardette Soubiroux, a vidente de Lourdes, em 7úe Song Of Bernardette (Hemy King, 1943). Jennifer Jones ganhou o Óscar. Eu apaixonei-me por ela quando vi esse filme, aos 10 anos. Nunca é fácil ter que explicar coisas dessas, mas julgo que os êxtases místicos, que a 5 4 faziam revirar muito brancamente os olhos, ajudaram à minha perturbação. Nào estou certo e não queria misturar muito Bataille nisto. Ela e eu devíamos ser mais inocentes do que suponho. Mas li, algures, que num dos seus últimos filmes (Angel, Angel, Down WeGo, realizado por Robert Thom na permissiva década de 70), Jennifer dizia: «I made thirty stag films and never faked an orgasm.» Se for verdade, estou mais certo e mais perto. Depois vi tudo dela, nos anos 40 e 50 e também não fingi nada. Se me comovo sempre com despedidas de comboio é, provavelmente, por a ter visto a correr atrás do que lhe levava Robert Walker (então marido dela na vida dita real) em Since You lT<?»MzíWj’(John Cromwell, 1944). Se gosto tanto de «flash-backs» precedidos por imagens a tremer é talvez por causa de /.oz>e Zc/Zers (Williarn Dieterle, 45). Se acho que há tanta razão para dar nozes aos esquilos como esquilos às nozes, é porque ela mo explicou em Cluny Brown (Lubitsch, 46). Se penso que o cinema é ópera e porque, depois de Aida e Radamés, nunca vi ninguém morrer como ela e Gregory Peck morreram em Duel in the Sun. Se acredito no eterno retorno, foi porque dentre os mortos ela voltou sempre a Joseph Cotten em ThePortrait Ofjennie (Dieterle, 48), filme a que devo ainda a minha especial atracçào por faróis e tempestades. A minha embirração por revolucionários sul- -americanos (provocada por Paul Muni em Juarez desse mesmo Dieterle) acabou quando a vi apaixonar-se por John Garfield em We Were Strangers (John Huston, 49). Emma Bovary nào é Flaubert, é ela, desde a Madame Bovary de Minnelli, também em 49. Páro aqui, porque aqui entra A Raposa. Entretanto, Selznick lutara esses anos todos com um embirrantíssimo sogro (Louis B. Mayer, o da Metro- -Goldwyn) para que este o deixasse ver-se livre da mulher — Irene — com quem se tinha casado em 1929. Conseguiu vinte anos depois, e a troco de uma pensão alimentar de 12 milhões de dólares, transformar Jennifer Jones em Mrs. David OlSelznick. Faltava convencer os que como eu nào estavam convencidos e eram — ai de mim —, a esmagadora maioria, que a segunda mulher era a maior das «stars». Um papel como o de Hazel Woodus, a tal selvagem boa de Gone to Earth, parecia propício. De certo modo era a quintessência do que ela já fizera como Pearl Chavez — a mestiça — em Duel in The Sun. O filme foi um «flop» e zangou todos com todos. Selznick achou que a 55 5 6 JOÃO BÉNARD DA COSTA culpa tinha sido do «inglês imbecil» (Powell) e mandou refazer o filme, na América, com Rouben Mamoulian a remontar tudo e a reduzir a metragem de 110 para 82 minutos. Pior foi a emenda. Jennifer, Powell, Pressburger, ninguém ficou com boas memórias. Mas fiquei eu, desde que vi o filme em 1952, no S. Jorge. E, hoje, como para tantas das obras dos PP, muita gente comunga dessa admiração. Chegaram lá pelas cores, pelas reconstituições do Shropshire (algures, entre o País de Gales e a Inglaterra) no fim do século XIX ou por aquela sequência em que Jack Reddin (David Farrar), lobisomem da raposa, a leva dos bosques e do marido padre (Cyril Cusack) para pomposamente a vestir (como quem a despe) na grande casa senhorial. Eu cheguei lá pela carne de Jennifer Jones, pela sequência do baptismo no lago, ou por aquele modo de ela deixar pegadas nuas no pântano e na floresta. Lembro-me dela e do filme e revejo os cães a morderem a mulher nua na série de quadros da história bocacciana de Nostagio Degli Onasti que Botticelli pintou e está no Prado. É uma semelhante visão do mesmo pesadelo erótico. Lembro-me dela, bicho da terra pela terra tragado, e recordo a primeira quadra do soneto de Christina Rossetti, «Remember», tal como Manuel Bandeira o traduziu para português: «Recorda-te de mim, quando eu embora For para o chão silente e desolado; Quando não te tiver mais ao meu lado E sombra vã chorar por quem me chora» Há muitos anos que Hazel-Jennifer foi para o chão «silente e desolado». Há muitos anos que não a tenho a meu lado. E lembro-me. OS FILMES DA MINHA VIDA 5 7 5 8 JOÃO BÍÍNARD DA COSTA MARNIEA SENHORA DA CARTEIRA DE CROCODILO Vertigo, Shadow of a Doubt, The Birds, Spellbound, Notorious, Under Capricorn, The WrongMan, StrangersonaTrain, RearWindowe IConfess são — todos — filmes da minha vida e os cinco primeiros serão, talvez, os mais fascinantes filmes de Hitchcock. Mas, com a eventual excepçâo de Vertigo, talvez nenhum seja tão perturbante e tão misterioso quanto Mamie, certamente dos menos conhecidos e dos mais mal amados. Eu próprio demorei bastante tempo a perceber porque é que esse filme me atraía tanto e ainda hoje não estou seguro de o ter percebido bem. Se qualquer Hitchcock — mesmo os que provocam imediata sedução — tem sempre um lado secreto que exige alguma iniciação, Mamie è aquele que está mais envolto em obscuridade, o que mais consideravelmente despista quantos vão vê-lo à procura do suspense ou do enigma de primeiro grau. Mamie é um filme de 1964, que se segue, na filmografia hitchcockiana, a dois dos mais célebres êxitos dos anos finais do autor: Psycho (1960) e The Birds (1965). Depois de Mamie, Hitchcock abandonou o ritmo de um/ /dois filmes ano que a sua obra manteve entre 1925 e 1963, para consideravelmente se espaçar no «quarteto» final: Tom Curtain, de 66; Topaz, de 69; Frenzy, de 72, e Family Plot, de 76. Ainda hoje, esses Hitchcock finais são tão mal estudados como durante tanto tempo o foram as primeiras óperas de Verdi. O «jovem Verdi», o «velho Hitchcock». Se agora já se sabe que nunca houve um verde Verdi (redescobertas as maravilhas de uma juventude que a crítica prolongou para além de razoáveis limites), ainda não chegou o tempo de afastar o lugar-comum de um Hitchcock final e decadente. Há-de chegar. Para alguns, essa decadência começou em Mamie, estranha história de uma cleptómana frígida, interpretada pela mesma actriz de Tbe Birds, a louríssima e sofisticadíssima Tippi Hedren. Para ela, escolheu Hitch o mais 5 9 estranho dos pares: o Sean Connery do 007, na sua única aparição no universo hitchcockiano. Inicialmente, Hitch tinha pensado em Grace Kelly (já então princesa do Mônaco) para o papel de Mamie. Esse come back foi pensado tão a sério que houve até uma espécie de plebiscito entre a minúscula população de Monte Cario para saber como os súbditos de Rainier, reagiríam à hipótese de ver, de novo, nas telas a sua soberana, em tempos protagonista de três dos maiores êxitos de Hitchcock: DialMforMurder, To Catcb a Tbief e Rear Window. As reacções foram negativas e o realizador reincidiu em Tippi Hedren. De comum, ambas tinham a imagem arquetípica das famosas louras de Hitch, prenunciada em Anny Ondra, Madeleine Carroll, Joan Fontaine, Ingrid Bergman, Kim Novak, Eva Marie-Saint, etc. Mulheres lindíssimas, mulheres elegantíssimas, aparentemente inacessíveis, oculta mente devoradoras e detonadoras. Em 7b Catcb a Tbief há uma sequência emblemática desse tipo de personagens. Grace Kelly — no papel de uma multimilionária americana — passa um jantar a demonstrar a mais altiva indiferença por uma atiradiço Cary Grant. Retira-se para a sua suite com o mesmo ar gelado. Cary Grantacompanha-a à porta e já se vinha embora, vencido, quando ela o chama com o ar de quem lhe vai dar qualquer recado igualmente glacial. Cary Grant aproxima-se e, para enorme espanto dele e nosso, Grace Kelly atira-lhe os braços ao pescoço e dá-lhe um dos mais lúbricos beijos que já vi em cinema. Depois, como se nada fosse, fecha- -Ihe a porta na cara. Em Mamie, Tippi Hedren é mesmo frígida, mas tanto nós como Sean Connery só damos por isso quase a meio do filme. Ao princípio, tudo quanto sabemos dela é que é ladra. Nos primeiros planos, a descoberta de um roubo num escritório é mostrada em montagem paralela com uma mulher que entra numa estação de comboio. Não há referências sobre a autora do roubo, empregada recentemente admitida, de cabelo escuro, muito bonita e com identidade falsa. Vemos, sobretudo, partes do corpo dela e repetidos planos de uma carteira de pele de crocodilo. Depois, a dona dessa mala lava os cabelos num quarto de hotel e estes passam de negros a louros. 6 0 Como loura, obtém segundo emprego numa cidade distante. O patrão é Sean Connery, que rapidamente se apaixona por ela numa noite de trovoada e relâmpagos. Depressa se apercebe que algo de estranho se passa com ela (alucinações, pesadelos). Por isso, quando chega a sua vez de ser roubado, não a denuncia à Polícia, mas pede-a em casamento. Bem o previne Marnie que não é como as outras pessoas. Mark Rutland (assim se chama o personagem confiado a Connery) limita-se a arranjar- lhe um nome mais bonito do que ladra: Marnie é cleptomaníaca. Isso cura-se. Mas quando se casa com ela, a mulher que antes lhe dera ardentes beijos e um mundo de promessas, recusa-se firmemente a ir para a cama com ele. Não suporta o contacto de homens. Quando o marido experi menta forçá-la e a despe à força (no paquete que os levava em estranha lua-de-mel), tenta suicidar-se na piscina do barco. Mark arma-se então com a paciência de médico. Lê livros e livros sobre psicanálise («You Freud, me Jane», troça ela) e sobre aberrações sexuais de mulheres criminosas. Finalmente, descobre a «chave». A mãe de Marnie — personagem que durante o filme passeou estranho e estreito puritan- ismo — fora em nova uma prostituta. Para a proteger de um marinheiro que lhe batia, Marnie, aos cinco anos, espetou um ferro no tal marujo. Perdera a memória desse acontecimento, mas conservara sempre recal cado o complexo de culpa que a levava ao roubo e a ser incapaz de amar. A reconstituição forçada a que Mark procede, com ela e com a mãe, terá curado Marnie? No último plano, o casal afasta-se abraçado num cenário pintado, correspondente à rua da casa da mãe de Marnie, com um enorme barco ao fundo. Há crianças a brincar e a cantar uma insólita cantilena: «Mother, Mother, I am ill / Send for the doctor over the hill / Mother, Mother, I feel worse / Send for the lady with the alligator purse». Tal como Spellbound, Marnie só aparentemente é um filme sobre a psicanálise. É um filme sobre o desejo sexual, correlativo, no universo católico que forma e informa Hitchcock, do tema da culpa. Se The Birds é o ponto culminante da interrogação de Hitch sobre a culpa, Marnie é o seu equivalente sobre o tema do desejo e da sua culpada associação ao Mal. Porque nenhumas das associações psicanalíticas do filme explica 61 Marnie ou Mark, ou explica a atracção que os leva um para o outro, ou um contra o outro. O primeiro plano do filme mostra-nos as imagens de um livro a desfolhar-se. Como esse livro, Marnie é um personagem que quer ser aberto. Ao cavalo que Mark lhe dá e que tanto ama, dirá, a certa altura: «Se queres morder alguém, morde-me a mim». Depois dessas imagens, destacam-se no silêncio os passos de Marnie, levando na mão duas carteiras de pele de crocodilo, uma cinzenta, outra amarela. Essas duas cores acompanham a protagonista ao longo de todo o filme. E na tal cantilena final faz-se referência a uma «senhora de carteira de crocodilo» chamada em vez do médico, quando tudo fica pior. A referência é obscura, mas não será ousado ver nessa senhora uma metáfora da morte. Por isso, a revelação do episódio da infância nada resolve. A frigidez de Marnie é a máscara do seu desejo, forma suprema de voracidade sexual. A certa altura do filme, a mãe diz a Marnie que as únicas coisas que amamos sào aquelas que nunca conseguimos dizer. Marnie é um filme sobre o indizível do sexo e do desejo e sobre o absurdo de os tentar compreender através da psicanálise ou de outra explicação qualquer. Num filme em que estamos sempre (nunca nos identifi camos com Mark, nunca nos identificamos com Marnie), o ponto de vista é o da fissura entre a total assunção do desejo e a sua total recusa. Para desejarmos totalmente, temos totalmente que nos reter. Nenhuma expli cação explica, nenhuma palavra liberta. Só o mistério total pode conduzir ao que é totalmente misterioso. Marnie é o filme do indizível. Por isso acaba, sem saída, em «trompe 1'oeil», num cenário em que todas as perspectivas estão distorcidas. 6 2 JOÀO BÉNARD DA COSTA ESPLENDOR NA RELVA »Eu sei que Deannie Loomis não existe / mas entre as mais essa mulher caminha / e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste.* Começa assim o soneto intitulado «Esplendor na Relva», que Ruy Belo inseriu em O Homem de Palavra(s). Deannie Loomis (aliás Wilma Deannie Loomis) é o nome da protagonista interpretada pela fabulosa Natalie Wood. O pretexto (em sentido literal) é o filme de Elia Kazan Splendor in the Grass (1961), com argumento de William Inge. Hoje, o filme ganhou ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e aos Maios de tal década. Na altura, não as teve e foi mesmo, da América a Portugal, implacavelmente zurzido pela crítica que o achou piegas e cabotino. O público também não ligou peva. Mas para alguns — poucos, e certamente não felizes — foi paixão tão devastadora como a que, no filme, os adolescentes Deannie Loomis e Bud Stamper (Warren Beatty) tiveram um pelo outro. Ruy Belo foi desses. Aliás, não certamente por acaso, foi ele o único poeta que conheço a cantar as duas mulheres mais intensas dos late fifties e dos early sixties-, Marilyn Monroe (esse assom broso poema chamado «Na Morte de Marilyn», que vem no Transporte no Tempo e em que nos pede para «em vez de Marilyn dizer mulher») — e Natalie Wood. Eu sei que Ruy Belo não cantou Natalie Wood mas Deannie Loomis. Mas também sei que Natalie Wood «não existe / mas entre as mais», etc. E há nesse verso um prodígio de adequação poética. É quando se diz que «a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste». Resiste à «imaginação pura» (no sentido de «pura imaginação») ou resiste, «pura», à imaginação? Ou seja, o adjectivo «pura» refere-se à imaginação ou a Deannie Loomis? Ou — pode ser também — à «linha que resiste»? Nestas três perguntas está o cerne de Deannie Loomis, de Natalie Wood e de Splendor in the Grass. São mulheres e filme da nossa imaginação? São mulheres e filme que resistem à nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva que só na nossa imaginação existe? Não sei, como provavelmente Ruy Belo não sabería, mas, como também ele escreveu (na «explicação preliminar» à 2a. edição do livro): «Ninguém no futuro nos perdoará não termos sabido ver esse verbo que tão importante era já para os gregos.» E, em Splendor in the Grass, tudo está no ver, que traz a história dos meninos e moços de Kansas — meninos e moços dos anos 20, de antes da Depressão — à dimensão das mais belas histórias de amor e de morte jamais contadas. Sirvo-me do exemplo mais conhecido, também ele poético, e que dá o título ao filme. No liceu de Natalie Wood, onde ela entrava sempre com três livros apertados ao peito, um deles de capa azul, a aula de literatura, nesse dia, não era sobre Os Cavaleiros da Tâvola Redonda mas sobre Wordsworth e a «Ode of Intimation to Immortality». Deannie/Nathalie chegava de vestido «grenat» muito escuro, golade rendas. Todas as colegas sabiam — e ela também, embora ninguém Iho tivesse dito — que Bud/ Warren, incapaz de separar por mais tempo o desejo e o amor, tinha enganado, na véspera à noite, a fome do corpo dela, no corpo de Juanita, única da turma que não se ficava pelos beijos. Nada seria mais, para eles, como antes fora. Como também se diz no filme (noutro contexto), Deannie trazia, debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua própria carne. E é quando todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela para lhe perguntar o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos: «No, nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the glory in the flower.» Para a estúpida e pedagógica pergunta não há resposta ou — a esse nível — só há a que Natalie Wood comoventemente tenta articular. Mas não é nada disso que o poeta quis dizer. O que conta, o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura sente e sabe, ou pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o poeta quis dizer é o espantoso traveling que arranca Deannie ao lugar e a põe diante da professora atônita, depois aquele outro em que sai a correr da aula e nos atira com a porta na cara e, por fim, esse plano em que a vemos, sozinha, na profundidade de campo do corredor do liceu, até ir parar à enfermaria. Nesse minuto de cinema, sabemos, para além das palavras que «that radiance that was once so bright / Is now forever taken from my sight».64 Irradiância que, no filme,/òz entreo plano inicial (Deannie e Bud a namorar nas cataratas, e ela com tanto medo de não aguentar mais) e essa sequência, também nas cataratas, em que Bud fez com Juanita o que não fez com ela e de que essas cataratas são a mais poderosa das metáforas. O «esplendor na relva» é o que vimos até à aula: sào os planos em que se deita de bruços na cama (Warren Beatty deita-se da mesma maneira); é o búzio encostado ao ouvido; sào os ursos de peluche coexistindo com o retrato dele; é o dia em que entrou no liceu ao lado dele, tão orgulhosa, de blusa amarela e saia branca; é o plano do duche dos rapazes; é a noite de chuva no carro amarelo e Deannie a dizer a Bud que ficará para sempre à espera dele; é uma saia cor-de-rosa que funde em negro; é, sobretudo, a estarrecedora sequência em que Bud a obriga a ajoelhar-se-lhe aos pés e ela desata a chorar. Aflitíssimo, Bud diz-lhe que era uma brincadeira. E ela a responder: «Não posso brincar com estas coisas. Eu era capaz de fazer tudo o que tu me pedisses. Tudo. Juro que era.» 65 Mas é depois da sequência da aula que o filme atinge o máximo de beleza e tensão, desde o longo período em que Deannie se isola até à crise que a leva ao manicômio. Natalie Wood começa por cortar os cabelos ao espelho (iniciaticamente) e, depois, veste-se de encarnadíssimo («bando- lette» encarnada, colar encarnado) para se oferecer a Bud na sequência da festa, para ser recusada por Bud e, depois, correr pelos rai&até às cataratas (terceira e última presença delas no filme) e mergulhar nas águas, onde até a morte lhe frustram. Mas nem Wordsworth nem Kazan terminam no desespero ou nesse desespero. Após os versos que dão título ao filme, Wordsworth diz: «We will grieve not, rather find / strenght in what remains behind.” Não estou nada certo que seja “força» o que Natalie Wood encontrou na relva da clínica, entre velhas catalépticas e enfermeiras de olhar estra nho. Não estou nada certo que seja «força» o que Warren Beatty encontrou na universidade para onde o mandaram, ou na noite de Nova Iorque em que o pai lhe pagou uma «rapariga parecida com Deannie.» Mas «o que ficou para trás», isso, introduz-se a cada plano do lento desmoronar deles, das famílias deles, da América da crise de 29, de um mundo com tais valores. Elia Kazan disse preferir no filme a sequência em que Deannie regressa à casa paterna, ao que dizem «curada», e conversa com a mãe que lhe diz que tudo o que fez foi para bem dela. Já está noiva do «rapaz de Cincinatti», que conheceu no hospital e Bud já está casado com Angelina, que não tinha entrado na história e até já tem um bebé. Deannie vai visitá-los, com as amigas. Não há uma palavra sobre o passado e há só o passado. Depois do «esplendor na relva». Bud fica com as capoeiras e ela com um com panheiro das trevas. «Como numa tragédia grega: sabemos o que vai acontecer e só podemos ver o que acontece.» Estas palavras são de Kazan. Mas esta tragédia americana não acaba em mortes violentas. Só na morte que cada um de nós traz dentro de nós, feita de tudo «what remains behind». «We will grieve not» e, por isso mesmo, a nossa dor é muito maior. De Deannie Loomis e de Bud Stamper me despeço com outro poema de Ruy Belo: «Mas agora que cantei da triste za / não observo já os mais leves traços / e a minha maneira de me ma tar / é deixar cair ambos os braços.» É isto que se chama «intimação à imor talidade»?66 FRANCISCA: 0 SONHO E O VÍCIO Como me acontece com todos os autores que amo, o último filme de Manoel de Oliveira é sempre o melhor. Devia, pois, escrever sobre Os Canibais. Já escrevi e há muita gente a escrever? Nào é essa a razào, até porque quanto mais escrevo mais me apetece escrever e porque vária gente da muita gente tem escrito coisas (para bem ou para mal) que nenhum dos meus botões me explica como é que se continuam a escrever. Sucede é que, sobre ou sob as últimas visões, há sempre um filme (nào necessariamente o melhor) que fica a bulir comigo, anos e anos, no que acontece e no que deixa de acontecer, nas memórias e nos sonhos, na alma e no corpo. Por isso é que sào “filmes da minha vida». No caso de Oliveira, nào tenho dúvidas: é Francisca (1981), genial cruzamento dos dois máximos representantes vivos do geist do Norte deles: Agustina e Oliveira (não é por acaso que a palavra vai em alemão). Francisca, para mim, cumpre a promessa que Teresa Meneses fez antes de morrer: -Eu hei-de voltar.» Para mim — homem que a ama — volta sempre. Não se tem acentuado muito, na análise da obra de Oliveira, o papel conferido ao sonho. Nào no sentido do «pelo sonho é que vamos», ou qualquer coisa quejanda. Mas no sentido em que o comportamento fantomático e errático dos seus personagens é muito mais determinado por quem os visita durante a noite e o sono, de que pelos acontecimentos ocorridos à luz do dia. Nesse sentido, sim, os personagens de Oliveira, como os de Agustina, ou os de Broch, sào sonâmbulos, «separados do mundo, embora continuando nele», jazendo em «grutas ou poços escuros», amaldiçoando como Esch ou Huguenau «aquela claridade maldita». Neles, reina Deus «coberto de luto», como dizia Kierkegaard. Sonho, em sentido literal, só há um na obra de Oliveira e é o pesadelo do miúdo em Aniki-Bobó, sintomaticamente um pesadelo de culpa, um pesadelo autopunitivo. Não se cumpre na «realidade»? Aparentemente, 6 7 assim é. Mas, depois dele, todas as pessoas e objectos ficaram contamina dos e o olhar da boneca parece ser — reforçando a subjectividade — o único que se não resguardou para as vigílias. Mas se esse é o único sonho figurado na obra de Oliveira, em quase todos os filmes há indicações que nos apontam para um semelhante lugar transfigurador do mundo da noite. Em O Passado e o Presente, um dos planos capitais é o que nos mostra Wanda a dormir, sozinha na imensa cama de casal. Em off ouvimos a repetição da leitura da carta que Firmino, o segundo dos «maridos defuntos-, lhe escreveu, antes de se suicidar. Essa carta, que, de dia e ainda em vida dele, rasgara e calcara aos pés, com raiva e fúria, volta, na noite e depois da morte, como supremo convite a um amor finalmente possível. Os leves movimentos que agitam o corpo de Wanda. coberta pelos lençóis, sugerem mesmo um erotismo necrófilo, como se essa voz e essas palavras acendessem ou reacendessem o desejo de Wanda. Quando acorda, reapaixonou-se pelo ex-marido e nessa paixão sonâmbula ficará até ao fim (a figura de repetição, final, no casamento,é uma figura onírica, metáfora evidente dessa prisão). Benilde teme-se sobretudo da noite — essa noite que todos temem — e durante ela ou elas deu-se o misterioso encontro com o imaginário pai do filho que traz no ventre (seja qual seja esse pai). Ela própria é sonâmbula (assim a vemos pela primeira vez) e todo o seu comportamente é determinado pelo que durante esses sonhos se possa ter passado e de que não guarda —acordada — qualquer memória. O Amor de Perdição (e, por esse lado, o romance de Camilo sempre me pareceu fugir à definição clássica da tragédia) é uma obra onírica, em que a passividade de Teresa e Simào (e até a de Mariana) parecem porvir mais de uma impossibilidade de acordar do que de uma qualquer moira. O acto irremissível de Simào (o assassinato de Baltazar) é perpetrado à luz da madrugada, entre o sono e a vigília, como se fizesse parte de um sonho. Oliveira sublinhou essa visão (mais uma vez, dando-nos a ver a morte de Baltazar em imagem repetida) e as vozes do Delator e da Providência parecem presidir a um pesadelo, num esforço condenado e contraditório (de antemão impossível) para despertar os protagonistas que, pelo 6 8 contrário, preferem a morte à vida, ou o sonho ao real, sabendo que só nas sombras podem perfazer o que a luz lhes roubou. Quando, no final, se ouve a própria voz de Oliveira, assumindo o lugar de Camilo, para nos dizer que nunca mais abrirá o Amor de Perdição, é ainda como se esse fantasma reencarnasse (no do realizador) prometendo a esconjuração do sonhado. No sonho (bailado das sombras) sob a égide da lua, fundem-se (ou nâo) os corpos de D. Rodrigo e Dona Prouhèze, na sequência de Mogador, em Le Soulier de Satin. Se alguma vez se uniram foi assim, no mais fulgurante momento de cinema da obra de Oliveira. E é evidente a estrutura onírica de O Meu Caso (da peça à visão de Job, desta à da Cidade Ideal) como é evidente em Os Canibais. Tinha pano para mangas, mas tenho pressa de chegar a Francisca. A imensa singularidade e fascínio do filme reside no facto de ninguém 6 9 ficar a saber — como ninguém nunca soube, excepto Francisca e a real ou inexistente criatura com que foi ou não foi para a cama — se as cartas constituíram uma calúnia ou disseram a verdade. Ou seja, é um filme construído sobre um «buraco negro». Nem Agustina nem Oliveira nos dào qualquer pista que nos ajude a saber se José Augusto tinha razão para os ciúmes (se é que é preciso haver razão para eles). Não sabemos sequer se José Augusto o soube. Para o saber, mandou autopsiar o corpo de Fanny Owen, a quem Oliveira preferiu chamar Francisca. Mas os resultados dessa autópsia — se os houve — não os conhecemos. E, como Oliveira tem sublinhado, o que José Augusto guardou dela foi o coração, não o hímen. Mas é como criatura de sonho — como aparição — que Francisca surge a José Augusto logo na sequência do baile, quando a camélia que ele tinha na lapela se desfolha ao toque de Fanny. E Camilo diz a José Augusto que «esse baile foi a antecâmara por onde entraste para a esfera onde vivem os espíritos», onde existem segredos só reveláveis «quando a civilização partir os sete selos» (Agustina). É no baile que Camilo diz a Fanny que José Augusto «é um homem de temperamento funesto», porque «não tem alma» e »cada sorriso que ele lhe dirigir apaga uma das luzes das mil que alumiam o seu mundo». E repete- -Ihe por duas vezes: «Deixe-o passar.» É então que ela lhe responde que «a alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é...»(grande pausa, câmara e imagem especular e, em off, Camilo a querer que ela complete a frase) «E um vício. A alma é um vício.» Foi então (novamente há repetição da sequência) que Camilo disse «Meu Deus!» e só Deus sabe o que percebeu ou entreviu. Daí para diante é só esse vício (figurado por memórias, elipses, sonhos) que Francisca persegue em José Augusto e ele nela. Mais uma vez, a união deles só pode dar-se no sono total, na morte inexplicável de Fanny. «Morreríam por não serem uma só pessoa», diz Agustina. Só nos sonhos se morre assim. A propósito deles (sonhos) escreve Agustina — e filma Oliveira — ci tando Hõlderlin, que «o homem que sonha é um deus, o que pensa é um mendigo». E ao morrer (com José Augusto, oniricamente, fora e dentro do 7 0 plano) Fanny diz que a memória se lhe foi com a alma, ou seja, em termos dela, com o vício. E com ela se foram as borboletas brancas que «também nào têm alma» e sabem «como ninguém tocar as flores» substituídas pela borboleta negra da fulcral sequência (outra vez repetida) em que José Augusto exibe as vísceras de Francisca. A única lógica deste discurso é a do sonho. A única lógica de Francisca do sonho vem. Por isso — e como sucede a quantos fazem depender a visão diurna das visões nocturnas — Francisca acorda em mim os fantasmas do desejo, que Agustina e Oliveira chamaram «parente pobre da eternidade». E, por isso, às vezes me pergunto se sonhei esse filme ou se esse filme me sonhou a mim. OS FILMES DA MINHA VIDA 71 0 LADRÀO DE BAGDAD Lembro-me imperfeitamente. Eu tinha seis anos. Foi no Natal de 1941 e eu estava com os meus pais e as minhas irmãs naquele grande camarote que havia no Éden, com vidro espelhado para uma só visão. Quem estava lá dentro via tudo; quem, da sala olhava para o camarote, não via ninguém. Assim se protegiam os senhores (com ou sem senhoras) de olhares indiscretos. Eram os efeitos especiais, à anos 40, ou à anos 30, quando tudo estava ainda no seu sítio. Foi nesse camarote que travei conhecimento com o «ladrão dos ladrões», esse das Mil e Uma Noites e de Bagdad, ao tempo em que essa cidade devia ser bem apetecível. Como no meu camarote, as princesas também se protegiam dos olhares das turbas. Não com vidros de uma só 72 visão — embora o filme mostrasse invenções bem mais estarrecedo- ras — mas por decretos que proibiam, sob pena de morte, a presença de qualquer um nas ruas por onde passassem. Ver era morrer. De todos o filmes da minha infância, O Ladrão de Bagdad, com a Branca de Neve, o Pinóquio, o Dumbo ou o Feiticeiro de Oz, foi o que mais me marcou para a vida. Estive muitos, muitos anos sem o rever. Mas, durante todo esse tempo, quando me falavam do filme, eu via. Via uma praia, onde um miúdo encontrava uma garrafa. Abria-a, um estrondo enorme, e de lá saía, imenso, imenso, um gigante careca e terrível, às gargalhadas. O gigante crescia, crescia e o miúdo ficava minúsculo, minúsculo. Lembrava-me de um pé descomunal, quase a esmagar o rapaz. E via muitas rosas azuis, muito azuis, que uma princesa cheirava e morria. Ia jurar que me lembrava do perfume dessas flores, adocicado, entre o incenso e a alfazema. Se a imagem do gigante «conferia» — é célebre esse episódio das Mil e Uma Noites, uma das muitas variações do princípio do mais pequeno e do maior—, a da princesa e dos perfumes intrigava-me. Nào era plausível que a princesa morresse no filme, mesmo a cheirar rosas. Quando finalmente o revi — cerca de 10 anos depois — descobri que a princesa nào morria. O perfume apenas a deixava adormecida, numa «pequena morte» que, ao contrário das intenções de quem lhas dera a cheirar, apenas a faziam sonhar mais e mais com o belo árabe que ousara turbar o viso vosso. Há mortes e mortes. Nada de espantar que uma criança as tivesse confundido. Nào confundi foi as cores, apogeu do Technicolor do dr. Kal- mus e da sua mulher, Nathalie, que pôs uma geração — a minha — a sonhar em Technicolor (nunca perguntei aos meus filhos em que «processo» se passou a sonhar depois dos anos 50, com medo que me respondessem que nào tinham escolhido o VistaVision). The Thief of Bagdad, já tinha havido um e bem célebre na história do cinema, mas, esse, tinha-se estreado muito antes de eu nascer e só há pouco tempo se me apresentou. Realizara-o Raoul Walsh, em 1924, para Douglas Fairbanks e com Douglas Fairbanks no protagonista. O lendário espadachim tinha visto na Europa Der Müde Tod (A Morte Cansada)de Fritz Lang, provavelmente o filme que mais vocações despertou (Hitchcock e Bunuel diziam ter começado a filmar por causa dessa 73 obra). Deslumbrado com os «efeitos especiais- mandou o seu art director William Cameron Menzies, estudá-los e aperfeiçoá-los. O resul tado foi o mais espectacular e imaginativo dos orientalismos dos twenties, saudado pela crítica como o maior prodígio de efeitos que já se havia visto. Quinze anos depois, o inglês Alexander Korda resolveu bisar e a cores. Chamou outra vez William Cameron Menzies (à época a trabalhar em Gone With the Wind) e alargou os cordões à bolsa. Em má altura porque, quase ao mesmo tempo, os alemães começaram a largar bombas sobre Londres. Com trem e equipagens, Korda partiu para a América e foi lá que a London Film acabou o segundo Tbief ofBagdad, o que hoje evoco e há 47 anos vi. Três realizadores o dirigiram: Michael Powell, Ludwig Berger e Tim Whelan. A música é de Miklos Rozsa, da minha predilecção. Os efeitos especiais são de Lawrence Butler e Percy Day. A fotografia, de Georges Périnal e ganhou um Óscar. Mas os veros autores foram Alexander Korda e Cameron Menzies, na que pode ser considerada a obra-prima de ambos. Hoje, que anda tanta gente respeitável à procura da «identidade» do cinema europeu, não fica mal recordar que este filme inglês, rodado na América, é, como quase todo o grande cinema anglo-americano dos anos 30 e 40, um cinema europeu que se desconhece. Todo o portentoso imaginário de The ThiefofBagdad vem da Europa Central. Não só por via das coisas que Cameron Menzies aprendeu com Fritz Lang e com os decoradores dele. Mas também por via de Korda, um húngaro, do argumentista Lajos Biro (húngaro, também), de Miklos Rosza (outro húngaro), do alemão Ludwig Berger, do francês George Périnal, ou da presença no c<zsí desse autor fenomenal que se chamou Conrad Veidt e que um dia fora o sonâmbulo César do Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene. No filme, faz de vizir, o terrível Jaffer, causador de tantos males e que tanto cobiça a belíssima princesa (June Duprez). E o que ele diz com os seus imensos olhos azuis — gélidos, escaldantes — está para além de qualquer descrição.7 4 The Thief of Bagdad é uma das melhores aulas práticas sobre cinema que se podem dar. Se está lá todo o passado (esse da Alemanha dos anos 20 e da América dos primitivos geniais, como o foram Fairbanks e Walsh), está lá todo o futuro, todo o cinema de aventuras dos nossos dias. Duvida- -se? Então quando tiverem ocasisão vejam essa aparição do Gigante (Rex Ingram — a não confundir com o cineasta primitivo do mesmo nome — fez o papel), vejam a história dos três desejos do ladrão (o «índio» Sabu, que nessa altura tinha 15 anos), vejam os voos de Sabu às costas do gigante, por cima dos Himalaias ou no tapete voador, vejam a expedição dele ao templo hindu, com as aranhas e os esqueletos, vejam a colecção de brinquedos do velho rei das barbas brancas (Miles Malleson). Se não se lembram de nada, é porque nunca viram Os Salteadores da Arca Perdida ou IndianaJones, que mais não fizeram do que recapitular, 40 anos depois, o que em The Tbief of Bagdad é mais novo e mais belo. Até RogerRabbit nasceu aqui. Travo as referência cinéfilas. Porque este é o filme que vai de surpresa em surpresa, de encanto em encanto, de magia em magia. Se fosse preciso demonstrar que o cinema era uma arte mágica bastava exibir este filme, antecedido ou seguido por The Wizard ofOz. Tbe Wizard é de 1939; The Thief de 1940. Quando começa o filme, vê-se um barco com um olho. Não está lá por acaso ou para decoração. Como no meu camarote do Éden, tudo se passa entre o doce deleite de ver e a acre proibição de ver. A princesa que nào podia ser vista apaixona-se pelo príncipe que, transgressoramente, a viu, quando «?na água a imagem reflectida dele. É entre os dois olhares (ambos proibidos) que passamos para «o outro lado do tempo», «até ao fim dos tempos». É para apagar essa visão que o homem que tem nos olhos o mais absoluto desejo que já vi em olhos de alguém (Conrad Veidt) condena o rival à cegueira, após outro prodigioso interlúdio visual, que é a espécie de «vídeo dentro do filme» constituído pela premonição televisiva do brinquedo do rei. E a cegueira do belo Ahmed (John Justin) — You Shall Remember— leva ao sono e ao sonho da princesa. My dream! Always my dream! Para Ahmed voltar a ver, a princesa tem que tocar no corpo do vizir. 75 E, na progressão erótica de qualquer história infantil, entra o tema do vento (o ciclone de Oz, as ondas de Tbe Portrait of Jennié) como entram os outros sentidos todos: um rei beijado até à morte por uma boneca mecânica de oito braços, Sabu a comer ovos com salsichas (satisfazendo o primeiro desejo que formulou ao gigante), o cheiro das rosas azuis do esquecimento, os sons que fazem desabar montanhas. No final, quando Ahmed e a princesa casam para serem muito felizes, o único que não está contente é Sabu, o Ladrão de Bagdad. Muito pouco à vontade nas vestes ministeriais com que o presentearam, agarra o tapete e parte pelos ares, à busca de «some fun and adventure». Nunca um filme nos deu tanto de uma e outra. Se não acreditam, vejam. E se quiserem exagerar — há sempre quem exagere — levem para casa o medalhão encarnado com June Duprez lá dentro. 7 6 JOÃO BÉNARD DA COSTA DO CÉU CAIU UMA ESTRELA Já vou atrasado com sugestões cinéfilas para o sapatinho. Mas quem acreditar em mim deve procurar as excepcionais memórias de Frank Capra (The Name Above The Title) e oferecê-las a quantos amigos tiver, roídos pelo bicho do cinema ou feitos de matéria susceptível de servir de pasto a tal bicho. Nessas memórias, conta Capra tin-tim por tin-tim a gênese da pasmosa obra que em Portugal teve o título desta crônica e no original se chamou Lt's a Wonderful Life (1946). Capra — hoje, com 91 anos, último sobrevivente da gloriosa geração dos thirties — era um nome celebérrimo, muito «above the title», quando regressou a Hollywood em 1945, depois de ter cumprido na guerra os deveres para com o seu país (incluindo a memorável série Why WeFight). Entre 1933 e 1939, fora nomeado cinco vezes para o Óscar de best director. Os títulos são lendários: Lady for a Day {Milionária por um Dia, 1933), Lt Happened OneNightl Uma Noite Aconteceu, 1934), MrDeeds Goes To Town {Doido com Juízo, 1936), You Can ’t Take It With You {Não o Levarás Contigo, 1938), MrSmith GoesTo Washington {Peço a Palavra, 1939). Três vezes ganhara a estatueta {Uma Noite Aconteceu, Doido com Juízo, Não o Levarás Contigo). Além destes cinco gloriosos títulos, recebera um quarto Óscar pelo documentário Prelude to War (1942) e conseguira êxitos prodigiosos com filmes como LostHorizon {HorizontePerdido, 1937), Meet John Doe (Um João Ninguém, 1941) e Arsenic and Old Laces {O Mundo é um Manicômio, 1944). Quase todas essas obras (com expressão paradigmática em MrDeeds, You Can 't Takelt, MrSmith ou John Doe) foram as que mais longe levaram uma certa imagem da América rooseveltiana com os seus heróis (ora Gary Cooper ora James Stewart) a representarem, na quintessência, a luta triunfal do indivíduo contra uma sociedade corrompida. E a demonstrarem, 7 7 simultaneamente com o máximo simplismo e a máxima complexidade, que, nos anos 30 e na América, quem combatia o bom combate era sempre recompensado. Conhecendo-se o mundo de Capra, conhecendo-se esses filmes, pode perceber-se o entusiasmo do realizador quando, na sua difícil readaptação a uma Hollywood muito diversa, um amigo lhe entrou pela porta dentro com meia dúzia de páginas dactilografadas, em forma de cartão de Boas- -Festas, contendo o script que Dalton Trumbo extraíra do conto -The Greatest Gift», de Philip Van Diren Stern. A palavra a Capra: “Era a história que toda a vida eu procurara. Uma cidadezinha. Um homem. Um homem bom, ambicioso. Mas tão preocupado em ajudar os outros que deixara perder todas as oportunidades que tinha tido na vida.Um dia, perdeu a coragem. Desejou nunca ter nascido. Esse desejo era-lhe satisfeito. Meu Deus, que história! O gênero de história para fazer dizer às pessoas quando eu já for muito velho e estiver a morrer:“Foi ele quem fez The Greatest Gift Capra não se enganou. Agora, que está velho e que a vida se lhe aproxima do fim, gerações e gerações continuam a dizer «Foi ele quem fez It'sa WonderfulLife». Nos países anglo-saxónicos, esse filme — ex-aequo com TheWizardofOz(F\eming, 1939), MeetMe in St. Louis(Minnel\i, 1944) e Dr. Dolittle (Richard Flescher, 1967) — é o mais programado pelas cadeias televisivas nas noites de Natal ou de Fim de Ano. Tão bem o conhecem os velhinhos que o viram à data da estreia, nas grandes salas dos anos 40, como os filhos e os netos deles, a quem lhes veio a casa misturado com o Pai Natal. No caso em questão, não há corte geracional. A história do homem bom — George Bailey chamado — é patrimônio da nação. George Bailey é, obviamente, James Stewart, «o único actor que podia ter feito aquele papel». Foi Capra quem escreveu que rodou o filme em quatro meses (de Abril a Agosto de 1946) num «orgasmo ininterrupto». Quando o concluiu, estava firmemente convencido de que era: «The greatest film I have ever made. Better yet. I thought it was the greatest film anybody ever made.» Teve uma amarga desilusão. A América e o mundo tinham mudado muito. Se o filme ainda valeu a Capra sétima e última designação para o Óscar que perdeu, o sucesso, nesse Natal de 46, foi bastante relativo. Não78 faltou quem dissesse que o «Capra-corn» se estava a tornar cada vez mais com e cada vez menos Capra e quem brincasse com a pieguice da história. O sisudo Bosley Crowther, na sua tribuna do New York Times, chamou ao filme «um reportório de banalidades melodramáticas». Mas cerca de dez anos depois (dez anos que assistiram ao final da carreira de Capra, com filmes cada vez mais desfasados) It’s a Wonderful Lifereconquistou tudo e todos. Desde os anos 60 que é o mais amado dos filmes de Capra. Recentes inquéritos consideram-no tão popular como The WizardofOz, Gone With The U7mí/(Fleming, 1939), CasaWanca (Michael Curtiz, 1942), The Sound Of Music (Robert Wise, 1965) ou Star Wars (George Lucas, 1977). 7 9 Para mim, é paixão antiga, desde que o vi no Politeama, noutro Natal, o de 1947. Muitas e muitas vezes, ao longo da vida, me tenho lembrado da moral dessa fábula (com ou not com) e a tenho contado a gente que repete, como James Stewart, que «era melhor não ter nascido». E nunca consegui deixar de chorar no tearjeckingfinale, quando James Stewart, na noite de Natal, recupera, entre a família e os amigos, o gosto e a alegria de viver. O filme começa nessa mesma noite, quando ele desespera. Uma voz off informa-nos que estamos em Bedford Falis (nome da cidadezinha). A neve cai, ouvem-se os sinos natalícios e orações. Depois, a câmara sobe até às estrelas. Uma voz autoritária chama um anjo, chamado Clarence. Pre sumivelmente, é a voz de Deus, já que o anjo o trata por «Sir». Com tom firme e duro (tom de patrão), Deus manda-o sentar e dá-lhe uma hora para ele se vestir. Quando já está sentado (tudo isto sempre nas estrelas, sem vermos qualquer personagem ou figuração), o Altíssimo convida-o para um «bom filme». O filme da vida de George Bailey desde o dia, aos sete anos, em que salvou o irmão mais velho de morrer afogado nos gelos, até essa noite de Natal (a noite de Natal que é tempo de todo o filme), vinte e cinco anos depois. Ao princípio não se vê nada (quem não tem asas, como era o caso de Clarence, anjo de baixa extracção, não vê de outros planetas), até que a «imagem foca» e começa o filme. Quando passamos da infância de George à idade adulta, quando vemos pela primeira vez James Stewart, Deus diz ao anjo «Take a good look on him.» E a imagem imobiliza- se em «paralítico», comjames Stewart de braços todos abertos, no arquétipo da imagem capriana que tinha sido a dele (Não o Levarás Contigo, Peço a Palavra) e que também no cinema nunca mais voltou a ter. O filme da vida de George Bailey é o filme de coisas tão bonitas como Gloria Grahame a fazer parar o trânsito; o «graduation bali» de 1928 em que ele conhece Donna Reed, «the prettiest girl in town», com quem viria a casar; as cenas de amor entre ambos nos arbustos quando o roupão dela cai; os «discursos» de Stewart, sempre demagogicamente na conta; o prodigioso plano-sequência (câmara sempre imóvel) do primeiro beijo deles; a noite de casamento na casa velha-nova; as lutas de Stewart contra 8 0 a maldade de um velho rico de cadeira de rodas (Lionel Barrymore); os pobres amigos de Stewart (esse genial tio pateta chamado Thomas Mitchell). Até que o tio lhe perde o dinheiro, o dinheiro que toda a cidade confiara a George. George está perdido e numa ponte, sobre o rio revolto clama: ■■Quem me dera não ter nascido.» Então, ao lado dele, aparece o anjo (Henry Travers, velhinho de sobrancelhas brancas que não vinha à terra desde o século XVIII) para lhe satisfazer o voto. E é a noite da inexistência de Stewart, a noite da cidade como a cidade teria sido sem ele. Noite terrível em que George vê o mundo como se não houvesse George. O irmão morreu, um farmacêutico que salvou é uma ruína humana, a mulher é uma solteirona azeda, a cidade está convertida num vasto lupanar, entre strip- teasers e luzes de néon. Finalmente, James Stewart pede para voltar a viver. É a vitória do anjo, que com tal feito ganhou cobiçadas asas. E toda a gente em casa de Stewart lhe dá as economias todas, milhares de notas de 1 dólar, na apoteose do Natal. Tudo o que até aí fora um pouco mágico (coisas de anjos e estrelas) explode e encarna nessa noite de Natal, à roda de George, com os filhos ao colo, a redescobrir o valor da solidariedade humana, a redescobrir que «It’s a wonderful life». Tudo muito falso, por que na vida não é assim? Exactamente. E exactamente por isso, muito verdadeiro, porque no grande cinema é assim. E é o cinema que nos faz acreditar na vida e raramente o inverso. //s a wonderfulfilm. OS FILMES DA MINHA VIDA 81 M Sl ls iiii PERSONA: A EXISTÊNCIA DO TERRÍVEL Foi em 1955. A 16a. longa-metragem realizada por Ingmar Bergman — Sommamattens leende (Sorrisos de Uma Noite de Verão) — ganhou em Cannes o Prêmio Especial do Júri. Subitamente, 400 críticos à procura de um autor criaram um fenômeno para que se inventaram palavras como Bergmanorama ou Bergmanomama. De 1955 a 1960 — pouco mais ou menos — estrearam-se no Ocidente 12 dessas longas-me- tragens e mais as seis que o cineasta assinou entretanto. Dezoito filmes em cinco anos, quase à média de quatro, na segunda metada dessa dé cada. Bergman tornou-se muito mais famoso do que os mais famosos dos seus predecessores (Sjõstrõm, Stiller, Sjõberg) e, no mundo do cinema,8 2 apenas dois compatriotas tiveram a fama que teve e tem: a homônima Ingrid e Greta Garbo. Através dele, graças a ele, actores ignotos consegui ram reputação mundial: Mai Zetterling, Maj-Britt Nilsson, Eva Dahlbeck, Gunnar Bjõrnstrand, Harriet Andersson, Ulla Jacobsson, Max Von Sydow, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Erland Josephson. Repetiam-se de filme para filme, como Bergman se repetia de filme em filme, na fidelidade a um universo de rigor e de vertigem, herdeiro — único herdeiro — da dramaturgia nórdica dos fins do século passado e dos inícios deste, de Ibsen ou de Strindberg. Em Julho de 58, escreveu Godard a sua súmula crítica, motivada sobretudo pela visão de Sommarlek (Um Verão de Amor), realizado por Bergman sete anos antes, em 1951. -Na história do cinema, há cinco ou seis filmes que apetece criticar apenas com as seguintes palavras: É o mais belo dos filmes; (...) Cinco ou seis filmes disse eu. +1. Porque Sommarlek é o mais belo dos filmes.» Não há fome que não dê em fartura, principalmente quando uma obra — como a de Bergman — escava numa só direcção ou quando, para usar o poderoso gongorismo de Godard, cada filmeé como «uma estrela do mar que se abre e se fecha, sabendo oferecer e esconder o segredo de um mundo de que é, simultaneamente, único depositário e fascinante reflexo». Em 1960, começou a ser de bom tom afirmar que Bergman já não tinha mais nada para dizer e que se estava a tornar progressivamente irritante. O último dos filmes desse ano — Djãvullens Óga (O Olho do Diabo) — foi o pior recebido pela melhor crítica. Mas esses 22 filmes, de 1946 a 1960, eram apenas o prelúdio. Aos 42 anos que então tinha, Bergman traçara somente os geniais esboços da maturidade futura. Essa — hoje, retrospectivamente, não podemos ter dúvidas, ou, pelo menos, eu nào as tenho — iniciou-se com a trilogia de 61-63 (Sasom i en Spegel, Nattvardsgãstema e Tystnaden que, em Portu gal, se chamaram, respectivamente, Em Busca da Verdade, Luz de Inverno e O Silêncio) e terminou em 1982 com o filme que Ingmar Bergman anunciou como o último: Fanny och Alexander. Foram mais 19 filmes excluindo o episódio (Daniel) de Stimulantia (67) ou os documentários sobre a ilha de Faro (69 e 79). Algumas dessas obras são comparativamente 83 menores (Skammen — A Vergonha de 68, Riten — Rito de 69, Berõringen — O Amante de 71), uma é falhada (Das Schlangenei— O Ovo da Serpente de 1977), mas todas tecem em torno do deus-aranha a mesma teia. Entre elas emerge o mais misterioso e fascinante dos seus filmes — em termos de Godard, o mais misterioso e fascinante dos filmes — Persona, datado de 1966. Foi em Persona que surgiu, pela primeira vez, a última e a maior das criaturas de Bergman: a norueguesa Liv Ullmann. Chamava-se Elisabeth Vogler. Não dizia uma só palavra durante quase todo o filme (só na última sequência murmurava nada) mas a câmara quase nunca a largava em grandes planos que só têm equivalência nos que em tempos idos Griffith consagrou a Lillian Gish. Quem era? Uma actriz. Uma actriz que, um dia, ao representar a Electra, se calara no palco e nunca mais voltara a falar. Era quando, após ter suplicado o perdão de Orestes, evocava os deuses. «E Vós, Divindades, Vós que algures nas trevas exteriores que a todos nos cercam me estais ouvindo, tende piedade de mim. Vós que sois o Amor.» Depois, uma gargalhada. Depois, o silêncio. Quem se lembra do filme, sabe que isto não está no filme. O que lá está quase a seguir ao genérico, e depois das muito enigmáticas sequências que o precedem, é o plano rapidíssimo de uma mulher de cabeleira postiça negra, com uma túnica grega, a representar uma cena de uma tragédia grega. Não diz nada e tem no rosto uma expressão de ofuscamento ou estupefacção. Tudo indica que estará num palco, mas vêmo-la a ser filmada, e distinguem-se os vultos de Ingmar Bergman e do seu inseparável operador, Sven Nykvist. E uma voz-q^fvoz do psiquiatra que a está a tratar no hospital em que a internaram) diz-nos que aquela aparição — aquele fantasma — é Elisabeth Vogler, a actriz que ficou sem voz no meio de Electra. Foi-lhe diagnosticada a doença de Méniere, perturbação do ouvido interno que se manifesta, entre outros sintomas, por vertigens e perdas de equilíbrio. Muito mais tarde — já lhe deram por enfermeira Alma (Bibi Andersson) — é esta última que, enquanto a vela, acende a telefonia e ouve fragmentos de uma peça que provoca a Elizabeth esse ataque de 8 4 riso. Tudo em Persona — desde as sequências pré-genérico até à sequência final, ambas colocadas sob o signo do cinema e sob o ruído da máquina de projecção — é tão elíptico e tão críptico como o episódio em que me demorei. Aparentemente, Persona (que como se sabe quer dizer máscara e é palavra grega que foi raiz do termo pessoa) é uma variação sobre o tema do vampirismo. Para obter a cura de Elizabeth, os médicos confiam-na a Alma, que a leva para uma casa à beira-mar (numa ilha) onde tenta comunicar com ela. Durante todo o filme, Alma fala, fala sem cessar. É enfermeira, é psiquiatra, é mãe, é filha, é confidente, é amante, é rival, é inimiga. Durante todo o filme, e através de todas as emoções, Elizabeth opõe-lhe o silêncio. Há um plano célebre em que as caras das duas se fundem, como se fossem uma só, metade Elizabeth, metade Alma, metade Liv Ullmann, metade Bibi Andersson. Há uma sequência em que Alma se vinga e espalha os vidros do copo partido, em que Elizabeth se fere. E, depois, repete o pedido de perdão de Electra a Orestes. Há o marido «cego» de Elizabeth (Gunnar Bjõrnstrand) que as visita na ilha e se dirige a Alma como se esta fosse Elisabeth. Especu larmente, já o foram ou são. Ou, como Alma dirá, depois, aterrada: «Duas pessoas podem volver-se numa só?» E, sendo possível, a Alma e a Máscara (o corpo) podem continuar a dividir-se, como se divide a imagem do filme? Nas recentes memórias — Lanterna Mágica — Ingmar Bergman refere que um dos sonhos obsessivos e regulares da sua vida é com um filme que quer fazer e nào consegue fazer. O script está vazio, não há espaço para os movimentos necessários, os actores não lhe obedecem. Tem as peças de um mosaico, mas sabe que o sentido do mosaico só lhe pode ser revelado à hora da morte. Em certo sentido, Persona é esse sonho. Para mim, por mais vezes que o tenha visto e sonhado, por mais e melhores exegeses que tenha lido (e a melhor é a de Susan Sontag), é também um mosaico que nào fez sentido, ou só o pode fazer nessa hora, aquela que noutras das suas obras Bergman chamou do lobo. Sinto-me diante de Persona como o miúdo que por lá aparece a tocar na tela e sem a transpor. Para lá daquele filme estará possivelmente o 8 sentido de tudo, mas não se pode ir para lá de um filme, como não se pode passar para lá de uma tela sem destruir a visão. Nunca se pode quebrar o círculo encantado da solidão. Estamos sozinhos e não conhecemos ninguém; não conhecemos ninguém e estamos sozinhos. Bergman traduziu, assim, livremente, Georges Perec ([/rz Homme qui dort) quando se pôs a questão de Rilke, a questão da «existência do terrível». «Meu Deus, se fosse possível partilhar tudo isto com alguém. Mas se o fosse, alguém o seria, alguém o seria ainda?» A resposta de Per sona, a resposta de Elizabeth, não é não, é nada. O Malte de Rilke dizia que um só — um só — podia ser capaz. Mas que esse não o queria — ainda. 8 6 JOÀO BÉNARD DA COSTA A MULHER DO CAPACETE DOURADO O título original é Casque d'Or. Em Portugal chamaram-lhe — com maus modos e mau gosto — Aquela Loira. Realizou-o o homem a quem Godard chamou «Frére Jacques», o intimista e puríssimo Jacques Becker. Foi no ano de 1952, o ano de alguns e muito belos nascimentos. Como deles sei, sei de Casque d’Or, um dos filmes que mais amo. Becker tinha então 46 anos e realizara já seis longas-metragens, entre as quais um certo Goupi, Mains Rouges (1945) e um certo Falbalas (1945). Realizaria ainda mais seis, até morrer prematuramente, em 1960, aos 54 anos. Casque d’Or está, pois, situado no centro da sua obra. Com quatro filmes de Ophuls (LaRonde, LePlaisir, MadameDe... e Lola Montes), com três filmes de Renoir (French Can-Can. Elena et les Hommes, Le Déjeuner sur 1'Herbe), com três filmes de Bresson (Le Journal d’un Curé de Campagne, Un Condamné ã Mort sest Échappé e Pickpocket) forma o conjunto dos 11 mais belos filmes franceses dos anos 50, década apesar de tudo menos cinzenta do que nos quiseram fazer crer. Nenhuma «nova vaga» os submergiu. Os melhores frutos dela saíram deste ramo. Casque D’Or é Simone Signoret. Uma Signoret de 30 anos, então belíssima, então louríssima e então, como sempre, fortíssima. Simone Signoret, inundada de luz, com o cabelo altíssimo, apanhado em cima, como um capacete ou um elmo dourado, casque dor. O filme é a preto e branco, mas não me lembro nunca , na minha vida, de ver uma actriz, uma mulher, tão loura assim. Sem qualquer preocupação realista, Becker fê-la sempre surgir rodeada de sol e ouro, mesmo quando nenhuma fonte luminosa justifica esse halo que a rodeia. No filme chama-se Marie. Na Belle Époque — a acção situa-se noscomeços do século — andava com uma quadrilha de 40 ladrões, ou mais. Era mulher de muitos homens, andara por muitas camas. Até que um dia — uma tarde esplêndida de sol — lhe aparecia num fim de almoço nas 8 7 hortas, au temps des cerises, num baile improvisado, Manda (Serge Reggiani), de bigodinho e chapéu de palha. E, desde que Manda a agarrava para dançarem a valsa das cerejas, todo o tempo se imobilizava e todo o espaço se abria à roda deles. Entre Marie e Manda, começava a mais bela das histórias de amor, encontro predestinado, fusào de corpos e almas, desde aí (e era logo no começo do filme) para sempre indissoluvelmente casados. No fim, já depois da morte de Manda e do mais incrível plano de Signoret (vou falar muito dele) essa valsa voltava em flasb-back, início e fim de tudo. E tudo, no caso de Casque d'Or e de Simone Signoret, é a música e é o amor. Este é um filme de música, este é um filme de amor. Truffaut chamou a Becker o Poulenc do cinema francês e, depois dele, muito se insistiu nas analogias entre a música de câmara e o cinema do autor de Le Trou. Lembro-me de um texto belíssimo do Alberto Vaz da Silva, há trinta anos publicado nos programas do CCC (iniciais de que em crônica futura decifrarei o mistério). Ele falava «de uma maneira de fazer cinema que prescinde de metais e se contenta com arcos e uns raros instrumentos de sopro.» É exactamente isso. Não há muita música no filme, ao contrário do que possa pensar quem for levado pelo que digo. Até aos últimos 10 minutos, tem uma presença discretíssima, e, como os diálogos, reduz-se ao essencial. Mas o ambiente — o Paris Canaille — define-se tanto pela banda sonora como pela imagem. A tal dança de Marie com Manda. Depois Manda, que foi até à quadrilha por amor a Raymond (Raymond Bussières), o mais puro dos elementos dela, fica na quadrilha por amor a Marie. Roland, com quem ela vivia, nâo aceitou a derrota. Coisas dessas, com pessoas daquelas, resolvem-se à facada em duelos clandestinos. Lembro-me do pátio desse duelo, da sombra desse duelo, algures nas traseiras de um bistrot louche e ouço o latir dos cães que interrompiam o silêncio da noite e da refrega. Manda matava Roland. Marie pertencia ao vencedor. Ia vê-lo na manhã seguinte — tanto, tanto sol — e vozes de crian ças eram o pano de fundo para o primeiro beijo, beijo na carne e da carne. 88 Mas Marie era também carne cobiçada pelo chefe, um asqueroso Leca (Claude Dauphin). E, em jogo sujo, jogo baixo, traindo todos os códigos de honra, Leca denunciava à polícia Manda. Manda fugia para o campo e para uma casa à beira do rio, onde Marie vinha ter com ele. Estava a dormir e Marie acordava-o, com umas palhinhas, vagas cócegas. Quando ele abria os olhos, via-a num dos mais fulgurantes grandes planos do cinema, contra o sol, feita luz. Tantos pássaros cantavam. Leca já percebera que espécie de homem era Manda. E acusa do crime, Raymond, o amigo. Este não abre boca, em fidelidade total. Leca vai então visitar o casal. Estavam numa igreja, a assistir a um casamento. Havia por ali o sagrado doutra união. À saída, Leca previne Manda que pode voltar, que Raymond foi preso em vez dele. Começa a cerraçào. Ouvem-se sinos. E todos esses sons dizem tanto quanto a imagem (o pátio negro, de paredes muito brancas do duelo; a profundidade de campo do terreiro 8 9 vazio do beijo da Signoret; o campo-contra-campo do despertar de Manda por Marie; a lenta panorâmica a «fechar espaço» que se sucede ao anúncio da prisão de Raymond (com Marie a apertar o xaile) sobre o que vai acontecendo aos personagens, sobre o fatal percurso que sobre eles se abate. Tudo culmina no crescendo final. Manda condenado à guilhotina, depois de se ter vingado de Leca, depois de ter descoberto no quarto dele os chinelos dela, breve Tosca desse Scarpia. Marie e Manda nunca mais se vêem. Vê-lo ela, na madrugada final, perdido todo o ouro dos cabelos, quando assiste à execução, num miserável quarto de hotel. E a longa nota silenciosa é o rosto dela, sem uma lágrima, toda a vida feita morte, minutos e séculos detida sobre a visão do cadafalso e a última imagem do homem pelo qual fora ao fim de tudo. Nessa altura do filme — os citados 10 minutos finais — já a música (agora, em sentido literal!) ocupou o primeiro plano. É a canção «Le Temps des Cerises» que começou in, nas vozes desafinadas de uns cegos com quem Manda e Leca se cruzaram no seu implacável ajuste de contas, e continuou em qff (genial raccord) com a explosão desse tema musical. A letra da canção fala de «plaie ouverte» e de «souvenir que je garde au coeur». O último plano de Simone Signoret, esse que nunca consegui ver sem as lágrimas que ela já não tinha para chorar, dizem o resto sobre a ferida e a saudade: «Et Dame fortune / en metant offerte / ne pourra jamais fermer ma douleur.» Percebemos então que toda a luminosidade de Casque d’Or, toda a revisitação à pintura francesa contemporânea da acção, de Manet a Monet passando por Renoir, só prepara a cerração da madrugada final em que a luz de um candeeiro de petróleo dá lugar à luz que precede a aurora tão coada e tão fria como só se vê nalgumas telas de Greco. Para trás, em filigrana, «tão bela como», para voltar a citar Alberto Vaz da Silva, ficou a história do amor de Manda e Raymond, um pelo outro morrendo. E quando Manda confessa, há um breve movimento da cabeça de Raymond, iluminado por uma luz que dele passa aos olhos de Manda. A exuberância de formas, de carnes e de conflitos que povoam Casque íZ Or esbatem-se contra o plano final. Breves são os tempos dos grandes 90 amores, longos são os tempos das grandes mortes. Mais il est bien court le temps des cerises. E depois do terrível plongé da execução, depois, outra vez e outra vez, desse plano de Simone Signoret assistindo a ela até ao fim, regressa o momento da dança. Becker fixou uma memória fantomática para prolongar e perpetuar a ilusão dela. Vi o filme, pela primeira vez, em 1954. Desde então, há 35 anos, não consigo desprender-me desse tempo de valsa, desse temps des cerises e da mulher de capacete dourado que passou de toda a luz a toda a sombra. Chamava-se Simone Signoret e foi acesa e apagada por Jacques Becker. OS FILMES DA MINHA VIDA 91 A CONDESSA DESCALÇA «Oh toi, dont la beauté je suis impuissant à nommer / je trouverai an art nouveau pour fimmortaliser». Esta feliz tradução de um verso de Kleist era a epígrafe de um artigo publicado nos Cabíersdu Cinéma nos inícios dos anos 50, intitulado «Portrait d'Ava Gardner». Só uma «arte nova» (o cinema) podia ter imortalizado Ava, revelando, da beleza dela, tudo que em palavras não cabe. Outros chamaram-lhe prosaicamente «o mais belo animal do mundo». Eram tempos em que as «deusas do amor» umas às outras se sucediam. O cognome fora inventado para Jean Harlow, nos anos 30, essa Harlow de 9 2 quem também se disse que Ava era a versão aciganada. Jean morreu, com um ataque de urémia, aos 26 anos, em 1937, e dois anos depois (Only Angels Have Wings) sucedeu-lhe Rita Hayworth que «morreu» em 1948, quando Orson Welles lhe cortou os cabelos e lhe dilacerou a imagem em The Lady from Sbangai. Nesse anos «nasceu» Ava Gardner, no papel de Vénus e com mais do que «one touch» dela, como rezava o título do filme de William A. Seiter que a divinizou (SpeakLow, mandava a canção de Kurt Weill e Ogden Nash que nele se cantava). O reinado durou os mesmos oito anos concedidos a Rita. Foi de 1948 a 1956, entre os 26 e os 34 anos dela. Hoje, aos 67 anos, desfigurada pela celulite, por muitos copos e estranhas doenças, arrasta uma longuíssima agonia, pateticamente exposta nos últimos filmes que fez (e filmou até 1982). Periodicamente os jornais anunciam que parece iminente o seu fim. Mas, há 40 anos, o espelho da Branca de Neve repetia-lhe, em todas as línguas do mundo, que era ela a mais bela e num filme famoso (TheBand Wagon, de Minnelli), Fred Astaire descobria, com mágoa, que a multidãode jornalistas que esperava o comboio em que vinha, nào estava lá por ele, mas se precipitava atrás e à frente de Miss Ava Gardner que entrevíamos, fulgurante, num breve plano. Ava Gardner foi A Condessa Descalça (The Barefoot Confessa) no filme de Joseph L. Mankiewicz que hoje convoco. De todas as obras do seu período áureo, essa, estreada em 1954, foi a que melhor lhe captou o mito e a magia. Mais, muito mais, do que os outros títulos para sempre a ela associados: Pandora (51), aonde a sua boceta abria os ventos que redimiam o holandês voador chamado James Mason, sob o esteticismo decadente e requintado de Albert Lewin e Bhowani Junction (56) onde encontrou George Cukor e, half-cast, se dividiu entre o amor pela índia, onde o filme se passava, e o amor por um coronel inglês e opressor, interpretado por Stewart G ranger. The Barefoot Confessa esteve longe de ser um êxito, público e crítico, à data da estreia. A poderosíssima Pauline Kael chamou-lhe «a trash masterpiece» e Gavin Lambert, um dos pontífices do «free-cinema» britânico, escreveu que «this cxample of the Higher Lunacy must vie with Johnny Guitar for the silliest film of the year». Mas desencadeou, igualmente, 93 paixões tào fulminantes quanto estes ataques. Por elas fui um dos atingidos, quando o filme por cá se estreou. E ainda não me curei. Com o tempo, só cresceu a minha paixão pela Condessa Maria Torlatto-Favrini. Não era como condessa que Ava começava o filme, se o quisermos arrumar cronologicamente, coisa que Mankiewicz não fazia, pois a estrutura da obra era constituída por quatro longos flash-backs, iniciando- -se e terminando na chuvosa tarde do enterro da condessa, junto à campa encimada pela estátua dela, descalça. Ao princípio (primeiro flasb-back') chamava-se Maria Vargas, era espanhola e dançava o flamengo num cabaré de Madrid. Uma família pobre e sinistra, uma mãe odiosa e que ela odiava (tanto que as legendas da censura portuguesa da época lhe resolveram chamar madrasta em vez de mãe, para não chocar os respeitos que se devem). A dançar flamengo a descobriam e a descobríamos. Quem? Um magnate de Hollywood, caricatura do mais grosseiro producer em tudo quanto de pior se possa pensar deles (Warren Stevens) e dois dos seus acólitos: um servil e suado public relations (Edmond O’Brien) e um realizador frustrado e amargo que, nas suas próprias palavras, sonha poder ser, ainda, um rival de Lubitsch e Fleming, de Van Dyke e La Cava, em curiosa sintomatologia dos valores mais cotados pela Hollywood artística de então. Era esse o papel confiado a Humphrey Bogart, um Bogart no ocaso da carreira e da vida que terminariam três anos depois. Vendo Maria Vargas, os homens de Hollywood convenciam-se de que haviam achado a star que procuravam para o seu novo filme. Era difícil convencê-la a ela, mas Bogart ganhava essa batalha. E não se enganavam. No primeiro filme, Maria Vargas tornava-se «an instant star». A primeira projecçào privada era um êxito. Bogart triunfante, tomava o lugar do ecrã e deitava uma baforada de fumo do eterno cigarro, fumo que servia de cortina para o fim do primeiro flash-back (narrado por Bogart) e para o regresso ao cemitério inicial. Uma panorâmica conduzia-nos a Edmond O’Brien, segurando o chapéu-de-chuva do produtor, e detinha-se nos pés nus da estátua. Traveling para a frente, e O’Brien iniciava o segundo racconto em que Ava era deusa da Justiça, enfrentando escândalos e 9 4 multidões. Muitos homens giravam em torno dela: o produtor que a comprara e a julgava possuir, Bogart que se afirmava seu «amigo, patrão, confessor e psiquiatra amador»; um multimilionário boliviano (Marius Goring) que a arrancava ao produtor em bravata fácil e a levava, depois, para cruzeiros e casinos; um cigano misterioso que mal víamos e a rondava desde o princípio ao fim, sua sombra ou seu clandestino amante; finalmente, o nobre italiano (Rossano Brazzi) que lhe dá o título, um palácio em Rapallo e um casamento que só depois de celebrado ela sabe ser branco, com a confissão de Brazzi de que a metade inferior do seu corpo ficara destruída na noite de 25 de Outubro de 1942, em Bengazi. Com o Conde Torlatto-Favrini se tornava explícito o tema do filme: o da impotência. Mas se só o conde era literalmente impotente, todas as outras personagens metaforicamente o eram também. Os pés de Maria, nus na estátua, nus a dançar flamengo, nunca aceitaram sapatos, esses sapatos que Bogart piedosamente retira ao cadáver dela, quando percebe que nessa história nunca lhe coube outro papel senão o de voyeur. Truffaut, em tempos idos, pegou nessa «chave» (a impotência) para tentar uma aproximação do mundo de Mankiewicz com o de Stendhal, de The Barefoot Contessa com Armance. E escreveu o célebre artigo «La Contesse était Beyle». (Henri Beyle, como se sabe, era o verdadeiro nome de Stendhal.) Não sei se tinha razão. Não sei se Maria acreditou, como Armance, amar mais o conde «depuis que je ne le crois plus si parfait». Não sei se é Maria quem reduz à impotência todos os homens que a rodeiam ou se é essa impotência de todos os homens que a conduz à permanente busca, culminando na sua destruição, procurando o mármore e a morte para, finalmente, se apaziguar. O filme não dá respostas e nunca conhecemos o ponto de vista de Ava. Este filme, sobre a máxima feminilidade, é, inevitavelmente, um filme narrado por homens de «dentro» da morte (esses flash-hack típicos dos fifties) e de «dentro« do cinema, film onfilm que também é. E, todo ele, está dominado pela fatalista divisa dos Torlatto-Favrini: «che será, será». Talvez seja ela quem, afinal, conduz Ava Gardner ao palácio de Rapallo, percorrendo todas as circunstâncias até ao destino, à procura da key-light 95 que só pode vir de dentro dela, como Bogart lhe diz numa das mais belas definições de síarque já ouvi em cinema. Bogart, o realizador, queria um cinema em duas dimensões. Desco bre que não tem nenhuma. E esse é o segredo da genial mise en scène de Mankiewicz neste filme tão onírico, tão necrófilo, tão surreal e tão lírico. O «dedo do destino já escreveu tudo» quando Ava conhece o conde no casino, numa sequência fabulosa repetida do ponto de vista de O’Brien e do ponto de vista de Brazzi. Depois, lembro-me de Ava Gardner, «maja desnuda», no iate, de fato de banho preto. Há um plongé e quando chega à praia, o fato de banho é verde. Lembro-me de Ava Gardner a sair da casa de Bogart, depois de lhe contar como se decidiu a dar um herdeiro ao marido, possivelmente com o cigano que lá estaria também. Falhou esse cálculo (ou acertou-o) e a honra ferida dos Torlatto-Favrini redime-se em sangue, com dois tiros off. Tudo, neste filme, está para além da psicologia. Na obscuridade, entre a chuva e o sol, entre o verde e o preto, entre os jardins húmidos e as areias do Mediterrâneo, o que conta é outra ordem de mistério. Chamemos-lhe o da Beleza. Ou o da Mulher. No caso de Ava Gardner é igual. Ava-Maria! 9 6 JOÃO BÉNARD DA COSTA ESTE OBSCURO OBJECTO DO DESEJO Creio que é o filme mais recente até hoje chamado a estas crônicas. Data do Verão de 1977. Não tem 12 anos. Pelos padrões da nossa Comissão Etária, quem nasceu no dia da estreia dele (17 de Agosto, em Paris) ainda o não pode ver. Mas não me convertí a novidades. Quem o assinava tinha 77 anos. Cet Obscur Ohjet du Désir foi o último filme do aragonês Luis Buhuel (1900-1983). Confesso — e não há mania de contradição — que não sou particu larmente apreciador dos últimos e festejadíssimos Buhuel: Le Charme Discret de la Bourgeoisie (72), LeFantôme de la Liberté (74). Acho mesmo que quando Buhuel começou a trabalhar com o argumentista francês Jean- -Claude Carrière, a partir de LeJoumal d’uneFemme de Chambre (63), se lhe acentuou progressivamente uma tendência para fazer «trop Buhuel». Ou Buhuel «mieux que nature». O que na fase anterior do cineasta funcionara «automaticamente» , em boa obediência à filiação ou pater nidade surrealistasque foram dele, passou a ser calculado, às vezes quase calculista. Carrière forçou-lhe a mão, talvez a imaginação. Estranho destino, aliás, esse de Don Luis! Nos chamados «melhores tempos da vida», dos 32 aos 46 anos, não o deixaram filmar, permanecendo na memória cinéfila apenas por uma longa-metragem (Z Âge dOrde 1930) e duas curtas (Un Chien Andalou de 29 e LasHurdesde 32), cuja fama lhe foi tão nociva quanto o escândalo. Depois (período da sua fixação no México) contaram os tostões que lhe deram e só pôde filmar com meios artesanais (e essa fase durou de 46 a 59, enquanto o cineasta ia contando os anos do século em que nasceu). Mas depois dos 60 anos — e do casas belli de Viridiana (61) — obrigaram-no a ir a todas, mesmo quando o cineasta se começou a queixar que estava velho e cansado, farto de filmes e farto de vedetas e que queria que o deixassem em paz. Não o deixaram. E o que lhe faltou toda a vida, teve-o nesses anos em excesso: dinheiro, 9 7 fama, prêmios, até um Óscar de Hollywood. Por mim, continuo a preferir a essas perfeitas produções finais muitos dos filmes em décors de papelão e com péssimos actores que fez no México e tanto enervaram os defensores do acabadinho. Obras-primas geniais, como Susana, Demônio y Carne (50), Subida al Cielo (51), El (52) ou La Vida Criminosa de Archihaldo de La Cruz (55). Mas não há regra sem excepções e, a ter que escolher um, fixo-me em Cet Obscur Objet du Désir, a obra derradeira, a única — com Tristana — que me parece escapar ao -efeito de repetição» da girândola final. O título talvez seja demasiado «sabido» e não é certamente inocente. Nunca Buhuel falou doutra coisa, senão da obscuridade do desejo e dos objectos (ou do objecto) dele. Buhuel parecia ir, de novo, ao encontro da imagem que lhe fixaram. Mas nào foi. O filme baseia-se num romance de Pierre Louys (1870-1925), chamado La Femnie et le Pantin. Já fora duas vezes levado à tela. Em 1935, por Sternberg, no último dos seus filmes com Marlene, quando os produtores resolveram dar sexo ao diabo e chamaram à adaptação The Devil is a Woman. Em 1957, por Duvivier. Conservou-se o título original, Brigitte Bardot foi a femme infame e Antônio Vilar o «fantoche» dela, sob a forma do ganadeiro espanhol. Já na altura Buhuel queria fazer esse filme e não se consolou que Iho tivessem tirado. O romance era obsessão dele e tinha as suas razões e os seus fantasmas. Também já tinha decidido dar ao «pâle objet du désir» de que Pierre Louys falou a obscuridade total. Só não tinha decidido o que apenas decidiu em 1977, já as rodagens haviam começado. Que esse «obscur objet», chamado pelo romancista Conchita Perez (a acção passava-se em Espanha) não fosse interpretado por uma só actriz, mas por duas. Duas actrizes, duas mulheres com pletamente diferentes: a loura e fria francesa Carole Bouquet e a morena e quente espanhola Angela Molina. Nada disso estava previsto. Em princípio, Maria Schneider (a do tango e da margarina) devia fazer o papel. Mas as coisas correram mal e Schneider foi corrida. Já havia muito dinheiro gasto e foi então que por puro acaso (como Buhuel contou) o realizador disse ao produtor: «Podíamos usar duas actrizes. Disse duas, como podia ter dito três ou dez, a brincar», contou98 ainda Buhuel. Mas o produtor tomou-o a sério e assim se fez. Em obediência a um «mistério» ou a um «automatismo», de novo uma expressão de Buhuel. Os críticos depois deram muitas interpretações. Gênero: «São duas, porque ninguém conhece a mulher que ama que é sempre uma e outra», ou «São duas, porque representam a mulher, todas as mulheres do mundo». «Tonterias», respondeu Bunuel que achou a primeira explicação demasiado lógica e a segunda, pior ainda, simbólica, que era a coisa que mais detestava. «Me hubiera dado verguenza pensar en eso». Repetiu à saciedade que a trouvaille foi completamente arbitrária e que não há que explicar o que não tem explicação. Só que o público mordeu a isca. Ao contrário dos receios de Bunuel («vão pensar que são duas personagens diferentes») toda a gente aceitou e muitos até viram o filme sem perceber que a actriz não era a mesma. Foi o meu caso e foi uma das minhas grandes humilhações críticas. Quando vi o filme pela primeira vez, não reparei na diferença e só cá fora, quando gabei a intérprete, a minha companheira de visão me fez observar — atônita, porque consciente do seu estatuto «amador» face ao meu estatuto «profissional» — que não havia intérprete mas intérpretes. Como confundi eu — que não me considero propriamente ignaro — um ovo com um espeto e Molina com Bouquet? Ainda hoje não sei explicar, mas é rigorosamente verdade. E, para engolir a vergonha limito-me a aceitar a nada vergonhosa explicação de Bunuel: «É para que vejam como o cinema é uma espécie de hipnotismo.» Mais de uma vez me veio à memória Hitchcock e a Judy-Madeleine do Vertigo. Dir-me-ào que é uma «tonteria» porque Judy-Madeleine são uma só actriz (Kim Novak) e aqui o processo é inverso. Mas, no fundo, é o mesmo. No filme de Hitchcock, James Stewart, apaixonado por Madeleine, via-a (depois da suposta morte dela) em todas as mulheres e, finalmente, nela própria, sob a aparência de Judy. Para Fernando Rey, protagonista do filme de Buhuel, Carole Bouquet e Angela Molina não se distinguem. Num caso, as aparências iludiram; no outro, as aparências passaram desper cebidas. Em Vertigo tratava-se de paixão; em Cet Obscur Objet de desejo. 10 0 Mas onde estão as fronteiras entre uma e outro? Ambos são ilusões, passes de hipnotismo, obscuridades. Nas trevas, tudo é possível, tudo pode acontecer. Nas trevas e na ilusão de desejo se situa o filme. Vezes sem conta, ao longo dele, Conchita (as Conchitas) repete(m) ao velho e rico Fernando Rey que o ama(m) muito mais a ele do que ele a(s) ama a ela(s). Mentira? Tudo no filme parece confirmar que, de facto, mente(m) para convencer tão ingênuo sedutor. Mas quem pode garantir que assim seja? Reduzir o filme à fábula habitual do velho gaiteiro ou do anjo mais ou menos azul, é não perceber nada de nada. Porque se há mito convocado nesta obra, não é o das fábulas moralistas. É o das Mil e Uma Noites, a mulher sabendo que o seu poder reside na sua não doação. Reter o desejo. Suspendê-lo para a noite seguinte. «Lá serei tua amante», diz Conchita a Mathieu (F. Rey). «Hoje?» E logo ela se desmente e lhe promete «depois de amanhã». Rey tenta todos os estratagemas, quando acredita na (falsa) explicação que Conchita só nào quer é perder a virgindade («Há muitas maneiras de satisfazer um homem»), Conchita foge-lhe sempre. Foge-lhe também ele a ela, no comboio, aonde conta aos estranhos companheiros (um anão, uma criança, uma pacata mãe de família) a sua assaz extraordinária história. Mas acabam por se reencontrar. E o último plano do filme mostra-os fascinados (por quê?) a olhar uma montra onde se faz e desfaz um bordado virginal. A teia de Penélope não acaba nunca, seja para iludir os pretendentes, seja para mais os atiçar. Há ratos em armadilhas, onde menos se espera. Caem moscas em <7ry- -martinis. As interpretações desses «interlúdios» são todas tão ilusórias (e enganadoras) como a dualidade das protagonistas. Há sempre outra coisa por detrás de outra coisa. Fernando Rey — às vezes figurado como o «homem do saco» noutra obscura alusão — é interrogado, nas margens do Sena, porque é que exige uma parte do corpo e não se contenta com a outra. Porque é que o desejo é sempre outro? Porque é que o desejo é a única coisa que é impossível de satisfazer? Porque é que o desejo é obscuro? Objecto ou sujeito? No termo do seu caminho, aos 77 anos, Buhuel não reinventou uma mulher de duas caras (ou dois corpos) nem o mito de Janus bifronte. 10 1 Preferiu dividi-las e fragmentar, de cena em cena, de plano em plano, a identidade una. Cet Obscur Objet du Désir é, quanto a mim, o filme que reinventou o falso raccord, ou seja, que viu o cinema como a possibilidade da nulidadeda visão sequencial. Atrás umas das outras, aquelas sombras continuarão. Cet Obscur Objet du Désir não é a história do homem que perdeu a sombra, mas a do homem que, encontrando-a, a viu dividir-se e se dividiu nela. Há quem chame a isso prazer. Eu prefiro aterrar-me (e enterrar-me) na obscuridade. Ou continuar a pensar que Carole Bouquet e Angela Molina são uma só mulher chamada Fernando Rey. 1 0 2 JOÃO BÉNARD DA COSTA 0 REI DOS REIS Há dois The King of King ’s que são filmes da minha vida. Um é o de Nicholas Ray, de 1961. Outro, é o de Cecil B. De Mille, de 1927. É do último que vou falar hoje, filme das minhas Semanas Santas, filme das minhas mais antigas Páscoas. Naquele tempo, andava eu pelas escolas, os cinemas mais bem educados, para pessoas mais bem educadas, abstinham-se de programar na Quinta e Sexta-Feira Santas. «Devido à solenidade do dia, hoje não há espectáculos», era o anúncio que se lia nos jornais, nos locais reservados a essas salas. Também não se ia ao cinema quando se estava de luto, no mínimo enquanto durava o luto pesado com prazos fixos conforme o grau de parentesco. Como nào se ouvia música. Tinha eu quatro anos — posso ser tão preciso porque sei que o facto se deu no dia da declaração da Segunda Guerra Mundial — uma tia-avó minha privou-me de ouvir a Carmen Miranda a cantar o «Pra Você Gostar de Mim», quer era a coisa de que então eu mais gostava, porque tinha morrido um outro tio-avô meu, chamado Prosper e dono da Farmácia Barella. Não lhe era nada a ela (tios-avós por lados diferentes), mas era o meu luto que ela, assim, entendia respeitar. É de criança que se aprende a beber o chá das pompas. Fúnebres neste caso. Por luto de Cristo, Nosso Senhor, o São Luiz e o Tivoli, talvez o Éden e o Politeama, fechavam as portas nos anos 40. Mas havia empresários menos respeitosos que nào mais hábeis. Justificavam os maus modos, alterando a programação e projectando filmes que convinham à quadra e à gravidade dela. Eram, invariavelmente, O Rei dos Reis e A Vida de Cristo. Nem toda a pachorra e nem todo o saber do Luís de Pina conseguiram 103 descobrir que Vida de Cristo era essa1 de que me lembro tão mal e só vinha às telas nesses dias. O Rei dos Reis era The KingofKing’s desse genial Cecil B. De Mille, sobre quem se continuam a repetir os mais grosseiros dislates. Era um filme de 1927, mas que foi reposto, em cópia sonorizada, nos finais dos anos 30 e se arrastou (o rei dos reis saberá em que estado) pela década de 40 e por essas semanas. Se nada lembro da Vida de Cris to— a não ser que começava com o Menino nas Palhinhas — nunca mais esqueci The King ofKing ’s, que já nessa altura — louvado seja eu — de longe preferia ao outro. E, para minha edificação, lá me levavam ao Odeon ou ao Palácio, onde o filme passava, naqueles tempos e naqueles dias. A infância do Senhor era inteiramente omitida nessa versão adaptada dos “Four Gospels in the Holy Bible», como vem nas filmografias de De Mille. Começava tudo — se a memória e os resumos da bibliografia demilliana me não falham — numa grande orgia. Obviamente, a palavra não fazia parte do meu vocabulário de então. Mas fascinava-me uma mulher coberta de jóias, a abrir muito os olhos, e embevecida com um tigre que a vinha afagar (ou ela a ele). Como já adivinharam era Maria Madalena, antes de arrependida. Jacqueline Logan, filha de um arquitecto e de uma prima donna da ópera de Boston, ex-Ziegfeld Girl, «among the prettiest and most popular leading ladies of the silent screen» fazia o papel. Não sei em que Evangelho se baseou De Mille para lhe dar como apaixonado Judas Iscariotes (o grande, grande Joseph Schildkraut), mas para o caso nada importa. De Mille nào é cineasta para puristas, nem para puritanos. Se começava por aí, era para nos fixar nos -maus». Entre o traidor e o tigre começavam a minha aflição e o meu deslumbramento. Até que surgia Cristo, muito saint-sulpiciano, igual às visões de que tanto gosto de Ciseri, o pintor. Surgia sob os traços de H. B. Warner que andava pelo cinema desde 1914 e só acabou a carreira e a vida com o mesmo De Mille — no último De Mille — a fazer de Aminadab em The Ten Commandments (1956), aos 80 anos. Nessa altura, tinha 50, era grave, austero, longos cabelos e longa barba. Era Deus. Para quem ainda nào 1 Em fins de 1989 descobri que essa Vida de Cristo en italiana. Chamava-se no original Cbristuse Giulio Antamoro realizou-a em 1916. Onze anos mais velho, portanto, do que o filme de De Mille, arrastou-se ainda mais pelas salas (em versào sonorizada, feita nos anos 30) até aos anos 40.7 04 distinguia muito bem entre as Pessoas da Santíssima Trindade, vê-lo era vê-lO. Olhava-a — olhar terrível — e sete diabos saíam dela, mais os tigres e muitos outros animais. Jacqueline Logan caía-lhe aos pés, que The lavava e enxugava com os cabelos. Depois, havia milagres, cada um mais aparatoso do que o outro e com mais efeitos especiais. Lembro-me das caras de poucos amigos dos Apóstolos. Depois, só me lembro da Agonia no Horto, do beijo de Judas e do julgamento. A coroa de espinhos, a flagelação, o sangue, os ladrões. O ecrà ficava escuríssimo e milhares de figurantes acompanhavam a subida ao Calvário, e a morte na Cruz. Era um sorvedouro de gente, espirais de corpos, hoje diría o esplendor da carnalidade de De Mille. Pouco depois, deram-me um livro (o livro da minha vida) sobre os museus alemães, Berlim, Dresde, Munique. Lá vi o Cristo na Cruz de Rubens que está na Pinacoteca de Munique e em que o Corpo do Crucificado pende da Cruz tanto quanto nela se ergue, recortado contra um imenso escuro. Associei sempre essa reprodução à imagem final de H. B. Warner no filme de De Mille. Muito, muito mais tarde, quando vi muitos, muitos outros De Mille soube como tinha razão. Se há cineasta rubensiano ele é Cecil B. Não me perguntem por que caminhos que nào lhes sei responder. Mas é o mesmo sangue, ou melhor a mesma carne. Os temas de De Mille são os mesmos que Argan vê em Rubens: o mito, a história, a natureza, a alegoria, a fé. Argan disse das composições de Rubens o que se pode dizer das de De Mille: “Dinâmicas em espiral, feitas de oblíquas, curvas, órbitas, abismos abertos e massas concentradas em turbilhões. A cor formando torrentes im petuosas que regressam sem cessar, aliando os tons mais claros aos coloridos mais exuberantes. Futuro e passado que nào dissolvem sen sações mas as intensificam e aceleram numa posse do presente em que os sentidos têm um papel predominante.» Apreendendo directamente — primitivo que também foi duma arte nova como o cinema — o imperialismo do Olhar que Hollywood, de que foi fundador, trouxe à tradição plástica precedente, De Mille conseguiu, 10 6 através de uma poética e de uma retórica, reencontrar os valores de Rubens, ele também directo apreendedor de outro momento similar da história das formas. E, talvez por isso, como ele, defendeu e revalorizou imagens ao serviço de uma dogmática, tentando provocar a piedade e o terror e vendo, como finalidade última deles, a capacidade de persuadir. Piedade e terror são palavras que para mim se confundem com a memória desse filme e do imaginário a que em mim se associou. TheKing ofKing ’s fez-me um medo imenso e vergou-me os joelhos perante a Origem desse medo. Vejo distintamente seis ou sete imagens — as que evo- quei —, mas tanto me basta para dar todo o sentido ao que, pela mesma altura, me inculcavam em colégios de freiras (juro que é verdade) e em histórias de Aparições, ora demoníacas ora celestiais. TheKing ofKing's foi o primeiro dos meus Nomes Divinos. Ainda hoje não sei se o não continua a ser. OS FILMES DA MINHA VIDA 107 0 CARTEIRISTA Com um saber de experiências feito, posso garantir que a segunda metade dos anos 70 (mais precisamente, de 1976 a 1980) foi o período dourado da cinefilia portuguesa. Depois da ditadura, depois do gonçalvismo, uma significativa fatia de espectadores achou-se no direito— talvez com o dever — de se pôr em dia com tudo quanto, durante uma vida inteira, tinha ouvido falar, mas não tinha visto. Só isso explica fenômenos tão insólitos como o aparatoso êxito de algumas retrospectivas ou reposições que, antes ou depois, não levariam às salas mais do que uns felizes poucos. De todos os casos que conheço, o mais singular e o mais surpreendente foi o de Robert Bresson. A 10 8 retrospectiva integral da sua obra, levada a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1978 (com as excepçòes de I.zlçge/z/que ainda nào existia e de Quatre Nnits dun Rêéeurúe que se nào conseguiu cópia), esgotou as lotações do Grande Auditório (1200 lugares) durante as 11 sessões dela. Que tem isto de extraordinário, perguntará o leitor menos familiarizado com Bresson? Simplesmente o facto de em nenhum país do mundo, que eu conheça, Bresson ter reunido alguma vez uma tal assistência em simultâneo para um só dos seus filmes, quanto mais para 11. Ainda hoje, deixo os franceses boquiabertos com tal brilharete. Tanto mais que. no caso em questão, nenhuma culpa é de assacar à «longa noite de 48 anos» ou à censura dela. Perante Bresson. os censores fizeram o que 99 por cento dos portugueses fizeram também: adormeceram ao fim de 10 minutos e deixaram passar no fim. se houvesse quem quisesse e quem gostasse, já que há gostos para tudo. As estatísticas nào mentem: das 13 longas-metragens assinadas por Robert Bresson entre 1944 e 1983 (retenham o número 13 e o vagar da obra, que a um e outro já volto) apenas seis se estrearam comercialmente em Portugal e. todas antes do 25 de Abril, entre 1959 e 1974. Nem a penúria desses anos nem o nihil obstcitdã censura convenceram os distribuidores a pegar em mais quatro que datam dessa época. Quanto aos três filmes que Bresson assinou depois de 1974 (Ixmcelot du Ixic. Le Diable Probablement e I. Aiyent), nenhum foi comprado por Portugal que nào vê Bresson numa sala (refiro-me às «normais») há 15 anos, desde a estreia de Au Hasard Baltbazar... «prima delia rivoluzione». Parafraseando o título que por cá deram a esse filme, tem sido uma «peregrinação exemplar». Mas nào estamos «orgulhosamente sós». Se a situação nào foi tào drástica noutros países, os desastres de Bresson sucederam-se e só nos finais dos anos 60, inícios dos anos 70 (quando adaptou, a cores, Dostoievski em Une Femme Doucee QuatreNuítsdun Rêreur), conheceram uma algo relativa pausa. Mais do que Dreyer, mais do que Oliveira — para me limitar aos muito, muito grandes —, Bresson prova o «analfabetismo primário» do público-que-tem-sempre-razào. Nào sabe ver e nem sequer tem muita culpa porque ninguém o ensinou. Os professores que lhe deram sofrem da mesma ou doutras miopias. Eram e sào igualmente analfabetos, com a peculiaridade de se exprimirem num latim bárbaro, incompreensível tanto 1 0 para os latinos como para os bárbaros. Por isso os filmes ficaram à espera de quem os saiba ver, ou vistos, apenas, pelos que só precisaram de ver para crer. Bresson nunca facilitou a tarefa. Este grande senhor, hoje com 87 anos (nasceu em 1901 e não em 1907 como dizem quase todas as fontes), sempre entendeu que «o cinema não é um espectáculo, é uma escrita- e escreveu nos seus 13 filmes uma complicada história teológica, em torno de questões tão pouco populares como a Predestinação, o Acaso ou a Graça, na dependência de um catolicismo austero, a que por vezes se tem chamado jansenista. Não usa a palavra cinema. Prefere o termo «cinematógrafo» para sublinhar a diferença -entre os filmes correntes e a arte cinematográfica» e diz que «o cinematógrafo é a aplicação em imagens insignificantes ( não sig- nificantes)». Actores? É coisa que, para ele, não há. Se nos primeiros filmes (Les Auges duPéché, de 44; Les Dames du Bois de Boulogne, de Á5, Joumal d'un Curé de Campagne, de 51) ainda transigiu e ainda foi escolher à Comédie actores (e actores de teatro) para os seus personagens, a partir do opus 4 (Un Condamné à Mort sest Echappé, de 1956) recorreu exclusivamente a homens e mulheres que não fizessem qualquer ideia do que fosse representar. Chamou-lhes «modelos» em vez de actores, e quis que modelos fossem em vez de parecerem actores. «Não se trata de representar com “simplicidade” ou de representar com “intensidade”, mas de não represen tar de todo». E exigiu-lhes que falassem como se falassem sozinhos, sem expressão. «Monólogos em vez de diálogos.» Por isso, nunca usou duas vezes o mesmo modelo. Por isso, não perdoou aqueles dos seus modelos que, traindo-o, iniciaram com ele uma carreira de actor (o caso mais célebre é o de Dominique Sanda, seu modelo em UneFemmeDoucè). Por isso, os seus modelos parecem todos modelar- -se uns aos outros na mesma inexpressividade. Com a pintura aprendeu que não havia imagens belas mas imagens necessárias. E que, como dizia Cézanne, «à chaque touche, je risque ma vie». Nunca se importou nada que o achassem ou chamassem reaccionário. 110 Nunca se importou nada que cada um dos seus filmes demorasse anos a ser feito. Levou uma série de produtores à falência, tão mais exigente e gastador quanto menos se viam os seus filmes. Obcecado com os números e as sortes (ou os azares) construiu em 13 filmes um universo que não se parece com nenhum outro, e que ninguém nunca conseguiu imitar. Escrevendo sobre ele, Nuno Bragança escreveu: «Cristão que também sou, sinto a que ponto essa visão (a visão de Bresson) está, para muito do que marca o tempo em que vivemos, como sopa em tomo de uma mosca. Mas opto pela sopa.» Eu também. E opto, particularmente, entre todos os seus filmes (nenhum a que não possa chamar «filme da minha vida») por Pickpocket (1959) que por aqui chamaram, com alguma imaginação, O Carteirista. Já se disse que era «o filme mais branco da história do cinema» (só talvez Luz de Inverno de Bergman possa competir), pois é a mais ousada tentativa do seu autor para desmontar o real, através das suas aparências, ou, se se preferir, as aparências através da sua realidade. Filme sobre um pickpocket, tão misteriosamente triunfador nos seus roubos iniciais, corno misteriosamente vencido no seu roubo final, tanto se pode falar dele em termos de «tratado de moral» (relações entre o roubo e a homossexualidade, relações entre o crime e a lei), como em termos de «tratado metafísico» (mais uma vez, a perene contradição dos filmes de Bresson, entre o «primado da Graça» e o «primado das Obras») ou em termos estritamente «materiais» (é um filme sobre mãos, olhares e gestos, sem outra metafísica que não essa). A ausência de expressão dos personagens, das vozes dos personagens, da fragmentação dos personagens, tanto é uma expressão de ausência como a expressão de uma presença. Quem está ausente ou presente (como em todos os filmes de Bresson) é quem nào pode ser nomeado e, portanto, não pode ter imagem. Quando muito, a probabilidade dela. Dieu, probablement como, na sua penúltima obra, Bresson disse Le Diable, Probablement. Pickpocket é o filme de Bresson que mais joga com esse vazio, com esses vazios. Ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser pressentidos como o essencial, apenas porque o essencial se esgota na pura materialidade. Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa 111 da sua ideia de que «o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada». E esta afirmação só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ner o que é esse nada que Pickpocket mostra. Ao som da música de Lully. Bresson ilumina o caminho de um homem que sabe, paulinianamente, que a lei mata e o espírito vivifica. Um homem chamado Michel que a Graça acompanha, na sua trajectória entre a liberdade e a prisão. Livre, é prisioneiro do seu corpo e do seu espírito. Preso, encontra a alma e o misteriosíssimo sentido da frase que diz depois da morte da mãe: “Acreditei em Deus durante três minutos». Bresson comentou que poucas pessoas poderão dizer que acreditaram em Deus durante tantotempo. Também poucas pessoas terão com preendido. como Michel. a razão da força irracional de um destino humano. Por isso, à única mulher que o amou e que, para o amar, também teve de abandonar toda a ordem e toda a racionalidade. Michel dirá, no final, entre as grades, com o inconfundível acento neutro dos personagens bressonianos, a seguinte frase: «O Jeanne, pour aller jusqu a toi. quel drôle de chemin il m'a faliu prendre.» E o Magnificat de Lully invade a banda sonora, imobilizando esse encontro e essa frase na sombra da iluminação total. 112 JOÃO BÉNARD DA COSTA A SAGA DE ANATAHAN Este filme de Josef von Sternberg — o último filme de Josef von Sternberg — nunca se estreou em Portugal. Foi aqui visto, pela primeira vez, no Ciclo de Cinema Americano dos Anos 50, organizado pela Gulbenkian em 1981, 28 anos depois da sua estreia mundial no Festival de Veneza de 1953, aonde foi gelidamente acolhido. A Gulbenkian e a Cinemateca voltaram a programá-lo, em 1984, por ocasião da retrospectiva dedicada ao realizador. O ano passado, o 2° Canal da RTP — na grande era Sternberg dele — passou-o para mais vastas audiências. À memória delas me confio para ressuscitar as memórias de Anatahan. Sternberg — muito particular paixão minha — já apareceu nestas crônicas por via do Anjo Azul como pretexto ao -outro lado do espelho», que são os meus filmes da vida. Entre esse celebérrimo filme de 30 e esta obscura obra, correram os tempos da ascensão e queda do vaidosíssimo von, austríaco (emigrado para a América aos 14 anos, em 1908), que aliás usurpou a aristocrática partícula como usurpou muitas outras coisas e se chamava, efectivamente, Jonas Sternberg (Jo Sternberg em versão americana). Tinha um ego do tamanho do talento e fez uma fulgurante entrada no reino das imagens — ou, na sua específica terminologia, no reino dos imponderáveis—, em 1925 com The Salvation Hunters, que um crítico da época dizia ser -tão esmagador como uma tragédia grega». A obra foi apadrinhada por Charles Chaplin, Douglas Fairbanks e Mary Pickford (a nata de Hollywood, os unitedartists), e Sternberg tomou a nuvem porjuno. Aprendeu à custa dele que realizadores convencidos que eram gênios nào faziam parte da espécie de gente de quem os estúdios mais gostava. Aprendeu à custa dele que as admirações tinham o limite da inveja: se se gabou da honra única de Chaplin lhe ter dado carta branca para o único filme que Chaplin produziu mas nào realizou — TheSea Gull, de 1926 — apanhou de volta com a honra 7 1 3 nas trombas. Chaplin, por ciúme, por despeito ou por mau feitio, resolveu suprimir essa obra uma vez concluída e, até hoje, ninguém sabe o que foi feito dela, jamais distribuída e jamais vista, a nào ser por meia dúzia de convidados ilustres que assistiram a uma preview em Maio de 1926, em Beverly Hills. Disseram eles e disse Sternberg que era o «mais belo filme jamais feito». Se tinham razão, é coisa agora impossível de saber. Sternberg domesticou-se, tanto quanto tal palavra se pode aplicar a tal homem. Dentro das regras do jogo fez, para a Paramount, alguns clássicos dos fins dos anos 20 e começou a ser o «director» mais bem pago da casa. Subiu a parada quando lhes trouxe da Alemanha, em 1930, Marlene Dietrich que revelou para o mundo no tal Anjo Azul. Com Marlene, entre 1930 e 1935, realizou sete filmes que permanecem os mais sublimes dela e das obras mais crípticas que o cinema alguma vez nos deu. Até que ele próprio sucumbiu à magia da sua Circe. Houve muitas histórias, muitos boatos. Da parte de Marlene, confessada e repetida gratidão ao homem «a quem devo tudo». Da parte de Sternberg, cáusticos comentários sobre essa «Dietrich weibe», com quem fez da vida um inferno: «Essa mulher nào é um mito. Talvez o tenha sido para outros, nunca o foi para mim. O verdadeiro mito sou eu, atrás de uma câmara, no acto de criar o que vocês chamam o mito de Marlene. Se há algum mistério, é porque a transição da realidade para o cinema é ainda misteriosa.» Sternberg escreveu isto nas suas fabulosas memórias, a que chamou Fun in a Chinese Laundry, que daria em português qualquer coisa como Festa na Aldeia dos Ma cacos. Mas a festa ou a fun acabaram-se no dia em que Marlene ou Sternberg (ou os dois) decidiram nunca mais filmar juntos. A partir daí, o realiza dor foi de colapso em colapso, de hreakdown em break.down, até ser completamente marginalizado pelo sistema. Em Londres, 1937, interrom- peram-no a meio das filmagens de uma megalómana adaptação do 1 Claudius de Graves (30 anos depois, a BBC desenterrou os rushes e montou-os num belíssimo TheEpic That Never Was). Em 1941, conseguiu algum dinheiro para novo filme só dele. Foi o labiríntico e perverso The Shanghai Gestureque «toda a gente» achou incompreensível e demencial 114 (e, meu Deus, talvez tenham razão). Depois, nunca mais o chamaram ou OS FILMES DA MINHA VIDA 1 7 5 chamaram-no para dar uma mão e filmar obras que a seguir mudaram de cabo a rabo. Até que em 1951 — tinha ele 57 anos — um produtor japonês que o admirava mais do que a ninguém, lhe bateu à porta com a proposta de um filme a ser rodado no Japão, com a história que ele quisesse e liberdade sem condições. Assim, nasceu The Saga of Anatahan, realizado, escrito, fotografado e narrado por Josef von Sternberg. Intérpretes: 17 desconhe cidos actores japoneses do kahuki: 16 homens e uma mulher. Anatahan é uma das 2000 ilhas do Arquipélago das Marianas, que antigamente tinha pertencido à Espanha, depois à Alemanha, e entre 1918 e 1945 fora do Japão. É um rochedo selvático e vulcânico, a meio caminho entre o Japão e a Nova Guiné, a 1500 milhas das Filipinas, 16e a norte do Equador. A 12 de Junho de 1944, -no quarto ano de uma guerra a que dedicámos as nossas vidas, como crianças entretidas num jogo que nào previram nem destinaram», um barco de guerra japonês, o Heike-Marn, foi bombardeado ao largo de Anatahan. Quinze homens conseguiram salvar- -se, percorrendo a nado a distância que os separava da costa, sobre uma fossa com a fundura de 70 000 m. Na ilha encontraram um misteriso casal. E até que os fossem buscar, ou ajudar, decidiram fazer desse rochedo um bastião do Império do Sol. Só os foram buscar sete anos depois — mais precisamente, a 1 de Julho de 1951. A guerra tinha acabado há seis anos, mas eles nào sabiam. Quando receberam as primeiras notícias nào acreditaram. «Era impossível que fosse verdade. A guerra ainda mal tinha começado. Estávamos preparados para combater mil anos. Dominávamos a Ásia, dominávamos quase todo o Pacífico. Como é que podíamos ter perdido tudo tão depressa?» A história do filme é a história desses sete anos em Anatahan, tão rigorosamente marcados no tempo como tào absolutamente devorados pelo tempo. Podiam ter sido sete horas ou sete séculos. O tempo nào existe em Anatahan. Chegaram à costa 15 homens. Regressaram oito. Os sete que morreram nào morreram às balas do inimigo (esse inimigo sempre esperado e sempre ausente), mas morreram pela força destruidora do inimigo que «cada um 116 de nós traz dentro de si». Inimigo que dá pelo nome das paixões que Sternberg traçou num roteiro-diagrama, desenhado como se fosse uma carta de navegação e a que chamou o mapa de Anatahan: desejo, vontade de poder, ciúme, saudade, cobardia e violência. Essas seis paixões, 16 homens e uma ilha circulam verticalmente ao longo das 22 sequências do filme. Mas o lugar central de todos eles e todas elas é a mulher que tudo isso aglutina: Keiko, «the only woman on earth», imagem, metáfora ou símbolo final da Mulher na obra de Sternberg, última encarnação de Marlene Dietrich e do mito através dela perseguido. Começaram por encontrar Kusakabe, o homem que vivia com ela mas não era marido dela, que lhes disse que vivia sozinho. Havia sido capataz de uma plantação de copra. «Era um homem agreste, agreste connosco, agreste com ele próprio». Depois descobriram que ele escondia Keiko. «Ao princípio foi só um ser humano,arremessado à costa naquele ponto perdido do mapa. Depois, tornou-se numa fêmea, a nossa fêmea. Por fim numa mulher — a única mulher na terra.» E no dia em que Keiko «entrou em circulação», começaram as mortes e os zangãos começaram efêmeros reinados em torno da abelha-mestra. O inimigo já estava em Anatahan. «Os dias podem ser mais mortíferos do que balas. É fácil ver os erros alheios. Mas falta-nos um espelho que reflita as nossas próprias acções. O engenho do homem para se destruir a si próprio é maior do que qualquer outro. Nos seres humanos, os furacões desencadeiam-se imprevisivelmente. É difícil reconhecer os sinais que os anunciam. Gastamos grande parte da vida a tentar conseguir que os outros gostem de nós. Bem pouco tempo gastamos a tentar gostar de nós próprios.» Todas as frases que cito são do filme. Não são ditas por nenhum dos actores que falam japonês, sem dobragens ou legendas que os traduzam. São ditas pela voz offáe Sternberg que funciona como narrador da saga de Anatahan, como coro da tragédia de Anatahan. Ora narra, ora antecipa, ora comenta, ora resume, ora elide, ora mostra o que diz elidir. Para filmar este filme de sete anos e de tempo nenhum, Sternberg nào foi a Anatahan nem a espaço nenhum. Por mais incrível que pareça a quem veja o filme (todo passado na selva tropical e em rochedos inóspitos), Sternberg não saiu de um estúdio de Quioto. 117 Tudo é mapa, sinal e décor. Só assim se pode dizer quão «cosa dura» é esta «selva selvaggia e aspra e forte / che nel pensier rinova la paura». Só conta (e só se conta) uma única coisa: a história da viagem do homem ao fundo de si próprio, com a variante da história da posse de todos os homens pela Mulher. O objecto do desejo é só o desejo. Entre os corpos, as armas, as roupas, as conchas, as lianas, o que fica é a inanidade — e o absoluto — do que circularmente se persegue: ser-se complementar, ser- -se único. Citei A Divina Comédia, podia ter citado A Odisséia. Anatahan funde essas peregrinações sem exterior e sem exteriores. Está para o cinema como o Ulisses de Joyce para a literatura. Reconverte a uma linha o que descobre em múltiplas paralelas. As que jamais se encontram. Nem no infinito. 1 1 8 JOÃO BÉNARD DA COSTA CASABLANCA Sinto-me como o pianista a quem se pede um «encore». Ao sentar-me ao piano para tocar hoje — porquê só hoje? — o «As Time Goes By», algum burburinho é inevitável. Voltem a sentar-se e esperem pelo silêncio. Não fui daqueles que viu Casablanca na estreia lisboeta, a 17 de Maio de 1945, no Politeama, dois anos e meio depois de uma discretíssima estreia mundial. (Já vou contar, tudo.) Não o vi sequer durante as dez semanas que o filme esteve então em cartaz, em fenômeno sem preceden tes. Só visitei Casablanca cerca de dez anos mais tarde, já se haviam acalmado há muito algumas das paixões que o filme suscitou nesse Maio do fim da guerra na Europa. Só de ouvido conheço as histórias que se passaram no Politeama, com o público a levantar-se para ouvir a Marselhesa abafar o Die Wacht am Rhein, como se diz que um rei de Inglaterra se levantou para ouvir o «Alleluia» do Messias de Haendel. Esse gesto real inaugurou uma «praxe» seguida há mais de 200 anos. O gesto português — por cuja originalidade não respondo — talvez não tenha tão longa posteridade, mas enquanto houver cinema e cópias de Casablanca emoções semelhantes voltarão a produzir-se a cada nova visão do filme. Desvanecido e desaparecido como símbolo da resistência (e, assim, Lisboa o viu nas horas unitárias de 45) não se desvanecerá nem desaparecerá como símbolo do romantismo e do romantismo no cinema. Casablanca é o Wertber do século XX. Quem o vir impassível, ou já perdeu a alma, ou já perdeu o coração, ou já perdeu uma e outro. E ser humano de companhia a evitar cuidadosamente. O lado político do filme é só uma das pontas por onde se pode começar. Começa-se sempre nalgum lado. Mas talvez não fosse a preocupação dominante da Warner quando decidiu confiar aos irmãos Epstein, pri meiro, e a Howard Koch depois, a libérrima adaptação da peça Everybody 119 GoestoRick, de Murray Burnett ejoan Alison. Estava-se em 1942, a América tinha entrado na guerra há seis meses e os estúdios ainda hesitavam na dose de propaganda a administrar. A história levou voltas e mais voltas e conta-se que, quando Howard Koch foi chamado a meter-se nela, nem ele sabia como acabá-la, nem os actores (já em rodagem) percebiam quem era quem e para quê. Também se conta que, em 1982, o jornalista americano Chuck Ross enviou o script original de Casablanca a 217 agentes literários de grandes estúdios, apresentando-o como um novo argumento para um novo filme. Só 32 reconheceram que se tratava de Casablanca. O primeiro realizador convidado a dirigir o filme — William Wyler. então no auge do seu prestígio — declinou. O mesmo fizeram George Raft e Hedy Lamarr, que o produtor Hal B. Wallis queria nos papéis de Rick e lisa. Hal B. Wallis reflectiu então no êxito que estava a ter Kings Roír. de Sam Wood (1941), com Ronald Reagan e Ann Sheridan. Também era um filme da Warner. Propôs a repetição do par com Dennis Morgan no papel do heróico e infeliz Laszlo. Esteve por um triz (há quem jure que há uns rushes em que Ronald Reagan aparece a pedir a Sam ■■play it again», a mais famosa line do cinema actually never spokeri), e só não se concretizou porque nem Wood, nem Sherman, nem Keighley (tudo realizadores de serviço na Warner) quiseram meter-se «naquilo». Até que se chegou ao húngaro exilado que fizera para os Irmãos os mais célebres filmes de aventuras e de piratas lá da casa, obras esplendoro sas como Captain Blood (1935), The Charge of the Light Brigade (1936), lhe Adventures of Robin Hood (1938), The Sea Hawk (1940), The Sea Wolf (1941). Chamava-se Michael Curtiz (americanização de Mihaly Kertész) e percebeu — Deus o abençoe! — que só tinha que puxar ainda mais da capa e da espada e conseguir que Humphrey Bogart introver tesse tanto quanto Errol Flynn extrovertia. O resto, na famosa expressão de Chabrol, era questão de timing. Timing no filme, timing para o filme. «Chapeau» três vezes: primeiro, porque depois da tal discreta estreia (ainda em 42), Casablanca foi escolhida para cenário do primeiro encontro 12 0 Churchill-Roosevelt, em 1943, quando as tropas de Eisenhower e Mont- gomery «seguraram, pela primeira vez, os alemães no Norte de África. A fama da cidade pedia um filme à altura e Casablanca voltou aos cinemas, agora para ficar. «Chapeau», segunda vez, porque essa simultânea passagem, no mesmo ano e no mesmo filme, de dois «neutros» (Bogart e Rains) para a mais Santa Causa personificou eternamente que ninguém sentimentalist at beart (como Rains suspeita que Bogart era) podia continuar neutral naquela guerra. A famosa frase final de Bogart para Rains (enquanto este atira fora a água de Vichy) «Louis, I think this is the start of a beautiful friendship» marca o fim dos tempos em que era possível alguém dizer — como Bogart diz no início — «I stick my neck out for no one». A partir daí qualquer pescoço vertical, como Lisboa percebeu dois anos depois, tinha que ficar bem exposto e só para um. 12 1 «Chapeau», terceira vez, porque Curtiz percebeu que a aparente moral da história tinha que funcionar às avessas. No fim do filme, na celebérrima sequência em que Ingrid Bergman e Paul Henreid apanham o avião para Lisboa («O que é que há em Lisboa? O avião para Nova Iorque.») Bogart diz a Ingrid, para a convencer a partir com o marido, além do «Heres looking at you, kid», que os problemas de três pessoas «don’t amount to a hill of beans on this crazy little planet». Mas essa razão de fundo planetária que importava fazer prevalecer em 1943 — e justificava o sublime sacrifício dos amantes de Paris — era afinal bem falaciosa. Se Casablanca fez chorar milhões de pessoas nos últimos 30 anos, e milhões fará chorar nos próximos, é precisamente porque são os problemas de «threelittle people» o que mais conta e o que mais ordena. Quem chora com Casablanca hoje, não chora por causa dos nazis e aliados (que já não riscam nem prego nem estopa neste crazy littleplanet), mas por causa dos amores tão belos quanto efêmeros de Ingrid Bergman por Humphrey Bogart e vice-versa. Se Casablanca é um prodígio de concisão e timing durante o primeiro quarto de hora (em que somos apresentados a todos quantos não arriscam muito a pele, ou a arriscam mas não mexem na nossa), o filme só «pega fogo» quando Ingrid Bergman entra no Ricks Bar e Sam pára de tocar e olha para ela. Nunca o olhar de Ingrid foi tão quente, tão desarmado, tão húmido como quando pediu que lhe tocasse (não «outra vez» mas pela «primeira vez») o «As Time Goes By». Nunca o olhar de Bogart foi tão cerrado, tão frio, tão seco como quando ouvindo a música e antes de ver Ingrid, diz: «Sam, I thought I told you never to play...» E depois (secreto sinal de Sam) o contracampo. Rick réllsa e nós remos tudo em Rick e em lisa, quando ainda não sabemos da missa o início quanto mais a metade. É em torno dessa música (a mais vulgar e a mais famosa das canções, escrita por um tal Herman Hupfeld, que a ela deveu toda a sua glória) que se estabelece todo o conflito dos dois anos que passaram entre a ocupação de Paris e o reencontro em Casablanca e o tempo que para sempre imobilizou esse flash-back em Paris (haverá algo de mais romântico do que umas férias em Paris?) e o faz regressar, fanto- 12 2 maticamente à cidade de todos os fantasmas: Casablanca. «Sempre teremos Paris», diz, no fim, Rick a lisa. A imensidão desse adeus vem de sabermos que não. Terão Paris (sempre) como terão Casablanca (sempre) enquanto saudade e amor perdido. Nunca mais terão Paris, nunca mais terão Casablanca, porque nunca mais se tocarão e se beijarão como em Paris e em Casablanca. Ficaram com todo o tempo, quando já sabiam «as time goes by». É prodigioso observar como essa passagem rima com a famosa sequência da Marselhesa. Se o hino francês ganha ao hino nazi não é pela conotação ideológica que tem no contexto. Mas porque ao ritmo marcial, introspectivo, sombrio, do Die Wachtam Rhein (ritmo que até aí fora o de Bogart, irmão na máscara do oficial nazi e do capitão francês) se sucede a explosão romântica da Marselhesa, tão fremente, tão generosa e tão confiante como Ingrid Bergman o era. Aparentemente, nessa sequência, triunfa o patriotismo sobre a traição, a coragem sobre o medo, o desafio sobre o silêncio. Mas, sobretudo, triunfa a expansão do grande amor sobre a contenção dele, a dádiva de Ingrid Bergman sobre o ressentimento de Humphrey Bogart. É precisamente porque as duas lutas pulsam ao mesmo compasso que a nossa identificação é tão assombrosamente total. Essa sequência é a catarsis para todas as opressões, políticas ou sentimentais. Em raccord com o «As Time Goes By» permite a consumação da nossa suprema infelicidade de sabermos que nunca mais veremos Bogart e Bergman em Casablanca. Todas as outras histórias cruzadas (e de Peter Lorre a Joy Page, tantas e tantas são) confluem para esse caudal que, depois, só pode ir em crescendo até à morte de Veidt e à conversão de Rains. Antes, no filme, este dissera: «If I were a woman... Pd love Rick.» Qual homem o não disse também? E qual mulher não disse igualmente: «If I were a man... I’d love lisa». Quem nào precisa de senão precisou de mais nada. Se viu Casablanca, amará, até ao fim, Bogart e Bergman. E procurará toda a vida o Rick’s Bar em Casablanca, sabendo perfeitamente que nào há nenhum Rick’s Bar em Casablanca e que nào há outra Casablanca senão aquela onde-um-dia-se encontraram e se perderam Ingrid Bergman e Humphrey Bogart. Se isto não for o cinema é porque o cinema não existe. Nem eu, nem tu. Nem nenhum de nós. 123 0 RETRATO DE JENNIE O cinema continua a fazer uso da voz off. Mas jamais esta voltou a ter o papel desempenhado em Hollywood, nos anos 40, quando, mais do que nunca, sobre as primeiras e mal definidas imagens, nos convidava ao grande sono hipnótico. Por vezes era radiofônica (ou neutra, ou enfática) indo buscar ao outro grande médium de então o fôlego imperativo ou reportorial. Vozes offdo início do Citizen Kauede Welles (41) ou de The Roaring Twenties (Walsh, 39). Outras vezes, tomava o som do sonho e sussurrava-nos ao ouvido 12 4 saudades sobrepostas, quase sempre confiadas a femininas vozes. Assim entrámos na Rebecca de Hitchcock (40), guiados pela voz de Joan Fontaine, assim prenetrámos no SecretBeyondtheDoor, de Fritz Lang (48), com o fio da voz aquática de Joan Bennett. Amo esses filmes todos e os muitos mais que me vêm à memória, enquanto escrevo e ouço essas vozes primordiais, vindas do escuro e do lado de lá das imagens. Mas a voz que mais me enfeitiçou foi a que um dia veio a mim, das nuvens e das alturas, para metafísica e divagantemente me perguntar: «What is time?» -What is space?» «What is life?» «What is death?» «Since the beginning, — eram as primeiras palavras —, men has looked into the infinity and asked the eternal questions.» Estas eram, então, vagarosa mente ditas. Depois — já a música do genial Tiomkin preparava o seu caudaloso encontro com a paleta de Debussy — a voz continuava pomposa e vinda dos pontos mais distintos do infinito: -Durante centenas de civilizações, filósofos e cientistas deram-nos respostas, mas a obscuri dade permanece. Porque cada alma tem que demandar o segredo da sua própria fé. A estranha lenda do Retrato de Jennie baseia-se nos dois ingredientes da fé: verdade e esperança.» Entretanto, pelo meio da voz e pelo meio das nuvens, interrom pendo a audição de uma e a visão de outras, já uma legenda ocupava a tela. Era a passagem de Eurípides que Chestov também citou a abrir as Revelações da Morte-. -Quem sabe se a Morte não é, finalmente, a vida e o que os mortais chamam vida não é, finalmente, a morte?» Depois, à medida que as nuvens se iam dissipando e a imagem focava em Nova Iorque, Central Park, Inverno de 1934, («New York is a cold place in the winter», era a voz de Joseph Cotten — Eben Adams, o pintor que um dia pintara o retrato de Jennie quem no-lo dizia) —, a voz off ainda continuava, mais explicativa, a murmurar-nos que «a nossa história tem origem tanto nas sombras do desconhecimento como num retrato que está no Metropolitan Museum. A verdade dela não reside neste écran mas no vosso coração. And now The Portrait of Jennie.» Foi há 39 anos que ouvi e vi pela primeira vez tal voz e tais imagens (o filme é de 1948, mas só se estreou em Portugal em 1950) e raras vezes um início de filme me magnetizou tanto. Os segundos balcões da época, tão atônitos como eu, mas em diverso sentido, começavam a fazer ruídos 12 5 significativos do seu desagrado. Elitíssimo, juntava-me aos poucos «chius» da sala. Aquilo nào era para ignaros. David O. Selznick, produtor de The Portrait ofjennie, ofereceu esse filme como presente de amor à sua futura mulher Jennifer Jones. com quem já aqui esgotei os adjectivos do meu vasto reportório quando escrevi sobre Gone to Earth. Diz-se que foi o mais caro presente que lhe deu. David O. tinha o seu lado poético, sob a carapaça de tycoon. Gostava de histórias bizarras. Mas nunca se teria metido nessa adaptação de um romance de Robert Nathan, se nào fosse Jennifer, que perdeu a cabeça com essa viagem no tempo e no espaço. E o rigor das contas cedeu perante a assolapada paixão. Se Jennifer queria sonho, ia tê-lo e como jamais visto. Inclusive a sequência fulcral — a sequência da tempestade e do maremoto no farol quando Jenny «morre» pela segunda vez — foi tintada a verde e filmada em tecnicolor especial, exigindo especial projecção em ciclorama. Gastou milhões, perdeu-os todos, já que ninguém se orientou nessa poética encenação da teoria da relatividade. Atribuiu as culpas ao realizador, o alemão Wilhelm Dieterle, há muitos anos baptizado na América William Dieterle, e que em tempos fora discípulo deMax Reinhardt. Este, por sua vez, ficou fascinado com as possibilidades que tal história lhe dava para reencontrar as suas feéries germânicas e os fantasmas dela. Em verdade, em verdade, aquele era o filme por que esperara nos 17 anos de exílio hollywoodiano e de servidor dos secos Irmãos Warner. 'lhePortrait ofjennieé o filme mágico do encontro (único) entre essas várias vertentes: o onirismo hollywoodiano dos forties, o expressionismo reinhardtiano de Dieterle e a magia de Jennifer Jones. À época, só o perceberam alguns surrealistas, como Buhuel que tanto amou este filme e o citou, uma vez, entre os seus dez favoritos. Selznick veio a saber disso muito depois e ainda mandou um convite ao autor de LAge d'Orpãrã ir até à América, dirigir Jennifer. Mas, como Buhuel comentou depois, era muito tarde para ele, já metido noutras aventuras e muito tarde para Jennifer, que já não tinha os 28 anos que contava quando fez o filme. The Portrait ofjennie é também o filme mágico do encontro (único) entre o tema dos «duplos» (tão caro à tradição alemã e aos Murnau e Leni 12 6 que tinham sido companheiros e amigos de Dieterle) e o tema da «dupla imagem» (retrato — filme, quadro fixo — imagem em movimento) que fora uma das mais perenes constantes dos filmes americanos dos forties. Por este último lado (o tema do retrato) culmina uma longa tradição que vem de Reheccae passou por Gaslight, de Cukor (44), Latira, de Preminger (44), The Woman in the Window, de Fritz Lang (44), ThePicture ofDorian Gray, de Lewin (45), The Ghost and Mrs Muir, de Mankiewicz (47), para só citar «filmes da minha vida». A singularidade de Portrait of'Jennie foi ter elevado essa conjugação ao máximo de hiper-romantismo e onirismo, sustentando, no limite da alucinação, a «realidade do irreal». No final do filme, depois da sequência do farol, e quando toda a gente, até a sua protectora e amiga Ethel Barrymore, duvida que o pintor (Joseph Cotten) tivesse visto Jennie, este olha para as mãos de Ethel e vê nelas a écharppe de Jennie. E a velha senhora responde-lhe que o encontraram com ela, nas rochas da ilha. Perante essa prova, quando também Cotten vacila na sua certeza de ter encontrado a morta-viva, tudo se reordena. O pintor sorri e diz que agora está tudo bem. Jennie existiu mesmo, para além do retrato. Jennie foi real. Mas Jennie — esse fantasma que lhe apareceu ainda criança vestida de marujo, em 1934 ou em 1910, nas neves do Central Park — e a espaços de semanas e meses «ressuscitou» cada vez mais crescida, recapitulando num ano a vida que vivera em dez — tem no filme outro «duplo» bem mais terreno, mas não menos triste e romântico. E essa velha protectora — Ethel Barrymore — que desencadeou a aparição de Jennie e vive do outro lado da idade um romance de amor análogo ao de Jennie com Cotten. As mulheres da vida deste, os seus fantasmas ou duplos, são, assim, uma criança que morreu dez anos antes de ele a conhecer (cedo de mais? tarde de mais?) e uma velha que podia ser mãe dele (tarde de mais? cedo de mais?). O retrato de Jennie é um misto de Jennifer Jones e Ethel Barrymore, criação do duplo das duas, criação dupla das duas. «Where I come from nobody knows — and where I’m going everything goes. The wind blows, the sea flows — and nobody knows.» Jennie canta esta canção a Cotten quando lhe aparece, pela primeira vez, miúda e de tranças, com os seus «grandes e tristes olhos». E a canção repete-se como leitmotif do filme a cada uma das suas aparições, até sabermos que ela 127 repete circularmente o seu destino e voltará a morrer, engolida pela onda, no maremoto de 5 de Outubro de 1924, revivido a 5 de Outubro de 1934. Traz com ela todas as «provas» do tempo passado (jornais antigos, memórias antigas) mas traz também com ela todas as provas de tempo e espaço nenhum. E traz nas suas metamorfoses (Jennie aos 10 anos, Jennie aos 20 anos, Jennie-filha, Jennie-mulher), graças ao prodígio de Jennifer Jones, o encontro eterno do amor louco, esse de que morreu por não ter conhecido (no antes do antes do filme) esse de que morreu por ter conhecido (no depois do antes da vida). Este filme desmedidamente romântico, encontra, através dela, da iluminação prodigiosa do grande Joseph August, no seu último trabalho, e da partitura debussyana de Tiomkin, os nicbtgeboren («seres nào nascidos») de que falou Hoffmanstahl, sempre fast verlorenen («cedo perdidos») mas reencontráveis no espaço do imaginário fílmico que Dieterle foi buscar ao mais fundo da sua alma germânica. Ou, como disse Wordsworth, «a imaginação recua perante tudo, excepto o plástico, o flexível e o indefinido». Chamemos-lhe em The Portrait ofJennie, o cinema. Por isso o amo tanto. E por isso, continuarei, como Cotten, a subir e a descer a escada do farol, para ver ressurgir no mar encapelado da antiga névoa, as velas do barco de Isolda-Jennie, ou de Isolda-Jennifer. 128 JOÀO BÉXARD DA COSTA VONTADE INDÓMITA Muito antes de me apaixonar por este filme de King Vidor, que só conhecí 20 anos depois da sua estreia, apaixonei-me pelo livro em que ele se baseia: TheFountainhead, de Ayn Rand, que li, adolescente, nos pinhais de Venda de Galizes, na tradução francesa chamada La Source Vive. Naquela altura, já sabia que havia um filme «tirado» do romance e lembrava-me de ter visto os cartazes dele, no Tivoli, na Páscoa de 1950. Mas quem me recomendara o livro detestara a fita e, por isso — sempre fiel aos mestres —, me afastei cuidadosamente dela para nào estragar a impressão que a leitura me dera. Ayn Rand ganhou o Pullitzer com esse telúrico e exaltante hino ao artista maldito, em luta contra uma sociedade que lhe não compreendia o gênio. É, provavelmente, um dos últimos resquícios de uma mitologia herdada do romantismo, em que «só contra o mundo» a inesgotável fonte de inspiração proclama a sua soberana liberdade contra as regras do gosto comum. No caso em questão, o artista era um arquitecto — Howard Roark — que edificara em Chicago e Connecticut, nos inícios do século, os arranhas-céus que impuseram o primeiro modernismo e depois planeara uma cidade nova, Cortland chamada. Embora Ayn Rand escrevesse no prefácio a habitual frase de aviso sobre o carácter fictício de personagens e situações, toda a crítica identificou Howard Roark com Frank Lloyd Wright, de quem The Fountainhead seria velada biografia. Como Wright — ainda vivo à data da publicação do livro, como à data da estreia do filme (morreu em 1959, com 90 anos) —, Roark começou por privilegiar a ossatura metálica, como Wright procurou romanticamente conciliar o racionalismo da máquina com um imaginário poético devedor de Ruskin e Viollet le Duc, como Wright procurou ligar o mundo «natural» ao mundo «urbano», num novo regresso à natureza, organicista e funcional. E o episódio que mais me maravilhara nas tardes desse Verão agreste da 129 Beira, em 1953. também tinha lendariamente a ver com Wright. No livro, Howard Roark, quando sabe que o seu plano para a cidade de Cortland fora consideravelmente alterado por medíocres sem gênio nem escrúpu los. dinamita os edifícios principais. Há quem diga que Wright fez o mesmo para o edifício Cheney, em 1904. «O arquitecto deve recusar tudo o que está em desacordo com a natureza e o carácter do homem.» Para os meus 18 anos, essa figura do Grande Artista, incorruptível e sobranceiro, domando e dominando com idêntica mestria materiais brutos e mulheres sofisticadas, deus das Artes e deus do Amor (e mal com o amor por causa das Artes) era um arquétipo. Sonhei com Howard Roark como sonhei com outros deuses análogos que, pela mesma altura, me eram propostos por outras biografias igualmente romanceadas que li de Gauguin (o livro de Maugham) à geração dos malditos dos anos 20 (os livros de Gertrud Stein). Foram prelúdios à leitura (já feita com mais de mim) das cartas de Vincent a Théo. Mas se essas ainda as considero hoje o mais arrasante documento que conheço sobre a criação artística(e releio- -as tantas vezes como as cartas de Rilke ao «jovem poeta»), receio bem que se voltasse a ler The Fountainhead o meu delírio dos anos 50 nada reconhecesse nem se reconhecesse. Fontes dessas só as de Charles Morgan. Ayn Rand passou como epifenómeno, e duvido que ainda tenha — ou mereça ter — muitos leitores do gênero do que fui. Já tinha mesmo esquecido o livro, quando, uns 15 anos depois, me achei na Cinemateca de Paris, em retrospectiva Vidor, a ver o filme que, em 1949, King tinha extraído do best-seller de Mrs Rand. Como me tinham avisado, não havia na obra as «páginas de doutrina estética» em que a escritora se espraiara. Não havia muitas e diversas mulheres, mas uma só. Nào havia finais pungentes, havia bappy-end. Mas havia uma paixão «without dignity and without regrets» e havia, numa das mais poderosas imagéticas de que me consigo lembrar, a recapitulação da estrutura do cosmos na estrutura de um corpo (corpo de Gary Cooper, que na tela interpretou Howard Roark) e a da estrutura do espírito na da obra. E havia a recapitulação da função criadora nos pólos antagônicos e complemen tares dessa criação. Do mais panteísta dos cineastas, o mais panteísta dos 130 filmes. Grande é a minha paixão por King Vidor (gigante que atravessou toda a história do cinema de 1919 — Better Times — a 1959 — Solomon and Sheba\ de todos os cineastas o mais operático e o mais plástico. Grande é a minha paixão por The Big Parade (PTIS) e Renée Adoré a correr atrás do camião que lhe levava John Gilbert e a agarrá-lo pelo sapato, única coisa dele com que ficava nas mãos; por La Bohème <3926) que, se não é a ópera de Puccini, pode ser visto ao som dela; por ZfeeCrozcc/(1928) com essa cena de amor nas Cataratas do Niagara; por Halleluiah! (1929), o filme que inventou o som no cinema dando voz ao diabo; por Bird of Paradise (1932), com os amantes supliciados e os tabus revisitados; por Cynara (1932), com o desmaio de Phyllis Barry, vestida de Miss, nos braços de Colman; por Stella Dallas<3937), em que Barbara Stanwyck obscurecia no comboio a imagem romântica para, do lado d.e lá do túnel, se paramentar 13 1 com a imagem trágica; por An American Romance(1944), que me ensinou que o aço, e nào apenas o binômio de Newton, pode ser tão belo como a Vénus de Milo; por Duel in theSun (1946), em que Gregory Peck morre como Radamés eJennifer Jones como Isolda; por Ruby Gentry (1952), com o vento a fustigar os pântanos e Jennifer Jones, outra vez. O parágrafo foi enorme (valham-me os pontos-e-vírgulas) e omiti mais do que escolhi. Mas, quanto mais o tempo passa e quanto mais revejo The Fountainhead, mais me convenço que é essa a obra-prima de Vidor, no essencial de tudo o resto. King Vidor parece que não o pensava. Lamentou a escolha de Gary Cooper («Não era um papel para ele: eu queria Bogart!»), discordou do final que achou -estúpido e ridículo», e lhe foi imposto pela Warner, e lamentou que os irmãos fossem tão forretas que nào o tivessem deixado reconstruir edifícios e décors, obrigando-o a maquetas e estilizações. Salvo o devido respeito, não teve razão. Sem Gary Cooper jamais teríamos esse plano final (o plano mais fálico da história do cinema) em que a fabulosa Patrícia Neal sobe pelo arranha-céus em construção, até chegar a Cooper, de pé no alto dele, em literal ascensão até ao homem. Sem o tal final, nào teríamos tido a plena oposição linha vertical/linha horizontal, entre o homem de coragem mas sem força (o marido de Patrícia, Raymond Massey) e o homem para quem a força é coisa diferente da coragem (Cooper). E não teríamos tido o suicídio de Massey, o business man, com o tiro em off e as folhas sobre a mesa a voar, numa daquelas elipses em que se define o gênio de um cineasta. E sem as maquetas, Vidor nào teria sido obrigado a criar a sensação de espaço, onde ele não existe, com as sombras insolitamente descentradas, através de uma portentosa distribuição de volumes. Males que vêm por bem: nunca um décorteve tanta presença como a que assume em The Fountainhead. Um exemplo entre muitos. Logo no início do filme morre o velho Henry Cameron (Henry Hull), mestre de Roark e que esteve para este como Sullivan esteve para Wright. Antes, é conduzido ao hospital numa ambulância. Colocando a câmara no interior desta e filmando do ponto de vista do 13 2 moribundo (com os arranha-céus no prolongamento da cruz da am- bulância), Vidor impôs uma sensação alucinante da arquitectura de Manhattan, ao mesmo tempo que ligou a sua morte ao que fora razão de ser da sua vida. A partir daí, está dado um tom cujas raízes se encontram no filme de 1928, The Crowd. A cidade como extensão do homem e da natureza, e o espaço urbano como espaço cósmico, ocupando o lugar que noutros filmes de Vidor tiveram os espaços naturais. Ver The Fountainhead a partir do seu jogo de luzes e sombras, da utilização da profundidade de campo e da distorção dos enquadramentos, é um nunca acabar de surpresas formais que tornam este filme, do ponto de vista plástico (e King Vidor foi também um dos grandes «pintores» americanos) numa das mais complexas e elaboradas obras alguma vez saídas dos estúdios de Hollywood. Muito mais se compreenderá da sua complexidade se se considerar que essa graduação de luzes, essa profundidade, essa distorção, sào o exacto equivalente das paixões dos protagonistas, eles também vivendo de tensões luminosas e obscuras, da profundidade do seu combate (do seu amor e do seu ódio), e da distorção dos seus sentimentos. The Fountain- beadèo filme da desmedida e da determinação, uma e outra só em termos físicos podendo cabalmente explodir. Por isso, é também o mais erótico dos filmes de Vidor, com as perfuradoras, as pressões, as infiltrações e Patrícia Neal como corpo cadente, seguindo em queda livre a perseguição do corpo erecto de Gary Cooper, numa busca de absoluto que, quanto mais presa ao corpo dele, mais o faz clamar pela liberdade de nada esperar e nada desejar. A estátua que ela atira do alto do arranha-céus (na proclamação dessa liberdade) regressa no corpo deificado do Homem que sobe esse arranha-céus e, como deus e como homem, dará sentido a esse absoluto físico que coincide com a absoluta libertação e a absoluta entrega. E nessa entrega — aos pés do falus — The Fountainhead, o mais dionisíaco dos filmes, atinge o cerne do próprio mito da apoliniedade. OS FILMES DA MINHA VIDA 134 JOÃO BÉNARD DA COSTA DEUS SABE QUANTO AMEI Dos melodramas de Vincente Minnelli, há dois entre os quais sempre hesito quando me pedem hierarquias de preferência: The Clock, realizado em 1945, e que em Portugal se chamou A Hora da Saudade, e Some Came Running, estreado em 1959, e que em Portugal se chamou Deus Sabe Quanto Amei. The Clock, que já alguém comparou — e não fui eu — à Aurora de Murnau, é talvez o mais belo dos breves encontros do cinema, encontro de 24 horas entre o mais magoado dos actores dos forties— Robert Walker — e a mais magoada das actrizes de sempre — Judy Garland. A mesma velha história do soldado em licença na grande cidade, que encontra uma rapariga, ela apaixona-se por ele, ele por ela, casam à tardinha, têm uma noite e depois ele volta para a guerra. Quem sorri e diz que já viu cem vezes, é porque nunca viu Tbe Clock, onde tudo isso acontece mas acontece como se nunca tivesse acontecido. Mas se Deus sabe quanto amo esse filme, apesar de tudo, escolho hoje Some Came Running, até porque há hipóteses de ser ouvido por mais gente (o filme é mais conhecido e passou há pouco tempo na RTP, embora não em scope, sem o qual só por memória funciona). Os dois filmes — para lá da marca específica de Minnelli, o homem que, como a varinha de condão, transformou em ouro tudo quanto to cou — têm em comum uma aproximável concepção do tempo e uma aproximável variação dos desígnios do destino nos limites daquele. Em The Clock (de que aqui me despeço), Judy e Bob corriam contra o título e a favor do título. A lentidão dosmovimentos do ponteiro só era inevitável porque o ritmo da paixão deles o era também. Em Some Came Running, só se corre aparentemente no final, esse final alucinante, das múltiplas montagens paralelas, com Dean Martin e o assassino (Steven Peck) a tentarem ser mais velozes do que os fados na busca de Shirley MacLaine 135 e Frank Sinatra, recém-casados e engolidos pela multidão que comemora, na feira de todos os carrocéis, o centenário da cidade de província (Parkman, Indiana) onde a acção decorre. Só nessa altura descobrimos que o tempo correu todo o tempo, e que todos o perderam. A sensação que temos, quando relembramos o filme, é que houve tempo para tudo e subitamente não há tempo para nada. Houve tempo para conhecermos a família de Dave (Frank Sinatra), com o irmão pusilânime, a cunhada sinistra e a sobrinha bonita. Houve tempo para conhecermos a professora puritana, essa Miss French(Martha Hyer) que às vezes lembra Eva-Marie Saint e que usava carrapito com medo que lhe soltassem os cabelos, como Sinatra fez naquela única e incrível tarde de amor deles. Houve tempo para muitos batoteiros e muitas pegas, paisagem acidental e essencial para dela emergirem Bama (Dean Martin), o homem que nunca tirava o chapéu, e Ginny (Shirley MacLaine), a mulher que nunca largava a mala de mão em forma de coelhinho de peluche. Houve tempo, até para uma bela e efêmera secretária, Miss Barclay (Nancy Gates), que rima com todo o resto. Só não houve tempo para o tempo do mais belo amor da mais bela mulher, Ginny-Shirley, essa que veio a correr e morreu no fim para salvar Sinatra, que lhe deitou a cabeça em cima da berrante almofada encarnada que a pedido dela lhe dera, e que era a coisa de que ela mais gostava no mundo. «Menina e moça me levaram de casa da minha mãe. Qual fosse a causa daquela minha levada, era pequena não na soube então.» Some Came Running fez-me sempre lembrar o começo da novela de Bernardim. Quando Shirley MacLaine acorda no autocarro onde até aí não a víramos (a câmara só nos mostrara Sinatra a dormir), depois de ler o anúncio da companhia transportadora («and leave the driving to us») ou de ouvir o primeiro diálogo dela com Sinatra («You’re a nice kid. I like you. Take care»), sinto essa sensação de «levada», um dia, menina e moça (Shirley MacLaine que o não era, era-o mais do que outra nenhuma), de «casa da minha mãe» (sempre gostei mais dessa variante do texto do que da usual, que diz «de casa de meus pais») por causas que os pequenos nunca sabem, que faz parte de serem pequenos nunca saberem. Há, no filme de Minnelli, uma mesma dupla acentuação da inocência, a mesma saudade por um136 quente mundo perdido, a mesma viagem, o mesmo lento sublinhar do tempo, do «então». E, mais importante ainda, a mesma equivalência nas cores, no décor e nos olhos de Shirley MacLaine para as labiais de Bernardim, com o corte final (a «dental») do «então», no movimento sublime, duma rapidez feita tanto de reflexo, como da ausência de reflexão, com que a moça menina se atira para cima do corpo de Sinatra, apanhando em cheio nas costas a bala que a ele era destinada. Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez inventou, Ginny é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no sentido em que também se diz «mulher perdida», «mulher da vida», tão belas expressões. E no fim, no enterro dela, percebemos que se Dean Martin nunca tirou o chapéu, foi para o tirar nesse momento, para a única mulher que a esse gesto obrigava. Metera-se, uma noite, num autocarro e atravessara centenas de quilômetros porque Sinatra, sentimental de mais quando bebia de mais, a convidou a segui-lo. Passada a bebedeira, na manhã da chegada a Parkman, ele já nem se lembrava dela. Mas lembrava-se ela e ficava, numa ida sem volta, apesar da nota de 50 dólares que Sinatra lhe metia na mão. E ficava, atrapalhada, atrapalhante, sem perceber de que terra era, sempre com coisas a mais nas mãos (a tal carteira, a tal almofada, as flores artificiais), sempre com os penduricalhos, sempre a pintar os olhos, a pôr rimei nas pestanas, «leaving the drive to others». E há as duas sequências mais inesquecíveis. A primeira é quando decide ir até à escola, conhecer a professora por quem Sinatra se apaixonara, para «tirar a limpo» aquela história. A professora ensina literatura e explica aos alunos que as bebedeiras de Poe, as drogas de Quincey, a «neurótica promiscuidade» de Baudelaire nào os tornavam menores. «Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas.» A campainha toca no fim desse parvo discurso. E enquanto os estudantes saem, aparece na frente daquela mulher que sabe tudo e nào percebe nada, a mulher que nào sabe nada e percebe tudo. Vem nervosíssima, timidíssima, amedrontadíssima. Se a profes sora gostar tanto de Sinatra quanto Sinatra gosta dela, todos os seus sonhos morrerão ali. Como ela própria diz, na profundidade de campo 13 7 cia aula vazia, contra um quadro onde está escrito um texto de Zola: «You don’t know how scared I was.» «I want him to have whatever he wants. Even if it means you instead of me.» Durante toda a sequência, nào disse nem fez uma coisa feia. Só ganhou o campo-contra campo porque a professora era incapaz de olhar para além do campo dela e ver para além das aparências a «rival» que nào tinha nada, «not even a repu- tation». A segunda sequência é pouco depois, quando Sinatra chega a casa, possesso de dor de corno, porque Miss French lhe dera com os pés («I don’t like your life. I don’t like what you think. I don’t like the people you like»)na ressaca desse face a face com a «pega». Sinatra insulta-a a despropósito. Há uma panorâmica sobre ela e ela a dizer «You gotta remember I’m human. Fve feelings». Depois, Sinatra arrepende-se. Mas tudo quanto tem para dar àquela mulher que antes tinha dito que era capaz de fazer tudo, tudo quanto ele lhe pedisse (e veio a fazer mais) é perguntar-lhe: «Do you clean that place for me?» E o que a frase podia ter de horrível ou frustrante é salvo pelo sorriso de Shirley e aquele «Oh! Could I?», como se acabasse de receber o mais belo dos presentes. Corte e Sinatra lê-lhe o romance com que acabara de ganhar um prêmio. Sentada no chào, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz. E, quando ele a acusa de nào ter percebido uma palavra do que ouvira, ela responde com esta tirada prodigiosa: «No, I don't. But that don't means I don’t like the story. I don’t understand you, neither, but that dont means I don’t like you. I love you, but I don’t understand you. What’s the matter?» Vira a cara para o lado, amuada. Há uma «pausa côncava de assombro» preenchida apenas pela espantosa partitura de Elmer Bernstein. A câmara fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumulara nele (tempo, clécor, cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. Segue-se a incredibilidade de Shirley («Nào deves brincar com essas coisas») e depois o abraço, abraço incrível de entrega e doaçào. Há o degrau e a coda volta ao início: «You gotta 13 8 remember, I’m human.» Nestas duas sequências — como na sequência final do crime, como em todo o filme — Minnelli atinge o apogeu da sua arte. Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros. Como diria Shirley MacLaine: «Thanks, awfully, so awfully much.» OS FILMES DA MINHA VIDA 139 OS MEUS FILMES DA VIDA 1-4 2 JOÃO BÉ.XAKD DA COSTA A SEGUNDA VERSÃO Várias vezes me têm proposto um ciclo de remakes, ou seja daqueles filmes de que, na história do cinema, foram feitas várias versões. A Cinemateca Portuguesa até já fez um, emJulho de 1983. Passaram, entre muitos outros, o Nosferatu de Murnau (1922) e o Nosferatu de Herzog (1978), La BêteHumaine de Renoir (1935) e a adaptação do mesmo livro de Zola chamada Human Desire(Fritz Lang, 1954), AnAmerican Tragedy, de Sternberg (193 D e outra versão do mesmo livro de Theodore Dreiser, intitulada A Place in the Sun (George Stevens, 1951). Foram 22 filmes, podiam ter sido 220, já que desde que o cinema é cinema inúmeras vezes se repegou numa antiga história para lhe dar outra volta. Mas se há remakes explícitos, às vezes com o mesmo título e basea dos na mesma obra, muitos mais são os remakes implícitos. Histórias muito diversas mas que, no fundo, vão dar ao mesmo. Para falar apenas de cinema — que isto é crônica de filmes — François Truffaut notou, um dia, que obras tão diferentes como A Fonte da Virgem (Jungfrükallen) de Bergman e Psycho de Hitchcock eram, ambas, transposições, mais ou menos conscientes, do Capuchinho Vermelho. Efectivamente, em cada um desses filmes há uma menina que saiu da estrada e encontrou um lobo mau... No fundo, em qualquer arte narrativa há muito poucas histórias novas. Bem se pode dizer que ainda ninguém inventou coisas diferentes de A Ilíada ou de A Odisséia. Questões de eternos retornos. Na literatura contemporânea, Jorge Luis Borges foi dos mais atentos a esse fenômeno de repetição e usou, de todas as formas e feitios, histórias escritas por outros. El Otroé exactamente o título de um conto que publicou em 1972 e em que lhe apareceu, ao norte de Boston, em Cambridge, um “duplo» (ou um 143 «replicante») que, como ele, se chamava Jorge Luis Borges e tinha vivido a mesma vida do que ele. Borges acaba o conto sem saber se o outro o sonhou a ele ou se ele sonhou o outro. E como o sobrenatural deixa de ser aterrador quando acontece duas vezes (palavras de Borges), marcou ao outro, outro encontro para o dia seguinte. «No dia seguinte nào fui. O outro também nào.» Ora, há um meu filme da vida em que a mesma história sucedeu, com algumas variantes. Contou-mo Duarte de Almeida que o nào chegou a realizar. Quem conhece Duarte de Almeida sabe que ele é tudo menos bonito. Mas foi-o, em criança e, narcisista como é, tem em casa, em evidência, um retrato desse tempo, muito louro, de bibe, tirado no Amer da Rua do Ouro, fotógrafo que, na verdade, existiu nos anos 30 e 40. Uma noite estava a dormir e apareceu-lhe esse miúdo. Tinha 4 ou 5 anos, estava vestido e penteado como no retrato, só que perdera o ar sorridente dele e vinha bem triste. Sentou-se aos pés da cama e, em tom surpreendemente adulto, acusou o outro de o ter morto. Perante o espanto do acusado perguntou-lhe apenas isto: -Se não me mataste, onde é que eu estou? Que é feito de mim? Nunca mais ninguém me viu. E tão bem tomaste o meu lugar que ninguém deu pelo meu desapareci mento. A minha própria màe — ou devo dizer a nossa própria mãe? — nào chorou uma lágrima por mim. Habituou-se, com o tempo, ao meu desaparecimento e nem sequer pergunta hoje pelo que foi feito de mim. Convenceste-a — como convenceste toda a gente — que tu és eu. Mas olha para nós: há alguma semelhança? Que é feito destes meus cabelos louros, deste bibe, destes dentes de leite? Que é feito de mim? Que é feito de mim?» E desatou a chorar, choro de criança. Muito assus tado, muito inquieto, Duarte de Almeida respondeu-lhe que ele era o que era feito dele e que assim mudara, sendo o mesmo. «O mesmo?», perguntou com enorme e terrível amargura a criança. «Olha para o espe lho, olha para ti e vê se tens coragem de repetir o que acabaste de dizer.» Duarte de Almeida nào tinha espelho. Mas nào precisou dele, bastou- -Ihe o olhar do outro, lembrar-se do retrato, para perceber que o miúdo144 tinha uma terrível e horrível razão. Contou-me que acordou como se acorda de um pesadelo e se levantou. Quando chegou à sala, olhou para o retrato. Viu-o em grande plano, apagou as luzes e fugiu para a cama, aterrado. Nunca mais viu o retrato como até aí o vira. E nunca mais se esqueceu da outra expressão do outro (que não era a outra expressão dele) a dizer- -Ihe: «tu mataste-me.» Policialmente pode estar descansado. Ninguém condena ninguém, por crime de morte, na ausência de cadáver. E não há cadáver dessa criança. E o que é mais horrível — ele mo disse — é que sabe perfeitamente que não pode haver esse cadáver. Quando o houver será ainda outro. Quem? Qual? OS MEUS FILMES DA VIDA 145 0 FIM DA GUERRA QUE ACABOU O filme que vou contar tem vinte anos. É de 1968, o tal ano com que toda a gente tem que ver, embora metade dela passe hoje na rua de cabeça virada para o outro lado a fingir que o nào conhece. Feia coisa, essa de não cumprimentar amigos em desgraça. Feia coisa, essa de nos arrependermos do que fomos, até porque ainda o somos. Em 1968 — que culpa tenho eu? — aconteceram-me várias coisas pela primeira vez na vida. Uma delas passou-se n’ O Tempo e o Modo, onde naquela data eu era chefe de redacção. Entrou-me pelo gabinete um antigo conhecido que, depois de ter tomado todas as precauções da praxe e da época para comunicações clandestinas (pediu-me 14 6 que desligasse o telefone, tapasse o bocal do mesmo, etc.) me informou em voz ainda mais baixa da que normalmente lhe é habitual: «Eu sou militante do Partido Comunista Português.» Nunca ninguém mo tinha dito, e não se devia dizer. Se ele mo dizia, obviamente tinha ordens expressas para o fazer e havia razões poderosas para tais ordens. Vieram a seguir. O Partido desejava organizar brevemente uma reunião no «exterior» (leia-se, fora de Portugal) com «democratas de todas as tendências» e, nomeadamente, representantes dos chamados «católicos progressistas». Era nessa última qualidade que eu estava a ser formalmente convidado. Preveni-o que, antes de decisões, tinha que falar com os tais «católicos progressistas» (designação pomposa para as cinco ou seis pessoas que sobravam de uns restos de movimento pseudoclandestino que se chegara a chamar «Resistência Cristã») e com outro grupo político — não mais numeroso — a que me achava vinculado. Nenhuma objecção, já que todos esses nomes mereciam ao Partido a necessária confiança. Houve longas e nocturnas reuniões para se saber — nas duas «sedes» — se se devia aceitar o convite. Bastante tentado por ele (mais coisa do meu lado curioso e vaidoso do que do meu lado militante e resistente) insisti quanto pude em resposta afirmativa. Foi essa a conclusão final, ficando assente que eu representasse os ditos «católicos progressistas» e um outro os «progressistas» que não eram católicos. Um «terceiro homem» (igualmente ligado aos dois grupos) nos aconselharia e guiaria, sem estar presente. Só nós três saberiamos. Foi-nos dito que o local da reunião era França e o mês Setembro. Em Paris meteram-me num autocarro onde encontrei os meus companheiros de viagem, representantes de outras «tendências». Há segredos que tanto se querem calar que para sempre ficam. Nunca mais fui capaz de me lembrar do nome da aldeia ou vila, algures na Borgonha, onde fomos levados para uma estada de cinco dias e cinco noites, numa velha casa isolada, onde nos esperava a representação «exterior» do PCP ao mais alto nível. Logo na primeira noite nos demos conta — eu e o «progressista» não católico — que, do «interior», éramos os únicos que nào pertencíamos ao PC. Todos os outros estavam a representar inexistentes independências. Mas do «exterior» havia vários convidados que o não eram e há muito 147 haviam perdido a radiosa virgindade com que, ali, apenas nós dois nos apresentámos. O ambiente toldou-se logo no segundo dia. Um desses não PC do ■■exterior» quis saber se o Partido já tomara posição quanto à intervenção soviética em Praga, que ocorrera dias antes. Soubemos então que, ao contrário de quase todos os partidos comunistas de paises ocidentais, o português abençoara a invasão e colocara-se, sem reservas, ao lado do Grande Partido Irmão. Enorme gelo, ácidasdiscussões cortadas cerce com o argumento — que também ouvi pela primeira vez — que estávamos ali para falar de Portugal e não da Checoslováquia. O resto foi-me singularmente penoso. Tudo aquilo me lembrava experiências passadas de «retiros» católicos (nem faltava o tempo de meditação ou de direcção espiritual) e de hora a hora me dava conta que aquela inflexível e dogmática fé me era tão estranha como a da outra Igreja que, por essa altura abandonara. Acabei a vilegiatura com um princípio de depressão, coisa a que até não sou muito dado. E com medo que julgassem que o meu crescente mal-estar vinha do medo das consequências dessa reunião, se um dia ecos dela chegassem à Polícia portuguesa. Mas é verdade que seriamente me perguntava se aquela semana valia — hipótese sempre possível — os aninhos de cadeia a que, conhecida, no mínimo daria direito. : Com estes lúgubres sentimentos voltei a Paris onde devia esperar a chegada do «terceiro homem», das raras pessoas que me apetecia abraçar e com quem me apetecia desabafar. E, no dia dessa chegada, para fazer horas, entrei num cinema da Rue Saint-Séverin, onde passava La GuerreEst Finie de Alain Resnais, que a censura tinha proibido em Portugal. Era com Yves Montand, que fazia o papel de um comunista espanhol com muitos problemas de consciência e farto de acreditar nos «amanhãs que cantam». Apaixonava-se pela Ingrid Thulin, tinha uma história com a Geneviève Bujold (nessa altura novíssima) e era preso no fim, numa cilada, quando estava bem perto de se convencer que a Guerra de Espanha estava morta e enterrada. O filme veio a Portugal depois do 25 de Abril, ainda recentemente passou na Cinemateca, e hoje nào o julgo uma obra-prima. Mas nessa tarde de Setembro, em Paris, entre o retiro na Borgonha e o regresso a Lisboa,148 acertou-me nas partes mais íntimas. Embora seja bom para isso, julgo que em toda a minha vida de adulto nunca foi tão abundante a saraivada de lágrimas e soluços. Depois da sessão, andei um bocado pelas ruas para me recompor (até chuviscava, em ajuda ao décor) e fui sentar-me no Café de Cluny. Comprei o Le Monde que passei pelos olhos ainda encarnadíssimos e ainda cheios da cara grave de Montand e das costas nuas de Ingrid Thulin. Fui fazer um telefonema. Quando voltei, o Le Monde estava de barriga para baixo, ou seja com a última página para cima. A meio dela nas «últimas», em letras não muito grandes, li: «Salazar opéré d’urgence à un hemathome cérèbral». Sob tal título, a notícia limitava-se a transcrever o comunicado oficial que saíra em Lisboa nessa mesma manhã. Fiz então duas das coisas mais irracionais da minha vida. Comprei um segundo exemplar do Le Monde a ver se era igual ao que tinha e voei para a casa em que estava, a tentar ouvir em ondas curtas a Emissora Nacional, a voz de Lisboa em Paris. Queria mais notícias e parecia-me impossível nào as ter. Depois, fui ao hotel do amigo que esperava e deixei-lhe um recado: «Compra o LeMonde e vê a última página.» Umas horas depois ele chegou. Fomos jantar e festejámos. Quase me esquecí do passado (reunião, filme) para só falarmos do futuro. A certa altura, ele disse-me: «Mesmo que o gajo se safe, isto é o princípio do fim.» Lembrei-me então do enjoo enfartado com que na Borgonha ouvira quantos falavam da hipótese da morte de Salazar para breve (essa conversa, para mim, tinha barbas de dez anos e o homem já era imortal). E lembrei-me de um diálogo do filme de Resnais. Um polícia francês a dizer: «avec ces clandestins, on ne sait jamais. On nous dit qu’ils sont indésirables, puis ils reviennent ministres.» No dia seguinte, voltei para Lisboa. Não me aconteceu nada depois, nos seis anos em que essa história ainda durou. Mas, para mim, foi mesmo o princípio do fim. Uma guerra que começou a acabar. Daí para diante só me esperavam estilhaços. Ou, como disse o outro, «foi só fumaça». Mas muita gente se aleijou. OS MEUS FILMES DA VIDA 149 CENAS DE LUTAS DE CLASSESNOS CINEMAS DE LISBOA Nem sempre as coisas se passaram como nestes cinzentos anos 80. Nem sempre qualquer pessoa por quaisquer 325 mil réis (ou mélréis, expressão que prefiro, porque associa melhor a doçura à monarquia) passou sem distinção de um supermercado a um cinema, com fortes probabilidades de não encontrar lá ninguém. Antigamente, antigamente sim. Por exemplo, chegava-se a casa a contar que se tinha ido ao São Luiz. E começava-se a história com a referência ao facto de, mesmo ao lado da porta de sahida (ainda se escrevia em português nesses tempos), haver um letreiro que dizia: 15 0 Lotação Esgotada. Normalmente tal aviso não era obstáculo de maior. Ou a menina da bilheteira nos conhecia e os Primeiros Balcões lá se arranjavam; ou não conhecia mas não resistia ao charme do nosso apeli do, pronunciado com tom firme e evidente; ou dali mesmo se telefonava ao João (ou a alguém de família) e os bilhetes lá vinham, até com pe didos de desculpa para a rapariga que era nova e da rapariga por ser nova. Só que nesse dia — continuo a referir-me ao narrador da peripé cia — tinha sido mesmo difícil, porque a sala estava mesmo a abarrotar. Era então que uma tia velha interrompia, perante tão apocalíptica descrição: «Ah sim? E estava lá alguém?» Estava sempre alguém no São Luiz, como estava sempre alguém no Tivoli, que também se podia pronunciar Tívoli. Noutros cinemas — Éden, Polytheama, Gymnasio ou Condes, cui dadosamente hierarquizados por esta ordem — as possibilidades de haver lá alguém eram menores, mas ainda decrescentemente consideráveis (no Condes, era praticamente impossível, embora ainda teoricamente imagi nável). A partir daí era o Sahará, fora da rota das caravanas: casos do Odéon, do Palácio (costumava-se dizer Odéon-Palácio, por a programação ser a mesma), do Capitólio e sobretudo — horror dos horrores e abjecção suprema — do Olympia. Esse ao menos — honra lhe seja — conservou as tradições. Hoje como como ontem infama quem lá entra e deve ser — ex- -aequo com os urinóis do Rossio — o local de Lisboa que nos últimos 50 anos recebeu menos visitantes do sexo feminino. Nesses anos, mesmo, nenhuma senhora lhe passava à porta, preferindo — mal por mal — o passeio do Odéon. Mas como «il faut que jeunesse se passe» e «os rapazes não têm nada a perder» (pelo menos, nessa altura não tinham) abria-se uma excepçào para a mocidade masculina. Essa, iniciava-se lá, quase tanto como no 100 da rua do Mundo. Uma semelhante hierarquia — em escala miniatural, como a que separa a das Potestades da dos Arcanjos — existia para os cinemas da «reprise», com o Chiado-Terrasse no topo e «coisas» como o Promotora, o Animato- grapho do Rossio ou o Palatino, no fundo do buraco. E havia mesmo (mas esse nem vinha nos jornais) o Salão Ideal, no Loreto, onde, em vez de bilhetes, se carimbavam as palmas das mãos dos espectadores com o 151 1 52 número do lugar e se subia para o balcào por uma escada de corda, oferta de um velho marujo. Mas engana-se quem pensar que um ninguém qualquer estava impedido de entrar no São Luiz ou no Tivoli. Para eles havia, no antigo Theatro D. Amélia, o segundo balcão e a geral e na Sala da Avenida o segundo balcào. Os frequentadores de tais alturas entravam por uma porta diferente (porta de serviço), tinham um bar boçal à disposição e eram impedidos por severos guardas de descer, nos intervalos, as escadas nobres para se misturar com os alguénscâ de baixo. Às vezes dava direito a furiosas perseguições. Mesmo assim, com a evolução dos costumes e o aparecimento, devido à guerra e às Avenidas Novas, de volframistas e patos-bravos, ninguém de alguém podia estar inteiramente tranquilo num Primeiro Balcào ou numa Platéia até no Sào Luiz ou no Tivoli. Por isso, conheci alguns mais alguém que quando iam sozinhos com a Mulher ao cinema, compravam invaria velmente uma Frisa ou um Camarote onde cabiam cinco pessoas. Ao menos aí, podiam estar inteiramente seguros que nenhuma alheia perna procuraria aflorar noescuro a carne da sua carne. Idênticos cuidados havia com as filhas, já que se murmuravam histórias terríficas de virgindades destroçadas, entre o 12 e o 14 da fila H da Platéia do Tivoli, lugar para sempre olhado com néscia mescla de horror e atracçào. Nos anos 50, esta paz começou a ser perturbada. Construíram-se em Lisboa três novos cinemas: O S. Jorge primeiro (assim mesmo, já com o Sào reduzido a S.), o Monumental e o Império. Demoraram algum tempo a restabelecer-se hierarquias. Após violentas polêmicas, em década propícia a mésalliances, o S. Jorge subiu ao topo da escala, sobretudo entre os alguém teenagers. Aos sábados, a «segunda matinée» — assinalável ino vação com que o S. Jorge perturbou os fins de tarde lisboetas e, até mesmo, a hora de jantar — passou a ser o único ponto de encontro de jupeslongues e fatos Príncipe de Gales capaz de fazer concorrência à Missa da uma, nos Mártires ou na Estrela. Mas, apesar de tudo, já nào era a mesma coisa. Nenhum destes cinemas tinha camarotes ou frisas e inventavam-se uns novos nomes, assim a modos de quem muda a PIDE para DGS: o Balcão de Primeira, passava-se a chamar «Balcão de Luxo» (muito mau gosto), o balcão de 2a. balcão superior (mesmo com letra pequena, a palavra era mal escolhida). E havia no S. Jorge um homenzinho a tocar órgão eléctrico, roubando a possibilidade de ver aquele fabuloso anúncio em que o Zézinho, de dedo na cabeça, «pensava e voltava a pensar / por que é que não casava com a Maria Guiomar». Os perigos da situação só talvez tenham sido percebidos por alguns quando o São Luiz se casou com um caixote chamado Alvalade, em tributo a sítio que a decência me impede aqui de nomear. Já tinha sido visto muito, até a filha de um ministro a clamar por um castelo melhor. Mas tanto ainda nào se usara. O fim veio nos anos 60: cinemas só com uma espécie de lugares («todos platéia») e preço único. Não tinham saídas, quanto mais sahidas. E, em vez de nomes santificados, greco-romanos, ou — vá lá — românticos, salas com nome de número (444, 222, ou coisas quejandas) ou com nome de capitais europeias (Roma, Londres, etc.). Nào faltou muito para se chegar onde se chegou hoje e os cinemas serem como os andares, ou se pára no 1, ou no 4, com os lugares onde os há e não onde os escolhemos. O São Luiz (transformou-se em S. Luís) desapareceu: o Tivoli é uma montra de néons; o Éden e o Politeama tornaram-se infrequentáveis. E marcam-se encontros para Las Vegas, Hollywood ou coisas assim. O próprio jornal onde escrevo assenta sobre um wagon que dá pelo nome de Cinebolso. Calculo que nem o director se atreve a passar por lá antes de chegar à redacção. Já não há ninguém que seja capaz de distinguir a Ingrid Bergman do São Luiz da Ingrid Bergman do Polytheama, a Jennifer Jones do Tivoli da do Éden, a Rita Hayworth do Condes da do Império. Quem sabe hoje — desaparecida a última fila do balcão do Tivoli — o que é um plongéé! Ou, desaparecido o camarote 37 da terceira ordem do Gymnasio, o que é um enquadramento em oblíqua? Mesmo os espectadores da Ia. fila (agora, a quilométricas distâncias de minúsculos écrans) ignoram em absoluto o que seja um autêntico contre-plongée. Orson Welles e William Wyler, para que é que serviram? Quem diga que isto não tem importância alguma é porque de luta de classes e de cinema não percebe mesmo nada de nada de nada. 1 154 JOÃO BÉNARD DA COSTA AS ÁRIAS DO CATÁLOGO Hoje, dia 31 de Julho de 1988, dia dos anos da Madalena, acabei de rever as terceiras e últimas provas de um dicionário sobre gente que entrou nos 180 filmes de um Ciclo de Cinema designado O Musical. Que começou no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian a 20 de Dezembro de 1985 e acabou na Cinemateca Portuguesa a 27 de Março de 1986. Nessa tal noite de 20 de Dezembro de 1985, noite do Singin ’in theRain (evidentemente) devia ter começado a vender-se o catálogo referente ao Ciclo, obra colectiva de João Paes, Luís de Pina, M. S. Fonseca, Miguel Esteves Cardoso e de quem está a poer esta crônica. Estava ainda previsto José Ribeiro da Fonte, mas esse, pelo meio, despediu-se à francesa. Dois anos, sete meses e onze dias depois, já saíram dois volumes (796 pp. de grande formato, vindas à estampa há coisa de um ano), e faltam outros dois (996 pp. para mais e não para menos) que nào juro vos ponha no sapatinho no vosso próximo Natal. Até porque o volume IV é com o director deste jornal, que ainda só cumpriu 75 por cento do que prometeu. E aqui, publicamente, o comprometo. Se há um ano, quando saíram os primeiros volumes, me chamaram (ou me mandaram chamar) indesculpável diletante, que irei ouvir em 1989? Ora o que aconteceu — e sou só eu o culpado de tamanho e estarrece dor atraso — é que me perdi a dicionarizar. Do Verão de 1985 ao Verão de 1988 (quando tudo começou e tudo acabou) tenho feito muitas coisas, como alguns saberão. Mas 75 por cento do meu tempo útil e das minhas noites brancas têm sido passados a dicionarizar 849 criaturas musicais (ou que cruzaram «o musical») a começar em Abbot, George e a acabar em Zwerin, Charlotte. Não cheguei às «mille e tre» que, a acre ditar em Leoporello, D. Giovanni «comeu» em Espanha, mas ultrapassei as «seicento e quaranta» que, segundo a mesma fonte, lhe couberam em 1 Itália. E, no meu catálogo, como no dele, há de tudo: brunas e brunos, biancas e biancos, grassottas e grassottos, magrottas e magrottos, «grandi maestose» e «piccine ognor vezzosi». De diferente — para além de uma omnissexualidade a que a etérea matéria me obrigava — apenas a preferência etária nas paixões. Dicionarizei muito poucos ou muito poucas «giovine principianti». No gênero, não foram, nem são, -ma passion predominante». Mas «giovin principiante», começou esta minha paixão pelos di cionários. Muito antes de os começar a fazer, desfiz variadíssimos (sempre fui um incorrigível destruidor de livros) nessa paixão prematura de os desflorar. O primeiro era uma versão da Lello do Petit Larrousse que dava bom dinheiro para reaver (destruí quantos exemplares conhecidos havia em minha casa e nas casas da família). Se a primeira parte era dedicada a «nomes comuns» (e não me atraía muito), a segunda parte, dedicada a gente com nome próprio, foi, ainda antes da Condessa de Ségur, a mais obsessiva das minhas leituras. Livro no chão, deitado no chão, de barriga para baixo, descobri toda a gente que por lá havia a descobrir, desde Abd Al Mumin, primeiro califa almôada, a Ulrich Zwingli que liturgizou a língua alemã e foi morto na batalha de Kappel, em 1531. Lia em voz alta e aprendi muito. Por exemplo: chegado a Cherubini — dez anos antes da Callas —, eu lia Xerubini. Os adultos ouviam-se, riam-se e corrigiam-me a pronúncia. Duas páginas adiante (o dicionário era bem mais sucinto do que os meus) vinha Chopin. Obediente aos mestres, eu lia Kópin. Mais risos e mais recta-pronúncia. Assim descobri que nestas coisas de kultura não há regras. Antes de abrir a boca, é melhor perguntar. Tudo são excepções. Mas o que era esse livrito comparado com os seis enormes volumes do Larrousse du XXême Siècle que lá em casa também havia e só podia esprei- tar em alheias mãos, já que as minhas toda a minha vida me foram nefastas? Mais do que as calças compridas, a minha passagem ao estado adulto foi marcada pelo dia em que me deixaram pegar neles. Felizmente — nesses tempos — ainda a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira ia nos 15 6 princípios. Estão a ver o que me tinha acontecido se tivesse dedicado tanta atenção ao terceiro subsecretário das Obras Públicas e Comunicações do Estado Novo, como a que então dedicava a Fra Bartolomeo ou a Anatole France? A pouco e pouco especializei-me. Ah, aquele Dictionnaire universelde la peinture, com um volume só para A-CARL! E os escritores, músicos, futebolistas, por aí fora. Até que chegou o cinema e, um dia, o ns. 54 dos Cabiersdu Cinéma, publicado no Natal de 1955. Aos 20 anos, copiei-o todo à mão, para,depois, poder completar e acrescentar. Depois da tal enciclopédia Lello da minha infância e dos Números e Nomes do Futebol Português de Ricardo Ornelas, foi o livro que maior prazer me deu, mais horas me acendeu. Estava então bem longe de sonhar que havia de vir o dia em que ia passar de passivo a activo. Mas veio. Foi em 1977, num catálogo sobre Cinema Americano dos Anos 30, organizado pela Gulbenkian. Como qualquer masoquista perante um par de atacadores, fui convenientemente tímido e prudente. Hoje, quando olho para esse dicionário (apenas 38 páginas, para dezenas de celebridades), córo de vergonha. Mas no comer e no dicionarizar tudo está em começar. Fui sendo (e deixaram-me sê-lo) cada vez mais afoito e cada vez mais prolixo. Cada vez mais subjectivo, também. Entenderam-me alguns (raríssimos) provavelmente com a mesma tara. Daqui, um abraço muito especial para João Miguel Fernandes Jorge que, na CapitaKem tempos) e no primeiro número de O Independente (há pouco) escreveu as coisas mais bonitas e que mais gostei de ouvir. Muitos outros, pelo contrário, irritaram-se progressivamente. Estava a informar ou a confessar-me? Só não tinham toda a razão, porque qualquer confissão (mesmo as mais anônimas, às 6 da tarde, no vazio da igreja do Loreto a um padre italiano) começa — quando não acaba — por uma série de informações: o quê, quem, como, quando, quantas vezes. No fundo, a perplexidade é semelhante à daquela história — que se conta em francês — quando, à tal pergunta sobre o número de vezes, o confessado respondeu sobriamente: «Mon Père, je suis ici pour m’humillier et pas pour me vanter.» Esta crônica também é de humilhação e de vaidade. Humilhação, porque — retomando o fio à meada — de delírio em delírio acabei nisto: 157 três anos de vida em actos solitários com Alice Faye e Judy Garland, Esther Williams e Cyd Charisse, Betty Grable e Vera-Ellen, Don Ameche e Mickey Rooney, Van Johnson e Gene Kelly, Cesar Romero e Donald O’Connor, e um etcetera maior do que oito centos, ocupando cerca de oitocentas páginas de um calhamaço enorme, a sair quando já ninguém se lembrar do pretexto dele. Vaidade, porque nessas oitocentas páginas ficará — julgo — muito do melhor do que foi o tal meu filme da vida. Um filme «ali technicolor», com muita música de fundo e muitos «production number». Agora que chegou a girândola final, olho para todos esses — vivos ou mortos do cinema, vivos ou mortos da vida, mas todos vivos na minha vida de filmes —■ e sinto-me bem, sinto-me contente. Contente comigo? Não só. Contente de mim. 158 JOÀO BÉNARD DA COSTA HISTÓRIAS DA CLANDESTINIDADE Nos últimos dias, os jornais têm noticiado a polêmica que já para aí vai acerca de TheLast Temptation ofChrist, o último filme de Martin Scorsese. Um tal Bill Bright, milionário puritano da Califórnia, já ofereceu 10 milhões de dólares para comprar todo o material do filme (negativo e cópias) e fazer com ele «uma fogueira purificadora». Franco Zeffirelli (olha quem!) ameaça retirar o seu The Young Toscanini do próximo Festival de Veneza se esse produto da escória cultural judia de Los Angeles se mantiver no certame. Ou muito me engano, ou a procissão vai no adro. E todos sabemos, de cor e salteado, os argumentos que humilhados e ofendidos dos dois campos vão esgrimir entre si. Só espero — Je Vous Salue, Marie— que desta vez me poupem. Para essas santas guerras, não tenho mesmo mais paciência nenhuma. De resto, vão-se extinguindo e parece que, hoje, só o cinema e a televisão as deflagram. Depois da Lolita de Nabokov (e já lá vão 30 anos) nào me lembro, no chamado mundo livre, de mais nenhum romance para que se pedissem labaredas bentas. Depois do retrato de Estaline por Picasso (e já lào vão 35 anos) não me recordo de uivos e fúrias a reclamar incinerações de quadros. O Indexda Santa Madre Igreja julgo que acabou com o Vaticano II. As obras completas de Sade andam em livro de bolso. As de Henry Miller também. Só o cinema nos continua a dar destas festas, normalmente abrilhantadas pela Igreja de Roma ou pelas Igrejas Evange listas. Talvez o «papa» doutra «igreja» (a surrealista), se fosse vivo, gostasse. Pelo menos Bunuel contava que, nos anos 60, Breton se lhe queixava amargamente que «hoje em dia já ninguém se escandaliza com nada.» Gostar, gostam certamente os sacerdotes de todos os marxismos-leninis- mos que, nestas alturas, se sentem menos sós no zelo de que não abrandaram nem abrandam. Os profetas foram sempre gente com razoável 159 propensão para a ira. Há muito que estabeleceram que Deus e deuses podiam e deviam cultivar esse pecado, incluído noutro rol entre o dos mortais. Mas é impossível que uns e outros não saibam que a História nào conserva memória de uma só cruzada destas que não tenha acabado como as outras acabaram: em desastre ou em ridículo. Por outro lado, é impossível também que não saibam que nenhum filme, nenhum livro, nenhuma peça conseguiu jamais mudar definitivamente coisa nenhuma. Walter Jens, em artigo publicado há anos (Setembro de 1976), na revista Colóquio-Letras, tinha toda a razão quando escrevia, a propósito da poesia, estas linhas que a qualquer arte se aplicam: "Pobre poesia! É capaz de incentivar modas e de ter um efeito semelhante à droga; é capaz de obrigar jovens a envergar um fraque azul e a suicidar-se; é capaz de levar povos inteiros a entusiasmarem-se, ou pela Polônia, com os jovens alemães, ou pela Grécia, com Byron: mas fazer com que evite uma guerra ou que uma lei seja decretada — disso não é capaz. Diga-se o que se disser, o que parece certo é que ela nào é uma força política.» Mas persiste — irracional — o medo que o seja. Os bispos que já brandem o báculo contra o filme de Scorsese (que, evidentemente, não viram, o que também faz parte destas histórias) não acreditam, não podem acreditar, que por mais blasfemo que o filme seja, ponha ou possa pôr em causa os fundamentos ou mesmo a prática do cristianismo. Mas defendem- -se, irracionalmente, como se acreditassem que pode pôr. Esse é um dos paradoxos das atitudes censórias, que nào começaram ontem e não vão acabar amanhã. Walter Jens, que citei, ocupa-se com particular lucidez desta questão. E começa por contar um caso, por cuja veracidade jura, ocorrido, precisamente a propósito de um filme, em 1926, na América. O filme era o celebérrimo Bronenósets Potiomkine, vulgo Couraçado Potemkine de S.M. Eisenstein (1925). Um antigo cossaco, emigrado na América, viu o filme e, após a projecçào, foi entregar-se às autoridades, exigindo a própria condenação. Descobrira, durante a visão, que «era um criminoso», pois o seu regimento participara no massacre de Odessa, que inspirou uma das mais famosas sequências da obra. E escreve Jens: «A alternância entre os160 soldados que avançavam e abriam fogo e a multidão indefesa, a dramática confrontação da razão e injustiça, aqui as botas da soldadesca, ali a velha professora com as suas lunetas, a mãe agonizante, o carro de bebé a rolar e o terror nos olhos da criança: esta sequência a preto-e-branco abrira os olhos àquele homem. Agora, de repente, ele sabia o que, na realidade, se tinha passado em Odessa: nesse momento em que — esclarecido por uma obra de arte em cuja montagem a realidade era retrata-da — subitamente começara a compreender a dupla perspectiva de um acontecimento que há muito caíra no olvido.» (Os sucessos narrados no filme, reportavam-se a 1905.) É possível que a história seja verídica e é plausível (todos nós o sabemos em maior ou menor grau) que uma obra de arte possa contribuir para um semelhante despertar. Mas não foi com receio que agentes da Polícia se fossem entregar em tribunais ou mudassem de campo que, em Portugal por 161 exemplo, O Couraçado Potemkine esteve proibido 48 anos. O medo era que esse, ou outros filmes, subvertessem a ordem estabelecida. Ora isso, como também nota Jens, jamais aconteceu. «Por mais explosiva que possa ser [...] a força despoletadoradesse manifesto proletário que é o Potemkine [...] aqui e agora, o filme não mudou coisa nenhuma.» Nem sequer para os que o encomendaram e aplaudiram mudou: comandaram eles massacres bem piores do que o das escadarias de Odessa. Quatro anos antes da estreia do filme, Trotsky ordenara mais sangrenta chacina em Kronstadt. Mesmo para nós — falo de quantos viveram o Potemkine como fantasma e paradigma de uma revolução sonhada e adiada anos a fio —, o filme foi sempre mais acto de clandestinidade do que acto de subversão. E, hoje, é muito mais memória da primeira do que da segunda. Quem não recorda essas sessões (anos 60, 70) em casa de amigos que tinham trazido uma cópia do filme de Paris ou de Londres, em que um projector alugado de 16 ou Super 8 mm acendia num lençol a fingir de écran as imagens proibidas? Saíamos dessas noites sentindo-nos mais transgressores, nào mais resistentes. Simbolicamente, um dos dois grandes anacronismos que presidiu à tarde de 1 de Maio de 1974 foi o cartaz anunciando o filme, no Império, ao cimo da Alameda. O Couraçado ancorava em Lisboa. O outro (anacronismo) era essa multidão imensa trauteando A Internacional, cuja versão portuguesa por completo des conhecia. Mas há nesse filme uma sequência — igualmente celebérrima — que pode esclarecer muitos destes efeitos de ampliação proibidora. É a do início da revolta dos marinheiros, quando se recusam a comer a carne podre que os oficiais lhes destinavam. Manoel de Oliveira explicou-ma um dia e fiquei sempre a pensar nisso. O plano mais impressionante (mais forte) da citada sequência, mostra a panela da carne, coberta de vermes. É um plano «irrealista», pois que, por piores que fossem os oficiais, não quereríam certamente (até para ter quem continuasse a conduzir o Couraçado) envenenar a tripulação toda. Esse «irrealismo» é sublinhado por Eisenstein em dois planos subjectivos. Um é o do marinheiro, que vê os vermes, outro o do oficial que os não vê. De facto, não estão lá bichos162 nenhuns e a carne não estava podre. Mas, defacto, a comida dos oficias era diferente da dos marujos. E contra essa diferença que eles se revoltam. Foi sempre contra diferenças que nos revoltámos. Por exemplo, contra a de não poder ver o que outros viam. Ao fim e ao cabo, parece que todo o barulho à roda do filme de Scorsese vem de uma sequência sobre uma visão. O que é emblematicamente sintomático do cerne desta questão. Quem se recusa a vê-la é porque prefere imaginá-la. Na clandestinidade e na memória dela. Vivi o suficiente de uma e noutra, para que fale em conhecimento de causa. Tenho outras histórias para contar. Ficarão para a próxima. OS MEUS FILMES DA VIDA 163 NOVAS HISTÓRIAS DA CLANDESTINIDADE Há quinze dias saiu neste cartaz «Histórias da Clandestinidade». Acabei a prometer que continuavam brevemente nesta sala. Estreiam-se hoje. E tào cedo nào terão continuação. Venham elas. Como alguns se recordarão, estava-se no Potemkine. Quando eu comecei a ver cinema com a ajuda dos críticos (um dia destes também falarei disso) descobri simultaneamente os nomes de Eisenstein e Po temkine. Ao princípio, ainda confundi Eisenstein com Einstein e, tais não eram os elogios, cheguei a convencer-me de que o autor da teoria da re latividade entretinha os ócios em filmes tão geniais quanto ela. Depois (os meus mestres eram gente de esquerda e a censura complicava-lhes a peda gogia) lá descobri que o homem era russo e, por isso, lhe não podia ver 164 os filmes. Nesse tempo, todos eram felizes e ninguém estava morto (nem sequer Estaline). Por isso, Eisenstein era proclamado «une voce» o maior e O Cou raçados. obra-prima das obras-primas. Se sabiam (duvido que soubessem) nào me diziam que a segunda parte do Ivan já tinha ido parar às urtigas e que a terceira ficara no tinteiro. Para eles — e para mim, caloiro em todas essas andanças — tudo estava como em 1925. Fiquei a sonhar com o dia do meu encontro com o Potemkine. Anos depois, já na «católica», o Nuno Portas foi o primeiro ser de carne e osso conhecido que já tinha visto o Potemkine, numa ida a Paris. Fiz-lhe mil perguntas e quis ouvir mil vezes as impressões dele. Era mesmo? Era, era. Quando chegou a minha altura de chegar à cidade que, neste particular caso, era mesmo luz, corri para a Cinemateca de Langlois para matar a sede de anos. O filme passava às 8, mas com medo de nào ter bilhetes, sentei- -me na sala às 2 e vi como aperitivo (programa dessa tarde de Agosto de 1958) Westfront 1918Í.G. W. Pabst, 1930), Vampyr(Csr\ Th. Dreyer, 1932) e On The Bowery (Lionel Rogosin, 1956). Às 10 da noite (obviamente saí, sem ficar para Scbichinin no Samurai / Os Sete Samurais de Akira Kuro- sawa, 1954) já fazia parte dos eleitos que tinham visto o Potemkine. E só ampliava tudo o que lera e ouvira. No regresso, Paris fora tanto a Vztóna de Samotrácia, a Gioconda, a Saint-Chapelle, ou Notre-Dame, como fora o Potemkine. Essa tarde, essa primeira viagem, foram apenas o prelúdio do que quase invariavelmente se passou de 1958 a 1974, de cada vez que fui a Paris. Como artes e ofícios me levaram lá com razoável regularidade, posso calendarizar esses dezasseis anos de vida a filmes proibidos, filmes de Paris. 1959, EtDieu Créa laFemmede Vadim com a B.B. e «ce n'était pas sale puisque c’était beau»; 1960, LesAmantsde Louis Malle e ainda era tào ingênuo que nào percebi o que é que o Jean-Mare Bory estava a fazer a Jeanne Moureau, na cama solarenga, ao som de Brahms; 19è2,JulesetJim de Truffaut e se Jules «était ému comme par um symbole qu’il ne comprenait pas», a nossa emoçào (o plural nào é majestático mas nào têm nada a ver com isso) vinha de o compreendermos bem de mais; 1964, Tystnaden (O Silêncio) de Ingmar Bergman e, nesse caso, até a censura francesa tinha dado tesouradas. E, por aí fora, até casos mais recentes, que ainda cá chegaram quen- 1 65 tinhos, no rescaldo do 25 de Abril; Ultimo TangoaParigide. Bertolucci, em 73, La GrandBouffe de Marco Ferreri, já em 74. Ou os primeiros filmes por nográficos, esses não em Paris, mas em Cannes, 1970. Ou — clandesti- nidades diversas e unas — quase todos os “últimos» Godard, Pasolini. Straub, Rivette, Skolimowski. Que, por esses anos, havia muitos últimos e muitos primeiros e progressivamente se acentuava a «décalage» entre os limites do visível na Europa e os do invisível em Portugal. Aos mais distraídos — ou mais esquecidos — lembro que as primeiras maminhas que por cá se viram foram as da Romy Schneider em La Piscine de Jacques Deray. A ousadia (permitida pela primavera marcelista) deu-se em 1969, pouco antes de outra Schneider (Maria) dançar outro gênero de tangos com Marlon Brando. Tão importante como essas visões clandestinas, eram os rituais que as cercavam. O dia de Agosto de 58 e do Potemkine «ce n’était qu’un début». Durante 16 anos, eu — e alguns outros com a mesma saúde — talvez tivés semos direito ao «guiness» do máximo número de filmes por dia. Começava mos à hora do almoço e só paravámos noite dentro. O pouquíssimo tempo disponível era dedicado a correrías no «métro», com inenarráveis sofrimen tos nos intermináveis túneis de Châtelet ou Montparnasse — Bienvenue, estações fatídicas para quem tivesse horários tão apertados, entre os cinemas do 8ème e os do 5ème (nesses tempos, ainda não havia por lá tapetes rolantes). Outro ritual era a compra imediata, à chegada a Orly, e ainda antes do Nouvel Obs, da Semaine de Paris. Nunca tão poucos devem ter folhea do tanto uma revista. E naquelas páginas onde vinham «todos os filmes da semana» começávamos a pôr cruzinhas, dividindo-os pelos «films nouveaux» («esse não, que depois vai a Portugal»), os «films en exclusi- vité», as «reprises» e — fecho da abóbada — os «films de la Cinémathè- que». Voltávamos exaustos e felizes. À chegada, a primeira frase começava invariavelmente com a primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do verbo ver. Invariavelmente, a primeira pergunta que me faziam eraa tal «é mesmo?». «Se é...». Todos eram mesmo, mesmo os que o não eram. Mas havia graus e hierarquias, dependendo tanto da «politique des 7 6 6 auteurs» dos Cahiers, como do grau de proibição e transgressão. Muito especial foi o caso da Viridiana de Bunuel, em 1962. O filme estreara-se no Festival de Cannes de 1961, em representação da Espanha e o mundo veio abaixo. O director-geral da cinematografia espanhola, que convencera Franco a deixar rodar «aquilo», após vinte e cinco anos de exílio de Bunuel, foi corrido do lugar num abrir e fechar de olhos. O Osseruatore Romano chamou-lhe «obra sacrílega e blasfema» e os tribunais italianos condenaram o cineasta, à revelia, a um ano de ca deia. Franco, que, segundo Bunuel, viu o filme duas vezes («a acreditar no que me contaram e com tudo o que já tinha visto, o filme pareceu-lhe bastante inocente») moveu céus e terras para que Viridiana não fosse visto em parte alguma. Os céus foram-lhe bastante favoráveis (todos os episcopados avisaram fiéis de que não podiam ver o filme sem incorrer em pecado mortal), as terras menos. Após um ano de hesitações, de diz- -que-diz-que, de pressões franquistas e eclesiais, Viridiana estreou em Paris. Eu e outros católicos ainda hesitámos à porta do cinema, junto do cartaz que falava do «realizador mais cruel do mundo» («Tamanha estupidez en- tristeceu-me muito», escreveu Bunuel nas memórias). E ainda me lembro de terríveis discussões, mesmo entre «espíritos livres». Bunuel chamou à história de Viridiana (nome de santa, que vem do latim viridium-, sítio verde) «um sonho de loucura e finalmente o regresso à razão». Às vezes, penso que é uma boa imagem para todos esses anos e para o que agora acontece. Outras vezes, estou menos certo. Em 1962, nunca acreditaria se uma fada (boa ou má) me viesse dizer que vinte anos depois o filme passaria tranquilamente em Lisboa e tranquilamente eu o progra maria para o Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. E melhor esta paz, ou foram melhores tais guerras? Como para a heroína de Bunuel, fica sempre em nós a saudade de alguma clandestinidade de ou de alguma perversidade. Se não ficasse, não conseguirira escrever esta crônica, nem calendarizar a minha vida a nomes de filmes e em nome de filmes. OS MEUS FILMES DA VIDA 167 OS DOIS FOSCARI Li há pouco tempo que um partido político italiano — ou tão-só um deputado, já não me lembro bem — propôs uma solução para salvar Veneza dos turistas. Quem a quisesse visitar, tinha antes que responder a um inquérito, concebido de modo a não deixar dúvidas sobre a relação preexistente entre o candidato à visitação e a cidade dos doges. Veneza deixaria de ser para quem pode ou para quem quer, para passar a ser para quem a merece. A mesma notícia me informava que o projecto fora chumbado. Parece que o acharam pouco democrático. E em alturas dessas que duvido das virtudes da democracia. Se a lei tivesse ido avante, coisas como a Bienal de Veneza ou o Festival de Cinema teriam, muito justamente, acabado. Sempre me pareceram excêntricas em Veneza, mesmo quando situadas no Lido, essa bizarra contrapartida romântica para uma cidade que os românticos nunca entenderam, e que de romântico nada tem. Veneza exige a concentração do olhar com que a pintaram tantos, de Carpaccio a Canaletto. Nào é compatível com as grandes dispersões. O cinema, etimologicamente, está nas suas ruas e canais. Não pode habitar, impunemente, o outro lado da laguna. É um contracampo absurdo. Só se pode vê-lo tranquilamente, se se esquecer Veneza ou se Veneza for indiferente. Num caso como noutro, não há cinefilia, pois se n£o pode ter uma paixão e não ter a outra. O Festival de Veneza é, pois, uma variação perversa do suplício de Tântalo. Quanto melhor for e mais apetecível o programa, mais infernal se torna, pois mais rouba da única razão possível para se estar em Veneza. Tentei soluções ecléticas — gênero três dias sem sair do Lido, três dias sem lá pôr os pés — e foi ainda pior. Andava por Veneza a pensar em filmes e andava por filmes a pensar em Veneza. O meu campo de consciência, muito apertado, não dá para aventuras dessas. Chego ao fim sem saber por onde comecei. 169 A primeira experência — como normalmente sucede em casos análo gos — foi a mais traumatizante. Não conhecia Veneza, nunca tinha ido a um "grande festival». Vim de lá com a sensação de não ter perdido nem uma nem outra virgindade. E a achar-me bastante promíscuo. Propuseram-me essa viagem em 1962. Havia, em França, uma fede ração chamada «des loisirs et culture cinématographique» (vulgo FLECC) que editava uma revista de nome Telé-Ciné. Publicava úteis e didácticas fichas sobre filmes, que nos serviram de muito nos tempos do CCC, iniciais do Centro Cultural de Cinema, dos universitários cristãos que nessa altura éramos. Agente deles em Portugal, era o Padre José Vieira Marques, que ainda não pensava na Figueira da Foz. Graças a ele e graças à FLECC, fui a uns encontros que a última organizava nos arredores de Paris e voltei de qualquer deles singularmente pervertido. Graças a ele e graças à FLECC, fui baptizado nas águas dos canais e dos festivais, pois por lá decorria uma qualquer assembléia em que era supostamente importante que estivesse um português. Tiradas as sortes, coube-me a mim. Para poupar todos os tostões (eram poucos) fui e vim de automóvel, em excursão estritamente familiar. A primeira humilhação foi fronteiriça. Na louca pressa de partir (Itália e Veneza eram, desde a infância, os mais desejados dos meus sonhos permitidos) esqueci-me que era necessário apresentar em Vilar Formoso uma certidão do dono do carro (emprestado) autorizando-nos a levá-lo para o estrangeiro. Mandar vir esse papel demorava 24 horas, fatais para o meu apertado calendário festivaleiro e turístico. Já amaldiçoava a sorte, quando uma irmã minha, que ficara a discutir com o funcionário da alfândega, me veio dizer que perante os malefícios que podiam advir para a causa do cinema se a proibição se mantivesse, o homenzinho começava a hesitar e a admitir, portuguesmente, a hipótese de dar um jeito. Mas para o dar, queria conversar comigo. Lá fui a correr, numa tarde de fim de Agosto, com um calor de rachar, mais suado, mais desfraldado e mais desbraguilhado do que o meu costume, já de si largamente permissivo em tais matérias. Do que se passou depois, há duas versões. Na minha, naturalmente mais benigna, o homem teria dito: «Este é que é o crítico?» Na da minha irmã, a pergunta teria sido: «Zsío é que é o crítico?». Mas este ou isto, lá se 1 70 convenceu e lá conseguimos na mesma tarde passar a Fuentes de Onoro. Quatro dias a quatro noites de viagem e ao quarto — alta madruga da — cheguei a Veneza. Logo começou o tal suplício de Tântalo. O hotel (reservado pelos organizadores) era no Lido. Assim, enquanto a minha irmã e o marido se metiam no vaporetto para Veneza, a Ana Maria e eu fomos embarcados em mais paquidérmico navio de onde nos levaram para um autocarro (au tocarro em Veneza!) até à rua de asfalto e não de Adriático, onde ficava o tal hotel. No dia seguinte, já enredado em programas e marcações, só me consegui ver livre do Lido quase no fim da tarde. Quando confidenciei aos meus anfitriões a vontade imensa de ver Veneza, lá me satisfizeram convidando-me para um copo na Piazza de San Marco. No caminho, ouvi pela primeira vez aquele mágico San Zaccaria, abertura de todos os Sésamos, antes de pôr o pé na Piazzetta e olhar pela primeira vez o cor- -de-rosa do Palácio dos Doges. San Marco recebeu-me com outra humilhação. Olhei para a lista das bebidas e resolvi guiar-me pelo som para um long-drink condizente com o cenário, a minha sede e o calor. Capuccino pareceu-me palavra suficientemente vibrante. E assim o pedi, contra os wbiskies dos meus comensais. Notei-lhes um ar espantado. Acho que até me perguntaram se era mesmo isso que eu queria. Reincidi, com a autoridade dos connais- seurs. Nada terá sido menoscondizente com o êxtase profundo da primeira tarde de San Marco do que a expressão com que fiquei quando vi na minha frente uma chávena fumegante de café com leite. Foi o primeiro e o último capuccino da minha vida. Depois, começou a tal partilha de meios-dias e meias-noites. Se trouxe de Veneza aquele grande plano de Anna Karina a chorar com a Falconetti do Dreyer ( Vivre sa Vie de Godard); Sue Lyon e os chupa-chupas iLolita de Kubrick); as muito ricas horas de Agnés Varda (Cléo de5a 7)\ e as cores de Rotunno para Pratolini (Comaca Familiare de Zurlini), aprendi mais e melhor cinema em San Giorgio degli Schiavoni com os frescos de Carpaccio que me ensinaram — tanto quanto Mizoguchi, Lang, Hitchcock ou Oliveira — que tudo nesta arte é mise en scène. E entre a Veneza do 1 71 quatrocento e do doge Francesco Foscari (esse do retrato de Bellini) e a Veneza do outro Foscari (Giuseppe Volpi di Misurato que para Mussolini criou o festival em 1932), fixei-me, sobretudo, nas cores transparentes e aquosas do primeiro. Assim sucedeu. Assim voltou a suceder sempre. Quer quando vi Veneza com os espectros de Boticcelli (Boticcelli em Veneza? — esse também foi o meu espanto), quer quando — muito recentemente — aí vivi a hora pulcra em que Manoel de Oliveira partilhou o Leão de Ouro com Fellini e Huston, no ano de Le Soulier de Satin. Mas até nesse festival, sobrepus às fugas de Oliveira o alucinante barroquismo de uma igrejinha de que ninguém fala (San Pantalon) e do imenso fresco em trompe-l’oeil que lhe serve de tecto, pintado por um tal Fiumani, de que não consegui encontrar notícia em parte alguma. Ah, e já me esquecia. Foi a andar pelas ruas, para ver e rever o Bartolomeo Colleoni de Verrochio, a mais bela estátua equestre do Mundo, que desde miúdo me persegue, que, nas traseiras do Campo San Giovanni e Paolo, encontrei a praça com o poço em que Farley Granger pedia a Alida Valli, citando Heine, que não pensasse nem em infernos nem em paraísos. Sempre me perdi à procura dessa praça. Para ela me guiou o freio nos dentes do condottiere e nela me encontrei com a única luz de cinema que não desfoca em Veneza: a luz de Murnau, na cidade de Nosferatu. 1 72 JOÀO BÉNARD DA COSTA PIRATAS EM WATERLOO Eu era ainda muito novo. Sete ou oito anos, quanto muito. Mas recordo, com enorme nitidez, décor e personagens. Décor. uma cozinha velha, ainda com fogão de lenha, banca corrida, lava-louças de pedra, castanho escuro, castanho-velho. Igual, ou quase igual à da minha casa, pois pertencia a uns amigos dos meus pais, que viviam no mesmo prédio, debaixo de nós. Personagem: uma criada magra, ainda nova, com muitas sardas e cabelos loiros, cor-de-palha. Chamava-se Maria. Costumava-me contar os filmes que via, ao domingo, tarde de saída dela, de 15 em 15 dias, como então era horário. Ela, como todas as criadas, saía depois de lavar e arrumar a louça do almoço dos patrões, por volta das 3 da tarde. Às 7, tinha que estar de volta para fazer o jantar. Tinha quatro horas livres, duas vezes por mês. Normalmente, era quando arranjavam magalas. Esta, como disse, aproveitava-as para ir ao cinema com o magala que já tinha arranjado. À segunda-feira de manhã, eu ia para o pé dela, ouvir a fita, enquanto ela lavava a roupa e a punha a secar, pendurada em cordas que davam para as traseiras. Esqueci-me de todos os filmes, menos desse. Chamava-se Waterloo Bridge e Mervyn LeRoy realizou-o em 1940. Vivien Leigh e Robert Taylor eram os protagonistas. Talvez tenham visto, há pouco tempo, na televisão. O meu amigo Elias Savada persiste em dizer que é um dos melhores filmes americanos dos forties. Muito, muito mais tarde vi-o e revi-o. Não tenho essa opinião, mas simpatizo. Não vou contá-lo como o vi, crescido. Vou contá-lo como o ouvi nessa manhã de 1942 ou 1943. Robert Taylor era um soldado, Vivien Leigh uma artista de variedades. Conheciam-se e amavam-se em Londres durante a guerra, numa licença dele. Eram felizes e sonhavam com o futuro, em longos passeios pela ponte de Waterloo. Mas a licença acabava-se e Robert Taylor voltava para a frente. Vivien Leigh chorava muito na 1 73 despedida na ponte, enquanto lhe jurava amor eterno. Casariam quando ele voltasse. Mas a vida ficou-lhe difícil. Desemprego, fome, muitos homens a rondá- -la, já que era tão bonita como a Viven Leigh. As cartas dele davam-lhe a resistência possível. Até que, um dia, chegou a notícia fatal: Robert Taylor morrera em combate. Na ponte, sozinha no nevoeiro, Vivien Leigh tinha a grande cena de lágrimas e saudades. «Viúva», a coragem era menor. E acabava por arranjar outro namoro, com um homem mais velho e mais rico. Se a narração até aí fora pormenorizada e coerente, nesse episódio eu começava a notar pressas, silêncios e alguns mistérios. Lembro-me de fazer perguntas: «Ela gostava do tal homem? — Não, continuava a gostar do Robert Taylor. — Era feliz, agora que tinha dinheiro? — Não, era uma desgraçada.» A palavra parecia-me pesada. Se era desgraçada e não gostava do homem, porque é que namorava com ele? E a narração continuava. Um belo dia — ou um triste dia — Vivien Leigh estava na estação de comboios (não me explicaram a fazer o quê) e de repente dava de caras com o Robert Taylor que afinal não tinha morrido. Tudo se resolve, pensava eu, lembrando-me de como era verdade a canção da Laurindinha. Rapaz novo torna sempre a vir. Mas eis que a voz da narradora se embargava e com muitas elipses e sínteses me informava que afinal nada acabara bem. Pelo contrário. Na ponte de Waterloo, Vivien Leigh cami nhava ao encontro do carro de Robert Taylor, não para lhe cair nos braços, mas para se suicidar. Lembro-me do imenso espanto. Então ela gostava do Robert Taylor, o Robert Taylor gostava dela, estavam os dois vivos e de boa saúde, ele afinal não morrera e quando tinham tudo para ser tão felizes, a rapariga matava-se? Aos meus infinitos porquês, a criada devolvia-me um silêncio embaraçado. Finalmente, veio uma resposta que eu já conhecia mas de que, neste caso, não estava à espera: «São coisas que o menino não pode perceber.» Não consegui obter mais pistas. E vezes sem conta remoí a história, para ver se percebia onde estava o que eu não podia perceber. Resolvi tirar o caso a limpo e, um dia, pedi à minha mãe para ver a fita. A resposta imediata: «Não é filme para a sua idade.» Respondí que já conhecia a história toda e denunciei quem ma tinha contado. Nessa tarde, percebi que estavam1 74 a ajustar contas. Mas o que mais me enfureceu foi a resposta da criada: «Ele não percebeu nada.» A partir daí, fiquei com uma irresistível tendência para associar censura a Waterloo. E a achar que também não me diziam tudo quando me contavam a derrota de Napoleão. Lembrei-me particularmente desse episódio quando, cinco ou seis anos mais velho, vi Frenchman ’s Creek de Mitchel Leisen (1944). Era um filme de piratas, que em Portugal se chamou A Gaivota Negra. Joan Fontaine, 175 muito bonita e muito decotada (foi a primeira actriz por quem me apaixonei), era casada com um homem muito mais velho. Outro (Basil Rathbone) queria-lhe fazer imensas maldades. Até que chegava a tal gaivota negra e o pirata (o mexicano Arturo de Córdova). O pirata era bom e romântico. Acabava por matar Rathbone num duelo. Mas, no fim, em vez de casar com Joan Fontaine, fazia-se ao mar e despedia-se à francesa. Quando me estarrecí, responderam-me que se ele tivesse ficado, o filme seria imoral. É possível que «histórias reais» me tenham provocado perturbações análogas. Mas, se as houve, não as lembro bem. Quase sempre «o que eu nào podia perceber», «o que ainda não era para a minha idade» acontecia a propósito de filmes, de quadros, de poemas. E como ninguém respondia às minhas perguntas, comecei a pensar que esses mundos se organizavam segundo outras regras e que nào valia a pena tentar entender o que provavelmente fora feito para nào ser entendido. Sem o saber, os meus educadores estavam-me a daruma lição preciosa e que me ficou pela vida fora. A tal ponto que, às vezes, pensando nesses filmes — um que ouvi, outro que vi, um a preto e branco, outro a cores —, eles se misturam, para meu maior fascínio, num só filme ainda mais enigmático e ainda mais misterioso. E acontece-me ver Vivien Leigh atirar- se para baixo do pirata, e Joan Fontaine a abrir ainda mais o decote nas névoas de Waterloo. 1 76 JOÃO BÉNARD DA COSTA OS HESICASTAS No século VI da nossa era, Justiniano, Imperador de Bizâncio, fundou no Monte Sinai o Mosteiro de Santa Catarina. A ábside da igreja principal foi decorada com um mosaico que representa a Transfiguração. Para os primeiros monges do convento, essa visão só concedida a três Apóstolos (Pedro, Tiago e João) e em que Cristo, no Monte Tabor, lhes apareceu ao lado de Elias e de Moisés, era a única manifestação da «luz de Deus», depois da Aparição deJeová a Moisés, no Monte Sinai. Sintomaticamente, em toda a tradição da mística ortodoxa até ao século IV, a «luz dos séculos a vir» (essa luz que tornou as vestes de Cristo mais resplandecentes e brancas do que qualquer greda de terra na descrição de Marcos, 9 2-8), surgida por antecipação no Sinai, manifesta-se plenamente no Tabor. Para atingir o êxtase dos Apóstolos em tal momento (êxtase tal que Jesus, quando desciam do Monte, lhes proibiu que contassem o que tinham visto fosse a quem fosse «até que o Filho do Homem ressuscitasse dos mortos») essa luz foi o objecto mais procurado pelos monges do Oriente Cristão. Entre eles, avulta João, chamado Clímaco, Higómeno de Santa Catarina entre 580 e 650. O cognome veio-lhe da sua obra mais célebre: A Escada do Paraíso (klimax é o nome grego para escada). Nesse livro, onde se reflectem influências muito mais antigas, como as de Macário o Egípcio e de Evagro Pôntico, desenvolve-se um complexíssimo sistema de espiritua lidade monacal e estabelece-se uma radical diferença entre o hesicasta (de hésiquia=solidão) e o cenobita. «O hesicasta é aquele que aspira a circunscrever o Incorporai no seu corpo carnal. É o que vive sozinho com Deus. O cenobita precisa da ajuda dos irmãos. O hesicasta só pode ser auxiliado pelos anjos.» Por isso, «fechai a porta da vossa cela ao vosso corpo, a porta da vossa boca à vossas palavras, a porta interior aos espíritos. Mais vale um pobre obediente do que um hesicasta distraído. A solidão é um culto e um serviço ininterrupto a Deus. Seja a vossa respiração (“sopro”) í 77 tão una como a memória de Jesus. Percebereis, entào, a necessidade da solidão.» A oração de Jesus está, pois, no centro de toda a espiritualidade hesicástica. O Nome do Verbo Encarnado confunde-se com as funções essenciais à vida: está presente no «coração», está ligado à «respiração». Mas João, o Clímaco, como todos os grandes doutores da «oração ininterrupta», avisa contra as possíveis confusões entre «a memória de Jesus» e os efeitos que a imaginação pode produzir na alma dos monges. Nunca essa «memória» deve tomar a forma de «meditação» sobre tal ou tal episódio da vida de Cristo, nunca o noviço deve representar uma imagem exterior a si próprio. Só assim, «a visão luminosa» pode deixar de ser entendida como símbolo ou como consequência da imaginação, para ser rigorosamente uma teofania, tão real como a do Monte Tabor, pois que nela se tornará presente o próprio Corpo Deificado de Cristo. A distinção entre a visão desse Corpo Deificado (que só três Apóstolos tiveram no Monte Tabor) e a representação do corpo humano (visto por todos os que conheceram Cristo e imaginável em qualquer representação de Cristo) é capital na patrística ortodoxa como o fora na patrística grega. Tinha a vencer dois escolhos consideráveis, de sinal oposto: ou uma tal abstracção da Pessoa de Cristo que o mistério da Encarnação acabava por ficar elidido (concepção neoplatónica da divindade natural do intelecto, que ainda é dominante em Evagro Pôntico) ou uma representação tão presente do Seu Corpo Humano que «a luz dos séculos a vir» se podia reduzir à imagem mental. E João, o Clímaco, retoma a distinção na própria visão do Cristo sobre Si Próprio. O que os Apóstolos viram na Transfigu ração jamais Ele o viu. «O Seu próprio Corpo era um limite à Sua Glória. Era um Corpo que podia ser tocado por outros corpos, ao contrário do Corpo Ressuscitado ou Transfigurado (Noli mi tangerei.- Se alguns prede- cessores do autor da Escada do Paraíso (por exemplo, os Messalianos, para os quais Deus e Satanás coexistiam no homem como forças iguais) tinham tendido (como o maometanismo que, em parte, deles descende) para a interdição de qualquer representação da imagem divina, os hesicastas de Santa Catarina insistiam nessa representação (precisamente para a separar da visão) e incluem, igualmente, como acima disse, as primeiras pinturas 7 7 g conhecidas tendo como tema a Transfiguração. Mais tarde, Gregório de Nissa falará das «trevas de Deus» ou da «treva luminosa» e Simeão acentuará o realismo intenso de uma mística cristocêntrica, distinguindo a Essência Divina (que a teologia apofática ou negativa postulara como radicalmente inacessível) e a presença de Cristo nos homens e como homem, acto (energeia) livre de Deus. A esta altura desta árida crônica (uma vez não é costume e só poucos saberão como estou a banalizar-me) quem ainda não desistiu perguntará a que propósito vem tudo isto e o que é que tudo isto tem que ver com os meus filmes da vida. Apetecia-me responder-lhes com um flasb-back sobre a velha Faculdade de Letras (a do Convento de Jesus) e sobre o meu professor de História da Filosofia Medieval, o dr. Luís Ribeiro Soares que, em mim e noutros, incutiu para sempre o gosto por estas questões. Não é culpa dele se tendi sempre a vê-las mais sob espécie estética do que teológica. Mas se não fosse o que com ele aprendi, também teria ficado com uma visão meramente estética do filme de Scorsese, The Last Temptation of Christ. 179 180 Porque uma das reflexões mais apaixonantes que se podem fazer em torno deste filme é precisamente a do conflito nele figurado entre o texto de Kazantzakis que Scorsese adaptou (profundamente imbuído desta tradição da mística ortodoxa) e a formação católica do realizador, inscrita numa tradição que, há muitos séculos, subalternizou ou esqueceu estas questões. O filme de Scorsese surge, assim, por um lado, como uma metáfora católica do mistério da dupla natureza de Cristo e, por outro lado, como uma aproximação à visão dos hesicastas, retratando Cristo dentro dessa antiquíssima tradição. Duas sequências do filme colocam o problema de modo inédito no imaginário ocidental. A primeira é a sequência da ressureição de Lázaro. Se nela subsiste o conhecido paralelismo com a ressurreição de Cristo (como Cristo, Lázaro foi ressuscitado ao fim do terceiro dia) a representação, nessa sequência, dos corpos de Cristo e de Lázaro, ecoa a distinção capital entre visão e imagem. Face às trevas do túmulo, e à abertura da gruta onde jaz Lázaro, Cristo é quase reduzido a silhueta, como se se despisse da corporalidade e fosse pura luz. Pelo contrário, Lázaro, quando ressuscita, é a imagem do Cristo das Dores da tradição ocidental. Mas quando caminha para Cristo, uma luz diversa o nimba, como se ele também fosse prefiguraçào da -luz dos séculos a vir». A outra sequência é a da entrega por Cristo do seu Coração, imagem fortíssimamente carnal, mas que reconduz a quanto atrás se disse sobre a fusão do Verbo Encarnado com as funções essenciais à vida. Em muitas outras sequências, nomeadamente na prodigiosa sequência da tentação no deserto, o que Scorsese encena é, rigorosamente, a distinção entre visão e representação, memória de deus e imagem do mundo. Por isso, é tão singularmente coerente que a última tentação seja uma representação (.representação conduzida por um anjo, único companheiro do Cristo Hesicástico), representação apenas interrompida quando a visão se sobrepõe a ela, ou seja, quandoCristo se redescobre, sozinho, na Cruz. Por isso, Kazantzakis fala do «tudo está consumado» como de um «grito triunfal». «Porque era como se dissesse: tudo começa.» Conseguir essa visão através de uma imagem — último plano do filme -— é proclamar a realidade da energia e a radical inacessibilidade da essência. Nada se entende de nada, se não se entender isto. MÁS COMPANHIAS Houve, em tempos, uma pia publicação chamada A Imeldista. Se não me engano dirigia-se privilegiadamente, às «criadas de servir», magnífica designação que, durante séculos, antecedeu o eufemismo «empregadas domésticas». Recordo-me particularmente bem de um número que continha dois artigos aterrorizadores. Num deles, narrava-se a história da jovem Inês. Filha embora de pais tementes a Deus e obedientes à Igreja, a criança, ainda no berço, começou a manifestar extraordinárias disposições para o pecado. Com os anos — e foram seis — essas disposições atingiram proporções alarmantes. O artigo não especificava (a revista, aliás, não tinha carácter especializado) que gênero de pecados mais praticava Inês. Mas, aos seis anos, apesar das admoestações e orações paternas, tinha a alma da cor do carvão e Satanás exultava de alegria em sua ardente morada. Até que a criança contraiu grave enfermidade. E, após meses de «longo e doloroso sofrimento», as preces dos pais foram ouvidas. Na hora da agonia, Inês deixou de berrar as habituais blasfêmias para erguer as pequeninas mãos e pedir a Deus que se amerceasse da sua alma. Na Sua Infinita Misericórdia, o Senhor ouviu-a. Mandou-lhe um mês dos mais inima gináveis padecimentos físicos. Tudo Inês suportou estoicamente, sabendo que pouco pagava pelos pecados cometidos. E morreu confortada, subindo célere para o assento etéreo. Moral da história: Deus perdoa até aos mais empedernidos pecadores, como era o caso de Inês, a criança de seis anos. No outro artigo, tecia-se idêntico retrato, só que o vil sacrílego tinha 15 anos e não se arrependia. A esse, era o demônio que o vinha buscar. Numa história e noutra, quais as causas de tanta impenitência? O cinema, que frequentavam semanalmente desde os dois anos (nessa altura ainda nào havia classificações etárias) e as más companhias. Que um e de outras nos 18 1 guardássemos era a instante exortação final. E explicava-se que havia normalmente relação de causa a efeito entre os dois factores. O cinema levava a procurar más companhias. As más companhias levavam-nos ao cinema. Era um círculo perfeitamente vicioso. Talvez fosse o ponto em que o santo articulista tivesse mais santa razão. Pelo menos, no meu caso, e até bastante tarde, a visão de um filme dependeu quase tanto das relações que estabelecí com ele, como das relações estabelecidas — ou desestabelecidas — com aqueles com quem ia ao cinema. Muitas vezes me estragaram um filme, do qual fiquei com péssimas recordações, por motivos não imputáveis ao realizador ou a qualquer dos nomes do «cast». Outras tantas me douraram a visão, conferindo à obra uma aura paradisíaca, também não atribuível a méritos dos seus autores. Eis um tipo de considerações que escandalizará muitos cinéfilos mas que é um fenômeno típico da cinefilia. Quem disser que as más compa nhias — ou, noutra perspectiva moral, as boas — nunca lhe afectaram as visões, ou a recordação de um filme, não é verdadeiramente digno do nome de cinéfilo. Contra mim falo, mas um Robert Wise de mão na mão, joelho no joelho, etecetera no etecetera, pode ser mais inesquecível do que um Hitchcock se, em noite dele, a mão e o joelho pretendidos a outros se vão encostar. Nem é preciso ir tão longe, e nem é preciso sempre «chercher la femme». As vezes, basta mau hálito, sovaquinho ou digestões menos discretas. Outras, alguém que ri quando não deve ou chora quando não pode. Muitas mais, o engraçadinho ou comunicativo que acha que os filmes precisam sempre de “voz off». Ou, simplesmente, aquele ou aquela que está a embirrar (mesmo que passivamente) com tudo quanto eu gosto, ou a gostar (mais ou menos activamente) de tudo com que eu embirro. Pelo contrário, estar em completa harmonia com os companheiros do escuro (sintonizados em gostos ou desgostos) é condição necessária e suficiente para a perfeita visão. Digam-me com quem vi o filme e eu vos direi como vi o filme. No meu caso, nem é preciso dizerem-me. Ainda nos meus anos de 18 2 neófito, uma prima minha, bastante mais velha — a quem devo, entre outras coisas, uma poderosa iniciação ao cinema — mostrou-me um caderninho que tinha e em que tomava nota de todos os filmes que via, com os nomes dos principais actores. Tudo isso, ordenado por anos, ou antes por temporadas, que, como os anos lectivos, são melhor medida de tempo para estas coisas do que o calendário gregoriano. Comecei logo a imitá-la, nuns cadernos que por essa altura havia com o Bucha e o Estica desenhados na capa. Mas sempre fui do gênero de acrescentar um ponto aos contos que me contavam. E assim, além desse rudimento de ficha técnica, juntei coisas da minha lavra. Nào o nome do realizador, ou o título original, dados que nessa altura ainda não existiam para mim. Mas o nome do cinema em que os tinha visto, o lugar que ocupei na sala (em que isso tinha a importância que já justificou uma destas crônicas) e a pessoa ou pessoas com quem tinha ido ver o filme. 1 8 Quando folheio esses caderninhos que conservo ciosamente (eu guardo tudo) essa última indicação é-me frequentemente preciosa para perceber porque é que na minha memória valorizei em excesso um determinado filme e em excesso desvalorizei outro. Às vezes tenho surpresas. Anotei uma fita que não me lembro nada de ter visto. Olho para o nome da companhia e percebo a razão do facto, nào vi mesmo o filme. O filme foi outro e só eu e mais alguém se pode lembrar dele. Noutro caso, ia jurar que vi o filme em certa idade e reparo que estou a fazer grande confusão de datas. Tratou-se, simplesmente, de confusão de pessoas. Fenômenos de premonição, ou fenômenos de repetição. Também me aconteceu jurar que vi tal filme várias vezes e só o vi uma. Ou perceber porque é que a simples evocação do título me dá tamanha neura ou tamanha saudade. E há gente a quem ainda não perdoo ter-me estragado um filme e outra que abençoo por me ter feito ver nele o que sozinho jamais veria. E, nestas últimas alíneas, raramente incluo pessoas com mais saber e mais gosto, exclusivamente cinematográfico. Mas nada disto é alheio ao cinema, como alguém mais austero pode apressadamente supor. Por exemplo, a plena experiência da riqueza de uma banda sonora só talvez se possa apreender nos casos dos filmes que vimos sem ver, demasiado envolvidos nas más companhias. Essas músicas, essas vozes, esses ruídos, tornaram-se fundo sonoro não do filme projectado na tela mas do que decorria na sala. Voltar a ouvi-las permite, às vezes, experiências proustianas, ou sinestesias assaz inesperadas. Em limite, podem até funcionar como afrodisíacos. São ainda assinaláveis, os efeitos das más companhias, ao retardador, ou seja, quando já as não temos. Muitas e muitas vezes assinalei no tal caderninho, no lugar dela, a lacônica referência «sozinho». Mas há abismos de diferença entre os filmes que se vai ver «sozinho» porque assim calhou ou porque assim apeteceu, e os que «sozinho» se viu em ressaca da má companhia que se deixou de ter. Se, nesta última hipótese, ainda por cima o filme puxa ao sentimento, o efeito amplia-se desmedidamente. Alguma autoridade na matéria leva-me mesmo a sustentar que jamais se teriam feito «weepies» (ou até melodramas) se se não soubesse que a frequência das salas comporta boa percentagem de desacompanhados desses. Os grandes184 melodramas da nossa vida foram os que vimos assim. E se, à saída, estiver a chover miudamente, a experiência pode ser inesquecível. Fizeram-se muitos «films on film». Mas fizeram-se poucos sobre este gênero de «filme». No entanto, talvez não seja por acaso que tantos etantos dos melhores incluem aquelas breves sequências (às vezes ideais para apostas cinéfilas) em que a câmara passa de um ecrã com o filme a chegar ao «the end» para a sala dele. Com as luzes a acenderem-se e os protagonistas ainda abraçados, a custo acordando para uma luz que nunca mais verão como antes viram. Ou como antes não viram. OS MEUS FILMES DA VIDA 185 186 JOÀO BÉ\ARD DA COSTA A FORÇA DO SEXO FRACO Houve um filme de Ingmar Bergman que teve em Portugal o nome desta crônica. No original chamava-se Fôratt inte tala om ala dessa kvinnor e data de 1964. Não sei sueco, mas suspeito bem que nessa série de sons não haja qualquer palavra que, traduzida, tenha alguma coisa que ver com força, com sexo, ou com fraco. Também não interessa nada, agora, porque, apesar de gostar muito dessa comédia a cores (deliciosamente mozartiana), não a incluo entre “Os filmes da minha vida» e não é dela que vou falar. Era com «todas essas mulheres» (as dele), Harriet Andersson, Bibi Andersson, Gertrud Fridh, Eva Dahlbeck, etc. e quase por lá não havia homens. Foi um fracasso comercial (Bergman queixa-se disso nas memórias) e baseava-se numa receita antiga de filmes no feminino. Quem levou mais longe esse tipo de aposta foi George Cukor no espantoso The Women (1940), em que até os animais (caninos ou galináceos) eram todos do sexo feminino. Obviamente, num e noutro filme, só se falava de homens e obviamente tanto Bergman como Cukor pertenciam à série dos chamados «cineastas de mulheres», normalmente misóginos. Daí que talvez se perceba o desabafo de uma espectadora que eu conheci, quando chegou à rua, depois de sair do Éden onde The Women por cá passou: «Que bom que é voltar a ver homens.» E lembro-me, pelo menos, de dois filmes (deve haver muitos mais) que usaram como gag «o único local da terra onde o homem nunca pôs os pés: The ladie’s room». Era com essa ribombante legenda, acompanhada por solene música, e seguida pela visão do quarto proibido, que Lubitsch começava That Uncertain Feeling, também de 1940 (curiosa, essa atracçâo por mundos exclusivamente femininos, um ano antes de começar, para a América, o mundo exclusivamente masculino da guerra); era o acesso à «casa de banho das senhoras» que divertia, muitos anos mais tarde, em 1963, Charlie, um Dom Juan impenitente, quando, para castigo dos muitos pecados dele, Deus o matava e o reencarnava como mulher, na aparência 1 8 7 de Debbie Reynolds. O filme chama-se GoodbyeCharliee foi realizado por Minnelli. Em todos estes casos (e para o justo luto das feministas, a lista de obras a pôr neste index quase se confunde com a lista dos filmes até hoje feitos) tratava-se de ilustrar a moral da celebérrima canção de Loewe e Lemer que Rex Harrison berrava no My FairZ«í(y(Cukor, 1964): «Why can’t a woman be like a man?» Infelizmente (ou felizmente) não pode. E, talvez por isso, não haja nada mais chato (regra geral) do que os filmes feitos por mulheres como res posta a Harrison. Para ver as coisas «do lado de lá» (e tratar as mulheres muito muito bem e os homens muito muito mal), ainda nenhuma mulher- -realizadora chegou aos calcanhares de Renoir ou de Mizoguchi. A «justa luta» tem sido particularmente injusta no cinema. E foi o cinema, muito mais do que este pequeno incidente chamado vida, que me deu as melhores razões para duvidar da justiça de um combate tão bem protagonizado, em Portugal, pela enga. Maria de Lourdes Pinta- silgo. Quero eu dizer que na minha pessoal descoberta dos factos e das razões que levam um homem a ser diferente de uma mulher, contaram menos as brincadeiras aos pais e às mães ou aos médicos e aos doentes do que meia dúzia de filmes que vi em criança e eram, evidentemente, revela dores. Lembrei-me disso durante o recente ciclo de Filmes de Aventuras na Cinemateca. Na grande época deles, que coincidiu com a da minha infância, era raro o filme de piratas ou de espadachins que não incluísse uma situação que me deixava confusíssimo. O pirata ou espadachim (normalmente Errol Flynn ou Tyrone Power) arrombava a porta do quarto ou do beliche em que os seus inimigos guardavam a beldade que deviam levar a porto seguro (normalmente Olivia de Havilland ou Maureen O’Hara). Além de muito bonitas e muito decotadas, eram valentes e de pêlo na venta. Quando o fora-da-lei entrava, com sorrisinho sobranceiro e atrevido, após a sacramental pergunta: «How dare you?» muito coradas, mostravam logo que preferiam a morte ao destino que as tinham convencido ser pior do que ela. Sempre sorridentes, e sem fazer caso das ameaças, Errol Flynn e Tyrone Power avançavam para as donzelas e pregavam-lhes enorme chocho.188 Olivia de Havilland e Maureen O’Hara debatiam-se muito e, na primeira pausa, respondiam com um par de estalos tão exuberante quanto as suas formas. Os olhos chispavam-lhes. Na platéia, parecia-me evidente a mim que o caldo estava mesmo entornado, sem quaisquer segundos sentidos que, à época, naturalmente ignorava por absoluto. Mas os piratas voltavam à carga e acontecia então, invariavelmente, a cena que tanto me confundia. Após mais alguns debates, Olivia ou Maureen, em vez de multiplicarem as bofetadas, ficavam instantaneamente inertes. Logo de seguida, as mãos deixavam de bater e agarravam-se ao pescoço de Tyrone ou de Errol. E, amplamente correspondido, seguia-se um daqueles beijos que, por essa altura, se chamavam «à americana» ou «à cinema» e que, por causa disso, ainda hoje me pergunto se serão fenômenos naturais ou culturais. Como e porque é que a donna tinha sido tão mobile e a fúria tão passageira, era mistério para que não encontrava explicação. Ninguém ma dava e reparava que os adultos, homens ou mulheres, não pareciam tão chocados como eu por tão flagrante irrealismo. Em vez de perguntar, era melhor experimentar. Devia ter 10 anos, a minha Maureen 11, e não fui nada feliz. Houve o beijo, houve a bofetada, mas na altura decisiva — a reincidência — interpuseram-se entre nós os mais crescidos (que, antes, puxando pelo meu machismo e pela feminilidade dela, tinham favorecido a «brincadeira») e separaram-nos. Simulei uma aparente vitória (tinha dado o beijo), enquanto a autora da bofetada era levada em lágrimas para um gineceu a que eu não tinha acesso. Nunca mais me falou. Imodestamente, nào me convencí que a diferença da situação real para a situação cinematográfica se devesse ao facto de eu não ser nem o Errol Flynn nem o Tyrone Power. Atribuí-a à falta de hipóteses para o segundo beijo e à presença de tantos mirones que não costumavam estar presentes no Pirata Negro ou no Gavião dos Mares. Um dia, a mais recato, tiraria a prova. Infelizmente, a memória dos homens é curta, a das mulheres também, e se a tirei ou quando a tirei, já não me lembrava dos filmes de piratas, nem essas cenas me perturbavam tanto. A vida é assim: sempre, muito cedo ou muito tarde. «Why can’t a man be like a woman?» OS MEUS FILMES DA VIDA 1 8 9 190 JOÃO BÉNARD DA COSTA TODAS AQUELAS ILUSÕES ANTIGAS Hoje, dia 25 de Novembro, Benilde ou a Virgem-Mãe de Manoel de Oliveira passa na Cinemateca Portuguesa, integrado no ciclo em que toda a obra dele pode ser vista ou revista. Se for por mim, vá até lá. Faz-lhe bem. Há 13 anos, estava o filme em cartaz, pela primeira vez, no Apoio 70. Tinha-se estreado quatro dias antes: 21 de Novembro de 1975. No dia 25, quem lá fosse não via nada. Como se lembram, Lisboa estava às escuras, no único estado de sítio das nossas vidas. A 21, já era bem previsível que dezanove meses de carnaval político estavam a chegar ao fim. Ou vinha aí a quaresma, ou, sem transição, uma sexta-feira de trevas que, mesmo breve, nos faria ter saudades da tal longa noite de 48 anos. O ambiente era mesmo pesado. Por isso, no tal 21 de Novembro, o Apoio 70 estava à moscas para a estreia de Benildee, dessa vez, por razões a que o nome de Oliveira era alheio. Virgens-Mães eram a última das nossas preocupações, pois mesmo quem se fiava naVirgem, corria por todos os lados e para todos os lados. A experiência dessa noite — com a visão de tal filme, aparentemente vindo de outro planeta e sem nada que ver com Abris ou Novem bros — foi assaz singular. Para a descrever, ancorado na minha vida, só tenho à mão duas imagens: uma cinéfila, outra literata. A imagem cinéfila ficou-me de Olérceiro HomemCIheThirdMani.um celebérrimo filme inglês de Carol Reed, datado de 1949. Quem viu o filme, lembrar-se-á que um romancista americano de cordel, Holly Martins (Joseph Cotten interpretava-o), chegava a Viena, ainda destruída pela guerra, e ainda ocupada por americanos, ingleses, franceses e russos, para o enterro de um velho amigo, de nome Harry Lime (Orson Welles). Cedo percebia que a morte de Harry envolvia vários mistérios e várias histórias de guerra fria (já se disse que The ThirdMan é o primeiro filme «reflector» 191 dessa guerra). Havia gente que não estava mesmo nada interessada em que ele andasse por Viena a meter o nariz de americano tranquilo e indiscreto. Já o queriam despachar por falta de papéis, quando o director de um clube literário, obviamente com falta de convidados (era o genial Wilfrid Hyde- -White quem fazia esse papel, como sempre magríssimo, como sempre bem-educadíssimo, como sempre a esfregar as mãos, respeitador e irônico) o ouvia identificar-se como escritor. E, levado por enorme confusão de nomes e pela admiração de um sargento americano, convencia-se que Joseph Cotten — que só escrevera westerns aos quadradinhos e só lera, em toda a vida, Zane Grey — era um dos maiores nomes da literatura dos EUA. Logo o convidava para uma conferência. Esse providencial convite dava a Cotten o pretexto legal para ficar em Viena. Seguiam-se imensas e rocambolescas peripécias e tanto o espectador como Cotten se esqueciam por completo do velho senhor. A páginas tantas, Cotten voltava ao hotel, a saber de mais e a tremer pela pele. E eis que o atiravam para o fundo de um carro que arrancava a toda a brida pelas ruas de Viena. Quando nós e Cotten nos convencíamos que iam dar cabo dele, o automóvel parava à porta do clube literário, onde Hyde-White, nervosíssimo, aguardava o «grande escritor» que nunca mais se lembrara do convite é chegava com horas de atraso. E eis que um pobre diabo, a julgar viver a última hora de vida, era sentado numa mesa formal, rodeado de senhoras de chapéu e intelectuais excêntricos, para lhes ser apresentado como um dos expoentes do romance americano, a quem se pediam eruditas digressões sobre o mesmo. E, com meia-dúzia de assassinos profissionais no encalço, a viver angus- tiadíssimas horas, tinha que debitar paleio sobre assunto de que não sabia a ponta de um corno. O fiasco ficou completo, quando um ouvinte quis saber o que pensava ele de James Joyce. Cotten confessou que nunca ouvira falar de tal cowboy. A assistência retirou-se escandalizada. Essa hora no clube literário é uma boa metáfora para a noite da estreia de Benilde ou a Virgem-Mãe. Chegar a outro mundo, com o mesmo mundo à porta. A imagem literária nào a vivi em filmes, mas em Paris, Maio de 68, quando nem eu nem ninguém ainda sabíamos que Maio de 68 era Maio de 68. Estava lá a convite da Association Internationale pour la Liberté de192 la Culture e devia assistir, no Odeón, a um recital de poetas de países em que não havia a tal liberdade, desde Portugal à Bulgária. O metro já não circulava e para ir de Saint-Michel ao Odéon, atravessei estudantes e polícias e granadas de gás lacrimogêneo a rebentar por todos os lados. Era o pandemônio total. Com as lágrimas a correr pela cara abaixo (por causa dos gases) entrei no Odéon, onde vinte pessoas, não mais, ouviam os ditos poetas dizer versos deles nas línguas deles. De Portugal estava Sophia de Mello Breyner Andresen. Lá dentro, não chegava um só som do cá fora. Subitamente, tudo aquilo parecia um sonho ou um pesadelo, como a conferência de Cotten no Terceiro Homem-, a beleza da poesia em línguas estranhíssimas (do servo-croata ao bósnio-herzegovino) as palmas para os poetas, os elogios à cultura livre, entre os sussurros de um ou outro organizador a pensar como é que íamos sair dali. Lá saímos, por traseiras e ruas mais esconsas, a discutir poesia, enquanto à roda se reclamava todo o poder à imaginação. Foi a minha mais forte experiência do Maio de Paris, donde saí no dia seguinte, no último avião que descolou para Lisboa, sem saber, como o herói de Stendhal em Waterloo, que se estava a escrever História à minha volta. Só ouvi poetas. Para a estreia de Benilde, nào fui tão distraído como para o recital do Odeón, ou tão forçado como Cotten para o clube literário. Mas no grupo político de que então fazia parte — conhecido na gíria jornalística pelos «ex-MES» — o espanto com que souberam que eu tinha trocado fundamen tal reunião pelo filme de Oliveira, foi radical e só desculpável pelas minhas idiossincrasias. Ao contrário do que depois fez história (pequena, neste caso), nenhum de nós tinha qualquer ilusão (vá lá, quase nenhum de nós corrijo eu a lembrar-me de certa imagem) sobre o que ia ser de Portugal e sobre o que ia ser de nós, se os vencedores do 25 de Novembro tivessem sido os vencidos. Para essa hipótese, nos precavemos mesmo, com toda a gravidade, arranjando uma casa clandestina que nos iria servir de abrigo durante a eventual «Comuna de Lisboa». A casa estava equipada como os abrigos suíços para a guerra atômica: comidas e bebidas para semanas (quotizámo-nos para as comprar), biblioteca para as noites brancas, baralhos de cartas e outros utensílios úteis. O segredo da morada era total 193 e só um exterior contacto tranquilizaria os familiares e fornecería, em código, novas de eventos exteriores. Visitei essa casa, em missão de reconhecimento, no dia 21, o tal dia da estreia de Benilde. Não era muito fotogénica. E reparei num quadro que representava uma seara alentejana. Pensei que não ia apreciar muito ter que olhar para aquele quadro durante bastantes dias. A noite, na Benilde, vi um quadro semelhante. Era por lá — no iní cio -— que se saía do fabuloso traveling nos estúdios para se entrar na casa de Benilde, a casa amaldiçoada, «culpada» de todos os males. Nessa altura descobri que, ao contrário das aparências, o único filme que reflectiu o fundo de Portugal, 74-75, em raccord com o passado de 48 ou 480 anos, era mesmo o filme de Oliveira. Os «alienados» não eram os que estavam na sala, não era Oliveira, mas os que, no exterior, ecoavam os uivos do idiota, putativo pai do filho da virgem. E percebí ainda, que ao «sol-poente» da luz belíssima do filme, aquela «virgem que passava», sem que ninguém desse por isso, cantava, também, como no célebre soneto de Antônio Nobre, «todas aquelas ilusões anti gas / que eu vi morrer num sonho, como um ai...» Nào houve casa, nào houve clandestinidade. Mas todos as vimos «morrer como num sonho». Sem um ai. Antes, à portuguesa, com um truc televisivo que nos levou do delírio de um capitão arrebatado (em Lisboa) para um filme de Danny Kaye (vindo do Porto). Faz hoje 13 anos, em fundo de Oliveira. Por mim, aprendi a liçào. 1 s> 4 JOÃO BÉNARD DA COSTA A STAR IS BORN Não é só de médico e louco que todos temos um pouco. De actor, jaz sempre um bocado no fundo de todos nós. Raras são as pessoas que, falando de actores ou com actores, não deixam escapar, como desabafo, quanto gostariam de ter tentado, de tentar, ou de vir a tentar. E há sempre uma alma caridosa a reforçar-lhes a convicção. «Tu, é que tinhas jeito. Tu, é que davas um óptimo actor.» Tais intuições (próprias ou alheias) resultam normalmente de enormíssima e santa ignorância. Há um abismo entre o jeitinho (nor malmente avaliado em função do exibicionismo congênito de cada qual) e a potência, e outro, ainda maior, entre esta e o acto. O verdadeiro actor é espécie raríssima e misteriosíssima. Está nos antípodas do «verdadeiro artista» do Herman José, esse, por sinal, dos grandes actoresque temos. Nada tem a ver com habilidades. Qualquer menina prendada é capaz de tocar a Marcha Turca para deleite de familiares e desespero de vizinhos. Tocá-la mesmo, só conheço Edwin Fischer. E o mistério do actor é ainda maior do que o do intérprete musical. Por isso, tanto tem fascinado outros criadores. Herberto Helder escreveu um poema belíssimo sobre isso. Posso falar à vontade, porque fiz a experiência. Também achava, também achavam, que eu tinha o tal jeitinho. E, um dia, a fortuna bateu- -me à porta. Gostei imenso, diverti-me imenso. Mas aprendí que entre mim e um actor há a mesma distância que entre um ornitorrinco e um dinaus- sauro. Quem os confundir, arrisca-se a surpresas desagradáveis. Foi em 1970. Manoel de Oliveira preparava O Passado e o Presente. Faltava-lhe um actor para o papel de Honório. A Maria Cabral, que andava a ajudá-lo em «testes de actores» e que era uma das pessoas que achava que eu falhara a vocação, falou-lhe de mim. O Manoel de Oliveira costuma escolher actores por arquétipos físicos (imagens, aparências) e deve ter achado — imagino eu — que entre a minha triste figura e a de Honório 19 havia afinidades. Disse à Maria Cabral que me sondasse. Ao princípio, levei a coisa toda a brincar. E lá fui, aos estúdios do Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, para fazer uma cena. A minha vaidade ficou toda inchada quando percebi que tinha chegado, visto e vencido. Logo ali, Manoel de Oliveira me convidou «a sério». Foi a minha vez de ficar aflito. Um ano antes, pouco mais ou menos, tinha tomado posse do lugar de 'responsável do sector de Cinema da Fundação Gulbenkian. Lugar e secção tinham sido criados para acompa nhar a primeira grande aposta da Gulbenkian no cinema, traduzida no subsídio integral a quatro filmes, entre os quais O Passado e o Presente. Era dificilmente compatível essa função de «vigilante» do filme (da produção do filme, entenda-se) com a minha intervenção nele. Em vez de ir para Castelo Branco (onde decorreu grande parte das filmagens) no papel de «senhor da Gulbenkian» ir no papel de actor, ou, como terá dito justamente escandalizado, alguém lá de cima, «meter-me a galã». Se fosse galã... Mas Honório, o personagem que representei, era tudo menos isso. Era banqueiro acaciano e pomposo, enganado pela mulher com o primeiro sedutor de Alcântara que lhe aparecia e que jamais se dava conta do que se metia pelos olhos dentro do mais cego. Nem era o último a saber. Não o sabia nunca. E passava o filme a mandar vir, sem nunca perceber que, de todos, era o mais rídiculo. Hesitar, hesitei muito. Estava a gostar do papel na Gulbenkian e não me apetecia perdê-lo. Mas menos me apetecia perder o papel de actor. E, à última hora, com a irresponsabilidade (ou a responsabilidade) que Deus me deu, para escândalo de muitos e descrédito da minha já tão desacredi tada imagem, disse que sim a Oliveira. E fui para Castelo Branco. Não perdi o lugar (há pessoas generosas), não perdi o papel (há pessoas confiantes). Diverti-me muito, aprendi muito. Logo no primeiro dia, aprendi que a coisa não era de carregar pela boca. Na primeira sequência que fiz, tinha que passear pelos jardins da casa onde a acção se passava, a conversar com Firmino, segundo e odiado marido da protagonista, Wanda. Conversar é como quem diz. Honório — o meu personagem — não entendia como é que Firmino 19 6 se prestava tão passiva e molemente aos maus tratos da mulher ou, em termos do filme, ao «papel de marido escarnecido». E, convencionalissima- mente, descompunha o outro, verbalizando superior desprezo. Enquanto isto, nas minhas costas, nas costas de Honório, a minha mulher (Angélica, chamava-se) raspava-se para dentro de casa, para ir para a cama (ou, melhor, para o chão) com o peralta que a tinha debaixo de olho. Bem me prevenia Firmino que «Deus queira que nunca lhe aconteça ser tão ridículo ou mais do que eu». Honório, seguríssimo, respondia-lhe que estivesse des cansado, que isso nunca aconteceria. Era um longo plano-sequência, à Oliveira, com os personagens enquadrados a meio-corpo e acompanhdos por um longo traveling. Preocupado em dizer bem o texto (esse impossível texto), eu nào prestava qualquer atenção às marcas feitas no chão, que me comprimiam os movimentos por forma a nào sair do «quadro». Entusiasmava-me e dava uma volta que me fazia desaparecer da imagem. «Corta», dizia Oliveira, que, com infinita paciência, voltava a explicar-me que eu não podia pisar o risco e voltava a mandar fazer marcas gigantescas no chão. Eu pedia desculpa e prometia atenção. Voltava tudo ao princípio e zás, lá estava eu esquecido 19 7 da marcação. Se a memória não me engana, a cena repetiu-se quinze vezes e só se fez, porque, à décima quinta, Oliveira se tirou dos seus cuidados e pôs-se ao meu lado, de gatas, para não ficar no plano. De cada vez que eu tentava «fugir» dava-me um valente encontrão. Acabei exausto, e ele ainda mais. Foi por essa altura que teria dito a alguém: «O João Bénard é óptimo, mas só da cintura para cima.» Eu, nessa altura, conhecia muito mal Manoel de Oliveira. Tinha falado um pouco com ele, nos anos 60, na altura dessas unitárias homenagens que lhe fizeram quando saiu o Acto da Primavera. Se tinha gostado muito desse filme e dos outros que até então Oliveira tinha feito pensava para dentro que o «velho» (Oliveira andava, nessa altura, à roda dos 60 anos) era capaz de estar muito ultrapassado. E, sinceramente, detestava a peça de Vicente Sanches, adaptada em O Passado e o Presente. Aquela história — sobretudo aqueles diálogos — pareciam-me o cúmulo do rídiculo. Pareciam-me a mim, e pareciam a toda a gente que eu prezava. Nomeadamente, aos não- -actores do filme, que eu já conhecia «cá de fora» e se baptizavam como eu: a Maria Reis (Maria de Saisset no filme, no papel de Wanda, a protagonista), a Gabriela Vieira de Almeida (Bárbara Vieira no filme, no papel de Angélica, minha mulher), o José Martinho Alves do Rio (José Martinho no filme, no papel de Fernando). Todos demos enorme luta a Oliveira, para o levar a mudar o texto, para dar uma volta «àquilo». Completamente só contra tudo e contra todos (inclusive, tendo, a certa altura, que enfrentar «guerra aberta» de dois dos actores e de parte da equipa técnica), Oliveira persistiu. Nessa altura, percebi o que é a solidão de um criador, tanto maior quanto mais dependente dos outros. Mas demorei mais tempo a perceber que só ele tinha razão. Como Ravel dizia do seu Bolero (contra um adversário chamado Toscanini), o que havia a fazer não era tomar o Bolero suportável, mas ir até ao limite do que a peça exigia: a insuportabilidade. Com O Passado e o Presente era a mesma coisa. Só por ser como é, o filme é como é. Isso, que muitos perceberam depois, percebeu-o Oliveira, antes. E venceu-nos a todos. Venceu-me a mim que, desde essa altura, me rendi a ele, sem condições. Foi ele quem transformou um «crítico», convencido que sabia 198 de cinema e convencido que tinha jeito para actor, na imagem impossível que por lá se vê. Ensinou-me que eu estava certo no papel — e ele certo ao escolher-me — sem que isso quisesse dizer que eu possa ou pudesse ser actor. Devo-lhe essa lição. Devo-a, também à única actriz do filme — Manuela de Freitas, a maior actriz portuguesa — que eu conheci no Passado e Presente e continuarei a conhecer no Futuro. Os não-actores, como acima disse, esconderam-se sob pseudônimos. Eu também. Nesse filme nasci como Duarte de Almeida. Voltei para Oliveira (Amor de Perdição, Francisca, Le Soulier de Satiri), para Raul Ruiz (tudo tão, tão diferente), para Paulo Rocha (ODesejado). Mas, se sempre me diverti muito, só com Oliveira esse tal Duarte de Almeida nasceu e existiu. E certamente a ele — muito mais do que a mim — deverei ficar a ser lembrado, quando de tudo o resto já não houver memória. Como um não-actor. De Oliveira. OS MEUS FILMES DA VIDA 199 NATAIS BRANCOS «Um Natal sem presentes nem parece Natal.» Era assim,se a memória me nào trai, que começava o popular romance cie Louise May Alcott, Little Women, tantas vezes adaptado ao cinema. Estou de acordo. Sempre adorei dar e receber presentes, no Natal mais do que nunca. E sou daqueles que gosta do Natal, que gosta imenso do Natal. Natal com todos os efes e erres, com todas, todas as tradições. Desconfio até das pessoas — falo daquelas que não entraram para a vida pela porta de serviço — que nào gostam do Natal. No sentido em que Godard dizia, no Petit Soldat-, «Méfiez-vous des femmes qui n’aiment pas manger.» Mas quando eu era miúdo, nào era só um Natal sem presentes que não era Natal. Era um Natal sem Cinema, ou um Natal sem Circo. Filmes e Coliseu eram inseparáveis da festa. Com as tias velhas e os primos diferentes, foram das coisas que perdi. As tias morreram, os primos tornaram-se mais diferentes (ou indiferentes), o Circo acabou. Só o Cinema continua. Em relação ao Circo tinha sentimentos contraditórios. Fascinava-me mas assustava-me. As feras, os faquires, os prestidigitadores, os ventrílo quos, sobretudo os palhaços. E o sr. França, que não se chamava José- -Augusto. Eram reais e irreais, ao mesmo tempo e demais. Depois, um triste dia, descobri que não havia palhaços, que os palhaços não existiam. Foi quando me cruzei na rua com um sisudo e insignificante cidadão e alguém disse que aquele era o palhaço rico, da cara branca, do Coliseu. Tive um choque muito maior do que no dia em que soube que afinal não era o Menino Jesus quem descia pela chaminé para me pôr os presentes no sapatinho, ou quando soube como nasciam as crianças. Se a minha fé em ‘Deus e nos homens resistiu a isso, é porque resiste a tudo. Graças a Deus, foram revelações tardias. Nunca suportei também aqueles pais pedagógi cos que, em nome da verdade, acham que não se deve contar às crianças 201 a história do Meninojesus. Como se os pais não existissem senão para dizer mentiras, como se educar não fosse senão mentir. Quando muito transijo — com pouca simpatia — na substituição pagã do Menino Jesus pelo Pai Natal. O cinema era o décor— a profundidade de campo — de onde saíam todas as maravilhas dos dias seguintes, já que, geralmente, acontecia antes de tudo o resto, no dia em que era conveniente que estivéssemos fora de casa, para nào ver os preparativos do Natal. A minha mais antiga recordação vem dos cinco anos e tem como nome O Feiticeiro de Oz. que em 1989 fará 50 anos (a Portugal só chegou no Natal de 1940). Esse filme, que continua a ser um dos «filmes da minha vida», esse filme de que já se tem dito, com carradas de razão, que é a mais portentosa metáfora de Hollywood (até se diz que todos os filmes posteriores contêm uma referência a The Wizard ofOz\ foi paixão à primeira vista. Dorothy «Over the Rainbow». A passagem do sépia às cores. O Espantalho, o Homem de Lata e o Leão (sempre amei mais o Leào do que todos os outros). A Cidade-Esmeralda, o Feiticeiro, os «Munchkins», os sapatinhos de rubi, os chupa-chupas liliputianos. E a bruxa, aquela bruxa má, primeiro de bicicleta e, depois, soterrada, a seguir ao ciclone, só com os sapatos de fora. O único ciclone da minha vida — Lisboa, 1941 — misturou-se tanto com o do Kansas que já nào sei onde começou um e acabou o outro. Também dizem que aconteceu na vida real. Há quem jure que no dia da morte de Judy Garland um ciclone se abateu sobre Kansas. Assim deve ser. «De cada vez que vemos Judy passar para lá do arco-íris — escreveu Denny Peary — temos vontade de a avisar que é preciso ter muito cuidado.» Ela nào teve. Só me pergunto se o cuidado a ter é com os ciclones que nos levam ou com os balões que nos trazem. The Wizardq/Oz está ainda ligado à minha primeira dúvida metafísica. Nesse Natal — o tal Natal de 1940 — o Meninojesus deu-me um livro de Frank L. Baum, reeditado, em português. Tinha uma capa dura, amarela, onde estavam Dorothy (Judy Garland), o Leào (Bert Lahr), o Espantalho (Ray Bolger), o Homem de Lata (Jack Haley) e, a um canto, o Feiticeiro (Frank Morgan). E tinha uma cinta onde se dizia, mais ou menos, «O livro 20 2 que serviu de base ao filme da METRO-GOLDWYN-MAYER actualmente em exibição no cinema Éden». Não foi a descoberta da vocação publicitária do Menino Jesus que me fez suspeitar. Mas o excesso de precisão. Como é que, lá no Céu, a distribuir Feiticeiros de 02-por todo o mundo, o Menino Jesus acertava com o cinema de Lisboa? Mudava de cinta conforme os países e as cidades? Não sou capaz de reconstituir exactamente os fundamentos da dúvida, mas andavam à roda de tão particular localização. Lá me deram uma explicação qualquer (a omnisciência do Menino) e convenci-me. Admirei-O ainda mais depois de tal façanha. E essa capa ficou para mim como a prova suprema da existência divina, certamente mais convincente do que o argumento de Santo Anselmo. No Natal de 41, foi The Thief of Bagdad. Sabu tomou o lugar de Judy Garland e Conrad Veidt o de Margaret Hamilton (a Bruxa Má). O Natal de 42 foi o do meu heterónimo Dumbo, outra criatura já aqui convocada e que, desde essa altura, me comove tanto como comovia aquele general do 1941 de Spielberg. Passei a sonhar a cor-de-rosa e ia de maravilha em maravilha e de voo em voo: o voo dos balões no Feiticeiro; o voo de Sabu às costas do gigante no Ladrão deBagdad, o voo de Dumbo, com as orelhas a fazer de asas. A voar continuei, no Natal de 43, sem reparar que mudara de imaginário e dos campos então em conflito. O filme desse ano era alemão e chamava- -se Münchbausen (Josef Von Baky, 43). Em Portugal, chamaram-lhe O Barão Aventureiro. Vi-o no Ginásio. Deve ter sido das primeiras vezes que fui ao cinema sem adultos, já que me lembro bem que o meu único companheiro era um amigo do colégio, da mesma idade que eu. Está-me ligado na memória a uma das minhas primeiras humilhações sociais. Quando lá chegámos a lotação estava praticamente esgotada e só havia lugares no Balcão de 3a- Comprei os bilhetes e lá subimos até aos carrapitos, com ele muito calado. Antes do filme começar, olhando com ar desaprovador a sala, disse-me secamente: «E eu, habituado a Platéias e Balcões de Ia., venho hoje para um Balcão de 3a.» Engoli em seco. Afinal era a precoce manifestação de uma vocação. É, hoje, Embaixador de Portugal. Mas o filme fê-lo esquecer a posição de classe, como me fez esquecer a mim o embaraço. Hans Albers — o Barão — tinha uma bola de cristal 2 03 e voava de corte em corte e de prodígio em prodígio. Deu-nos uma lição de geografia e uma lição de astronomia. Passámos a seguir em mapas e em colecções de selos os países por onde tinha andado o Barão de Münchhausen, que deixara os russos de boca aberta perante os poderes mágicos dos alemães, em contraste flagrante com o que no mesmo ano se passava, mas não entrava nessa história nem na nossa história. Rússia era a de Catarina, não era a de Estaline. Alemanha era de Münchhausen, não era a de Hitler. Não me venham dizer que o cinema aliena. Natais seguintes foram menos mágicos e mais religiosos. Passei-os com o Padre O’Malley (Bing Crosby, mais querubínico do que nunca) ora às voltas com um velho sacerdote rabugento (o genial Barry Fitzgerald) em GoingMy Way (Natal de 44) ora às voltas com uma freira sadia e sorridente (Ingrid Bergman) em The Bells of St. Mary's (Natal de 46). Ambos foram realizados pelo mais romântico e mais céptico dos cineastas de Hollywood: Leo McCarey. Nessa altura, dei mais pelo romantismo e menos pelo cepticismo. Chorei muito com a chegada da velha mãe de Barry Fitzgerald no final do Bom Pastor (título português de GoingMy Way) e não percebí bem por que é que Bing Crosby e Ingrid Bergman nào se casavam no final de Os Sinos de Santa Maria. A vida-cinema ensinou-me que Going My Wayé. também um dos mais sinistros filmes sobre a solidão e que The Bells of St. Afarfs acaba com uma das mais equívocas lines de qualquer diálogo de Hollywood. É quando Bing Crosby se despede de Ingrid Bergman e lhe diz:«If you’re ever in trouble dial O for O’Malley.” No fundo, é uma despedida equivalente à de Judy Garland do Espantalho quando se mete no balão e lhe diz: «Fm going to miss you most of all.» É sempre a mesma história, ficam sempre as mesmas saudades. Ao som de Irving Berlin e do White Christmas, cantado pela primeira vez noutro filme natalício, Hollidaylnn (Mark Sandrich, 42) com Bing Crosby e Fred Astaire. No cinema, como no Natal, tudo mudou para tudo ficar na mesma. Louvados sejam. 204 JOÃO BÉNARD DA COSTA BODAS DE OURO E ANOS VELHOS Morreu Hirohito. Dentro de dias, vou voltar a ver imagens do enterro de um imperador do Japão. Foram as primerias que vi em toda a minha vida, miudíssimo era. Pertenciam a um filme em 9,5, já muito antigo, pois que a última morte imperial na nação que Femão Mendes Pinto chamava «japoa» ocorreu cerca de dez anos antes de eu nascer. Mas, não sei porquê, esse filme era um dos dois que acompanhavam um projector alto, negro e quente que os meus pais nos deram. Apagavam- -se as luzes, punham-se os rolos nos carretos e na parede em frente à minha cama (associo essas projecções a doenças) via milhares de japonezinhos à espera que a catedral rolante passasse. Devia ser um plano fixo que durava imenso tempo até que o imenso carro entrasse «em campo». Ensinavam-nos que ele se chamava Hoshihito, o que não era bem verdade. A única atracção — sempre esperada — era quando uma mulher se virava para a câmara e fazia uns esgares. Era quase imperceptível, mas destoava de tal modo da ausência de acção que só ela justificava a nossa paixão por essa película fúnebre. O outro filme era mais acidentado. Tinha só dois personagens (um homem magro e outro gordo) e acabava com o primeiro a dar um valente pontapé no traseiro do segundo. Ignoro os realizadores ou país de origem dessas duas obras-primas que, como o projector, levaram sumiço e são provavelmente missingfilms. Mas foram as primeiras imagens animadas da minha vida e devo-as ter visto mais vezes do que o Johnny Guitar. Se posso precisar estes factos, já nào posso jurar sobre a data e o local da minha primeira ida ao cinema. As investigações que fiz e mandei fazer apontam para a Branca de Neve e os Sete Anões. Graças ao Luís de Pina, sei que o filme se estreou em Lisboa a 12 de Dezembro de 1938, no Tivoli. Se o vi na estreia, ocorreu há pouco ou ocorre agora o 50Q. aniversário: as minhas bodas de ouro de espectador de cinema. 20 5 Como ninguém se lembrou de as comemorar condignamente (digo-o com algum azedume), celebrei-as eu, revendo, no mesmo Tivoli, no passado dia 30, WhoFramedRogerRabbit?T\A ver se simpatizava mais com o coelho, mas não fui bem sucedido. Aliás, desde Saludos Amigos (45) ou The Three Caballeros( 45), a mistura de humanos e desenhos nunca me deu caixinhas de surpresas. Só exceptuo desse rancor persistente a dança de Gene Kelly com Tom e Jerry no «The King Who Couldn’t Dance», de Sammy Fain e Ralph Freed, para o fabuloso Anchors Aweigb de George Sidney, Stanley Donen e Gene Kelly, em 1945. Não foi portanto uma noite feliz essa das minhas supostas ou reais bodas de ouro. Aliás, voltar ao Tivoli, agora, 50 anos depois, não alegra ninguém. Sobretudo quem, como eu, associa a sala aos anos 40 e 50, aos filmes da Fox com Gene Tierney ou Linda Darnell, aos Preminger ou aos Mankiewicz, do tempo em que Lubitsch lhes passara o facho. Era ainda o Tivoli de Walter Gieseking e de Jascha Heifetz, ou da Filarmônica de Viena, quando os «entendidos» não perdoavam à gerência ter falhado com a promessa de trazer a dirigi-la Wilhelm Furtwãngler, substituído por um «maestro de segunda» chamado Karl Bõhm... Havia critérios. E havia as «terças-feiras clássicas», que por si só merecerão um dia uma destas crônicas. «Antigamente, antigamente, sim», como diria a Agustina. E o Tivoli luzia a dourado velho, e depois do São Carlos, era a sala que cheirava melhor. Channel 5, Vétiver da Carven, ou, pouco depois, as primícias de Yves Saint-Laurent. Je Reviens, que, por sinal, era da Worth. Agora, o que resta dos foyers está pejado de vitrinas de mau gosto e arranjos florais duvidosos e sediços. A luz é baça e gélida, as alcatifas estão esfiadas, com tapetes esgarçados a tapar os maiores buracos. A decadência esboroa cada milímetro e, para voltar a citar Agustina, pela boca de Honorato, o irmão de Leopoldo n’As Categorias, tudo aquilo me parece hoje «um anátema em escabeche». Mudou a luz, mudaram os cheiros, mudaram as gentes, para lá de tudo quanto, de substantivo, igualmente mudou. A sala parece despedir-se e agonizar grosseiramente. Nas cadeiras de napa, o desconforto é solitário. A temperatura ambiente parecia calculada para uma noite exterior de 40° 2 0 6 No intervalo, apareceu um homem a apregoar coca-cola e queijadas. O écran tinha um rasgão, em baixo à esquerda, que acrescentava mais uma curva ao corpo da Jessica. Precedeu o filme um resto de jornal de actualidades, cantando a Europa connosco. A assistência recebeu-o com a banda sonora do antigo Olímpia. Os próprios bonecos — quer os de Disney quer os rivais da Warner — pareciam encolhidos, tão saudosos como eu do tempo da Branca de Neve. As minhas bodas de ouro transformaram-se em velório, daqueles onde não se conhece o morto e o cunhado faz cerimônia connosco e nós fazemos cerimônia com o cunhado. Dei por mim no cúmulo da miséria moral: a ter saudades do Amorei ras 6. Merecia melhor. Porque, se as minhas contas estão certas, e descontado o imperador do Japão, eu vi a luz cinematográfica no ano górgico de 1939, 2 0 7 2 08 o ano em que o vento tudo levou, ciclone terrível para os humanos, zéfiro incomparável para a Cidade de Esmeralda, dita Hollywood. Porque nào foi só o ano do Gone, o ano em que Clark Gable disse a Vivien Leigh: «Frankly my dear, I don’t give a damn.» Foi em 1939 que, depois do «King», nasceu o «Duke», John Wayne em Ringo Kid no western homérico chamado Stagecoach, com que John Ford cobriu o luto de ter visto num necrotério de Phoenix (Arizona), de smoking branco e cinto de diamante, o corpo es patifado do único cowboy a Wayne comparável: Tom Mix, «that rough- -riding son of a bitch». Foi em 1939 que John Ford — outra vez — pôs Henry Fonda a dançar a «Dixie» na mais bela «americana» de sempre, esse imponderável Young MrLincoln. Foi em 1939 que Howard Hawks nos ensinou que OnlyAngels Have Wings. Foi em 1939 que Greta Garbo riu contra a anedota de Melvyn Douglas na Ninotchka de Lubitsch. Foi em 1939 que James Stewart, perdido de rouco, fez a democracia brilhar mais formalmente do que nunca em MrSmith Goes to Washington, de Frank Capra. Foi em 1939 que Judy Garland foi «Off to See the Wizard» no filme dos meus brancos natais. Foi em 1939 que um táxi atropelou Irene Dunne quando ia a correr para o Empire State Building e deixou Charles Boyer sozinho à espera dela e do Love AffairAe que McCarey fez o mais belo melodrama do mundo. Foi em 1939 que Ingrid Bergman surgiu em Hollywood, como Intermezzo pia- nístico na vida conjugal do violinista Leslie Howard. Foi em 1939 que James Cagney foi abatido nas escadas da catedral nos Roaring Twenties de Walsh. Foi em 1939 que Gary Cooper teve aquele Beau Geste e Cary Grant outro, não menos belo, no GungaDin, de Stevens. Foi em 1939 que Fred Astaire e Ginger Rogers dançaram pela última vez em The Story of Vemon and Irene Castle. O sexto dos meus bagos de româ para 1989 foi engolido com o desejo de que tal milagre se repetisse. Mas o cinema nunca é como no cinema, ou melhor dito como na memória do cinema. E também eu — febril e acelerado nestes inícios de 89 — estou a fazer alguma batota. Nenhum dos filmes citados os vi há 50 anos, quando só raramente, em Natais, Anos Novos e Anos Meus, ia ao cinema. Quando muito comecei a vê-los em 40 ou 41, anos meus de filmes já aqui evocados, em que, além de Sabu e Judy Garland, só conhecí de respeito Errol Flynn e Olivia de Havilland no Robin Hood de Curtiz. E se for mesmoabsolutamente sincero, nada foi tão cor-de-rosa como agora o apresento. Entre as minhas mais velhas memórias de mais velhos anos, contam-se mesmo dois dos filmes com que mais me chateei em toda a vida e dos quais impus — raríssima coisa comigo — que me levassem da sala a meio. Um foi TbeBlueBird(Walter Lang, 40). Devem ter achado que a Shirley — mais velha sete anos do que eu — era companhia para a minha idade. Mas fiquei desde aí com uma mortal embirração pela criancinha, primeira criatura a fazer-me fugir do cinema. O outro era uma premonição do recente filme de Cavalier, chamado no original Thérèse Martin e a que por aqui chamaram Vida de Santa Teresinha. Sei agora que foi realizado por um tal Maurice Canonge e também nào aguentei até ao fim tão pia edificação. Pensando bem, nestas bodas de ouro que a elas se prestam, não se deve desanimar completamente. Aposto que o enterro de Hirohito vai servir de pretexto a bem melhores imagens do que as do pai dele que vi nesse projector caseiro dos anos 30. Quando se falham as bodas ganham-se os enterros. Uma nota de esperança em começo de ano fica sempre bem. Bom 89, para todos lá em casa. 05 Mft/5 FILMES DA VIDA 2 09 ANJOS AZUIS Aconteceu-me o ano passado, numa estação de táxis em Paris. Um pacato expectante olhou para mim fixamente e fez-me um sorriso de reconhecimento. Como sou patologicamente não-previsto (ainda estou para descobrir porque é que se chamam previstas às pessoas que conhecem toda a gente) e como já aprendi que 50 por cento dos meus inimigos os devo a essa tara, fiz o que faço sempre em ocasiões semelhantes. Correspondí com um sorriso ainda mais expansivo e mais expressivo, embora não fizesse a mínima ideia de quem se tratava. O desconhecido ganhou coragem e abordou-me com a frase sacramen tal e normalmente fatal para as gentes da minha raça: «Você não me conhece.» Interrompí logo (outro «truque» que aprendi e jamais resulta) a 2 10 desmenti-lo e a dizer que ora essa, então não o conheço lindamente. Só que dessa vez o homem não se deixou abalar nem pareceu abalado, como se eu não tivesse qualquer obrigação de o conhecer. E repetiu que eu nào o conhecia, mas ele me conhecia muito bem. Do cinema. Troquei a aflição pela vaidade. Ora ali estava um francês «oliveiriano» que levava a conhecida admiração gaulesa pelo Mestre do Norte ao ponto de saudar na rua a familiar vedeta de O Passado e o Presentee do Amor de Perdição. Com falsa humildade, respondi-lhe que efectivamente, Portugal, Oliveira, etc. Foi a vez dele ficar interdito. Portugal dizia-lhe pouco, Oliveira menos. Falou- -me da Suécia e de Bergman. Confundira-me com Erland Josephson, o actor das Cenas da Vida Conjugal. Antes de cada um seguir no seu táxi, despedimo-nos até outra vida ou até outro filme. Se nunca ninguém me tinha tomado por Josephson, já muita gente me tinha falado dessa suposta ou real semelhança, que não serei eu juiz em tal caso. Outros me evocam Fernando Rey e por causa de coisas já me quiseram espicaçar chamando-me Rafael (nome de Rey no Charme Discreto da Burguesia). Não me estou a gabar, pois nenhuma das comparações é lisonjeira. Fernando Rey tem mais 18 anos do que eu, Erland Josephson mais 12. Mas ainda é muito menos lisonjeiro — e essa tenho-a ouvido de muitas bocas — quando me dizem que eu vinha a calhar para o papel do professor Immanuel Rath. Nesse caso, julgo que não se baseiam em parecenças físicas com o defunto Emil Jannings, mas em outras histórias. E não me puxem pela língua que tenho muitas contas para ajustar. Immanuel Rath, como muitos saberão, era o nome de Jannings em Der Blaue EngeKO Anjo Azul) que Josef von Sternberg foi realizar à Alemanha a convite do próprio Jannings, em 1930. Ao contrário do que pensava o então celebérrimo actor, O Anjo Azul nào lhe ficou a dever a imensa reputação que há quase 60 anos tem. Se foi e é tão conhecido, como «toda a gente» sabe, isse se deve ao facto de nele ter «nascido» Marlene Dietrich, no fabuloso papel de Lola-Lola. O Anjo Azul, no imaginário colectivo, é ela, desde que, no cabaré com esse nome, escarranchada numa pipa, de ligas e chapéu alto, canta a canção de Hollander: «Ich bin von Kopf bis Fuss/ auf Liebe eingestellt» («Da cabeça aos pés/sou feita para o amor», em tradução livre e de pé quebrado). Como de facto o era, o professor 2 11 Immanuel Rath deixava de aterrar alunos com perdigotos nas aulas de literatura inglesa e juntava os trapinhos com Lola-Lola. Só podia acabar mal e acabava mal. E só não se lembra do «Cocoricó», quem nunca ouviu um amigo incerto numa ocasião certa prenunciar-lhe idêntica conversão em galináceo. Marlene arrulhava-lhe como pombinha no dia das bodas e o professor, vaidoso e babado, respondia com o canto do galo. Os convidados riam muito. Estava encontrado o papel que lhe convinha nos futuros espectáculos da «trupe» de Lola-Lola, até esse “Cocoricó» final, alucinado e demencial, quando Rath, integrado na companhia, voltava ao cabaré do Anjo Azul para actuar perante ex-colegas e ex-alunos. Rath transformara-se em Unrath, que literalmente quer dizer “merda». Curiosamente (anjos com tal cor não se invocam em vão), esse filme transformou-se em maldição para os seus dois principais autores. Sternberg descobriu Marlene — só por isso lhe ficaremos para sempre gratos — mas ia viver com ela em cinco anos e sete filmes (ou plausivelmente, em toda a vida e em todos os filmes, já que nunca esconjurou esse fantasma), destino aproximável ao do professor. Jannings, apesar das honras futuras que os nazis lhe deram, nunca mais recuperou o estatuto que antes fora o dele. Amaldiçoou sempre essa “Dietrich weibe», como Sternberg conta que ele a chamava, que lhe roubou o filme e o realizador. O Anjo Azul é o mais célebre dos filmes sobre o que Balzac chamou «le démon du midi». Coroa uma vaga romanesca, teatral e cinematográfica que, sintomaticamente, nasceu com o romantismo e cresceu com o expressionismo. Na tradição ocidental pré-romântica (no «antes da Revo lução») velhos gaiteiros eram personagens cômicas, para fazer rir o público da commedia delíarte ou da opera-buffa. Eram os tutores de todas as Rosinas. Falstaff (falo do de Verdi, não do de Shakespeare) foi a última expressão desses velhos libidinosos. Ainda é filosoficamente e com bastante fairplay que aceita que «tutto nel mondo è burla», e que somos «tutti gabbati». E solta, com todos, «la risata final». Mas a ordem burguesa e a ordem do imaginário em que se reflec- tiu ■— a ordem onde todos nascemos e todos nos educámos — já não podia rir assim do que a ameaçava nos seus fundamentos. Tanto ou mais do que 212 as adúlteras burguesas — as Luísas, as Bovary—, os velhos ensandecidos por Susanas nada castas, passaram a ser, igualmente, personagens trágicos, como o professor Rath da minha vida. Atrás do teatro, o cinema (sobretudo nos anos 20 e 30) deu-nos dezenas de personagens desses, quarentões e cinquentões, um dia tocados pela «tortura da carne», como se chamava em Portugal um filme de título sintomático, pertencente à mesma família (aliás com duas versões): The Way ofAll Flesh. Ficou-me particularmente na memória uma dessa variantes, que vi muito antes do Anjo Azul. Era um filme inglês, baseado numa peça de Noel Coward, com o próprio no protagonista, realizado por Anthony Darn- borough e Terence Fisher. Coward era um psiquiatra casado e dominador de todos os segredos da alma. Mas falhava nos do corpo, no caso em questão o da bela Margaret Leighton, que uma noite o convidava para ir ao teatro. Por causa dela, abandonava a mulher — a suavíssimamente sofredora Celia Johnson — e por causa dela se suicidava em noite de chuva e ciúmes, ao som da música steineriana do mesmo Coward. Desde o início, um versículo bíblico prenunciara ao médico tal destino. O castigo para os que querem saber de mais é «the astonishment of heart». E The Astonishecl Heart se chamava o filme. Mas se a componente fáustica (relida naturalisticamenteou expression- isticamente) é evidente nestas histórias, talvez não seja a sua raiz primacial. Apesar de tudo, o mito do Fausto tem mais que ver com o poder do que com o amor, com a vida longa do que com a vida nova. E é precisamente na vita nuovade Dante que se encontra uma das mais complexas e fascinantes aproximações para os anjos ou demônios que são metáforas infalíveis nestas histórias. Refiro-me à visão de Beatriz, após Dante se ter cruzado com ela nas ruas de Florença, quando voltou ao seu quarto. O vulto de aspecto terrihileque se lhe anunciou como Senhor dele, trazia nos braços o corpo nu de Beatriz e o Coração Assombrado que lhe deu a comer. Na Divina Commedia, o Poeta, entre os círculos dos anjos, percebe que Beatriz é o símbolo teofânico em que o amor e o conheci mento se unem, como na esfera platônica. Dante, como os trovadores seus contemporâneos, era um «fedeli d’amore». Quem o é, está à mercê de tais anjos (ou tais demônios) e, por 2 1 mais ferozes que sejam os exemplos, encontrará sempre mais deleite nas visões do que nos castigos. Marlene acaba o filme de Sternberg em círculo, repetindo, sem contracampo, a canção inicial. Rath morre agarrado à tampa da secretária, sob um foco de luz. Segundo o místico islamita Abdul Karim Jali, terá sido envolvido por uma “dor aromática», antes de ascender ao Céu de Júpiter, o Céu Azul, o Céu dos verdadeiros Anjos Azuis, que tornam activo o princípio feminino, e passivo o princípio masculino. Talvez por isso, sem querer ou por querer, desde os 15 anos fantasiei mais as asas do que os abismos e me fixei em anjos onde queriam que visse demônios. Nesses filmes, a minha vida ficou também assombrada. 2 14 JOÀO BÉNARD DA COSTA ccc Em crônica anterior, aludi de raspão às três iniciais capitulares deste texto, prometendo para breve futuro explicação delas. O tempo passa a correr e as promessas também. E é hora de se apagarem as luzes para o meu filme da vida, chamado CCC. Para mim, foi um breve filme numa longa vida. Durou cerca de três anos, algures entre o Outono de 1957 e o Outono de 1960. Numa perspectiva menos idealista, começou a 6 de Novembro de 1956 — um ano antes de mim — e acabou em 1965, mais coisa menos coisa, que nào fui ao velório nem ao enterro e, desde 1963, já não era sequer visita da casa. Embora não tivesse assistido ao nascimento, sei tudo sobre ele, graças ao Nuno de Bragança que um dia me ofereceu, em encadernação da lavra dele, as actas do registo e toda a história dos três primeiros anos da criança. Pelo punho do Nuno de Bragança, com o famoso gato que usava como assinatura, está escrito no primeiro desses volumes o que a seguir copio: «Este é o conjunto dos programas e “Folhas de Iniciação Cinemato gráfica” correspondente ao primeiro ano de actividade do Centro Cultural de Cinema, o qual nasceu de uma ideia de Pedro Tamen Nuno Cardoso Peres Nuno Portas José Jorge Escada Fernando Sá Nuno de Bragança José Domingos de Morais. «Este primeiro ano de actividade foi gerido por uma comissão admi nistrativa composta por 2 1 Pedro Tamen (presidente) José Jorge Escada José Campos de Oliveira Nuno de Bragança com a qual trabalharam José Maria Torre do Vale Luís de Sousa e Costa Francisco Bugalho Manuel Vicente Carlos Caldeira Guimarães Frederico Braga José Eduardo Feijóo» CCC vale pois por Centro Cultural de Cinema, subintitulado Cineclube de Universitários para uma Cultura Cinematográfica Cristã. No primeiro texto dado a lume, o próprio Nuno de Bragança explicou o que queria dizer essa divisa: -Fornecer aos sócios ferramenta cultural para ver cristãmente Cinema», ou seja, «este cineclube arroga-se uma pretensão dupla: ensinar a ver o Homem e fazê-lo por intermédio do Cinema». O primeiro tema proposto era a Santa Alegria. Não lhe chamaram propriamente assim. Mas sob o nome de «A Alegria de Viver — As Virtudes Naturais», Jacques Tati (Les Vacances de MonsieurHulot), os Irmãos Marx (A Night at the Opera), Charles Chaplin (cinco curtas-metragens dos períodos Keystone e Essanny) e Tótó (Guardie e Ladri) ilustraram, em Novembro e Dezembro de 1956, em sessões realizadas no Jardim-Cinema, quatro dessas «Virtudes Naturais»: a Infância, a Alegria, a Simplicidade, a Naturalidade. Eram assim em 1956. Éramos assim em 1957. O CCC foi um dos mais tardios frutos do movimento cineclubista que eclodira em Portugal a seguir à guerra, tendo como pioneiro o ainda existente — e resistente — Clube Português de Cinematografia, mais co nhecido por Cine-Clube do Porto, pois no Porto iniciou actividade em 2 1 6 1945. A década de 50 foi o período áureo do movimento, com cine-clubes OS MEUS FILMES DA VIDA 217 de norte a sul do país, de Viana do Castelo a Olhão. Normalmente, era tudo gente do reviralho que achava que o cinema podia e devia ter grande papel na «batalha das idéias» e usava e abusava dos filmes ditos progressistas (que a Censura deixava chegar até às nossas salas) a fim de doutrinar cinema tográfica e ideologicamente. O neo-realismo italiano, o realismo mexicano, o realismo poético francês, o sisudo cinema britânico e um ou outro autor americano (normalmente os que, por essa altura, tinham sido vítimas da caça às bruxas do senador McCarthy) eram a base da programação. Mas aprendia-se muito e uma geração — a minha — deve o amor pelo cinema a essas históricas sessões dos cine-clubes que, nos fins dos anos 50, começaram a ser implacavelmente perseguidos por um regime cada vez mais suspeitoso deles. Se é indiscutível que havia, em muitos, a mãozinha clandestina do PC, era abusivo generalizar e pretender — como por esses anos escreveu Domingos Mascarenhas —- que tivessem Moscovo numa ponta e a Lua na outra. Os tempos eram unitários e nem tudo era ortodoxia. Pelo contrário, até muita heterodoxia se fabricou lá. Por mim, comecei a aprender cinema ainda nos mais velhos desses cine-clubes lisboetas (o ABC e o Imagem) em sessões que tinham por cenário o Capitólio, acolhendo então marginalidades bem diversas das que hoje o frequentam. Depois, começou o CCUL (Cine-Clube Universitário de Lisboa), para as bandas do Chiado Terrasse e foi nele, como «católico de serviço», que me iniciei em prosas cinematográficas e em lugares dirigen tes. À excepção de um artigo dedicado às meninas da JECF (Juventude Escolar Católica Feminina), publicado na revista delas (Ao Largo) a cantar da grandeza do cinema de Sua Graciosa Majestade, jaz num programa do CCUL a minha primeira prosa sobre filmes e vidas. O filme era Miracolo a Milano de Vittorio De Sica, então na sua máxima cotação crítica e política. Acabava com mendigos a voar por cima da cúpula de San Pietro. Para que nào nos extasiássemos só com a poesia, os «controladores» ensinavam-nos a ver que esse voo era orientado para leste, apontando inequivocamente a direcção do paraíso aonde os proletários encontrariam a felicidade. Ainda hoje ignoro se De Sica teve alguma vez essa intenção. 2 18 Esse texto começava pomposamente com o axioma «Vittorio De Sica é o cineasta do Homem» e falava do reencontro «connosco e com os outros». A prosa era tão cristã quanto marxista, em tempo de linguagem cifrada. Fui muito cumprimentado. Mas (outras influências) já começava com gostos bizarros. Nesses anos de 56 e 57, quando, ao meu lado, o CCC dava os primeiros passos, descobri no CCUL Nicholas Ray e Anthony Mann, Budd Boetticher e Richard Brooks. A programação desses autores levou a querelas infindas. Não me sentia em família e no ano seguinte ancorei no CCC ao lado dos «católicos pro gressistas» em cujas veias éticas corria o estético sangue azul que me fascinava. O CCC inaugurara uma prática que destoava da dos outros cine-clubes. Não só os filmes escolhidos eram «diferentes» (Rossellini e Bresson eram os santos padroeiros), como os programas em vez de serem traduzidos dos clássicos eram em vernáculo, ou seja, em prosas nossas e originais. Ao grupo matricial, juntaram-se, além de mim, o Alberto Vazda Silva, o M. S. Lourenço, o Manuel de Lucena, o Francisco Sarsfield Cabral, o Paulo Rocha, o Duarte Nuno Simões, etc. As prosas, seguindo a famigerada influência dos Cabiers du Cinema, começaram a ser progres sivamente delirantes e progressivamente herméticas. Mas publicaram-se por lá alguns dos mais belos textos sobre cinema escritos em portu guês, como os do Nuno de Bragança sobre os Irmãos Marx ou II Bidone de Fellini, os do Alberto Vaz da Silva sobre Casque d’Orou Jobnny Guitar, os do Manuel de Lucena sobre Arkadin de Welles ou Moby Dick de Huston. O Jardim-Cinema (primeiro), o Roma (depois) esgotavam sistematica mente para essas sessões que foram ponto de referência para uma geração e uma classe. Ao princípio, em total sintonia com os gostos dos críticos, a pouco e pouco (progressivamente) desconfiados ou irritados com preferências que lhes pareciam heréticas. Como já uma vez recordei, o Alberto Vaz da Silva e o Manuel de Lucena eram os que mais iras suscitavam pela prosa hermética (signo e sina que os perseguiría vida fora, nas artes ou na política). Mas a cólera das turbas explodiu com um texto meu — obviamente 2 19 sobre Nicholas Ray — efectivamente incompreensível a não ser para mim próprio e mais duas ou três pessoas que de mim sabiam. Como já por lá se instalara a perniciosa divisão entre cérebros e braços, estes, conduzidos pelo jovem Magalhães Mota, meditaram a vingança. E antes de começar a sessão (Bitter Victoryde Nicholas Ray) a voz do futuro deputado fez-se ouvir aos microfones para «ler um texto muito esclarecedor do programa». E leu tudo (o tal meu texto) para uma sala cheia que ria às gargalhadas. Foi o primeiro grande enxovalho público da minha vida. Ce n 'était qu ’un début. Aliás, tudo foram débuts nesses tempos e no CCC. Vivi nele o long, long trailer do meu filme da vida. A partir daí foram só variações. Jamais em forma de fuga. 220 JOÀO BÉNARD DA COSTA TERÇAS-FEIRAS CLÁSSICAS Há horas felizes. Uma delas, foi quando o dr. Fernando Abranches- -Ferrão me telefonou, vai para dez anos, a dizer que tinha em seu poder o espólio do pintor Guilherme Filipe referente ao JUBA (Jardim Univer sitário de Belas-Artes), mais conhecido na gíria lisboeta dos anos 40 e 50 como A JUBA (e, de facto, pelo jeu de motsfora. o nome surrealisticamente escolhido). Esse espólio incluía toda a documentação referente às famosas sessões de cinema que, entre 1949 e 1955, A JUBA organizou às terças- -feiras, no Tivoli, às seis e um quarto da tarde, sob o pomposo nome de «Terças-Feiras Clássicas». Abranches-Ferrão propunha-se legar tal acervo à Cinemateca Portuguesa, intenção que se concretizou em 1981. As caixas que hoje se conservam na Cinemateca contêm, além de todos os programas das 287 sessões, os originais dos comentários que ante cediam os filmes, confiados ao «quem era quem» da vida cultural lisboeta da altura. Todos marcados com o ferrete da Censura. Nuns casos, o «aprovado sem cortes», noutros «aprovado com cortes» (e o célebre lápis azul a riscar o que nào se podia dizer) e noutros um enorme carimbo, ora a azul ora a encarnado (nunca percebí a predilecção da censura por essas cores) com os dizeres REPROVADO. Quando assim acontecia, ninguém comentava o filme. Nessas páginas se encontra um dos mais deliciosos cortes de censura que conheço. Refere-se ao comentário do filme Great Expectations (. Grandes Esperanças) de David Lean (1946), adaptação do homônimo romance de Dickens. Numa sessão de Dezembro de 1952, o ex-candidato à presidência da república, Orlando Vitorino, subiu ao pódio. Pretendia ajustar contas com quantos haviam chamado (a Dickens, ou, even tualmente, a ele próprio) reaccionário. E dizia que essa acusação era «o aviltamento de uma nobre atitude». Até aí, tudo bem para a censura. Mas quando explicava porque achava isso, a porca torceu o rabo. E a passagem: 22 1 «O verdadeiro reaccionário é aquele que se opõe à acção dominante, o que luta contra os vencedores e contra os que mandam. De qualquer modo, o reaccionário é sempre um herói» está cortada a lápis encarnado, com a indicação «reprovado». Já à continuação da frase («e, caso comprovativo, foram sempre os reaccionários os que mais se arriscaram, como aconteceu com o grande dramaturgo Kotzebus, assassinado por um jovem e lírico revolucionário») os censores disseram nada. No espólio incluem-se também dezenas de cartas e os recibos dos comentadores pelas importâncias recebidas. Nessa altura, os intelectuais saíam barato e deixo o dr. Cadilhe a sonhar com os recibos de 300S00, passados por gente como Jorge de Sena, Antônio Pedro, Delfim Santos, Carlos Queiroz, Vitorino Nemésio, Casais Monteiro, Vieira de Almeida, Sophia de Mello Breyner, etc., etc. Há por ali material precioso a estudar, de diversos pontos de vista e esse estudo está a ser feito. Testemunho dele foi a recente publicação pela Cinemateca do livro Sobre Cinema de Jorge de Sena, compilado por M. S. Fonseca e basicamente constituído pelas quinze conferências que Sena fez para A JUBA. Nesse livro se assinalam também os cortes da censura como aquele que a propósito de Les Visiteurs du Soir(Os Tro vadores Malditos) de Marcei Carné (1942), impediu Sena de dizer que «a liberdade do amor e o amor da liberdade, um e outro tão vigorosos, conscientes e firmes que contra eles as portas do Inferno não prevalecerão, representam imperativos constantes da nossa consciência, leis permanen tes da nossa personalidade.» As «portas do inferno» podiam não prevalecer mas a Censura prevaleceu. As «Terças-Feiras Clássicas», com o subtítulo «Filmes que não esquecem», tiveram na aceitação do cinema como obra de cultura e obra de arte um papel decisivo e que, à época, se considerou triunfal. Pelo cinema como «Sétima Arte» tinham pugnado, entre nós, algumas poucas vozes nos idos anos 20 e 30, ecoando as do movimento francês «avant-gardista» que com tal numeração a designou. Remonta a 1917 a primeira tentativa quando, para «selecto público» em «selecta sala» (o Olympia, então o mais sofisticado cinema de Lisboa), o distribuidor e exibidor Leopoldo O’Donnell organi zou as Matinées de Arte. Sintomaticamente, convidou para as inaugurar22 2 JARDIM UNIVERSITÁRIO DE BELAS ARTES FILMES QUE NÃO ESQUECEM COMENTADOS POR ESCRITORES E CRÍTICOS DE ARTE í-à.íA DISTRIBUIR Ê NAO AFIXAR Receita Eventual 2 r’ * preSMt* eílyí* íiÇlLÇ—. exemplares pagou • R-ytíste do aftlp especial devido nos termos da trérb» de Art.» ...Ml dç Ü xipartânciade ...................... ..... Sacçào de Finançiis do 3* Bairro Fiscal, am ______lXWU252_.de U__________ r d* Secaía, ■ ^23222 de 24-XMSÜ?, NASTERÇAS - FEIRAS CLÁSSICAS TIVOLI DAS 18.15 ÁS 20.30 lXWU252_.de Antônio Ferro (com 22 anos e nas sua fase do Orpheü) que, não menos sintomaticamente, escolheu como tema o cinema italiano e «As grandes trágicas do silêncio» que eram três e se chamavam Francesca Bertini, Pina Menichelli e Lyda Borelli. Depois, em revistas dos finais dos anos 20, futuros realizadores também eles à roda dos 20 anos, como Brum do Canto, ou Lopes Ribeiro, partiram para a mesma guerra, na defesa da avant-garde francesa, do «expression- ismo» alemão, de Griffith, Stroheim e Chaplin, ou —- até já — dos clássicos russos. Eles e outros mantiveram a chama acesa até ao fim da segunda guerra, mas a ideia de uma «nobreza» do cinema foi, até 1945, coisa de raríssimos e para raríssimos. Como recordei em crônica anterior, só o movimento cineclubista venceu essa cruzada, por razões, muitas vezes, excêntricas ao fulcro dela. As «Terças-Feiras Clássicas», que apanharam esse movimento na crista da onda, juntaram o útil ao agradável. Se as razões do combate de Guilherme Filipe eram afins às dos cineclubes, soube ele travá-lo com melhor táctica. Mais eclético na escolha dos comentadores e dos filmes, acertou na sala certa. Esse Tivoli, à época genericamente aberto a toda a «grande arte» e aonde se sucediam em concertos, a Sinfônica de Bamberge a Filarmônica de Viena, Keilberth e Bõhm, Gieseking e Rubinstein, Moisewitsch e Brailowsky, Heifetz e Menuhin. Conquistou, assim o «tout Lisbonne.» Entre 50 e 54 — a grande época das «Terças-Feiras Clássi cas» —, o Tivoli esgotava sempre: o «esquerdalho», como lhe competia e parece que volta a competir, enchia o Segundo Balcão; Platéia, Primeiro Balcão, Camarotes e Frisas tinham «as melhores famílias de Lisboa». Às vezes, havia incidentes curiosos. Lembro-me, por exemplo, dum comentário de Frei Diogo Crespo ao filme de Vittorio De Sica, La Porta dei Cielo (A Porta do Céu). O franciscano chegou de hábito e sandálias e em jeito de homilia exortou as «senhoras e senhores» a «que a lição deste filme seja para vós um banho de espiritualidade». Mal acabou, em vez do banho pedido, choveu a pateada dos cucurutos da sala. As bases, responderam, por reacçâo, com uma standing ovation de gente bem vestida e bem nascida. Sorridentemente, o bom frade abençoava uns e outros. 2 2 4 Perdi poucas dessas «Terças-Feiras Clássicas» às quais devo, como aos cineclubes, os meus anos de formação. Vi religiosamente os filmes, ouvi religiosamente os nomes acima citados e muitos outros (médicos, advoga dos) de que lembro, entre os de maior nomeada, Azeredo Perdigão e Adelino Palma Carlos, Celestino Gomes e Reynaldo dos Santos, Diogo Furtado e Eduardo Coelho. A selecçào dos filmes obedecia aos padrões críticos da época. Chaplin, René Clair e De Sica — ensinavam eles — eram os três maiores vultos da história do cinema. Tudo quanto deles existia em Portugal era passado e repassado. Do neo-realismo italiano, não faltava nada que até cá não tivesse chegado. O cinema francês desses anos — depois universalmente execrado — era objecto de nacional adoração e por lá vi todo o meu Camé, todo o meu Delanoy, todo o meu Autant-Lara. Sobretudo — e aí, mesmo meu — lá conheci Cocteau, cujo Orphée, salvo erro, nessas sessões se antestreou e que vi em êxtase. O mesmo se passava com o cinema inglês. Cinema americano pouco e muito maltratado. Eram os tempos em que se achava que a partir de 1945 só havia em Hollywood dois cineastas que mereciam esse nome: John Huston e Preston Sturges. Hitchcock passava raramente e para ser tratado com os pés (puro entretenimento), John Ford, idem idem aspas aspas, Howard Hawks nem era nome que se pronun ciasse em tal santuário. De todos os comentários ouvidos, três me ficaram particularmente na memória. Lembro-me de ouvir Nemésio (mas quem esquece cada intervenção de Nemésio?) a defender Crime and Punishment (Punição) de Sternberg (1935). Sempre se disse — o próprio Sternberg o dizia — que era um filme menor e uma traição a Dostoievsky. O texto de Nemésio (que publiquei em 1984 no catálogo Sternberg, da Gulbenkian e da Cinemateca) é o melhor de quantos conheço sobre o filme, do qual Nemésio dizia que «nele, lemos Dostoievsky», através de sombras e luzes e através da «atmosfera de subterrâneo, fosca e subliminal». Lembro-me de ouvir Sophia (mas quem esquece cada palavra de Sophia?) a comentar Anna Karenina de Duvivier (1948), ou antes o livro de Tolstoi, ou antes Tolstoi. Lembro-me de a ouvir dizer que em Tolstoi havia perdão para toda a gente. «Só um homem não pede justiça e nào pede 22 5 verdade.” Era Napoleão. E lembro-me de a ouvir acabar, recitando em francês, o poema «A Isnaia Poliana» que está escrito no túmulo de Tolstoi. «Des myosotis au printemps». E lembro-me de um excepcional comentário de Vieira de Almeida (mas que comentário dele não era excepcional?) ao Rashomon de Kurosawa (1950). Pela «forma de narrar», Vieira de Almeida comparou Rasbomon ao Fédon de Platão. Em ambos «não se trata só de voltar atrás, como alguma vez ocorre em certas narrativas», mas da «oscilação permanente entre a narrativa do passado e uma evocação mágica que o torna presente.» Lembro-me, muitas vezes, dessa analogia. Sobretudo nestes Meus Filmes da Vida, em que nenhum Equécrates pediu ao Fédon que nào sou que lhe narre a morte e vida de tantos momentos-história que tanto se confundem com a história de momentos. As »Terças-Feiras Clássicas» foram um deles. 226 JOÃO BÉNARD DA COSTA A PAIXÃO SEGUNDO BERGMAN O meu filme da vida, agora, chama-se Ingmar Bergman. Não estava previsto — devia vê-lo de longe e em profundidade de outros campos que mais tinha obrigação de semear —, mas aconteceu. Um pouco como naquele genial filme dele, que agora revi com muito diverso olhar, chamado Fãngelse (quer dizer Prisão e passou esta semana na Cinemate ca pela primeira em em Portugal), em que um velho professor de matemática de um realizador chamado Martin Grande lhe entra pelo estúdio, aonde rodava pacificamente um filme de amor, e lhe propõe uma obra sobre o diabo, sobre a Terra como inferno. O cineasta fica natu ralmente baralhado (apesar do professor ter saído recentemente de um manicômio) e demora 80 minutos (tempo de duração do filme) a responder-lhe que o projecto é inviável. Ou Deus existe e tal acção dramática não tem razão de ser ou Deus não existe e não há solução. Falei de 80 minutos. Podia falar de 40 anos, porque esse nonsense é o sentido da obra de Bergman, pelo menos desde A Prisão, estreado há precisa mente quatro décadas. Como ia dizendo, também não estava previsto que Ingmar Bergman me reaparecesse em Março de 1989 para me meter no filme dele e me convidar para tão faústica diversão. Andava longe dele, há séculos que não o via (a última foi quando aqui escrevi sobre Persona) e planeara ser visitante ocasional do espaço que lhe estava reservado na programação da Cinemateca. Mas, por que toma e por que deixa, comecei a rever-lhe os filmes, alguns até a vê-los pela primeira vez, pois o jovem Bergman nunca andou por Portugal até à semana que está a correr. E — tratando-se de Bergman e de mim — fui apanhado em cheio. Vivo com ele, como com ele, durmo com ele. Sempre fui menino de manias e quando uma me pega tudo me larga. E Ingmar Bergman é altamente contagioso. Apanhei a minha terceira 2 27 bergaminite, depois da primeira (muito violenta) em 1958-60 e da segunda (mais demorada e resistente) em 69-71. Desta vez, formou-se mais depressa e espero que passe com o calendário, quando o ciclo acabar, a 13 de Maio, na Cova da Iria. Da primeira vez, tinha todas as predisposições. Desde 1955 e dos Sorrisos em bergmanomania (já aqui falei disso, mas Bergman convida à repetição) que as minhas bíblias cinematográficas me falavam tanto dele como os mass media hoje falam da SIDA. Por isso se compreende que tenha muito adequadamente aproveitado a minha lua-de-mel em Paris (Verão de 1958) para perder descontroladamente mais essa virgindade. Somarlek(Um Verão de Amor), de 1951, Gycklamas Afton( Noite de Circo). de 1953, e DetSjunde Inseglet (O Sétimo Selo), de 1957, foram as primícias e fiquei infectado. Em 1960, a febre era alta e o pulso muito acelerado. Foi o ano em que por cá se estrearam Sommamattens Leende (Sorrisos de Uma Noite de Verão), de 1955, e Smultronstãllet (Morangos Silvestres), de 1957. logo seguidos por En Lektion i Kárlek (Uma Lição de Amor), de 1954 e Jungfrükallen (A Fonte da Virgem), de 1960. Vi-os e revi-os uma data de vezes, uma data de vezes escrevi sobre eles e até embarquei numa chumbada colectiva chamada Bergman no Cerco, em cujo «genérico» figuram também os nomes de Alberto Seixas Santos, Antônio Escudeiro, António-Pedro Vasconcelos, Ernesto de Sousa, João Veiga Gomes, Jorge Pegado Liz, José Cardoso Pires, José Fonseca e Costa, José Vaz Pereira e Manuel Villaverde Cabral. Santos tempos, como se diz noutro Bergman da juventude, esse chamado Skepp till Indialand (Barco para a índia), de 1947, também visto esta semana na Cinemateca, em prima assoluta em Portugal. Depois — era o meu tempo de modas — fartei-me e julguei curar-me desse vírus. Torci o nariz ao Rosto(Ansiktef), de 1958, por cá estreado em 1962, torci outras partes do meu corpo a Djãvullens Õga (O Olho do Diabo), de 1960, também vindoaté ao Império (lugar de todos eles, honra seja feita ao Eng. Gil) em 1962. Passei a escrever alegremente que Ingmar Bergman era «um daqueles poucos autores que não se devem amar em conjunto ou rejeitar em 2 2 8 conjunto. De vez em quando uma luz não suave mas oculta inunda-o e descobre-nos. Nas trevas, onde há choro e ranger de dentes». Escrevi isto em 1963, quando porca passou Nattvardsgãsterna (Luz de Inverno), filme da colheita desse mesmo ano e que me voltou a extasiar. No fim da década, já me julgava imune. Mas apareceram-me ou reapareceram-me com Persona (A Máscara), de 1966, Vargtimmen (A Hora doloho), de 1968 e En Passion (A Paixão), de 1969. Com a ajuda de Liv Ullmann e Max von Sydow voltei a recair. Contribuíram muito coisas cá minhas e que terei pudor de contar seja a quem for. Mesmo neste permissivo jornal há limites de decência. Foi a seguir a essa crise que julguei tudo composto. Já nào escrevia dislates extremistas como em 1960, nem dislates ecléticos como em 1963. Bergman vinha de tempos a tempos, ao sabor dos filmes, ora mágicos como a Flauta de Mozart, ora visceralmente abissais como Viskningaroch 2 2 9 rop (Lágrimas e Suspiros), com a putrefacção da carne e a «Sarabande» da Suite ne. 5 para violoncelo de Bach (tocada por Fournier), ora obscura mente convulsos como esse Ansikte mot Ansikte (.Face a Face) que é, porventura, o filme mais vezes projectado nos meus sonhos cinéfilos. E vieram as marionetas, e vivi Alexander em casa dos Ekdahl, ou em casa do Bispo. Herbstsonat (Sonata de Outono) também, sobretudo por causa da noite de Ingrid Bergman com Liv Ullmann. Mas agora o caso é diferente. O que me salta às goelas não sào quatro ou cinco filmes, ou um de vez em quando, mas a súmula dos 41 filmes ( mais um episódio) que constitui o ciclo que decorre na Cinemateca desde o dia 11 e até Maio. E, perante este corpus imenso (e ainda faltam Kris. de 1946, Sãnt hãnder inte har, de 1950, e mais os sete filmes que Bergman escreveu mas não realizou), todos os sintomas da doença voltaram, agravados. Dou por mim a fazer listas de nomes recorrentes (porque é que Henrik rima sempre com Frederik, porque é que todas as Karin são tão parecidas, por que é que há tantos Egerman, Vergérus ou Vogler), a perder noites em estatísticas de actores (mesmo os mais secundários), de técnicos, etc. Eu mesmo, no mais mim de mim, em rédea solta masturbatória. As coisas estão complicadas. E quando estão complicadas comigo gosto de as complicar para os outros. O meu desejo é que a epidemia alastre, é beber pelo copo do vizinho para lhe pegar a maleita, e pôr toda a gente a circular entre os espectros de Strindberg e as sonatas de Bergman. Eu disse «toda a gente»? Estou pior do que pensava. Nem o sinto nem o desejo. Nestas coisas e nestas paixões, sempre fui elitista. O que eu queria dizer era «certa gente», quer a conheça quer não a conheça, mas que é sempre «certa» porque incerta e susceptível do mesmo desarrazoado. Gente com razão, burocratas de todas as artes e de todos os ofícios, por mais que se apliquem, ponho-os à porta, que isto é conversa para doentes e para loucos, gente de Bergman, gente de mim. Sào esses que convido (estou a pensar só na semana que vem) para verem como Alma (Gudrun Frost) se despe na Noite do Circo-, para conhecerem as mulheres Lobelius em Kvinnors Vantãn ou os homens do 2 3 0 mesmo nome em Kvinodrôm (mas Kvinnorpper sempre dizer «mulheres»); para a festa de anos do Professor Erneman em Uma Lição de Amor, para beberem do cálice de Madame Armfeldt (Naima Wifstrand) nos Sorrisos, depois de terem sido introduzidos a festins pelo sol da meia-noite dos Verões de amor de Marie e de Monika, também chamadas Maj-Britt Nilsson e Harriet Andersson, minhas paixões maiores. Às vezes, é um Cupido num biscuitquem nos convida a entrar na dança; outras, uma melopeia cantada por um cocheiro bêbedo ou sonolento; outras, ainda, um grande plano dos grandes olhos de Anita Bjork ou Ulla Jacobsson. Mas seja em scherzo seja em andante, seja em allegro, pouco ou muito sustentado, o convite de Bergman é sempre — foi sempre — para a ewige nacht mozartiana, essa que, em Vargtimmen, Max von Sydow iluminou para sempre com um teatro de marionetas. Só quem sabe delas (as noites terríveis) pode também despedir-se de nós a dizer «Boa-Noite», como Bergman disse no final de Fângelse. Sabia disso o Nuno Bragança que dedicou A Noite e o Riso «à Carolina Fonseca Caupers, que me disse Boa-Noite quando nos despedimos antes de ela morrer». Agora sei que Ingmar Bergman é o autor da única Paixão escrita no século XX. Só com essa Paixão pode ser compreendido. Só com essa Paixão pode ser visto, ouvido e vivido. OS MEUS FILMES DA VIDA 23 1 MEIAS-NOITES DE TERROR Cada vez estou mais convencido de que a humanidade se divide em duas espécies: aqueles para quem meia-noite quer dizer o meio da noite, ou seja que falta tanto para viver dela como o que dela já se viveu, e aqueles que nem dão por ela, pois estão a dormir há tanto tempo como o que lhes resta para dormir. Pensando bem, talvez nem seja isso o que divide a huma nidade mas o que divide a humanidade da infra-humanidade. Até há infra- -humanos para quem meio-dia é mesmo o meio do dia e não a hora de começar a acordar. Se é verdade que, poeticamente, a meia-noite é hora de crime e traição, 23 2 também o é que a essa hora começam as casas assombradas a ter algum interesse. E pode atribuir-se o assombro às mais diversas moradas, desde sotãos e andares com séculos de história a caves neófitas, mas que prometem. Coisas para quem sabe. Sabem-no certamente os autores de filmes de terror que se vingaram — muito justamente — das despóticas e esclarecidas maiorias, reservando para essa hora o princípio dos seus efeitos especiais. «Vai alta a lua! Na mansão da morte / já meia-noite com vagar soou.» É mais ou menos isso, que os românticos sabiam destas coisas. Sempre gostei de filmes de terror. Aliás, o cinema foi sempre coisa do diabo, como muito bem viram santos padres, do tempo em que os havia. Quando o comboio dos Lumière chagava à gare de Ciotat, a assistência não batia palmas, mas desandava a correr, para não ser esmagada pelo impa rá vel avanço da máquina. Mais tarde, desataram a fugir os que ouviram ru- gir, pela primeira vez, o leão da Metro, bem convencidos que o animal não demorava a saltar-lhes em cima. Nunca gostou de cinema quem nào gos ta do escuro. E de ter medo. Como dizia a publicidade de um dos últimos grandes filmes de terror — The Fly de David Cronenberg (1986), um dos raros casos em que o remake ultrapassou o original — «Be afraid, be very afraid.» Houve uma altura em que os prosélitos desse culto tiveram em Lisboa templo e tempo especiais. Foi pouco antes do 25 de Abril e era às sextas- -feiras, à meia-noite, no Politeama. Chamavam-se mesmo «Meias-Noites de Terror», e a sala enchia-se com uma fauna especial, cultivada e recrutada nas redondezas (do Intendente ao Socorro). Fazia parte dos rituais nào começar por dar parte fraca e partir para a expedição céptica e galhofeiramente. Pela mesma razão que faz de casas mortuárias e casas de passe lugares privilegiados para engraçadinhos e ataques de riso, os dez minutos anteriores à sessão eram o mais alvar espectáculo que já me lembro de ter visto. Gritos, uivos, estridências de soprano ligeiríssimo ou cavidades de baixo profundo. E o que faltava às gargantas era compensado por todos os órgàos ruidosos que temos. Nào era nada, comparado ou comparável ao que se passava quando a sala obscurecia e se via na tela a trade-mark de qualquer distribuidor português. A banda sonora que a acompanhava desafiava qualquer efeito especial, concebido pelo mais perito. Uns puxavam de apitos, outros de 233 despertadores. Uns berravam «Tira daí a mão», outros «Oh filha, chega-te cá». Além das descargas orgânicas, sirenas, gaitas-de-beiços, cenas de pugilato, reais ou simuladas, pontapés e apalpões nos retardatários,acompanhavam os genéricos e o início do desenho das atmosferas sinistras. Sapientemente, os arrumadores fingiam impor ordem para suscitar mais desordem. Sapientemente a gerência da casa acendia as luzes ao fim de 10 minutos de filme a anunciar intervalo. Durante ele. metade dos ânimos esmorecia, enquanto a outra metade continuava, com provo cações ainda mais soezes, a tentar manter a chama acesa. Nova explosão acompanhava o recomeço do filme, mas não sobrevivia outros dez minutos. Finda essa infalível meia hora (10+10+10+10), depois da meia- -noite e meia, a sala mergulhava no mais religioso silêncio só se manifes tando — com nova algazarra — em dois casos: quando as cópias (normalmente estafadíssimas) davam mais saltos do que o habitual; ou quando, nos momentos de maior tensão, um desconhecedor das regras voltava com uma piada, que já não fazia parte do «filme». Os «xius!» eram então trovoada condigna do começo e rapidamente remetiam o importuno ao seu devido lugar. Foi como cinéfilo que comecei a frequentar essas meias-noites, das primeiras que se fizeram em Lisboa. Porque se a programação habitual era muito má, de vez em quando caíam lá os ingleses da Hammer, Vai Guest, Freddie Francis ou, principalmente, Terence Fisher. Como quase todas as sessões especiais os ignoravam, era ocasião única para os ir ver. E também — mais esporadicamente — para reencontrar um ou outro Roger Corman e um ou outro Mario Bava. É preciso explicar que o gênero (morta a série B e os grandes anos 50) andava pelas ruas da amargura sem ter reconquistado ainda as cartas de nobreza que Exorcistase Tubarõesihe voltaram a dar (algo ambiguamente) na segunda metade dos anos 70. Descendentes de Vai Lewton ou George Pal, do Monstro da Lagoa Negra ou da Tarântula, do Monstro dos Tempos Perdidos ou do Homem do Planeta X, só esses sobreviviam, tratados com os pés pela crítica bem-pensante. Só não fui nessa cantiga, por duas razões: uma espontânea e outra cultivada. A espontânea devo-a ao Cine-Esplanada de Setúbal, aonde, nos 2 3 4 anos 50 e em Verões da Arrábida, costumava matar o jejum cinéfilo das férias. Qualquer coisa servia e por puro acaso, o que por lá vi — e nunca mais esqueci — foram mesmo os filmes série B dos anos 50, de Jack Arnold, gênero Creaturefrom the Black Lagoon (modéstia à parte, o filme favorito de Marilyn, a acreditar em Billy Wilder e no Seven Year Itch) ou Revenge ofthe Creature. Ver Julia Adams ou Lori Nelson nos braços da Criatura, em noites de nortada e com a lua a reforçar o r/écor(a esplanada era ao ar livre e, com a devida vénia, o maior cinema do país) marcou-me para todo o sempre e estigmatizou-me nessas direcções. A razão cultivada, devo-a ao Luís de Noronha da Costa, de quem fiquei amigo nesses inícios dos anos 70, e que tinha (e tem) por Terence Fisher uma admiração que me revelou e contagiou. Para ele — com carradas de razão — Fisher foi o único acontecimento no «impossível cinema inglês» desde Hitchcock até hoje (hoje — yourawful laundrette— ainda está pior do que nunca). Com o Luís Noronha da Costa, nessas noites do Politeama, aprendí The BridesofDracula (1960), The Gorgon (1964), Dracula, Prince ofDarkness (1965) e, sobretudo, sobretudo, Frankenstein Created Woman (1967) e Frankenstein Must Be Destroyed (1968). Frankenstein Created Woman considerou-o ele, desafiando todos os partis-pris (como só ele os sabe desafiar, na pintura e no cinema, construtor de anjos e pacificador de demônios) um dos 50 melhores filmes de todos os tempos, numa lista elaborada em 1981. E a Fisher aplicou a frase do inventor do cinema (Leonardo da Vinci, como se sabe), que diz: «Guarda il lume e considera la sua bellezza. Batti 1’occhio e riguardalo: cio che di lui tu vedi, prima non era; e ció che di lui era, piu non é.» De Corpos queimados pela imagem (cito, mais uma vez, o Luís Noronha) é feito o cinema de Terence Fisher, em que «o grito e o erotismo se encontram gelidamente no sublime do Horror». Nessas sessões do Po liteama, quando Peter Cushing metia a alma do enforcado inocente no corpo cauterizado da amante (Susan Denberg), aprendí as relações que se podem estabelecer entre o «Terror-Cinema» e a sala escura de projecção. O contracampo, nessas meias-noites do Politeama, não estava vazio. Povoava-o uma massa álacre e uniforme que, da mais terrível e' inocente das maneiras, dava imagem a essa contra-imagem. Julgo que, sem ela, jamais teria compreendido Fisher. Mal sabia eu — então — que por essa mesma altura a Hammer (do nome do produtor William Hammer) chegava ao fim dos 16 extraordinários anos (57-73) em que foram produzidos esses monumentos de gothic borror. Mal sabia eu que, em 1973, Terence Fisher (que morreu em 1980) assinava o seu último filme, que já não veio nem a Portugal nem ao Politeama, chamado Frankenstein and the Monsterfrom Hell. Em todo o caso, uma época findou com essas meias-noites de terror que nào sobreviveram ao 25 de Abril. Presumo que muitos dos espectadores se tenham deslocado paulatinamente umas dezenas de metros para cima, do Politeama para o Olímpia, e de Peter Cushing para Marilyn Chambers, a deusa do pomo. As vezes suspeito que é nessas salas, marcadas a X, que está ainda, pelo menos do lado da platéia, o único terror que continua o antigo. Mas sou bem capaz de estar a ser levado por excesso de noites e excesso de fantasmas. 23 6 JOÀO BÉNARD DA COSTA OS COFRES-FORTES Em vernáculo cinematéquico, cofres sào as câmaras (mortuárias ou vitais) em que se armazenam, a conveniente temperatura e a conveniente humidade, os filmes de uma colecçào, a memória dos nossos fantasmas deste século. «Os cofres», «verificar nos cofres» são termos da linguagem quotidiana dessa estranha gente — a que acabei por pertencer — que dedica a vida a guardar e recuperar filmes. Para um leigo, a expfessào presta-se a confusões que podem ser delicadas. Ainda outro dia, um afável visitante ocasional me perguntou, com certa curiosidade, se nós (nós, Cinemateca) tínhamos muito dinheiro. Pensei que estava na frente de mais um que tinha embarcado na «cabala» de que a Cinemateca Portuguesa é um organismo rico, a viver do dinheiro «desviado» do Instituto Português de Cinema, em prejuízo dos naturais beneficiários dos fundos deste: os realizadores. Quando me preparava para repetir pela enésima vez a argumentação que contraria esse malévolo boato, o senhor (que, por acaso, era senhora) respondeu-me que a razão da pergunta não era essa, mas a quantidade de vezes que, telefonando-me ou telefonando ao director da Cinemateca, tinha ouvido como resposta que não estávamos, «estávamos nos cofres». Imaginava-nos, assim, a passar parte do nosso tempo a contar notas nos ditos. Apressei-me a explicar-lhe a outra acepção da palavra, antes que ela nos imaginasse a reunir em malas dinheiro casb para ir às compras na Gandarinha. Os cofres sào os subterrâneos das cinematecas, o lado oculto do que vem ao escuro nas sessões que estas programam. Nas grandes cinematecas do mundo (coitada da nossa ao pé delas) são galerias e galerias, povoadas de caixas onde se afixam os nomes dos filmes mais mágicos da história do cinema. Às vezes tão mágicos que, para evitar cobiças alheias, os títulos são substituídos por nomes de código. Henry Langlois — o pai de todos 2 3 7 2 3 8 nós — nem sequer os tinha. Sabia-os de cor (diz-se que eram 60 mil) ou guardava-os em pedaços de papel que só ele sabia onde arrumava. Quando Malraux o quis demitir (o célebre Affaire Langlois, de 1968) respondeu-lhe que se o ministro persistisse pegava naqueles papelinhos (tirou alguns dos enormes bolsos do enorme fato do enorme corpo) engolia-os. Nunca mais ninguém se entendería nessas criptas. Mas, mesmo ele, que sabia tudo de tudo, às vezes tinha surpresas. Arrumadas a um canto, tinha algumas dezenas de latas, sob o título Les inconnus, referindo-se a filmes ainda nào identificados. Um dia, ao abrir unia delas, teve a surpresa de verificar que umdesses inconnusse chamava mesmo L Inconnu, título francês do famoso filme de Tod Browning, The Unknown (1927), em que Lon Chaney cortava os braços por amor de Joan Crawford. The Unknown apareceu, mas de quantos, tão grandes como, se continua à procura, sem que ninguém saiba do seu paradeiro? Muitos e muitos desapareceram em incêndios ou em guerras, mas muitos mais de sapareceram Umissingfilms'), porque os estúdios acharam, sobretudo na transição do mudo para o sonoro, que não interessava a ninguém guardar cópias e ocupar espaço com movies que nunca mais se veríam. Como Langlois escreveu: «Nos anos triunfais da arte do filme mudo, nos anos que viram, depois de The Birtb of a Nation de Griffith e de The Cheatde De Mille, uma sucessão de obras-primas, nào passava pela cabeça de ninguém que pudesse haver gente capaz da selvajaria de destruir esses filmes ou de os deixar desaparecer.» Não passava, mas passou e a selvajaria fez-se e continuou muitos anos a fazer-se. Nalguns países — Portugal é um deles — faz-se ainda. Findo o prazo da chamada «exploração comercial» (regra geral de 5 a 7 anos), lá vão os filmes para auto-de-fé, com testemunhas, actas e tudo. Nào acreditam? Pois eu vos juro que é verdade. Dou só um exemplo, ao sabor da ocasião e para não ir ao tempo dos afonsinhos. Ao folhear um «Cinéfilo» de 1974, dedicado a Bergman, reparei numa notícia em que a revista informava de várias sessões com filmes dele, por todo o país. A Vergonha passava em Vila do Conde e Alcochete. A Paixão em Tortosendo e na Régua. Quinze anos depois — só quinze anos — onde estão essas cópias? Nem sequer em Lisboa, quanto mais na província. Secamente, os distribuidores informam que foram ao abate. Foi quando Langlois e outros se deram conta do que estava a acontecer, que se criaram as cinematecas. A mais antiga foi a de Estocolmo, em 1933. Depois, em 1935, as de Londres, Nova Iorque e Berlim. Em 36, a de Paris, tinha Langlois 22 anos, e era ainda «mince comme le petit doigt», como costuma dizer a sua viúva Mary Meerson, outro nome capital nesta história (um dia, falarei aqui melhor deles, dois dos seres mais extraordinários que jamais conheci). Mas era já tarde. Como Langlois repetiu vezes sem conta, as cinematecas nasceram com dez anos de atraso. Se tivessem nascido em 1925, em vez de 1935, quase tudo se conservaria. «Apesar disso — foram palavras dele —, ainda se podia esperar que tivessem podido salvar o essencial. Era presumir demasiado dos maus hábitos, do desprezo ou da indiferença que votaram as obras de arte cinematográfica a matéria bruta para transformação em verniz para as unhas ou em algodão- -pólvora.» 2 3 9 2 40 São palavras de 1955. Mas, de 1955 a 1989, a lista somou e seguiu. Apesar de datar de 1938 a criação de um organismo internacional, a Federação Internacional dos Arquivos de Filmes (FIAF) que tinha por fim dar alerta em todo o mundo. Em 1938, a FIAF tinha só quatro membros. Hoje, tem mais de 80. Mas se dezenas de milhares de filmes se salvaram, muitos mais se perderam. Portugal — como de costume — acordou tarde e a más horas. Durante mais de 40 anos, da década de 30 a 1980, a Cinemateca, consagrada na lei. pela primeira vez, em 1948 sob a designação de Cinemateca Nacio nal — confundiu-se com um homem, o Dr. Felix Ribeiro que, sozinho, no SNI, depois na SEIT e, por fim, no IPC, bradou no deserto para a urgência do que havia a fazer. Ninguém lhe deu um tostão, ninguém lhe deu ouvidos. Na hierarquia do funcionalismo público cabia-lhe o grau de chefe de secção, dependendo de chefes de repartição, que dependiam de directores de serviço, que dependiam de directores-gerais, que dependiam de secretários de Estado, que dependiam de ministros. Como ele sal vou — ainda — umas centenas de filmes é mistério que nem eu sei explicar e que se deve à sua imensa persistência e imensa pertinácia. Mas lembro- -me bem — e é só um exemplo — de ele me mostrar um dia (nos fins dos anos 70, já depois dos cravos) um despacho de um ministro qualquer que lhe negava 250 contos para adquirir cinco filmes de Stroheim que lhe eram «oferecidos» por essa irrisória quantia. A Poderosa Excelência achava a despesa injustificada. Desde 1956 — graças a ele — era a Cinemateca membro da FIAF, desde 1958 — graças a ele — começaram as grandes retrospectivas, na salazinha do Palácio Foz que foi tudo quanto arranjaram para lhe dar, mesmo assim obrigando-o a ceder metade das cadeiras a velhos adormecidos, da fa mília dos funcionários do SNI. Começou a rever-se o passado do cinema português, começaram a ver-se os clássicos do cinema alemão e do cinema americano (histórica, essa retrospectiva de 65 a que, terroris- ticamente, António-Pedro Vasconcelos e Alberto Seixas Santos chamaram n’ O Tempo e o Modo «a mais importante manifestação artística em Portugal desde o OrpheuO. Mas dinheiro para cópias não havia e nesses anos — pa ra me limitar ao cinema português — desapareceram as últimas (ainda existentes nos anos 50) de filmes como O Trevo de Quatro Folhas (Chianca de Garcia, 1936), Os Fidalgos da Casa Mourisca (Arthur Duarte, 1938), A Varanda dos Rouxinóis (Leitão de Barros, 1939), O Feitiço do Império (Anónio Lopes Ribeiro, 1940), Porto de Abrigo (Adolfo Coelho, 1941), Vendaval Maravilhoso (Leitão de Barros, 1949) (destes últimos filmes, conserva-se a banda-imagem, mas perdeu-se a banda-sonora). Só em 1980 — quarenta ou trinta anos depois de quase todas as cinematecas —, a nossa conquistou finalmente cartas de nobreza, equipa rada a Direcção-Geral, com autonomia administrativa e financeira, sede e sala próprias, na Barata Salgueiro. Õ Dr. Félix Ribeiro ainda viveu dois anos dessa ressurreição (morreu em 1982) como ainda viveu para ver os seus cofres (de que ele fora pioneiro, mesmo a nível internacional) equipados com um mínimo de condições. Mas, por essa altura, os brados de guerra eram outros. Descobrira-se que nem os filmes salvos se podiam considerar como tais, porque até aos anos 50 todos tinham como suporte químico o nitrato de celulose, objecto de decomposição imparável e altissímamente inflamável. A FIAF lançava o grito de guerra «Nitrate don’t wait», e que não esperava mesmo, demonstraram-no tragicamente alguns grandes incêndios como aquele que em 1981 destruiu totalmente a recém-inaugurada sala da Cinemateca. Transferir tudo para outro suporte (acetato de celulose ou triacetato), pôr os nitratos a recato, recuperar as cores que se degradavam, etc., etc. Só há dois anos (em 87) a Cinemateca conseguiu adquirir o terreno com condições ideais para cofres a sério. Só este ano se vão começar a construir os cofres de nitrato que se impunham para substituir os que, em 1981, foram construídos a título provisório. E o resto — esse resto capital que passa por centro técnico, novos cofres de acetato e bastante mais — está ainda para as calendas gregas. Nos famosos cofres jazem hoje cerca de 800 longas-metragens nacio nais e estrangeiras, em vez das 200 que havia em 1980. Aumentou-se muito? Aumentou. Mas já não indo às 100 mil dos maiores arquivos, quão longe se está ainda das 2 mil ou 3 mil dos países pobrezinhos como o nosso. E, se calhar, há ainda tantas fitas para aí algures, em «boas mãos» ou em «más mãos», sem que se obrigue ao seu depósito na Cinemateca. E, se calhar, 24 1 no momento em que estou a escrever isto, algumas estão a ser destruídas ou a atingir o ponto irreversível da não-recuperaçào. Agora, a ocasião é de festa. Pela primeira vez na história, a Cinemateca Portuguesa recebe a FIAF e, pela primeira vez na história, o congresso dela — o 45.2 — dança em Lisboa. Começa domingo, na Gulbenkian, sob o signo de Chaplin, um dos poucos — senão o único — que defendeu com unhas e dentes tudo quanto fez. É ocasião única para todos acordarmos, desde os que andam pelos cofres aos que nunca ouviram falar deles. É a memória deste século que está em causa. E — pelo menos ao que se diz — é a arte dele que o está também.Mas só serão salvos se formos rapidamente e em força a esses cofres para salvar a imagem de Portugal neles e a imagem de Portugal deles. Este meu filme da vida por essas criptas dava outro filme. Queira Deus ■— e queiram os Altíssimos — que se vá ainda a tempo de poder ser o filme das vossas vidas. Quando acendi esta luz, em 1980, mal sabia da escuridão em que ia entrar. Se me aqueci às luzes da ribalta, faz-me muito frio pensar nas trevas dos bastidores. Tenham medo, tenham muito medo, que é caso disso. 242 JOÃO BÉNARD DA COSTA 0 FILME CENSURADO Chego atrasado para as comemoraçõs de O Independente do 25 de Abril. Foi uma questão de acertar o passo e nunca fui bom nisso. Mas de tanto nos termos habituado — já lá vão 15 anos! — a ver filmes sem precedência para o cartão que dizia «Visado pela Comissão de Censura», muitos se terão esquecido que ao 25 de Abril devemos a possibilidade de vermos o que queremos, sem nenhuma mão a tapar-nos os olhos para o que entendiam que não devíamos ver. Ainda houve, depois, uma ou outra tentativa (Saló, de Pasolini, Je Vous Salue, Marte de Godard, The Last Temptation of Christde Scorsese foram as que mais deram que falar) mas foi só «fumaça» e o «povo sereno» pôde vê-los com maior serenidade do que aconteceu, até, noutros países demo cráticos. A história da censura ao cinema em Portugal está por fazer. Nào começou, como muitos pensam e escrevem, com o 28 de Maio, nem sequer com uma muito citada lei de 1917, quando Portugal entrou na Primeira Guerra Mundial. Antes dela, e desde sempre, os espectáculos de cinema caíam sob a alçada de disposições censórias aplicáveis aos espectáculos em geral e que, com variações regionais, funcionavam em todos os países, também por isso ditos «civilizados». A Ditadura Militar, depois o Estado Novo, pouco inovaram, inicialmente, nesse campo e foram até relati vamente liberais. Por exemplo, era possível ver a Maria do MarClhPó em topless, coisa que outras censuras do mundo nesse mesmo ano já não deixavam que acontecesse. Ninguém considerava vergonha nenhuma haver censura a filmes e num exemplar da revista Imagem, por esse mesmo ano de 1930, o director da Censura, de cara e peito aberto, dava numerosos exemplos (verídicos) de filmes censurados noutros países ocidentais e autorizados aqui. Regras e consensos mundiais facilitavam-lhe a tarefa, dado que nenhuma das grandes indústrias pisava o risco nos três terrenos 2 4 sensíveis. Havia respeito na cama (a partir de 1931, e do Código Hays, na América, nem sequer legítimos casais podiam partilhar uma só delas, mesmo que fosse para sono reparador), havia respeito para com o Poder (nada de subversões, fora um ou outro caso de que a polícia se encarregava), havia respeito pela vida e pela morte (suicídios, abortos ou crimes compensados eram temas tabu). Só a partir de 1936 (início da Guerra de Espanha) os censores portugueses começaram a ter mão mais pesada, impedindo tudo quanto cheirasse ao frentismo desses anos ou a simpatias — sequer as mais líricas — com os republicanos espanhóis. Mesmo que fossem coisas tão inócuas como a confrangedora adaptação do For Whom the Bell Tolls de Heming- way, realizada por Sam Wood em 1943, com Gary Cooper e Ingrid Bergman nos protagonistas. A guerra piorou as coisas. Neutrais como éramos, vetaram-se os filmes de propaganda. Mas, ainda aí, a censura foi mais equânime do que o que se costuma dizer. Se proibiu na devida altura os filmes ingleses ou americanos antinazis, também proibiu os filmes onde a ideologia nazi era mais explícita. Não vimos — durante a guerra — The Great Dictator de Chaplin (40), Man Hunt de Fritz Lang (41), To Be orNot To Be de Lubitsch (42), Casablanca de Curtiz (43) mas também não vimos Ohm Krugerde Steinhoff (40), Juden Suss de Veit Harlan (40), Die Rotscbilds de Erich Wartneck (41) ou DerEwigejude de Franz Hippler (41). Isto para me ficar por casos mais célebres. Foi por essa altura e a propósito de filmes de guerra que a censura entrou como filme na minha vida, de fonna assaz perturbante. Lembro-me que era fim de Verão e que estávamos na Arrábida. O meu pai, angló- filo ferrenho, chegou entusiasmado com a visão de Mrs. Miniver (William Wyler, 42) que, em Setembro de 44, chegou ao S. Luiz para permanecer em cartaz umas então impressionantes 7 semanas. Contou o filme tintim-por-tintim e, ouvindo-o, impressionou-me particularmente a descrição da cena em que Greer Garson (essa actriz que bem podia ter sido mãe de Meryl Streep) no papel de Mrs. Miniver, matava um soldado alemão que lhe caía em casa de pára- 2 4 4 -quedas. Quando viemos para Lisboa quis ver o filme. Houve conciliábulos fa miliares para decidir se os meus 9 anos seriam idade suficiente para história tão geradora de lágrimas e suspiros. O voto paterno — suponho que para alicerçar na criança que então era comum amor à Liberdade e à Grã-Bre tanha — foi decisivo. Fui ver o filme, com uma tia. Esperei pela dita cena todo o filme e a dita cena não veio. Nem Teresa Wright por quem logo me apaixonei (e morria no fim, recém-casada e muito novinha, vítima das bombas da Luftwaffe) me compensou dessa inexplicável ausência. A saída, a minha tia atribuiu-a à fantasia do meu pai. Quando confrontaram visões, a discussão foi rija, entre acusações de nào saber ver e outras de ver de mais. Chamado a arbitrar, vi-me na difícil situação de ter que lhe dar razão a ela, colaborando na insinuação de que o meu próprio pai mentira. Foi a minha vez de ouvir alguns nomes, sobretudo o de nào perceber o que via. 24 5 A situação, pesada de consequências quanto a argumentos de autori dade, só se esclareceu dias depois. Entre a visão do meu pai, logo na primeira semana de exibição, e a nossa, interviera a Censura. Ao que parece a Embaixada alemã tinha protestado contra a imagem do soldado nazi e mais ainda contra as palmas com que o público festejava o acto justiceiro de Greer Garson. E, para evitar problemas, a censura puxara das tesouras, e cortara a sequência. Restabeleceu-se a paz familiar e eu fiquei com dúvidas metódicas para o resto da vida. Comecei a detestar censuras que nào me tinham deixado ver o que mais imaginara. No ano seguinte — fim da guerra — foi uma festa. Para que a oposição nào continuasse a dizer que Salazar amara Hitler (coisa que, de resto, hoje objectivamente nào creio) a censura deu luz verde a todos os Raios de Luz que Hollywood gerara entre 41 e 45. Foi nào só esse — TheEdge ofDark- nessde Lewis Milestone, em 1943, com Errol Flynn e Ann Sheridan — como uma longa lista que incluiu os filmes acima citados e todos aqueles em que Hitler era pior do que péssimo. De todos, os que mais me fizeram soluçar chamaram-se (não é para me gabar) HangmenAlsoDieíAò), e Roma, Città Aperta (45). Ainda não sabia sequer que havia realizadores, quanto mais que os nomes deles eram, respectivamente, Fritz Lang e Roberto Rossellini. Esta primeira «primavera- nào se passou sem facadinhas, por aqui ou por ali. Do discurso de Chaplin — Hynkel no Ditador (Ditador, em vez de O Grande Ditador, estreado nos fins de 45, no Tivoli, cinco anos depois da «première» em Hollywood) as legendas só deram abreviada versào, convenientemente expurgada. Na Roma de Rossellini, nunca se explicava que o resistente protegido pelo padre (Aldo Fabrizzi) era militante do PC. E, até mesmo na cena da tortura, quando o oficial da Gestapo berrava contra o sacerdote, perguntando-lhe se ele sabia que «lui è un communista- a legenda, fingindo ignorar o que até o menos linguisticamente dotado dos espectadores poucas dúvidas teria em identificar, escrevia «ipsis verbis»: «Ele é um homem malvado.» Apesar da enorme tensão da cena, as gargalhadas na sala faziam lembrar um filme dos Marx. Foi por essa altura — mais ou menos — que um Deputado da Nação tomou a palavra em S. Bento a dizer que se estava a ir longe de mais em 2 4 6 matéria de permissividade. O filme visado nào era nenhum filme antinazi mas TheBig Sleep