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COSTA, João Benard da = Filmes da minha vida

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Prévia do material em texto

© JOÀO BÉNARD DA COSTA (1990)
E
ASSÍRIO & ALVIM
COOPERATIVA EDITORA E LIVREIRA, CRL
RUA PASSOS MANUEL, 67-B, 1100 LISBOA
EDIÇÀO 299, NOVEMBRO DE 1990
DEPÓSITO LEGAL Ne. 34015/90
ISBN 972-37-0260-6
ESTE LIVRO FOI COMPOSTO POR MARIA DA GRAÇA MANTA
E IMPRESSO NA GUIDE - ARTES GRÁFICAS, LDA.
Os 
Filmes 
da Minha Vida
João Bénard da Costa
Os Meus Filmes
da
Vida
NOTA INICIAL
Neste volume, reúnem-se as 52 crônicas e um prefácio que, entre 27 de 
Maio de 1988 e 30 de Junho de 1989, publiquei n' O Independente, sob 
os títulos «Os Filmes da Minha Vida» e «Os Meus Filmes da Vida».
Durante aquele período, esses títulos alternaram, semana a semana. 
Neste livro, agrupei-os de forma diversa. Começa-se com «Os Filmes da 
Minha Vida» e acaba-se com «Os Meus Filmes da Vida». 26 textos para 
cada lado.
A última crônica da série final — «O Meu Filme Independente»—pode 
ser lida como conclusão. A ahrír o volume, hâ o tal prefácio chamado 
«A Casa Encantada», que foi crônica inaugural. Numa e noutra se 
explica tudo o que há para explicar. Quaisquer outras palavras são 
desnecessárias.
Não é necessário— mas é bom — agradecer ao Miguel Esteves Cardoso. 
Foi ele quem me convidou para O Independente, foi ele quem aceitou os 
meusfilmes e a minha vida efoi ele quem mepropôs que agora reunisse isto 
tudo num livro. Por isso, é também uma das aventuras dele. Não sei se terá 
as mesmas consequências. Mas teve os mesmos riscos. E o mesmo gosto.
Joào Bénard da Costa
8 JOÀO BÉNARD DA COSTA
PREFÁCIO / A CASA ENCANTADA
Como David Copperfield, gosto de começar pelo começo, quando falo 
de vidas ou da minha vida. Apesar disso, A Casa Encantada, título 
português de Spellboundde Hitchcock, não foi o primeiro filme que eu vi 
na vida, nem o primeiro filme da minha vida, nem o meu primeiro filme 
da vida. Quando o vi, na estreia, no Tivoli, em fins de 1946, já tinha 11 anos 
e muitas horas passadas em quartos escuros desses. Isto para me situar e 
para vos situar.
Ignoro mesmo qual foi o primeiro filme que vi na vida. A acreditar em 
recordações familiares, mas nào minhas, talvez tenha sido o Pinocchio. 
Pelo menos, sempre ouvi contar que tiveram que me levar à força da sala 
do cinema cá para fora (o mesmo Tivoli, já é predestinação) porque 
chorava demasiado desmedidamente. Parece que mais desmedidamente 
chorei no foyer, a pedir que me deixassem voltar lá para dentro.
Mais razão tinha eu do que os zeladores das minhas lágrimas, como 
futuras visões do Pinocchio me ensinaram. Mais tarde, continuei a chorar 
com o Pinocchio (até sob a forma da variante-livro, que eu conheci pelo 
título As Aventuras de Polichinelo') sem perceber por que é que o Geppetto 
construía o boneco e depois o deixava entregue a Gatos, Raposas e Grilos, 
causadores de tantos males. E aquela história dos meninos transformados 
em burros e do Pinóquio a zurrar quando só queria pedir desculpa, ainda 
hoje me parece metáfora adequada à injustiça humana. Tamanha aflição. 
Por ela e por todos os que ficaram tão aflitos como eu, bendigo Walt 
Disney. Louvado seja, por ter dado technicolor e animação aos pesadelos 
que tive e tão bem me fizeram. Guarde-o Deus e precipite no inferno a 
geração de pedagogos que a certa altura andou por aí a dizer que os filmes 
dele faziam mal às criancinhas. Nào percebiam nada de nada. Ele percebeu 
tudo de tudo. Ainda hoje me maravilho, sem querer psicanalisar nada, que 
tivesse havido alguém com a ideia de fazer crescer coisas ao Pinóquio, de 9 
1 0
cada vez que pecava. Isto é, de cada vez que mentia, único verbo que em 
criança se traduz por pecar. Eu que o diga, que aldraboso e mentirão fiquei 
pela vida fora (por que é que se diz assim e nào pela vida dentro?).
Não anda longe desta conversa a minha mais remota lembrança de idas 
ao cinema. Uma tia velha quis levar-me a ver a Branca de Neve. Mas era 
um programa duplo, num cinema de reprise. E o programa incluía também 
(a gente das Cinematecas muito podia aprender com os programadores 
desse tempo) a Queen Cbristina do Mamoulian, com a Garbo. A minha 
mãe achou que essa fita não era para a minha idade e não me deixou ir. 
Na minha memória, tal cena mistura-se com imagens de uma telefonia a 
dar notícias e de um velho a dizer que tinha morrido o Papa. Se não 
confundo tudo, só podia ter sido Pio XI. A data 1939 e eu com 4 anos. Dias 
depois, saía fumo branco por Pio XII, que muito, muito mais tarde, seria 
meu Geppetto e meu Grilo, antes de morrer aos soluços a ouvir o 
«Allegretto» da Sétima Sinfonia de Beethoven, se acreditar na dedicatória de 
um soneto de Jorge de Sena. Esse que começa com o verso: ■Como de Vós 
meu Deus, me fio em tudo». Eu também.
Essa história dos filmes que não eram para a minha idade, durou até 
acharem que devia acabar. Julgo que até aos 15-16 anos. Lembro-me de 
alguns requintes. Levarem-me ao Ginásio para ver um documentário 
alemão sobre a Galeria de Dresde e fazerem-me sair da cadeira vinte 
minutos depois do «filme grande» começar, porque iam também começar 
a acontecer as coisas que não eram para a minha idade. O requinte não 
estava na visão do documentário (de museus sempre gostei tanto como de 
filmes) mas em me interromperem o prazer que estava a ter. E lembro-me 
de imensos filmes proibidos, com títulos portugueses mais do que suges­
tivos (Almas Perversas, Amar Foi a Minha Perdição, O Pecado de Cluny 
Browri) que eu imaginava — tanto quanto podiam chegar os meus 
conhecimentos — com imagens não muito diversas dos actuais Coxas 
Quentes, Orgias Escaldantes ou Bombeiros do Sexo. Desde essa altura, amei 
esse filmes tão antes de os conhecer, respectivamente, por Scarlet Street, 
Leave Her to Heaven e Cluny Brown e saber que eram de Fritz Lang, John 
M. Stahl e Ernst Lubitsch. Porque será que os pais nunca se enganam?
Talvez por isso, ir ao cinema — sobretudo quando ia sozinho, o que 
começou a acontecer cedo — teve sempre foros de coisa perigosa, ou até 
mesmo pecaminosa. Depois, tudo se fazia escuro e começava a magia. O 
«spell» do tal filme de Hitchcock, disparatadamente traduzido, mas certei­
ramente conduzindo à «casa encantada». Que, no caso, era nào só a casa 
do dr. Edwards (clínica para doentes mentais e ninfomaníacas) mas o 
«décor» pintado por Dali para o primeiro sonho à Freud do cinema: era 
nesse sonho que se ficava a perceber — como muito, muito tarde percebi 
— que o doente mental nào era o médico mau Leo G. Carroll mas o médico 
bom Mikhail Chekhov (que, de resto, tinha a quem sair, pois era sobrinho 
de Tchekov) e a ninfomaníaca nào era a rapariga má Rhonda Fleming mas 
a rapariga boa Ingrid Bergman. Sem ofensa para ninguém, antes pelo 
contrário, pois doentes desses foram sempre os que me curaram melhor.
E deve ser essa a razão — umas das razões — para, logo que me falam 
em filmes da minha vida, me lembrar de Spellbound. E a música de Miklos 
Rozsa para esse filme ainda hoje é a que mais me diz a zonas sombrias. Por 
isso, comecei estas crônicas sob o signo desse Selznick-Hitchcock Film e 
deixei-me ir.
Prometo para as próximas ser mais organizado. E, como combinei com 
os donos desta casa, alternar as crônicas chamadas «os filmes da minha 
vida» com as que levarão por nome «os meus filmes da vida» k Nas primeiras 
falarei de filmes. Nas segundas, falarei de vidas. Terei levado a água ao meu 
moinho se, ao fim de 52, começarem a perceber que nào há diferenças. De 
resto, para vosso e meu desassossego, nào vào perceber nada que seja 
propriamente original.
1 Neste livro, como explicado na Nota Inicial, nào sucederá assim. 1 1
OS FILMES DA MINHA VIDA
1 4 ,/O.ÍO 13ÉNARD DA COSTA
LILIOM: UMA VEZ É NENHUMA VEZ
Liliom (1934) é um dos mais ignorados filmes de Fritz Lang. Data da sua 
breve passagem por França (Abril de 1933 a Junho de 1934) depois de fugir 
a Hitler e antes de se fixar nos Estados Unidos.
É um estranhíssimo filme, adaptado de uma peça de teatro do húngaro 
Ferenc Moinar, em que metade das coisas se passam no Além. Liliom é 
nome do protagonista, interpretadopor Charles Boyer, entào muito 
novinho, muito bonitinho e ainda sem os tiques que apanhou em 
Hollywood quando o puseram a fazer de Napoleão e a seduzir quantas 
Greta Garbo por lá havia.
Liliom, nas categorias de Kundera (leiam o livro mas nâovejam o filme), 
era um «ser insustentavelmente leve». Festas, copos e mulheres, sustento 
e glória da sua humanidade. Além disso, desordeiro e ladrão, com algum 
cadastro às costas.
Até que encontra Julie, «ser insustentavelmente pesado» que lhe 
conhecia bem o curriciilum. Julie surpreende-o, quando aceita viver com 
ele. «Não tens medo?» pergunta-lhe Liliom. «Quando amo uma pessoa, não 
tenho medo de nada.»
Se Liliom percebe que Julie é um caso diferente, a total dedicação da 
rapariga começa a dar-lhe complexos de culpa. Passa as noites fora de casa, 
gasta em copos o dinheiro que ela se esfalfa a arranjar e um dia, mesmo, 
chega-lhe valentemente a roupa ao pêlo.
Até que a «leveza» de Liliom vai longe de mais. Ao saber que Julie está 
de esperanças, decide-se a ganhar muito dinheiro para a criança ter vida 
fácil e aceita a proposta de um amigo de assaltar um cidadão de carteira 
supostamente bem recheada. Era armadilha da polícia, decidida a ajustar 
contas. Tiros, fuga e Liliom, em cima de um monte e recortado contra o céu 
baço, prefere cravar no próprio peito uma faca do que ser preso. Eis, pois, 
o protagonista, insolitamente morto, a meio do filme. 7
Mas é nessa altura que se passa para «outra dimensão». Junto ao corpo, 
aparecem três «polícias de Deus». Se a morte resolvesse tudo, era cômodo. 
Que seria da justiça, se morrer fosse tão fácil solução para fugir a ela? E 
levam-no céu fora, ou céu acima, deixando Julie a chorar junto ao cadáver 
assim desdobrado.
O Além parece-se singularmente com a esquadra de que Liliom era 
habitual frequentador. A única diferença é que os polícias têm asas. Para 
o julgarem, recorrem a um método assaz original e assaz premonitório em 
1934, mesmo considerando que estamos em Sítio onde não há tempo. 
Projectam-lhe em ecrã de televisão o filme da vida dele, graças, certamente, 
a antenas hiperparabólicas. Volta-se a ver a cena das estaladas. Mas em 
double-band. Isto é, não só se vê e ouve o que Liliom fez e disse, mas 
também o que pensou enquanto fazia e dizia tais coisas. E «quando aquilo 
que a gente sente / cá dentro passa a ter voz», ouvimos Liliom autochamar- 
-se alguns nomes feios e admitir que Julie tinha toda a razão e ele nenhuma. 
E em vez de, como diz a cantiga, muita gente, toda a gente passar a ter pena 
dele, Liliom fica em piores lençóis. Ele próprio se autocondenara. Uma 
pena de 16 anos de Purgatório. Findo esse prazo, poderá voltar à Terra, por 
um dia, para ver a filha e, eventualmente, Julie.
Dezasseis anos depois, Liliom consideravelmente envelhecido, volta a 
este mundo com os três guarda-costas. Conhece a filha, que obviamente 
o não conhece a ele, e lhe diz que o pai morreu na América e era homem 
de sumas virtudes. Liliom, em conhecimento de causa, permite-se duvidar. 
A rapariga não admite ao desconhecido tais reservas. Não só lhe responde 
espevitada e malcriadamente, como se recusa a aceitar «o mais belo dos 
presentes»: uma estrela que Liliom roubara do céu para lhe dar. Atira-a para 
uma sarjeta e a estrela apaga-se. Sempre impulsivo e sem pachorra, Liliom 
usa do direito paterno e dá-lhe um tabefe.
Logo os guardas o agarram e o voltam a levar «para cima». Dezasseis 
anos de amarelas chamas não serviram para o emendar e lhe corrigir o 
feitio. Debalde, Liliom se queixa da maldita justiça. Os «carcereiros» são im­
placáveis. Mas nova «transmissão», desta vez «em directo», vem mudar a 
situação. É a «reportagem» da chegada da filha a casa, a contar à mãe o caso 
do dia. Quando refere a bofetada, observa, com espanto, que não lhe doeu1 6
nada. Como é possível, pergunta. Nostálgica, recordando o marido e a 
sova, Julie responde com doce sorriso: «Houve um homem que me bateu 
e foi tão bom.» Liliom, ao ouvir desta, sorri triunfantemente para os anjos. 
A balança dos seus feitos começa a equilibrar-se.
Há, neste filme, pelo menos, duas coisas assaz extraordinárias.
A primeira é a «visão celestial» de Fritz Lang. Iniciando uma moda — que 
depois surgiu em variadíssimos filmes dos anos 40 — o Além é tudo menos 
lugar aprazível. É o mundo da supertecnologia, com um aparato de sofis­
ticação electrónica que, à época, nem em filmes de ficção científica se via. 
Essa informatização serve a eficiência e a eficiência serve a justiça. Por 
isso, o Além é mundo de regulamentos e proibições, em que de nada va­
le — como tenta Liliom — apelar para a Administração. Como já lhe tinham 
respondido na terra — nas esquadras — a Administração é, por definição, 
irresponsável. O Além é sistema policial, arquivo de confissõese sentenças 
e onde o amor não mete bedelho (quando o mete é transgressor).
Já sabíamos, desde o século XV e da história da pintura ocidental, que 
qualquer visão do Inferno (e nem é preciso ir até Bosch) excitou muito mais 
a imaginação dos artistas do que homólogas visões do céu. Apesar dos 
tormentos e suplícios (ou por causa deles) tais quadros e frescos — que, 
entre outras coisas, permitiram mostrar corpos nus, impensáveis noutras 
paragens — foram sempre mais sugestivos do que representações celes­
tiais, castas e estáticas, sem sexo nem vida. Fra Angélico foi um grande 
pintor, mas nem todos os seus azuis e dourados deram resposta, estética 
ou ética, às delícias do paraíso ou à «eterna felicidade». Asinhas e muita 
música parecem pouco para preencher tempos infinitos. Nisso os muçulma­
nos foram talvez mais sagazes, embora eventualmente mais contraditórios. 
Dante, na Divina Comédia, também se deu conta dessa dificuldade e teve 
que inventar Beatriz para que o poema não decaísse de acção e interesse 
ao chegar ao canto celestial.
O cinema ainda não nos deu Caldeiras de Pêro Coelho ou Campos 
Elíseos. Mas, de cada vez que foi para essas zonas (e pensem em todos os 
filmes do céu que viram) deu dos Aléns uma visão decalcada da de Lang 
em Liliom. No fundo, a parábola de Liliom é a que serve de justificação à 
própria ideia de inferno e subjaz a múltiplas querelas teológicas acerca da 1 7
incompatibilidade entre o Deus supremamente bondoso e o Deus supre­
mamente justiceiro. Para lá da morte, o que nos espera é uma omnivisão 
implacável. Especularmente, a ordem moral, com a permanência da culpa, 
acciona idênticos mecanismos de destino, sem as liberdades (falhas 
técnicas ou humanas) que nesta vida ainda podem acontecer.
E daqui decorre a segunda e ainda mais insólita surpresa deste filme.
Para julgar a vida, os «polícias de deus- recorrem ao cinema, como 
infalível testemunho do real. O céu é audiovisual e há «cassettes» prontas 
para responder a todas as dúvidas. Só que não respondem a dúvidas 
nenhumas, porque o filme apenas repete, mecânica e etemamente, a visão 
que já conhecíamos. Mesmo quando lhe acrescentam a double-band, esse 
acrescento é parcial. Porque se ouve o que Liliom pensou (e só confirma 
o que tinha dito), mas não o que os outros pensaram, neste caso o que Julie 
pensou. As representações parciais são sempre mais totalitárias e mais im­
placáveis do que as representações integrais. Quanto mais se fixa mais se 
condena. O cinema é, nesse sentido, uma arma mortal.
Se as cenas da Terra são fugazes, o filme delas não o é. A única mudança 
só pode vir de mais vida, ou seja do que acontece de novo.
Essa é a suprema astúcia de Lang. Quando Liliom já não tem salvação 
chega ao Além a «transmissão em directo» que modifica a «transmissão» fixa. 
O que o salva não é o filme dele, mas o filme de Julie, o filme de outra 
vida.
No fundo — e daí a aproximação que fiz com Kundera — a tragédia 
de Liliom é que a sua vida só se pode repetir além e aquém. Voltar à terra 
de nada lhe serve, porque ele é sempre o mesmo. Viver uma vez não é viver 
vez nenhuma («Einmal ist keinmal»), E isso é tão verdade para a vida, como 
para o cinema. Só que neste — atransmissão em directo — são possíveis 
surpresas que podem fazer vacilar a balança do destino. Sem essa novidade 
(a novidade do amor) a única possibilidade de Liliom — ou para Liliom 
— era o eterno retorno. Outra forma de não haver nenhuma possibilidade.
Mas, devido a uma nova vida, uma segunda vida, é Julie, ao contrário 
de Eurídice, quem vai aos Infernos salvar Orfeu. O cinema é a única 
variação possível do mito, porque, ele próprio, anula o mito. Com Liliom 
1 8 tudo se repete na vida e nada se repete no cinema.
0 VALE ERA VERDE
Nào há filme que me faça mais saudades.
Não é o melhor fime de John Ford. Para a tal «ilha deserta», cinéfilo que 
se prezasse — e eu prezo-me — teria que levar antes Young Mr. Lincoln, 
Stagecoach, The Grapes of Wrath, MyDarlingClementine, TbeQuietMan, 
The Searchers, TheWingsofEagles, Two Rode Together, TheMan WhoShot 
Liberty Valence, Donovan 's Reef ou a trilogia «cavaleira» de 48-50. Talvez 
até esse secretíssimo The Last Hurrah que o João César Monteiro me 
ensinou estar para a obra de Ford como Gertrud para a de Dreyer.
Mas eu falo dos filmes da minha vida e a regra do jogo desobriga-me 
de hierarquias genealógicas. São as minhas memórias. Não são árias do 
catálogo.
E, nos comigos de mim, How Green Was My Valley— como Wagon- 
master ou The Sun Shines Bright, para não sair de Ford — é o filme que 
me lembra de mais coisas. Estreou-se em 1941 e levou cinco oscars. Melhor 
filme, melhor realização, melhor interpretação masculina secundária 
(Donald Crisp, O Pai), melhor fotografia (Arthur Miller), melhores décors 
(Day, Juran, Little). Concorrente directo era o Citizen Kane de Welles e, 
durante quarenta anos, quatrocentos mil críticos nos ensinaram que a 
preferência da Academia pelo filme de Ford era o mais óbvio sinal do 
congênito reaccionarismo dela. Vitória do antigo sobre o moderno. Cada 
vez estou menos certo de certezas dessas. Mas é verdade que essa guerra 
não ajudou nada John Ford. No fim da outra — a que nesse ano de 41 co­
meçou para a América — proclamaram-lhe morte prematura e tardaram 
muito tempo a ressuscitá-lo. Por outro lado, os filmes de Ford imediata­
mente anteriores ( The Grapes of Wrath, The Long Voyage Home, Tobacco 
Road, baseados, respectivamente, em Steinbeck, O’Neill e Caldwell) ti­
nham valido ao cineasta uma reputação engagée que lhe era assaz alheia. 
À época, pareceu viragem de 1802 que o «revoltado» Ford das Vinhas da 
Ira (que não chegou a ser título português de The Grapes of Wrath porque 19
a censura se encarregou de o proibir) aparecesse em How Green Was My 
Valley a defender os valores menos associados à revolta: Deus, Pátria e 
Família. É neste filme que Donald Crisp chama à greve «socialist nonsense» 
recusando-se a aderir a ela e tentando proibir os filhos de o fazer. A 
discussão azeda em torno da velha mesa patriarcal. E o Pai proíbe que 
continue. Quem quiser coisas dessas não tem lugar naquela casa. E é então 
que, um a um, os cinco filhos mais velhos se levantam e saem. Fica só o 
mais novo — Roddy McDowall — criança ainda e fica um enorme silêncio 
perante aquele primeiro «assassinato do pai». Depois, o miúdo tosse e, sem 
o olhar, Donald Crisp diz muito devagar: «Ti?s, my son, I knoir you are 
there.»
É Roddy McDowall, muitos, muitos anos depois, quem nos conta toda 
a história, o tempo em que o vale era verde, no País de Gales e na família 
de mineiros. O que ele recorda, nas duas horas de filme, é o acordo entre 
uma sociedade e uma terra, acordo que não volta mais, é a harmonia entre 
o vale e os homens e mulheres nascidos nele.
Desde o início, o filme é inscrito numa soberana harmonia entre o olhar 
e o olhado, entre o dito e o visto. Recorrendo à voz offáe uma criança (co­
mo em tantos outros filmes áos forties) a magia começa quando o narrador 
começa a evocar a vida que se vivia cinquenta anos antes. E sobre as ima­
gens da única rapariga da família — Maureen O’Hara — e do pai com a 
mão pousada no ombro do filho (imagem que voltará com outras, no final, 
num efeito de recorrência tão típico de Ford) ouvimos os cânticos do País 
de Gales e ouvimos o miúdo dizer que «cantar está no meu povo, como 
ver está nos olhos».
Depois, essa tão grande nostalgia que todo o filme «respira» é dada em 
breves planos do quotidiano (o dinheiro que os filhos ganham a cair no 
avental da mãe, os banhos, as refeições, a rapariga crescida no meio de 
homens sem falsos pudores). Nunca, talvez, uma figura de «passado 
indefinido» tenha sido tão poderosamente criada em cinema. Tudo o que 
vemos no presente ao passado pertence, tudo o que sucede é já efêmero 
e perecível. Dantes (um dantes anterior ao próprio filme) fora a imobili­
dade do vale. Há 50 anos, tudo tinha começado a mudar e Roddy McDowall 
é a última testemunha dessa transição fatal e letal. Como diria Agustina, há 
coisas que fazem tanta pena. Todo o filme está nessa pena, nesse espaço20
OS FILMES DA MINHA VIDA 21
«entre». Donde a sua maravilhada e maravilhosa nostalgia só susceptível de 
ser partilhada por quem se situe também nesse «entre».
Ao princípio, é o primeiro casamento. Bronwen (Anna Lee), a tão bela 
Bronwen, vem para casar com um dos filhos do vale. E o miúdo 
diz-nos que imediatamente se apaixonou por ela. Ifsperhapsfoolish a cbild 
being in love, mas aconteceu. E esse casamento — sem que ninguém o 
saiba — é o último «momento verde» da vida da família, com a portentosa 
festa e a portentosa alegria.
Mas só está no filme para fazer funcionar «em negativo» as segundas 
bodas. No dia desse júbilo, Angharad (oh! espantosa Maureen O’Hara) 
apaixonou-se pelo novo padre (Walter Pidgeon). Mas o pastor protestante 
tem idéias católicas sobre o celibato sacerdotal. O casamento é, para ele, 
incompatível com a missão. Se defende a mulher adúltera (genial breve 
apontamento da grande actriz chamada Ann Todd) não consegue assumir 
o ama et jac quod vis. E renuncia a esse amor, prenunciando toda a 
discórdia que se vai abater sobre o vale. Depois, o filho do senhor vem a 
casa de Crisp pedir a mão de Maureen O’Hara.
Esta ainda tenta convencer o padre. Quando se separam, levanta a 
cortina de tule para o ver afastar-se e depois deixa-a cair devagar num dos 
mais belos grandes planos da história do cinema até se apagar a imagem 
fabulosa que antes fora. Quando se casa vai amortalhada, sem música, já 
doente inside. Segue o marido para longes terras e vinte minutos está 
ausente do filme, vinte minutos em que tudo e todos se dividiram. Quando 
regressa — sozinha — sepulta-se na casa grande. Depois, começam todas 
as mortes até à morte do pai, embora a voz off nos diga no fim que homens 
como o meu pai nunca morrem.
Quem disser que este filme é reaccionário é porque nada sabe do 
sagrado. Filmado com a luz de Dreyer, em tomo da mesma linha 
fundamental (as verticais) How Green Was My Valley é a obra que mais 
comoventemente mostrou em acções concretas e planos americanos 
sentimentos tão simples — ou tão complexos — como a dignidade, a 
liberdade e a frontalidade.
Nunca deixarei de me espantar com olhar tão limpo e tão límpido. 
Como Roddy McDowall diz do pai, nenhum filme me existe na memória 
tão real como na vida, amando e amado sempre.
E não há filme que me faça mais saudades.22
A PALAVRA DA RESSURREIÇÃO
Alguns leitores destas crônicas têm-me perguntado, a sério ou a brincar, 
porque é que eu só falo de filmes do tempo da Maria Cachucha. A reacção 
já eu a esperava, mas é típica das resistências à fé no cinema e ao amor do 
cinema. Se estas crônicas se chamassem «os livros da minha vida», «os 
quadros da minha vida» ou «as músicas da minha vida», ninguém levantaria 
a questão mesmo que eu escolhesse A Ilíada, A Crucificação de Cimabue 
ou o Combattimento di Tancredi e Clorinda de Monteverdi. Mal parecería 
mesmo que deles não se falasse. Era sinal que bem pobre fora a minha vida.
Mas, no cinema e com o cinema, arte que ainda não fez cem anos, tudo 
parece passar-se a outra dimensão, mesmo para os que explicitamente lhe 
não conferemum estatuto menor. Os filmes passam e nós com eles. E 
a consciência de uma história (nossa história, também) parece, as mais 
das vezes, consciência arqueológica. Coisa para saudosistas, cinéfilos 
(termo que tem algo que ver com necrófilos) ou gente bizarra que finge 
ignorar a evolução da técnica e é capaz de preferir um velho filme mudo 
a Tbe Last Emperor. Chamados à razão lá se convencem, mas não 
se vencem. Não deixa de ser algo melancólico para quem, como eu, faz 
parte de uma geração que orgulhosamente proclamou, pela voz de 
Godard, ser a primeira que tinha a consciência de descender de Griffith. 
Esse grito de vitória foi, afinal, prematuro. A actual geração pressente até 
que será a última a ir ao cinema, cujos dias estarão contados. Uns como 
os outros, nós como eles, apenas estamos a repetir o que as outras artes 
mais velhas vezes sem conta conheceram. Somos um acidente face a obras 
que não o são.
Hoje, «o filme da minha vida» não é só caso subjectivo. Objectivamente, 
é das maiores obras de arte deste século, embora só uma pequena minoria 
o conheça. Mas quem o conhece reconhece-o. Chama-se Ordet, palavra 
que em dinamarquês quer dizer A Palavra e foi mostrado, pela primeira 23
vez, no Festival de Veneza em 1954 (a Portugal só chegou nos finais dos 
anos 60). É o penúltimo filme de Carl Theodor Dreyer (1889-1968).
Dreyer era um nome mítico para a minha geração. No caso dele, nào 
era a censura que impedia a visão dos filmes, mas a generalizada convicção 
de distribuidores e exibidores que, se o mostrassem, as salas iriam abaixo 
com pateadas ou ficariam desertas. Quando Ordetse estreou, lembro-me 
de ter recebido uma carta do Jorge Ritto — normalmente atento antes de 
outros ao que anos depois todos os outros falariam — a queixar-se da 
grande improbabilidade de vermos o filme por cá. Ainda nào havia a 
Cinemateca nem a Gulbenkian e os cineclubes não tinham dinheiro para 
importar cópias vindas de fora. Mais uma vez a solução, para alguns 
afortunados, estava numa viagem a Paris, nesses anos 50 e 60 em que, para 
alguns, Paris era a cidade de cinco filmes por dia. Não exagero.
Nos anos 60 — com gente mais educada — cá chegou, como disse. A 
Cinemateca do Dr. Félix Ribeiro dedicou-lhe uma retrospectiva. E alegre­
mente se passou à convicção que Dreyer toda a gente conhece de cor e 
salteado e pode ser arrumado entre as velharias inúteis. Sempre fomos um 
país de gente rápida.
Rápido nào é Ordet, filme centrado no mistério da Fé. Os prota­
gonistas são um velho viúvo, três filhos dele, e a família do mais ve­
lho —Mikkel — o único casado e pai de duas raparigas, uma das quais 
ainda criança. Todos são homens e mulheres de crença (tão sectária e tão 
globalizante como o pode ser em certas seitas protestantes), à excepção 
de Mikkel, que a vida tornou consideravelmente mais céptico. Mas um 
irmão dele perdeu mesmo a razão por tanto ler Kierkegaard e arrasta uma 
existência de «tontinho», julgando-se reencarnaçâo de Cristo.
Ao velho Borgen (Morten Borgen) falta um neto varão. Deus o da­
rá — acredita — na criança que a mulher de Mikkel —Inger chamada — 
espera. Inger é a única presença feminina da casa e o seu centro de amor. 
Mas o parto não correu como se esperava. O bebé — de facto um rapaz 
— morre à nascença e Inger poucas horas lhe sobrevive. Deus os deu, Deus 
os levou e a cerimônia fúnebre, com a reconfortante presença do pastor, 
vestido tradicionalmente, com aquelas golas dos quadros do século XVII, 
2 4 é a encenação geométrica da resignação cristã face à morte. Nada é absurdo
OS FILMES DA MINHA VIDA 2 5
porque tudo são insondáveis desígnios de Deus. Choremos pelos vivos, 
mas não por aqueles que estão já na glória eterna e a quem um dia nos 
juntaremos. A única violenta revolta — tão mais violenta quanto é contida 
— vem de Mikkel. Quando o pastor, querendo atalhar uma despedida já 
excessivamente longa, lhe diz que a alma dela está junto de Deus, ouve 
como resposta a única frase a que não se pode objectar. «Não amava apenas 
a alma, amava-lhe também o corpo.»
É então que o irmão «tontinho» (Johannes) irrompe na câmara mor­
tuária, sem quaisquer sinais exteriores da loucura que manifestara durante 
todo o filme. E pergunta se alguém se lembrou de pedir a Deus que 
ressuscite Inger. Blasfêmia? Blasfêmia é, como ele diz, não haver já entre 
os crentes alguém com fé. E enquanto parece desistir («apodrece, porque 
este é um tempo de podridão») aproxima-se dele a criança (que sempre 
manifestara, face à morte da mãe, absoluta paz, que os crescidos atribuíam 
à infância e ao facto de «ainda não perceber nada») a pedir-lhe que se 
despache e acorde Inger. «Crês que o posso fazer?» Perante a absoluta 
certeza da criança — um leve e curioso sorriso —Johannes ordena à morta, 
em nome de Jesus Cristo, que volte à vida.
Há um terrível silêncio à roda. Há um plano fabuloso de Inger no caixão, 
coberta com um lençol de linho branco, luminosissimamente branca e há 
um contraplano da criança. Nada, ninguém se move. Até que a criança 
começa a sorrir e olha para o tio com o desarmante aplauso de quem nunca 
duvidou do desfecho. Depois, vemos Inger soerguer-se e ser recebida nos 
braços de Mikkel. Os velhos comentam que na verdade este é o velho Deus 
de Elias, eterno e sempre igual e a palavra final, dita enquanto Inger beija 
camalissimamente o marido, é vida.
No cinema não há nada mais fácil do que conseguir um milagre. Todos 
sabem que a actriz que está a fazer de Inger não está morta e que ressuscitá- 
-la depende apenas de uma ordem do realizador. Mas o prodígio daquela 
«mise-en-scéne» (desde a composição dos planos à sua iluminação) é fazer­
mos acreditar que, na verdade, vimos um milagre e vimos um corpo morto 
ressuscitar em toda a glória da vida. Na mais clássica das planificações 
torna-se evidente para nós a promessa de Cristo. «Se um dia, com 
verdadeira fé, disseres àquela montanha que se mova, a montanha mover-26
-se-á». As montanhas nunca se moveram, como os mortos nunca ressusci­
taram (a não ser no «caso especial» de Cristo também evocado no filme). 
A única vez que vi isso acontecer (e é, sem dúvida, o mais pasmoso dos 
milagres) foi neste filme. Se me disserem que é cinema eu respondo que 
não é, não.
São luzes que tornam tudo transparente e tudo iluminam «como se fosse 
uma janela / à noite, vista do exterior». Estou a citar — mal — um poema 
de João Miguel Fernandes Jorge que faz parte dos «Três poemas de A 
Palavra de Carl Theodor Dreyer». E estou-me a lembrar do som do filme. 
Quando Inger morre, o cunhado mais novo pára o pêndulo do relógio, cujo 
«tic-tac» fora o único ruído dessa sequência de agonia. Quando Inger 
ressuscita — durante o último plano — ele mexe os ponteiros para acertar, 
de novo, o tempo. À morte chamara Johannes o «homem da ampulheta». 
Tudo está na areia que escorre, na passagem das horas. «E então o tempo, 
sim foi coisa que passou»: Só a Palavra e a Imagem o podem suspender 
assim. E, por isso disse S. Paulo que, maior do que a fé, era o amor.
Ordet de Dreyer é o filme desse amor.
OS FILMES DA MINHA VIDA 2 7
OS AMANTES CRUCIFICADOS
Nào sei quem é que inventou a história do «sorriso do eterno feminino» 
a próposito da Gioconda. Sei é que há quase cem anos ninguém pára no 
Louvre diante do quadro, sem observar primeiro o sorriso, depois o eterno 
e por fim o feminino. E, só depois de os ter inventariado todos, é que 
balbucia um lugar-comum qualquer sobre a impressão geral que a 
chamada Mona Lisa, vista ao natural, lhe provocou (hoje, com aqueles 
enormes vidros à prova de bala que para lá puseram, é cada vez mais difícil 
ter qualquer espécie de impressão).
Visitantes mais sofisticados já nào vão nessa do «eterno feminino». Mas 
páram mais ao lado, em frente de A Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana, 
2 8 para descortinar, nas três figuras, o abutre «sobreimpresso» que Freud lá viu 
e deu origem a um dos seus mais célebres ensaios sobre conteúdos 
manifestos e conteúdos latentes.
Depois da «leitura» de Foucaultde Las Ninas (quanto a mim, com­
pletamente despropositada, mas essa é outra história) quantos visitantes 
foram ao Prado, não apenas para ver o quadro de Velázquez, mas para o 
comparar com a interpretação feita em Les Mots et les Chosesl Eu próprio 
já levei um dia Os Cadernos de Malte LauridsBriggepara o Museu de Cluny 
para reler as páginas de Rilke sobre as tapeçarias de La Dame à la Licome 
enquanto as revia com os olhos dele.
Proust foi talvez quem melhor escreveu sobre estas duplas visões: a do 
autor de uma obra e a do voyeur dessa obra. E, ele próprio, acrescentou 
à visão de Delft de Vermeer o «petit pan de mur jaune», hoje quase tâo 
célebre e quase tão citado como o próprio quadro, embora durante cerca 
de 250 anos ninguém o tivesse visto.
É completamente irrelevante perguntarmo-nos, como fazem alguns, 
mais cépticos ou mais cegos, se o que Freud viu, o que Rilke viu, o que 
Proust viu, está ou não está na obra em que o viram. Toda a visão é ideal 
(como toda a obra de arte) e só por simpatia (no sentido etimológico da 
palavra) nos aproximamos dela. Se bastasse ter olhos para ver, os cegos 
seriam bem mais desgraçados e bem mais minoritários.
Também nada adianta perguntar — como muitas vezes se pergunta 
quando a evidência das duas visões é irrecusável — se tal pormenor ou 
tal sentido teriam sido «premeditados» pelo autor. A Gioconda pode 
continuar a ser o «eterno feminino», mesmo que se venha a provar (como 
alguns sustentam) que o retrato não é de uma mulher mas de um 
rapazinho; o quadro de Vermeer continua a dar-nos Delft em 1665, mesmo 
que em Delft nunca tenha havido tais cor-de-tijolo e tais cor-de-rosa e que 
Vermeer ficasse imensamente estupefacto se lhe falassem de um «petit pan 
de mur jaune». Sempre outras mãos pintaram ou escreveram pelas nossas 
mãos e sempre o amador se transformou na coisa amada.
Vai muito longo o preâmbulo. A coisa amada que hoje vos queria dar 
a ver chama-se Chikamatsu Monogatari. Baptizaram-na no Ocidente como 
Os Amantes Crucificados (em Portugal nunca foi distribuída comercial­
mente) e realizou-a o japonês Kenji Mizoguchi ou Mizoguchi Kenji. Em 
1954. 29
Mizoguchi é um dos meus «autores de cabeceira» (esta também é re- 
-citação) e Os Amantes Crucificados o meu filme favorito dele.
Chikamatsu, referido no título original japonês, era um autor dramático. 
Sei que viveu no século XVII (como Vermeer) e que os europeus que 
o leram o compararam — sem razão nenhuma, com toda a razão — 
a Shakespeare. A peça que Mizoguchi adaptou (misturada com a adaptação 
de outro conto clássico japonês, esse, obra de Ihara Saikaku) conta a 
velha história de dois jovens de classes sociais diferentes, apaixonados 
um pelo outro. Além da classe, há outro óbice. Ela (a Senhora) é casada 
com o Suserano (se a tradução vale) da oficina onde ele (o rapaz pobre) 
trabalha.
O filme começa por nos dar a informação (e a premonição) do que 
acontecia, nesses tempos, no Japão, a adúlteros apaixonados. A protago­
nista vê, do seu palácio, um casal desses ser crucificado. Porque é que a 
Cruz é símbolo de Paixão no Ocidente e no Oriente, no judeo-cristianismo 
e no xinto-budismo, não me perguntem. São outras obscuras visões, outras 
obscuras correspondências.
É muito depois que começa a história de amor e que Osan (a mulher) 
se decide a fugir ao marido, por uma noite de lua.
Começa então a implacável perseguição, por lagos, florestas, cabanas, 
todos os locais do imaginário, convocáveis por paixões tão intensas quanto 
efêmeras, tão labirínticas quanto fatais.
Durante a fuga, há uma extraordinária cena de amor num lago. 
Mizoguchi, a propósito dela, pegou-se com o argumentista, o grande Yoda 
Yoshikata que lhe escreveu quase todos os filmes. Acusava a cena de não 
ter intensidade dramática. Quando Yoda, desiludidíssimo, pois, na opinião 
dele, jamais fizera melhor trabalho, lhe perguntou o que queria dizer com 
isso, Mizoguchi respondeu: «Olha, vê, por exemplo a cena em que os 
amantes fazem amor no barco, depois de terem decidido suicidar-se. É 
idiota e ridícula. Se querem matar-se, é inimaginável que pensem em fazer 
amor. Metem-se no barco pensando apenas na morte. Tanto basta para 
mostrar o estado de alma deles naquela altura. Chegam ao meio do lago. 
E, subitamente, deixam de querer morrer. Não porque tenham medo da 
morte. Mas porque, ao contrário dos melodramas em que os breves 
momentos roubados à morte são os mais doces da vida, o valor da exis-30
tência dos momentos futuros — por poucos e breves que venham a 
ser — extinguiu a tentação da morte, constituiu a única e verdadeira 
abertura. Nào podemos morrer assim, é isso que os amantes devem pensar. 
E isso que é verdadeiramente trágico.»
Esta passagem esclarece o famoso sentido da elipse na obra de 
Mizoguchi e o que, através dela, o realizador queria alcançar e alcançou. 
Tudo cabe em momentos, onde tudo se revela e tudo se abre, iluminando 
passado e futuro, quaisquer que sejam.
É por isso que o prodigioso final do filme — a marcha dos amantes, 
presos e acorrentados, para as cruzes — é um dos mais gloriosos finais de 
amor da história do cinema. E a suprema afirmação da força da vida, 
superando as antíteses da arte ocidental, entre visões clássicas, visões 
líricas e visões românticas.
Tudo isso, quanto a mim, está contido, muito antes, num breve plano 
(que nunca vi comentado) e que em Os Amantes Crucificados é o meu petit 
pan de murjaune. E quando Osan decide fugir e percorre sozinha os pátios 
do palácio, ocultando-se para não ser vista pelos guardas do marido. A 
certa altura, a lua é encoberta por uma nuvem e fica só — como única fonte 
luminosa — uma janela onde persistiu uma vela ou candeeiro acesos. Osan 
olha-a (um segundo) e pára. Logo, continua. Para mim, foi nesse momento 
que ela teve a última tentação de ficar e mediu (vela, interior, quotidiano, 
protecção) tudo o que perdia, tudo o que nunca mais voltaria a ter. E o 
trocou pelas trevas exteriores, o ranger dos dentes, a luz dos corpos, a cruz, 
a morte.
Imensas vezes tenho falado desse plano da janela acesa, tenho sonhado 
com ele. Vária gente, que ama o filme tanto como eu, parece não o ter visto 
ou não se lembrar.
Existiu só para mim? Existe mesmo? Comecei esta crônica a dizer que 
isso não tem importância nenhuma. Acabo da mesma maneira. É com 
momentos desses, com planos desses, que as crianças passam do tempo 
em que tinham medo do escuro a amar o escuro. E só então podem 
aprender a história dos Amantes Crucificados e a pouco e pouco (às vezes 
demora uma vida inteira) a compreendê-la melhor.
Como escreveu Camilo: «Seja assim. Eu assim fui. Todos os que vi 
morrer assim foram.» 31
A REGRA DO JOGO
Nunca houve filme mais odiado. Nunca houve filme mais amado. Ódios 
e paixões que surpreenderam mais do que todos Jean Renoir, o autor de 
La Règledujeu. F.m 1939, quando o filme se estreou, Renoir estava no auge 
da reputação. «Cette sacrée Grande Ilhision» (Renoir dixit, referindo-se ao 
celebérrimo filme de 1937) tinha-lhe posto aos pés crítica e público. De La 
Marsellaise (38) gostou muito o público e menos a crítica; La Bête 
3 2 Humaíne, do mesmo ano, foi pior recebido pelas platéias, mas os senhores 
críticos explicaram-lhes que não tinham razão. Esqueceram-se de explicar 
— ainda hoje o esquecem, com menos desculpa — que este último filme 
anunciava, ou prenunciava, uma «mudança de tom» e que a caução de Zola 
(adaptado nessa obra) não disfarçava que ao realismo se sobrepunha a 
estilização, à clareza as sombras, à organização do espaço a organização 
do gesto.
Com La Bête Humaine regressava o Renoir anárquico e cáustico de La 
Cbienne (1931), La Nuit du Carrefour (1932), Boudou Sauvé des Eaux 
(1932). Mas regressava mais maduro, mais sóbrio, mais sereno. Com esse 
filme, começou o tempo dos grandes rituais.
Nunca se dá logo por isso. Não se deu. E a tempestade desabou com 
La Régle du Jeu, aparentemente o filme que menos a fazia esperar. Renoir 
não era «malcriado» como nos filmes do início do sonoro(esses sim, contra 
as regras do «bom cidadão» e do «bom realizador»), não absolvia operários 
em ajustes de contas com patrões (Ze Crime de M. Lange, 1935), não 
defendia uma grande causa (a Paz) com uma grande tese (La Grande 
Illusion) não cantava a revolução (La Marsellaise~) e muito menos se 
entregava a militâncias como as que o haviam levado a fazer, em 1936, em 
ano de «Frente Popular», La Vie Est ã Nous, para o PCF. Era um divertisse- 
mentque, segundo o próprio Renoir (quem ainda não lhe leu as memórias, 
Ma Vie et mes Films, deve lê-las), lhe surgiu de muito ter ouvido, nesses 
anos, Couperin, Rameau e tudo o que vai de Lully a Grétry. «Não posso 
dizer que a música barroca francesa me tenha inspirado La Régle du Jeu, 
mas contribuiu para me fazer ter vontade de filmar personagens movendo- 
-se ao ritmo dessa música». E havia, ainda, a ideia de transpor Les Caprices 
deMariannede Musset para 1939. E havia, também, a referência ao Figaro, 
quer às Noces de Beaumarchais quer às Nozze de Mozart. E havia, mais, 
uma frase de Lestringuez: «Si tu veux décrire la vérité, mets-toi bien dans 
la tête que le monde n’est qu’un foutoir. Les hommes ne pensent qu’à une 
chose, c’est à baiser, et ceux qui pensent à autre chose sont fichus. Ils se 
noient dans les eaux bourbeuses du sentiment.»
E assim se chegou à estreia de La Régle du Jeu. Vou citar Renoir: «A 
minha estupefacção foi total, quando este filme, que eu queria amável, 
começou a agir a contra-pêlo sobre a maioria dos espectadores. Foi uma 
bofetada e das grandes. O filme foi acolhido com uma espécie de ódio. 
Apesar dos comentários elogiosos de alguns críticos, o público considerou- 
-o como um insulto pessoal. E nào se tratava de uma cabala: os meus 
inimigos nada tinham que ver com este malogro. A cada sessão, conseguia 
estabelecer a unidade do público na reprovação. Tentei salvar o filme, 
encurtando-o. Cortei, primeiro, cenas em que o meu próprio papel era 
maior, como se tivesse vergonha, depois do meu “falhanço”, de me mostrar 
na tela. Tudo em vão: o filme foi retirado da circulação, sendo considerado 
"desmoralizador”».
A história nào ficou por aqui. Quando, um ano após a estreia da Règle. 
os alemães entraram em Paris, exigiram a destruição do negativo e de todas 
as cópias. Na maior parte dos países, foi proibido (em Portugal, por 
exemplo, a proibição durou até 1972). Novas cópias recuperadas e exibidas 
em França, em 45 e 48, nào tiverem melhor sorte. Só nos anos 60, quando, 
graças a esforços vários, se reconstituiu a versào original — dedicada à 
memória de André Bazin, o mais constante e acérrimo dos defensores da 
Règle — o filme (já lendário) se tornou no «crédo des cinéphiles», «le film 
des films», para usar expressões de Truffaut e foi — finalmente e mais de 
vinte anos depois — um sucesso comercial.
Explicar tudo isto, em 1988, não é nada fácil. Talvez o menos difícil seja 
desmontar o lugar-comum que atribuiu as reacções ao facto de a Règle ser 
«o retrato impiedoso de uma classe agonizante».
Há, nessa frase, quatro disparates, dois para os substantivos e dois para 
os adjectivos.
Em primeiro lugar, nào há retrato nenhum. La Règle é um filme de 
músicas, uma opera-buffa (exactamente como Mozart chamou a LeNozze 
cli Figaro, eventualmente a única grande obra da arte ocidental dos três 
últimos séculos que lhe é comparável) em que o que se nos diz é que -tudo 
isto» é uma «palhaçada» de sentido extremamente obscuro, com a morte no 
rpincípio, no meio e no fim. Underthe Volcano, ou Overthe Volcano: tanto 
faz, que é para vomitar. «Le custa estejardin?» Se lhe custa o melhor é fingir 
que não repara, pelo menos se se está em La Sologne, região pantanosa 
do centro de França, «décor perfeito para um conto de Andersen» (Renoir), 
onde emerge o belíssimo solar setecentista do Marquês da la Chesnaye.
Em segundo lugar, Renoir nunca foi impiedoso. Menos do que nunca 
o foi em La Règle, em que não há um só personagem que seja maltratado, 
um só personagem que não seja profundamente amado. E é neste filme, 
pela boca do marquês, que se diz: «O que é terrível nesta terra é que toda54
a gente tem as sua razões». Mais terrível é o filme mostrar-nos que assim 
é, que todos têm as suas razões. Todas terríveis, embora nenhumas 
melhores ou piores do que as dos outros.
A Règle è a suprema ilustração da velha história favorita dos cépticos 
gregos, quando um juiz, na presença do filho ainda criança, dava razão às 
duas partes absolutamente contrárias que para ele apelavam. Observava 
o miúdo que as duas não podiam ter razão ao mesmo tempo. «Também tens 
razão, meu filho» era a resposta do pai.
Em terceiro lugar, La Règle não trata de uma classe. Se há por lá muitos 
e muitas filhas d’algo, não há menos criados e criadas. Se há poucos 
burgueses, o mais significativo de todos eles chama-se Octave e foi 
interpretado pelo próprio Renoir, em meses em que se achou mais 
pachorrento. E os marqueses e os seus convidados não são mais impor­
tantes na narrativa do que os criados, quer os que com eles levaram de 
Paris, quer os que já estavam em La Sologne. E, num e noutro desses níveis 
sociais, o jogo é o mesmo e as mesmas as regras.
Em quarto e último lugar, nada nem ninguém está agonizante na Règle 
(e os que por acaso o estavam, como André; o aviador, «cri de coeur de 
Madame», não o sabiam).
Não o está a classe cuja agonia se proclama há 200 anos e nos há-de 
enterrar a todos. Não o estão os guardas florestais e caçadores clandestinos, 
que continuarão, por eternidades, os seus jogos de gato e rato, de 
representação da autoridade e de representação da transgressão. Não o 
está o deus ex-macbina, ou in-macbina, que move, como as peças da 
caixa de música, as caçadas, as guerras dos sexos, a luta de classes ou a 
dança da morte para que todos foram convocados. E não o está nem o 
teatro nem o cinema dessas várias representações, entre as quais não há 
qualquer diferença. Por isso, nada pode terminar. E, por isso, a ingênua 
ordem do marquês: «Faites cesser cette comédie» só admite como réplica 
a questão do criado: «Laquelle Monsieur?» Ainda hoje não encontrámos 
resposta para tal pergunta.
O que talvez se tenha perdido — pelo menos até que apareça novo 
Renoir—é outra acepção da palavra «classe». Aquela a que, por duas vezes, 
se refere o general, Todas as culpas serão desculpadas a quem tiver «de la 
classe». «Et ça devient rare à notre époque, ça devient vraiment rare à notre 
époque.» 3 5
DUMBO KOOTCHY KOOTCHY
Como acontece a quase toda a gente, preconceitos e modas considera­
dos progressistas têm-me levado a dizer e fazer muita asneira. Assim, de 
repente, lembro-me de duas em que ninguém me pode atirar pedradas: 
nunca defendi a abolição de casacas, smokings ou fatos compridos para 
a ópera em São Carlos; nunca disse mal de Walt Disney. Procurando ser 
tão sincero quanto possível, talvez algumas vezes me tenha calado em 
discussões dessas, ou talvez algumas vezes tenha aberto a torneira de 
Pilatos. Talvez tenha pecado por omissões, nunca por pensamentos, 
palavras ou obras.
Pensando bem, a associação não é tão gratuita quanto parece: num caso 
3 6 como noutro, trata-se de amar rituais, animações e prestar obscuras vénias
aos deuses de espectáculos que vivem do seu próprio convencionalismo. 
Num caso como no outro, tocar na forma é tocar no fundo. Um bocado a 
mesma coisa do que comer peixe com talheres de carne.
Já numa destas crônicas, tive a ocasião de abençoar a memória de 
Walter Elias Disney de quem foi moda entre 1940 e 1970 (e em muitos 
meios continua a sê-lo), dizer que corrompera várias gerações (no fundo, 
todos os que, hoje, são menores de 60 anos) com animações antropomórfi- 
cas. Histórias que infligiam ao público infantil traumas duradouros, 
introduzindo-o a mundos de culpas e expiações, quando não mesmo a um 
universo de terror, com uma moral partilhada entre o prazer, sempre 
punido, e o esforço, sempre premiado.
Era — é — a conversa gênero «psicanálise de contos de fadas» que sem­
preteve o condão de me irritar singularmente. Não porque seja descabida 
nas premissas; mas porque é falaciosa nas conclusões. Contra toda essa 
conversa, persiste a evidência de que é dessas histórias que as crianças 
gostaram, gostam e gostarão. Fiz inúmeras vezes a experiência para 
não estar certo dela: quem conta o Capuchinho Vermelho ou a História 
da Carochinha elidindo — em hipotético benefício da sensibilidade infan­
til — que o lobo comeu a avó ou que o João Ratão morreu cozido e assado 
no caldeirão, jamais consegue, junto das crianças, a mesma sedução que 
o narrador que não se arma em censor. Todos gostamos que nos metam 
medo, muito medo. Menino sem pesadelos não é menino. E nunca será 
homem. Nem mulher.
Educado a Walt Disney — como todos nós — tentaram desconvencer- 
-me do homem e dos bonecos dele, quando comecei a ver cinema com 
olhos de ver. Propuseram-me como contraveneno o laborioso experimen­
talismo de McLaren, o sofisticado humor de Bosustow (UPA e Magoo), ou 
o moralismo vindo do frio, gênero Trnka. A espécie de reportório de que 
Vasco Granja tem sido, na RTP, há mais de 30 anos, incansável paladino.
Não discuto os méritos. Verifico é que nunca conheci criança que não 
se chateasse de morte. E eu mesmo... Cala-te boca. Pelo contrário, o Rato 
Mickey (n. 1928) e o Pato Donald (n. 1936), com os seus 60 e 50 anos, são 
as estrelas de cinema com maior longevidade. Basta pensar que o primeiro 
nasceu mais ou menos ao mesmo tempo do que Greta Garbo e o segundo 3 7
38
tem pouco mais ou menos a idade de Bogart. A Garbo levou sumiço e 
continua a esconder-se de óculos escuros de quem nunca a viu mais gorda; 
Bogey morreu há mais de trinta anos. Mickey e Donald mantêm a 
assinalável forma que ainda em Março vimos na cerimônia dos Óscares. Se 
os deuses se definem por não envelhecer, são mesmo os únicos que à 
divindade chegaram. Quem se lembra do pitosga Magoo? A minha geração. 
Quem ignora Mickey e Donald? Ninguém.
Puxei-me pela língua e já lá vai metade do meu precioso espaço e do 
vosso precioso tempo. E eu, hoje, não vinha para falar nem do rato nem 
do pato, mas do elefante. Dumbo. Quando o filme começava (ou muito me 
engano, que não o vejo há que tempos, com um mapa da Florida, com que, 
desde então, fiquei a simpatizar) era o Desejado no circo dos Jumbos e das 
Jumbas (desde que um célebre elefante do Zoo de Londres assim fora 
baptizado, tal nome ficara para sempre associado aos mais ilustres 
exemplares da espécie, cognome supremo).
Ao princípio, o Desejo parecia ter-se feito carne. Jumbo Júnior, de olhos 
muito azuis, era mais bonito e mais apetitoso do que tudo o que se podia 
esperar. «Kootchy, Kootchy» — como lhe diz a terceira fada-madrinha- 
-elefanta que presidia ao nascimento dele — é o momento final de tal 
júbilo. De repente, o elefantezinho espirra. E, quando espirra, caem-lhe 
para a frente as orelhas. Horror dos horrorres. Não eram orelhas normais 
de elefante normal, mas orelhas imensas, imensas. Tão grandes como todo 
o resto dele, tromba incluída. E às palmas seguem-se os apupos. Nem 
Jumbo mereceu ser chamado, mas Dumbo (de dumb, pateta). Tão triste 
que ficou Mrs. Jumbo, apertando contra ela o freak.
Uma desgraça nunca vem só. Às enormes orelhas juntava-se em Dumbo 
uma falta de jeito para o negócio (acrobacia, evidentemente) tão desme­
dida quanto aquelas. Dumbo é relegado e renegado. Por essa altura do 
filme, que vi pela primeira vez quando tinha sete anos, já Dumbo era a 
criatura cinematográfica que me introduzira ao que, muitcxdepois, Edgar 
Morin me ensinou chamar-se «fenômeno de identificação». Até me aparecer 
Van Johnson («thafs another stoty») não me sucedeu caso semelhante. 
Dumbo era a minha alma gêmea.
Aparecia então o rato Timóteo. Por causa dele, fiquei sempre a querer
conhecer um Timóteo, o que tardou a suceder e teve sempre nomes mais 
prosaicos. Timóteo era o único a achar que as orelhas de Dumbo eram cute. 
E fornece-lhe longa lista de personagens célebres de grandes orelhas. Seria 
impudico da minha parte acrescentá-la aqui e agora, como se dizia nos 
anos 50. E Timóteo convencia Dumbo a sonhar.
A dança dos elefantes cor-de-rosa é o mais belo sonho dos filmes 
de Walt Disney. É o mais belo sonho da história do cinema. O champanhe 
ajudava, com muitas, muitas bolhinhas. Timóteo começava a ficar 
muito grande e a sombra dele assustava imenso Dumbo (outro traço apai- 
xonante dele era o medo que tinha). E, com a ajuda de pássaros e corvos, 
de uma bandeirinha mágica e de um chapéu, Dumbo descobria que as 
orelhas eram asas. O clímax, depois dessa prodigiosa dança, era a 
«sequência» em que os corvos empurravam o assustadíssimo Dumbo da 
árvore abaixo, espécie de premonição da «prova do galho» de Mafra dos 
meus azares.
Dumbo não acreditava que podia voar. Resistia quanto podia. E, a certa 
altura, lá ia pelo céu azul, azul, tão azul como os olhos dele. Terrível era 
quando a bandeirinha caía. Mas Timóteo grita-lhe: «Abre mais as orelhas. 
A bandeira era a brincar. You canfly, honest, you can». E Dumbo voava, 
voava, com o complexo de ícaro, todo solto.
Helen Aberson e Harold Pear tinham escrito a história original. Os 
elefantes vinham da «Dança das Horas» da Fantasia (genial Norman 
Ferguson). Vladimir Tytla, a quem já se chamou o «Miguel Ângelo da 
animação», concebeu o pesadelo das chamas, como concebeu o inferno de 
«Uma Noite no Monte Calvo», na Fantasia. Mas Dumbo nasceu com má 
sorte. Devia ser a capa do Time Magazine em Dezembro de 1941. Em vez 
dele, apareceram aviões japoneses a voar e a deitar bombas sobre Pearl 
Harbour. Ficou só uma pequena foto, a preto e branco, no interior.
Correu mundo em 1942 (o mundo não fechado ao mercado americano). 
No pior ano de guerra para os EUA, foi pouco visto e as pessoas andavam 
com outros pesadelos na cabeça. Mas de todos os Walt Disney, Dumbo é 
quem mais amo. Um elefante com orelhas-asas, uma tromba etça trompe, 
ça trompe, ça trompe. «Pauvre petit Dumbo à 1’âme délicate». Kootchy- 
-Kootchy. 39
40 JOÃO BÉNARD DA COSTA
SENSO»: A PAIXÃO EM VENEZA
Afinidades entre o cinema e a ópera — duas artes «parasitárias», duas 
«artes de acréscimo», ou as duas artes que mais tendem para a «obra de arte 
total», sonhada por Wagner — têm sido pressentidas, notadas ou subli­
nhadas por muitos e desde há muito.
Ultimamente tem-se generalizado outra e mais equívoca forma de 
aproximação. Quem fala da «morte do cinema» terá tanta razão ou tão 
pouca como quem fala da «morte da ópera». E verdade que, no caso desta 
última, nada de radicalmente novo aconteceu desde a estreia de Capriccio 
de Richard Strauss em 1942 ou, magnanimamente, desde a de The Tum qf 
theScrewde Benjamin Britten, em 1954. Mas também é verdade que nunca, 
como hoje, tão vastas audiências viram e ouviram ópera e, mesmo por um 
balúrdio, é difícil conseguir um lugar para as temporadas dos principais 
teatros líricos do mundo ou para os grandes festivais. Nunca a ópera foi 
tão cara, nunca se pagou tanto aos seus intérpretes e nunca as lotações 
estiveram tão esgotadas. Normalmente — com excepções que apenas 
confirmam a regra — para se escutar e olhar um reportório escrito há mais 
de cem anos.
Há quem diga que o mesmo está a acontecer — ou vai acontecer — 
ao cinema. Talvez este nunca mais tenha os seus Verdi ou Wagner, talvez 
o lote de novos grandes filmes seja escasso, mas num futuro não muito 
distante, as salas encher-se-ào para rever periodicamente o que foi 
realizado na idade heróica dele.
A hipótese parece-me aventurosa e pouco fundada, mas o simples facto 
de ser ponderada demonstra mais uma das analogias entre os dois «reinos»: 
quem o diz reconhece a ambos — cinema e ópera — uma aproximável 
localização em paragens limiares e liminares, onde partilham a luz e as 
sombras, a celebração da vida e a súplica da morte, a encenação da 
nostalgia e o apelo a uma recôndita harmonia. 4 1
Apesar disto — ou por causa disto —, de cada vez que o cinema tomou 
a ópera como texto, os resultados nào foram brilhantes.Por um lado, sào 
raríssimos os exemplos de óperas escritas propositadamente para o 
cinema. Que eu saiba há apenas três. The Robbers Sympbony. ópera e 
realização do alemão Friedrich Feher em Inglaterra, 1936; Give Us íbis 
Nigbt, ópera do alemão Erich Wolfgang Korngold e realização do 
americano Alexander Hall, em Hollywood, 1944; e Os Canibais, realização 
e ópera dos portugueses Manoel de Oliveira e João Paes, em Portugal, 
1988. Por outro lado, sào igualmente raríssimos os exemplos conseguidos 
de transposição para o cinema de uma ópera. Julgo que somente Die 
Verkaufte BrautlA Noiva Vendida, de Max Ophuls, 1932), The Tales of 
HoffmaníPoweil e Pressburger, 1951), Bluebeard'sCastle (Michae\ Powell. 
1964), Trollflõjten (A Flauta Mágica, de Ingmar Bergman, 1974). Mosesund 
Aaron Qean-Marie Straub e Danièlle Huillet, 1974) ou Parsifal (Hans- 
Jürgen Syberberg, 1982) merecem ser retidas como excepçào.
Mas o filme-ópera, a ópera feita cinema ou o cinema feito ópera, não 
é nenhuma das obras citadas. É o Senso de Luchino Visconti (1954). Por 
isso — sobretudo, por isso —, é um dos filmes da minha vida.
Na ópera (Teatro La Fenice, de Veneza) começa o filme, situado na 
Primavera e no Verão de 1866, durante os últimos meses de ocupação 
austríaca do Veneto, pouco antes do Risorgimento lá chegar. Estamos no 
palco e ouve-se e vê-se o final do acto III de II Trovatore de Verdi.
Ainda corre o genérico, quando Leonora e Manrico, na varanda de 
Castellor, cantam “1'onde de’ suoni mistici», «gioie di casto amor», primeiro 
sinal para as paixões paroxísticas que vão explodir durante o filme. Pouco 
depois — sempre no genérico — Ruiz vem avisar Manrico de que se 
preparam para lhe queimar a mãe. Este arranca-se dos braços de Leonora 
e vem até à boca da cena cantar o celebérrimo «Di quella pira». Precisa­
mente nesse momento, a câmara, até aí fixa sobre o palco da ópera, 
acompanha-o no seu movimento e, do ponto de vista dele, descobre-nos 
o teatro, da platéia à geral, em amplos movimentos concêntricos. São eles 
que, no fim do acto e coincidindo com os aplausos, conduzem essa 
representação a outra representação: a manifestação política das galerias 
contra o ocupante austríaco.4 2
Ópera só voltará a aparecer em Senso alguns minutos depois, quando, 
acalmados os ânimos e presos alguns manifestantes, começa o acto IV. 
Durante esse intervalo, conhecemos os protagonistas: a condessa Livia 
Serpieri (Alida Valli) e o seu velho marido (Heinz Moog); o marquês 
Roberto Ussoni (Massimo Girotti), primo da condessa, seu platônico 
protegido e chefe dos patriotas italianos (por ele e contra o marido, 
escolhera a condessa o abraço revolucionário); o jovem e belo tenente 
Franz Mahler (Farley Granger) que insulta os italianos, se recusa cobarde- 
mente a aceitar o repto de Ussoni para um duelo e, depois, o denuncia à 
Polícia.
Quando começa o acto IV de II Trovatore, Livia Serpieri chama o tenente 
ao seu camarote, para o tentar convencer a deixar Roberto em paz. Mas 
durante o breve diálogo com o oficial «de quem falavam todas as senhoras 
de Veneza», estabeleceu-se entre eles outra espécie de corrente. No palco, 
já muito, muito ao fundo, ao pé da torre onde Manrico está preso, Leonora, 
disfarçada, canta que «In quest’ oscura notte rawolta / Presso a te son io. 
E tu nol sai!» Nem nós, nem os protagonistas do filme lhe damos muita 
atenção. O primeiro plano já pertence a Livia e Franz. É para nós e para 
eles que uma «oscura notte rawolta» vai começar.
Nunca mais se ouve ópera no filme. Mas a ópera, o drama per musica, 
vai começar quando Livia abandona o teatro e, sobretudo, quando volta 
a encontrar o tenente, a um canto da Piazza di San Marco, onde fora 
despedir-se do primo, condenado a um ano de exílio. E quando Franz 
Mahler se oferece para a acompanhar pelas ruas de Veneza (oferta 
recusada, recusa não aceite) principia a ouvir-se a verdadeira música desta 
ópera: a Sétima Sinfonia de Bruckner (oadagio e o scherzò). E começam 
os «duettos» de Franz e Livia, ou as «árias» de cada um deles. Não são 
cantadas. Mas nào há termos mais adequados para o que murmuram («tu 
parli talmente piano», diz três vezes Franz a Livia) ou para o que gritam (os 
uivos de Livia, no final, clamando por Franz, depois de o ter mandado para 
o pelotão de fuzilamento, em Verona). E sempre o que os personagens 
dizem em-cantado é sustentado a Bruckner, e sempre as vozes são tão 
inseparáveis dessa música como na ópera o são. Depois de se ter visto 
Senso, nunca mais se pode ouvir a Sétima de Bruckner sem «sentir» que lhe 
falta essa dimensão de vozes. Depois de se ter visto Senso, é impossível 
pensar nas suas imagens sem «ouvir» Bruckner.
Por isso, e num dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação 
cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso não é cinematográfica, 
mas operática. Se se quiser pensar numa posteridade para este filme, ela 
não está em nenhum outro (nem sequer em Morte a Venezia, onde Visconti 
tentou com a Quinta Sinfonia de Mahler um efeito semelhante e muito 
mais célebre), mas nas encenações de 1955 ou de 1956 com que o mesmo 
Visconti revolucionou todos os caminhos da encenação operática neste 
século. A espantosa criação de Alida Valli no papel da condessa Livia 
Serpieri só teve sequência nas da Mulher para quem Visconti fez essas 
encenações: Maria Callas. No Senso, a voz e a imagem de Alida Valli 
preparam os caminhos para a voz e para a imagem da Callas.
As ruas de Veneza (quem nunca viu Senso nunca viu Veneza), os 
celeiros de Lonedo (quem nunca viu Senso nunca viu Palladio), as praças 
de Verona (quem nunca viu Senso nunca viu Sanmicheli) foram, em 1954, 
os palcos excessivos, exacerbados e exorbitados para a mais fantomática 
presença da mais fantomática das vozes.
44 JOÃO BÉNARD DA COSTA
JOHNNY GUITAR
Era inevitável. Tinha que ser. Se escrevo sobre «os filmes da minha vida», 
como podia ficar de fora «o filme da minha vida», my Jobnny Guitar? Só 
mesmo quem não me conheça nem mais gordo nem mais magro, podia 
supor que um dia destes — mais cedo ou mais tarde — o Jobnny Guitar 
não enchia esta página.
Faz parte das minhas lendas — como essa de dizer-se que eu sabia o 
Larrousse de cor aos sete anos — atribuirem-me centenas de visões do 
Johnny Guitar. Num caso como noutro há exagero. Só vi o Jobnny Guitar 
68 vezes, entre 1957 e 1988. Dá para saber de cor? Nunca se sabe o Johnny 
Guitar de cor. Cada vez é uma nova vez.
Como gênero, é classificado entre os westerns. Estreou-se na América, 
a TI de Maio de 1954, sob o signo dos Gêmeos. É um filme de Nicholas 
Ray, que tinha 42 anos, 9 meses e 20 dias na noite dessa estreia. Na 
filmografia do autor iniciada em 1948 é o «opus 9». Depois dela assinou mais 
13 longas-metragens, até morrer, «lightning over water», num filme de Wim 
Wenders, em 1979.
Johnny Guitaríoi feito para uma pequena companhia — a Republic — 
e custou pequeno dinheiro. A crítica americana tratou-o com os pés 
(«the silliest film of the year»), mas o público, sem que ninguém conseguisse 
explicar porquê, encheu as salas meses a fio. Herbert J. Yates, produtor 
da obra, abarrotou os bolsos. Quando o filme chegou à Europa — em 
1955 — as posições críticas extremaram-se. Alguns — poucos — apanha­
ram o micróbio a que há mais de 30 anos dou casa e pucarinho. A maioria 
achou que só gente gravemente perturbada ou gravemente analfabeta po­
dia gostar. Ou, então, cegos, surdos, mudos, paralíticos e aleijadinhos dos 
cornos. Eu e mais alguns passámos vexames, quando a polêmica chegou 
a Portugal. O nosso delírio provocava. Quem provoca maiorias ou o senso- 
-comum acaba sempre por levar mais do que dá. 4 5
Só que, no caso de Jobnny Guitar, vivi o bastante para ver o mundo 
dar as tais voltas. Quando, em 1981, programei o filme para a Gulbenkian. 
num ciclo de cinema americano dos anos 50, a enchente foi tal que teve 
que haver bis. Depois, de cada vez que o filme passa na Cinemateca 
(e tenho-o programado com razoável frequência), não cabe um alfinete. 
Unsmilhares de portugueses vão hoje por Nick Ray. Aconteceu o 
mesmo por toda a parte. «La Belle et la Bête du western, como à 
época escreveu Truffaut, transformou-se na própria definição de cult 
movie.
Nick Ray, que também viveu o suficiente para assistir a esta viragem, 
adiantou um dia algumas razões para explicar este fenômeno: 1) foi a 
primeira vez num western, que as mulheres foram simultaneamente as 
principais protagonistas e as principais antagonistas; 2) é um filme cheio 
de luz e de calor. Opunha-se ao estilo do «cinema negro» que predominava 
nessa época; 3) é um filme em que a cor é valorizada, devido a uma hábil 
estrutura arquitectónica; 4) foi o primeiro filme a utilizar a cor em toda a 
sua potencialidade; 5) utilizou o décor e a paisagem para potenciar ao 
máximo a imagem.
Não serei eu quem o desminta, mas muitas dessas coisas foram à época 
das que mais serviram para atacar a obra. Odiaram as mulheres (Joan 
Crawford e Mercedes McCambridge), acharam a cor (um processo chama­
do trucolof) de insuportável mau gosto, berrante e exageradíssima. Por 
mim acho que não vale a pena tentar explicar. De Johnny Guitar só sou 
capaz de falar delirando. Deus e tantos — amigos e inimigos — sabem 
como é quando me largam...
Disse-se, por exemplo, que era o filme com mais belo diálogo da 
história do cinema (eu, pelo menos, disse-o). Alguns convenceram-se por 
esse lado e recordo programas de cineclubes, ou artigos de revistas, 
que publicaram aquele famoso encadeado de perguntas e respostas, 
entre Guitar (Sterling Hayden) e Vienna (Joan Crawford) quando começam 
a evocar o passado, na noite da chegada de Johnny ao saloon de Vienna. 
É quando ele lhe pede para ela dizer «sometbing nice-, quando ele lhe pede 
para ela lhe mentir. ■Tell me you love me like I love you». Mas, reduzido 
a escrito a a seco, o diálogo é confrangedoramente banal. Se as pessoas46
ficam com tal memória dele é pelo concerto das vozes — raspante. a 
de Crawford, átona a de Hayden — que se ouve no filme e pela associa­
ção delas à fabulosa partitura de Victor Young. É pelo modo como a 
câmara e os corpos se movem durante, é pelo contraste dos encarnados, 
dos verdes e dos castanhos. É pela prodigiosa presença daquele décor 
gruta, alucinantemente barroco, simultaneamente mausoléu e casa de 
feitiços.
Muitas vezes ouvi a banda sonora de Jobnny Guitarsem ver as imagens. 
Tudo vem, por acréscimo, toda a memória do filme se repovoa. Mas, para 
que isso suceda, é preciso haver memória, é preciso ter-se visto o filme. 
Se é verdade que Jobnny Guitarê também uma ópera, não o é menos que 
está dependente daquela única e irredutível mise en scène.
Rever as imagens (ou os sons) do Jobnny Guitarê rever a recordação
delas. Para quem o vê pela primeira vez é ainda de rever que se trata. 4 7
Porque todas os personagens — os doze actores principais, cada um deles 
essencial — não fazem outra coisa.
Quando o filme começa — na tarde em que mataram o irmão de Emma 
(Mercedes McCambridge) — Johnny Logan, que se irá chamar Johnny 
Guitar, volta para o pé de Vienna, de quem se separou há cinco anos. 
Porque se separaram? Porque o mandou chamar ela? Porque volta ele? 
Nunca, no filme, nos são dadas respostas a tais perguntas. Também nunca 
sabemos o que com cada um deles se passou nesses cinco anos em que 
não se viram, entre uma tarde no Hotel Aurora (desse hotel, sim, se fala 
no filme) e a tarde em que Johnny regressa. Mas nesses cinco anos se 
fabricou o sentimento dominante de cada um dos protagonistas: a 
amargura de Vienna, o cansaço de Johnny, o ódio de Emma, ou o amor 
por Vienna daquele miúdo loiro que acaba com o pescoço rasgado, no 
cavalo e na forca, a pedir que cumpram a promessa que lhe tinham feito 
de o salvar.
Jobnny Guitar é um filme construído em Jlasb-back sobre uma imensa 
elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash que não pode 
come bac& Ou será que é tudo a mesma coisa?
Não vou continuar. Como as coisas muito grandes, Johnny Guitar não 
se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que 
se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo 
está certo nelas. É a Imitação de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso 
e encontra-se a frase certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra- 
se a resposta certa para o que se está a viver.
Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, 
os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu 
terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: «Keep 
the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin.» No fim de cada visão de Johnny 
Guitar, só me apetece dizer aos projeccionistas: «Keep the film spinning. 
I like to see it spin.» Tanto, tanto.
48 JOÃO BÉNARD DA COSTA
AURORA-MURNAU
A 28 de Dezembro de 1988 — dia dos Santos Inocentes — faz cem anos 
que ele nasceu. «É a inocência que enche este vazio de tudo / É a inocência 
que cura», disse Charles Péguy — traduzido por Alberto Vaz da Silva — dos 
nativos desse dia, aos quais profetizou (no poema dito «Le Mystère des 
Saints Innocents») um percurso no «caminho das quedas» e o pressentimen­
to dos «pântanos doentes / em clara entrega sem medida». «E àquela 
experiência, à vossa experiência, eu chamo / declínio e coisa perdida sem 
esperança».
Falo de Friedrich Wilhelm Plumpe, que escolheu o nome de Murnau 
em memória de uma aventura amorosa que terá tido na cidade bávara as­
sim chamada. Realizou 21 filmes entre 1919 e 1931, o ano em que morreu, 
com 42 anos, num desastre de automóvel. Ao que se diz por demasiado 
absorver um efebo filipino que servia de improvisado chauffeurao volante 
do Packard que o devia levar à estreia de Tabu, a última das suas obras. 
Desses vinte e um filmes, sobrevivem-lhe, hoje, 14. Vão poder vê- 
-los — prometo desde já — nas magníficas cópias de Munique e de Patalas, 
em Fevereiro de 1989, na Cinemateca.
Se todos os que conheço — e apenas desconheço um — são sublimes, 
um há que é suserano de muitas das minhas emoções. Chama-se Sunrise, 
estreou-se em 1927 e foi o primeiro da tetralogia final, que filmou em Holly- 
wood, onde se fixou em 1926 na esteira do fabuloso sucesso mundial de 
DerLetzteMann (1924) por muitos considerado o apogeu do filme mudo.
Sunrise foi feito para a Fox que lhe deu o que raramente Hollywood 
dava e não mais lhe voltou a dar: carta branca e plenos poderes. William 
Fox proclamava-o «o gênio alemão» e dele esperava, segundo o exaustivo 
ensaio que a admirável Lotte H. Eisner lhe dedicou, «um filme infinitamente 
culto, simbólico, ou seja, cem por cento europeu». Se a crítica se rendeu 
incondicionalmente, se Sunrise obteve o Óscar — «melhor produção de 
qualidade artística» — no ano I das famigeradas estatuetas, o público não 49
reagiu com o mesmo entusiasmo. E os dois filmes seguintes de Murnau na 
América (Tabu ê outra conversa) foram já marcados por todos os acidentes 
de produção com que nesses finais dos twenties os estúdios pagavam a 
gênios. De Four Devils (1928) não se conhece hoje qualquer cópia (é um 
dos muitos missingfilmsde Murnau); CityGirl (19Ò0), também conhecido 
por OurDailyBread, é uma obra quase inteiramente cozinhada nas costas 
de Murnau, reconhecível apenas em meia dúzia de planos.
Não reclamo qualquer originalidade na minha preferência por Sunrise. 
Faz agora 30 anos que os Cahiers du Cinema, em resposta à lista dos «12 
melhores filmes de todos os tempos-, estabelecida, oficialissimamente, em 
Bruxelas, o elegeram à cabeça da sua marca de gosto, inscrevendo-o, 
polemicamente, como «o melhor filme de todos os tempos». Trinta anos é 
muito ano. Mas se os homens dos Cahiers mataram os pais com essa lista 
— em 1958 tão provocante — ainda não houve filhos para os matar a eles. 
Muitos tentaram, é certo. Mas faltou-lhes o saber e o gosto. A coerência, 
também. De modo que há três décadas (ou há seis) Sunrise segue sendo 
o apogeu de uma certa concepção de cinema: aquela em que prevalece, 
acima de tudo, o queum cineasta é capaz de dizer com movimentos de 
câmara e de corpos, com luzes e sombras, com composição e ritmo dos 
planos. Para os que consideram o cinema uma arte narrativa, Sunrise. 
sendo embora um filme admirável (tal adjectivo ninguém em seu juízo Iho 
poderá retirar), foi ultrapassado muitas vezes, antes e depois. Para os que 
olham um filme como arte plástica (o que não é sinônimo de arte visual) 
é muito difícil deixar de repetir o juízo dos anos 50 e 60: Sunriseé o mais 
belo filme do mundo.
Há outra maneira de o acharmos assim. É a daqueles que pen­
sam — como Henry Miller pensava — que o cinema é uma arte que nasceu 
demasiado tarde, «precisamente no momento em que morremos». Miller 
dizia que ele «funciona como um eunuco, agitando um leque de penas de 
pavão diante dos nossos olhos sonolentos». Para quem assim pense, 
nenhum cineasta, como Murnau, nenhum filme como Sunrise, tornou tão 
sensível ao nosso olhar essa «grande curva retrospectiva orientada para o 
ventre», que é um dos nomes possíveis da Morte. Continuando a citar Miller, 
os filmes de Murnau — e Sunrise tão em especial — são a relativa com­
pensação para o terror que a vida inspira. Quem julgar que é essa a única5 0
finalidade possível de uma obra de arte, nunca se cansará de ver Sunrise.
Sunrise, filmado embora no lago Arrowhead, é um filme implantado em 
décors totalmente alemães (a aldeia e a cidade foram construídas casa a 
casa por uma equipa germânica). Na ficha técnica, quase todos os nomes 
são alemães. É uma adaptação da novela de Herman Sudermann 
(1857-1928), Viagem a Tilsit, que figura na colectânea Histórias Lituanas. 
Americanos, no filme, quase só actores.
Os protagonistas — Janet Gaynor e George O’Brien — eram, então, 
celebérrimos. Mas Janet Gaynor — a Indre de Sunrise— com a cabeleira 
loura postiça, é a mais letal visão das virgens germânicas. A mais 
mozartiana das stars, «oiseaux si tous les ans», com pintas nos olhos e a 
colecçào de saleiros, sorriso imenso nas bocas do corpo, é a imagem 
aparentemente louçã e distantemente doentia que emerge de um fundo 
muito antigo, esse que gerara as Carlotas de Goethc e as jungfrau de 
Schiller. Só quem lhes ignora a pele e o perfume se pode sentir não 5 1 
ocultamente comovido. Homo americanus, actor de Ford, George O’Brien 
foi dobrado ao peso do próprio corpo para -representar com as costas». 
Dele fica sobretudo o volume, a massa (diz-se que Murnau lhe meteu 
10 kg de chumbo nos sapatos para obter a imagem de gorila, pernas 
afastadíssimas). Entre o casal —casal campónio — interpõe-se, vampiro 
ávido, Margaret Livingstone, bicho da terra vil e não pequena, rastejando 
como a serpente bíblica, muito semelhante a Louise Brooks.
Mas se, no conto, a vertente naturalista domina, no filme tudo é mais 
poético para ser mais verdadeiro. Sudermann seguiu uma exposição 
clássica: a vamp seduziu Ansass (George O’Brien) e juntos congeminaram 
matar Indre, bela e pálida como uma madona. Decidem afogá-la no lago, 
no regresso do passeio a Tilsit, a cidade que ela tanto queria conhecer. É 
durante essa visita que Ansass, comovido pela ingenuidade e confiança da 
mulher, se arrepende do plano, de que jamais Indre se apercebe. Mas, no 
regresso, espera-os mesmo uma tempestade. O barco vira-se, como fora 
desejado, mas é Ansass quem morre para salvar a mulher.
No filme, pelo contrário, é na viagem de ida e não na de volta que 
Ansass tenta matar Indre. E nessa espantosa sequência no lago (mais tarde 
imitada, por tantos, de Sternberg a Stevens) Indre percebe as intenções do 
marido e foge-lhe apavorada, num eléctrico irreal que conduz do lago à 
cidade. Entre travelings — nunca vimos tão belos —■ Ansass persegue-a 
para lhe dizer da sua culpa, do seu medo, da sua vergonha. E quando 
chegam à cidade, aquele homem que queria matar aquela mulher, aquela 
mulher que sabe que aquele homem a queria matar, esquecem a morte 
para redescobrir o amor e, como duas crianças, perdidamente se reapai- 
xonam, irmanados na mesma inocência nova. A chuva os baptizará.
Como crianças cansadas e felizes regressam ao barco e ao lago. A 
tempestade é a última maldição. Indre cai à água e Ansass julga-a morta. 
O milagre final é o único desfecho possível para este filme de milagres e 
de renascimentos. Sunrise significa exactamente isso. Descobrir uma linha 
de fuga (o eléctrico) e um espaço mágico (a cidade). Então, tudo pode 
começar de novo, maravilhosamente de novo. Voltando a Péguy: -A 
criança é grande e o homem é nada / vazio como um tonel vazio ou como 
um grande fruto despejado / É assim, diz Deus, que a vossa experiência 
5 2 cabe em mim.»
A RAPOSA
Em Inglaterra, chamaram-lhe Gone to Earth. Na América, The Wild 
Heart. Como sempre fomos galicistas, em Portugal traduziu-se o título 
francês e chamou-se A Raposa. Não há filme mais obnóxio, não há filme 
mais esdrúxulo do que este que hoje convoco entre os filmes da minha 
vida.
Dizê-lo não é dizer pouco, porque obnóxios e esdrúxulos são quase to­
dos os filmes assinados por tão estranha parelha qual foi a formada por 
Michael Powell e Emeric Pressburger. Quem os conheceu, descreve Powell 
(hoje com 83 anos) como um «country squire», arquetipicamente britânico, 
normalmente vestido com casaco de abas largas, à Sherlock Holmes, e 
usando, sempre, um boné semelhante ao do detective. Alto, magro, careca, 
bigodinho à Chamberlain, um olhar azul, perscrutante e irônico. Nasceu 
em Canterbury (simpatizo com a velha tradução portuguesa em que se diz 
Cantuária), terra de Chaucer e de arcebispos assassinados em catedrais. 
Emeric Pressburger (morreu este ano com 85 anos) era austro-húngaro, 
nascido em Miskalc. Só se fixou em Inglaterra, em 1936. Muito baixinho, 
muito redondinho, grandes bochechas, grande barriga. Dizem que falava 
inglês com um sotaque de cortar à faca. Mas dizem também que com o 
tempo se tornou «mais britânico do que os britânicos, numa época em que 
os britânicos eram cada vez menos britânicos». Mas quem o disse nào foi 
um britânico, foi George Mikas, o autor de How To Be a Decadent, que, 
aliás, lhe dedicou essa obra por ele ser «o único homem que conheço 
que não é decadente», »e com a esperança de que venha a conseguir sê- 
-lo».
Fisicamente, Pressburger e Powell fizeram um par parecido com o Bu­
cha e o Estica. O par formou-se em 1942, ano de One of Our Aircrafts Is 
Missing, primeira obra que assinaram juntos, e desfez-se em 1956, ano de 
TllMetbyMoonlight, último dos quinze filmes a serem rubricados pelos PP. 53
A Raposa, estreado em 1950, é o décimo e passou por muitas mãos antes 
de chegar à deles. Tudo começou com David O. Selznick, o celebérrimo 
produtor americano, o homem do Gone With the Wind. Arquitectos de tais 
monumentos sonham sempre voltar ao local da glória e dificilmente 
acreditam que a história não se repita. Selznick foi desses. E depois de ter 
estado quase, quase (em 1946, com Duel in the Sim, de King Vidor) 
resolveu aliar-se a outro mogul para tentar a grande sorte em solo europeu 
e em tempos propícios a co-produçòes. Esse outro chamava-se Alexander 
Korda, era húngaro como Pressburger e edificara nos inícios dos anos 30 
a London Film Productions. Com o Big Ben em cada genérico — Selznick 
tinha nele a imagem ática do seu estúdio — Korda foi o primeiro a 
conseguir que o cinema britânico parecesse que o era. Hollywood estre­
meceu um bom bocado com a concorrência. Mas, nos finais dos «forties», 
também essa fama era razoavelmente passada. Qualquer deles, grandes 
vencedores de antanho, perseguia a segunda «chance». Cheiraram a 
terminação num clássico célebre ( The TbirdMan, de Carol Reed, em 1949) 
ao som da citara de Anton Karas, na Viena de Korda, mas o «jack-pot» foi 
mais de estima do que de metal. E, logo a seguir, o húngaro acenou ao 
americano com uma história de Mary Webb (1881-1927) assaz estranha 
alegoria, em que o esteticismo pré-rafaelita e o neo-romantismo se 
combinavam para evocar uma mulher de selvática vida e selvática morte, 
atraída por maravilhas e obcecadapor demônios que, como os dos 
Evangelhos, se multiplicavam por sete quando conseguia expulsar um. 
Aqui, saltou Selznick e salto eu. Porque essa mulher estava evidentemente 
destinada a ser Jennifer Jones, nossa paixão comum.
Selznick apaixonou-se por Jennifer em 1942, quando esta era ainda uma 
desconhecida e ainda usava o nome com que nascera, Phyllis Isley. 
Apresentou-a à imprensa como a futura estrela de The Keysofthe Kingdom 
ou como a futura JaneEyre, mas não lhe conseguiu esses papéis. Em troca, 
alcançou-lhe o de Bernardette Soubiroux, a vidente de Lourdes, em 7úe 
Song Of Bernardette (Hemy King, 1943). Jennifer Jones ganhou o Óscar.
Eu apaixonei-me por ela quando vi esse filme, aos 10 anos. Nunca é fácil 
ter que explicar coisas dessas, mas julgo que os êxtases místicos, que a 
5 4 faziam revirar muito brancamente os olhos, ajudaram à minha perturbação. 
Nào estou certo e não queria misturar muito Bataille nisto. Ela e eu 
devíamos ser mais inocentes do que suponho. Mas li, algures, que num dos 
seus últimos filmes (Angel, Angel, Down WeGo, realizado por Robert Thom 
na permissiva década de 70), Jennifer dizia: «I made thirty stag films and 
never faked an orgasm.» Se for verdade, estou mais certo e mais perto.
Depois vi tudo dela, nos anos 40 e 50 e também não fingi nada. Se me 
comovo sempre com despedidas de comboio é, provavelmente, por a ter 
visto a correr atrás do que lhe levava Robert Walker (então marido dela na 
vida dita real) em Since You lT<?»MzíWj’(John Cromwell, 1944). Se gosto 
tanto de «flash-backs» precedidos por imagens a tremer é talvez por causa 
de /.oz>e Zc/Zers (Williarn Dieterle, 45). Se acho que há tanta razão para dar 
nozes aos esquilos como esquilos às nozes, é porque ela mo explicou em 
Cluny Brown (Lubitsch, 46). Se penso que o cinema é ópera e porque, 
depois de Aida e Radamés, nunca vi ninguém morrer como ela e Gregory 
Peck morreram em Duel in the Sun. Se acredito no eterno retorno, foi 
porque dentre os mortos ela voltou sempre a Joseph Cotten em ThePortrait 
Ofjennie (Dieterle, 48), filme a que devo ainda a minha especial atracçào 
por faróis e tempestades. A minha embirração por revolucionários sul- 
-americanos (provocada por Paul Muni em Juarez desse mesmo Dieterle) 
acabou quando a vi apaixonar-se por John Garfield em We Were Strangers 
(John Huston, 49). Emma Bovary nào é Flaubert, é ela, desde a Madame 
Bovary de Minnelli, também em 49.
Páro aqui, porque aqui entra A Raposa. Entretanto, Selznick lutara esses 
anos todos com um embirrantíssimo sogro (Louis B. Mayer, o da Metro- 
-Goldwyn) para que este o deixasse ver-se livre da mulher — Irene — com 
quem se tinha casado em 1929. Conseguiu vinte anos depois, e a troco de 
uma pensão alimentar de 12 milhões de dólares, transformar Jennifer Jones 
em Mrs. David OlSelznick. Faltava convencer os que como eu nào estavam 
convencidos e eram — ai de mim —, a esmagadora maioria, que a segunda 
mulher era a maior das «stars». Um papel como o de Hazel Woodus, a tal 
selvagem boa de Gone to Earth, parecia propício. De certo modo era a 
quintessência do que ela já fizera como Pearl Chavez — a mestiça — em 
Duel in The Sun.
O filme foi um «flop» e zangou todos com todos. Selznick achou que a 55
5 6 JOÃO BÉNARD DA COSTA
culpa tinha sido do «inglês imbecil» (Powell) e mandou refazer o filme, na 
América, com Rouben Mamoulian a remontar tudo e a reduzir a metragem 
de 110 para 82 minutos. Pior foi a emenda. Jennifer, Powell, Pressburger, 
ninguém ficou com boas memórias.
Mas fiquei eu, desde que vi o filme em 1952, no S. Jorge. E, hoje, como 
para tantas das obras dos PP, muita gente comunga dessa admiração. 
Chegaram lá pelas cores, pelas reconstituições do Shropshire (algures, 
entre o País de Gales e a Inglaterra) no fim do século XIX ou por aquela 
sequência em que Jack Reddin (David Farrar), lobisomem da raposa, a leva 
dos bosques e do marido padre (Cyril Cusack) para pomposamente a vestir 
(como quem a despe) na grande casa senhorial. Eu cheguei lá pela carne 
de Jennifer Jones, pela sequência do baptismo no lago, ou por aquele 
modo de ela deixar pegadas nuas no pântano e na floresta.
Lembro-me dela e do filme e revejo os cães a morderem a mulher nua 
na série de quadros da história bocacciana de Nostagio Degli Onasti que 
Botticelli pintou e está no Prado. É uma semelhante visão do mesmo 
pesadelo erótico. Lembro-me dela, bicho da terra pela terra tragado, e 
recordo a primeira quadra do soneto de Christina Rossetti, «Remember», tal 
como Manuel Bandeira o traduziu para português:
«Recorda-te de mim, quando eu embora 
For para o chão silente e desolado; 
Quando não te tiver mais ao meu lado 
E sombra vã chorar por quem me chora»
Há muitos anos que Hazel-Jennifer foi para o chão «silente e desolado». 
Há muitos anos que não a tenho a meu lado. E lembro-me.
OS FILMES DA MINHA VIDA 5 7
5 8 JOÃO BÍÍNARD DA COSTA
MARNIEA SENHORA DA CARTEIRA DE CROCODILO
Vertigo, Shadow of a Doubt, The Birds, Spellbound, Notorious, Under 
Capricorn, The WrongMan, StrangersonaTrain, RearWindowe IConfess 
são — todos — filmes da minha vida e os cinco primeiros serão, talvez, os 
mais fascinantes filmes de Hitchcock. Mas, com a eventual excepçâo de 
Vertigo, talvez nenhum seja tão perturbante e tão misterioso quanto 
Mamie, certamente dos menos conhecidos e dos mais mal amados. Eu 
próprio demorei bastante tempo a perceber porque é que esse filme me 
atraía tanto e ainda hoje não estou seguro de o ter percebido bem. Se 
qualquer Hitchcock — mesmo os que provocam imediata sedução — tem 
sempre um lado secreto que exige alguma iniciação, Mamie è aquele que 
está mais envolto em obscuridade, o que mais consideravelmente despista 
quantos vão vê-lo à procura do suspense ou do enigma de primeiro 
grau.
Mamie é um filme de 1964, que se segue, na filmografia hitchcockiana, 
a dois dos mais célebres êxitos dos anos finais do autor: Psycho (1960) e 
The Birds (1965). Depois de Mamie, Hitchcock abandonou o ritmo de um/ 
/dois filmes ano que a sua obra manteve entre 1925 e 1963, para 
consideravelmente se espaçar no «quarteto» final: Tom Curtain, de 66; 
Topaz, de 69; Frenzy, de 72, e Family Plot, de 76. Ainda hoje, esses 
Hitchcock finais são tão mal estudados como durante tanto tempo o foram 
as primeiras óperas de Verdi. O «jovem Verdi», o «velho Hitchcock». Se agora 
já se sabe que nunca houve um verde Verdi (redescobertas as maravilhas 
de uma juventude que a crítica prolongou para além de razoáveis limites), 
ainda não chegou o tempo de afastar o lugar-comum de um Hitchcock final 
e decadente. Há-de chegar.
Para alguns, essa decadência começou em Mamie, estranha história de 
uma cleptómana frígida, interpretada pela mesma actriz de Tbe Birds, a 
louríssima e sofisticadíssima Tippi Hedren. Para ela, escolheu Hitch o mais 5 9
estranho dos pares: o Sean Connery do 007, na sua única aparição no 
universo hitchcockiano.
Inicialmente, Hitch tinha pensado em Grace Kelly (já então princesa do 
Mônaco) para o papel de Mamie. Esse come back foi pensado tão a sério 
que houve até uma espécie de plebiscito entre a minúscula população de 
Monte Cario para saber como os súbditos de Rainier, reagiríam à hipótese 
de ver, de novo, nas telas a sua soberana, em tempos protagonista de três 
dos maiores êxitos de Hitchcock: DialMforMurder, To Catcb a Tbief e Rear 
Window. As reacções foram negativas e o realizador reincidiu em Tippi 
Hedren. De comum, ambas tinham a imagem arquetípica das famosas 
louras de Hitch, prenunciada em Anny Ondra, Madeleine Carroll, Joan 
Fontaine, Ingrid Bergman, Kim Novak, Eva Marie-Saint, etc. Mulheres 
lindíssimas, mulheres elegantíssimas, aparentemente inacessíveis, oculta­
mente devoradoras e detonadoras. Em 7b Catcb a Tbief há uma sequência 
emblemática desse tipo de personagens. Grace Kelly — no papel de uma 
multimilionária americana — passa um jantar a demonstrar a mais altiva 
indiferença por uma atiradiço Cary Grant. Retira-se para a sua suite com 
o mesmo ar gelado. Cary Grantacompanha-a à porta e já se vinha embora, 
vencido, quando ela o chama com o ar de quem lhe vai dar qualquer recado 
igualmente glacial. Cary Grant aproxima-se e, para enorme espanto dele 
e nosso, Grace Kelly atira-lhe os braços ao pescoço e dá-lhe um dos mais 
lúbricos beijos que já vi em cinema. Depois, como se nada fosse, fecha- 
-Ihe a porta na cara.
Em Mamie, Tippi Hedren é mesmo frígida, mas tanto nós como Sean 
Connery só damos por isso quase a meio do filme. Ao princípio, tudo 
quanto sabemos dela é que é ladra. Nos primeiros planos, a descoberta de 
um roubo num escritório é mostrada em montagem paralela com uma 
mulher que entra numa estação de comboio. Não há referências sobre a 
autora do roubo, empregada recentemente admitida, de cabelo escuro, 
muito bonita e com identidade falsa. Vemos, sobretudo, partes do corpo 
dela e repetidos planos de uma carteira de pele de crocodilo. Depois, a 
dona dessa mala lava os cabelos num quarto de hotel e estes passam de 
negros a louros.
6 0 Como loura, obtém segundo emprego numa cidade distante. O patrão 
é Sean Connery, que rapidamente se apaixona por ela numa noite de 
trovoada e relâmpagos. Depressa se apercebe que algo de estranho se 
passa com ela (alucinações, pesadelos). Por isso, quando chega a sua vez 
de ser roubado, não a denuncia à Polícia, mas pede-a em casamento.
Bem o previne Marnie que não é como as outras pessoas. Mark Rutland 
(assim se chama o personagem confiado a Connery) limita-se a arranjar- 
lhe um nome mais bonito do que ladra: Marnie é cleptomaníaca. Isso 
cura-se.
Mas quando se casa com ela, a mulher que antes lhe dera ardentes 
beijos e um mundo de promessas, recusa-se firmemente a ir para a cama 
com ele. Não suporta o contacto de homens. Quando o marido experi­
menta forçá-la e a despe à força (no paquete que os levava em estranha 
lua-de-mel), tenta suicidar-se na piscina do barco.
Mark arma-se então com a paciência de médico. Lê livros e livros sobre 
psicanálise («You Freud, me Jane», troça ela) e sobre aberrações sexuais de 
mulheres criminosas. Finalmente, descobre a «chave». A mãe de Marnie 
— personagem que durante o filme passeou estranho e estreito puritan- 
ismo — fora em nova uma prostituta. Para a proteger de um marinheiro 
que lhe batia, Marnie, aos cinco anos, espetou um ferro no tal marujo. 
Perdera a memória desse acontecimento, mas conservara sempre recal­
cado o complexo de culpa que a levava ao roubo e a ser incapaz de amar.
A reconstituição forçada a que Mark procede, com ela e com a mãe, terá 
curado Marnie? No último plano, o casal afasta-se abraçado num cenário 
pintado, correspondente à rua da casa da mãe de Marnie, com um enorme 
barco ao fundo. Há crianças a brincar e a cantar uma insólita cantilena: 
«Mother, Mother, I am ill / Send for the doctor over the hill / Mother, 
Mother, I feel worse / Send for the lady with the alligator purse».
Tal como Spellbound, Marnie só aparentemente é um filme sobre a 
psicanálise. É um filme sobre o desejo sexual, correlativo, no universo 
católico que forma e informa Hitchcock, do tema da culpa. Se The Birds 
é o ponto culminante da interrogação de Hitch sobre a culpa, Marnie é o 
seu equivalente sobre o tema do desejo e da sua culpada associação ao 
Mal.
Porque nenhumas das associações psicanalíticas do filme explica 61
Marnie ou Mark, ou explica a atracção que os leva um para o outro, ou um 
contra o outro.
O primeiro plano do filme mostra-nos as imagens de um livro a 
desfolhar-se. Como esse livro, Marnie é um personagem que quer ser 
aberto. Ao cavalo que Mark lhe dá e que tanto ama, dirá, a certa altura: «Se 
queres morder alguém, morde-me a mim». Depois dessas imagens, 
destacam-se no silêncio os passos de Marnie, levando na mão duas 
carteiras de pele de crocodilo, uma cinzenta, outra amarela. Essas duas 
cores acompanham a protagonista ao longo de todo o filme. E na tal 
cantilena final faz-se referência a uma «senhora de carteira de crocodilo» 
chamada em vez do médico, quando tudo fica pior. A referência é obscura, 
mas não será ousado ver nessa senhora uma metáfora da morte. Por isso, 
a revelação do episódio da infância nada resolve. A frigidez de Marnie é 
a máscara do seu desejo, forma suprema de voracidade sexual.
A certa altura do filme, a mãe diz a Marnie que as únicas coisas que 
amamos sào aquelas que nunca conseguimos dizer. Marnie é um filme 
sobre o indizível do sexo e do desejo e sobre o absurdo de os tentar 
compreender através da psicanálise ou de outra explicação qualquer.
Num filme em que estamos sempre (nunca nos identifi­
camos com Mark, nunca nos identificamos com Marnie), o ponto de vista 
é o da fissura entre a total assunção do desejo e a sua total recusa. Para 
desejarmos totalmente, temos totalmente que nos reter. Nenhuma expli­
cação explica, nenhuma palavra liberta. Só o mistério total pode conduzir 
ao que é totalmente misterioso. Marnie é o filme do indizível. Por isso 
acaba, sem saída, em «trompe 1'oeil», num cenário em que todas as 
perspectivas estão distorcidas.
6 2 JOÀO BÉNARD DA COSTA
ESPLENDOR NA RELVA
»Eu sei que Deannie Loomis não existe / mas entre as mais essa mulher 
caminha / e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura 
resiste.*
Começa assim o soneto intitulado «Esplendor na Relva», que Ruy Belo 
inseriu em O Homem de Palavra(s). Deannie Loomis (aliás Wilma Deannie 
Loomis) é o nome da protagonista interpretada pela fabulosa Natalie 
Wood. O pretexto (em sentido literal) é o filme de Elia Kazan Splendor in 
the Grass (1961), com argumento de William Inge.
Hoje, o filme ganhou ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e 
aos Maios de tal década. Na altura, não as teve e foi mesmo, da América 
a Portugal, implacavelmente zurzido pela crítica que o achou piegas e 
cabotino. O público também não ligou peva. Mas para alguns — poucos, 
e certamente não felizes — foi paixão tão devastadora como a que, no 
filme, os adolescentes Deannie Loomis e Bud Stamper (Warren Beatty) 
tiveram um pelo outro. Ruy Belo foi desses. Aliás, não certamente por 
acaso, foi ele o único poeta que conheço a cantar as duas mulheres mais 
intensas dos late fifties e dos early sixties-, Marilyn Monroe (esse assom­
broso poema chamado «Na Morte de Marilyn», que vem no Transporte no 
Tempo e em que nos pede para «em vez de Marilyn dizer mulher») — e 
Natalie Wood.
Eu sei que Ruy Belo não cantou Natalie Wood mas Deannie Loomis. 
Mas também sei que Natalie Wood «não existe / mas entre as mais», etc. E 
há nesse verso um prodígio de adequação poética. É quando se diz que 
«a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste». Resiste 
à «imaginação pura» (no sentido de «pura imaginação») ou resiste, «pura», 
à imaginação? Ou seja, o adjectivo «pura» refere-se à imaginação ou a 
Deannie Loomis? Ou — pode ser também — à «linha que resiste»? Nestas 
três perguntas está o cerne de Deannie Loomis, de Natalie Wood e de 
Splendor in the Grass. São mulheres e filme da nossa imaginação? São
mulheres e filme que resistem à nossa imaginação? Ou são mulheres e filme 
que resistem a uma linha evolutiva que só na nossa imaginação existe? Não 
sei, como provavelmente Ruy Belo não sabería, mas, como também ele 
escreveu (na «explicação preliminar» à 2a. edição do livro): «Ninguém no 
futuro nos perdoará não termos sabido ver esse verbo que tão importante 
era já para os gregos.» E, em Splendor in the Grass, tudo está no ver, que 
traz a história dos meninos e moços de Kansas — meninos e moços dos 
anos 20, de antes da Depressão — à dimensão das mais belas histórias de 
amor e de morte jamais contadas.
Sirvo-me do exemplo mais conhecido, também ele poético, e que dá 
o título ao filme. No liceu de Natalie Wood, onde ela entrava sempre com 
três livros apertados ao peito, um deles de capa azul, a aula de literatura, 
nesse dia, não era sobre Os Cavaleiros da Tâvola Redonda mas sobre 
Wordsworth e a «Ode of Intimation to Immortality». Deannie/Nathalie 
chegava de vestido «grenat» muito escuro, golade rendas. Todas as colegas 
sabiam — e ela também, embora ninguém Iho tivesse dito — que Bud/ 
Warren, incapaz de separar por mais tempo o desejo e o amor, tinha 
enganado, na véspera à noite, a fome do corpo dela, no corpo de Juanita, 
única da turma que não se ficava pelos beijos. Nada seria mais, para eles, 
como antes fora. Como também se diz no filme (noutro contexto), Deannie 
trazia, debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua própria carne.
E é quando todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela 
para lhe perguntar o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos: 
«No, nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the glory 
in the flower.» Para a estúpida e pedagógica pergunta não há resposta ou 
— a esse nível — só há a que Natalie Wood comoventemente tenta 
articular. Mas não é nada disso que o poeta quis dizer.
O que conta, o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura 
sente e sabe, ou pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o poeta 
quis dizer é o espantoso traveling que arranca Deannie ao lugar e a põe 
diante da professora atônita, depois aquele outro em que sai a correr da 
aula e nos atira com a porta na cara e, por fim, esse plano em que a vemos, 
sozinha, na profundidade de campo do corredor do liceu, até ir parar à 
enfermaria. Nesse minuto de cinema, sabemos, para além das palavras que 
«that radiance that was once so bright / Is now forever taken from my sight».64
Irradiância que, no filme,/òz entreo plano inicial (Deannie e Bud a namorar 
nas cataratas, e ela com tanto medo de não aguentar mais) e essa sequência, 
também nas cataratas, em que Bud fez com Juanita o que não fez com ela 
e de que essas cataratas são a mais poderosa das metáforas.
O «esplendor na relva» é o que vimos até à aula: sào os planos em que 
se deita de bruços na cama (Warren Beatty deita-se da mesma maneira); 
é o búzio encostado ao ouvido; sào os ursos de peluche coexistindo com 
o retrato dele; é o dia em que entrou no liceu ao lado dele, tão orgulhosa, 
de blusa amarela e saia branca; é o plano do duche dos rapazes; é a noite 
de chuva no carro amarelo e Deannie a dizer a Bud que ficará para sempre 
à espera dele; é uma saia cor-de-rosa que funde em negro; é, sobretudo, 
a estarrecedora sequência em que Bud a obriga a ajoelhar-se-lhe aos pés 
e ela desata a chorar. Aflitíssimo, Bud diz-lhe que era uma brincadeira. E 
ela a responder: «Não posso brincar com estas coisas. Eu era capaz de fazer 
tudo o que tu me pedisses. Tudo. Juro que era.» 65
Mas é depois da sequência da aula que o filme atinge o máximo de 
beleza e tensão, desde o longo período em que Deannie se isola até à crise 
que a leva ao manicômio. Natalie Wood começa por cortar os cabelos ao 
espelho (iniciaticamente) e, depois, veste-se de encarnadíssimo («bando- 
lette» encarnada, colar encarnado) para se oferecer a Bud na sequência da 
festa, para ser recusada por Bud e, depois, correr pelos rai&até às cataratas 
(terceira e última presença delas no filme) e mergulhar nas águas, onde até 
a morte lhe frustram.
Mas nem Wordsworth nem Kazan terminam no desespero ou nesse 
desespero. Após os versos que dão título ao filme, Wordsworth diz: «We will 
grieve not, rather find / strenght in what remains behind.”
Não estou nada certo que seja “força» o que Natalie Wood encontrou 
na relva da clínica, entre velhas catalépticas e enfermeiras de olhar estra­
nho. Não estou nada certo que seja «força» o que Warren Beatty encontrou 
na universidade para onde o mandaram, ou na noite de Nova Iorque em 
que o pai lhe pagou uma «rapariga parecida com Deannie.» Mas «o que ficou 
para trás», isso, introduz-se a cada plano do lento desmoronar deles, das 
famílias deles, da América da crise de 29, de um mundo com tais valores.
Elia Kazan disse preferir no filme a sequência em que Deannie regressa 
à casa paterna, ao que dizem «curada», e conversa com a mãe que lhe diz 
que tudo o que fez foi para bem dela. Já está noiva do «rapaz de Cincinatti», 
que conheceu no hospital e Bud já está casado com Angelina, que não tinha 
entrado na história e até já tem um bebé. Deannie vai visitá-los, com as 
amigas. Não há uma palavra sobre o passado e há só o passado. Depois 
do «esplendor na relva». Bud fica com as capoeiras e ela com um com­
panheiro das trevas. «Como numa tragédia grega: sabemos o que vai 
acontecer e só podemos ver o que acontece.»
Estas palavras são de Kazan. Mas esta tragédia americana não acaba 
em mortes violentas. Só na morte que cada um de nós traz dentro de nós, 
feita de tudo «what remains behind». «We will grieve not» e, por isso mesmo, 
a nossa dor é muito maior. De Deannie Loomis e de Bud Stamper me 
despeço com outro poema de Ruy Belo: «Mas agora que cantei da triste­
za / não observo já os mais leves traços / e a minha maneira de me ma­
tar / é deixar cair ambos os braços.» É isto que se chama «intimação à imor­
talidade»?66
FRANCISCA: 0 SONHO E O VÍCIO
Como me acontece com todos os autores que amo, o último filme de 
Manoel de Oliveira é sempre o melhor. Devia, pois, escrever sobre Os 
Canibais. Já escrevi e há muita gente a escrever? Nào é essa a razào, até 
porque quanto mais escrevo mais me apetece escrever e porque vária 
gente da muita gente tem escrito coisas (para bem ou para mal) que 
nenhum dos meus botões me explica como é que se continuam a escrever. 
Sucede é que, sobre ou sob as últimas visões, há sempre um filme (nào 
necessariamente o melhor) que fica a bulir comigo, anos e anos, no que 
acontece e no que deixa de acontecer, nas memórias e nos sonhos, na alma 
e no corpo. Por isso é que sào “filmes da minha vida». No caso de Oliveira, 
nào tenho dúvidas: é Francisca (1981), genial cruzamento dos dois 
máximos representantes vivos do geist do Norte deles: Agustina e Oliveira 
(não é por acaso que a palavra vai em alemão). Francisca, para mim, 
cumpre a promessa que Teresa Meneses fez antes de morrer: -Eu hei-de 
voltar.» Para mim — homem que a ama — volta sempre.
Não se tem acentuado muito, na análise da obra de Oliveira, o papel 
conferido ao sonho. Nào no sentido do «pelo sonho é que vamos», ou 
qualquer coisa quejanda. Mas no sentido em que o comportamento 
fantomático e errático dos seus personagens é muito mais determinado por 
quem os visita durante a noite e o sono, de que pelos acontecimentos 
ocorridos à luz do dia. Nesse sentido, sim, os personagens de Oliveira, 
como os de Agustina, ou os de Broch, sào sonâmbulos, «separados do 
mundo, embora continuando nele», jazendo em «grutas ou poços escuros», 
amaldiçoando como Esch ou Huguenau «aquela claridade maldita». Neles, 
reina Deus «coberto de luto», como dizia Kierkegaard.
Sonho, em sentido literal, só há um na obra de Oliveira e é o pesadelo 
do miúdo em Aniki-Bobó, sintomaticamente um pesadelo de culpa, um 
pesadelo autopunitivo. Não se cumpre na «realidade»? Aparentemente, 6 7
assim é. Mas, depois dele, todas as pessoas e objectos ficaram contamina­
dos e o olhar da boneca parece ser — reforçando a subjectividade — o 
único que se não resguardou para as vigílias.
Mas se esse é o único sonho figurado na obra de Oliveira, em quase 
todos os filmes há indicações que nos apontam para um semelhante lugar 
transfigurador do mundo da noite. Em O Passado e o Presente, um dos 
planos capitais é o que nos mostra Wanda a dormir, sozinha na imensa 
cama de casal. Em off ouvimos a repetição da leitura da carta que Firmino, 
o segundo dos «maridos defuntos-, lhe escreveu, antes de se suicidar. Essa 
carta, que, de dia e ainda em vida dele, rasgara e calcara aos pés, com raiva 
e fúria, volta, na noite e depois da morte, como supremo convite a um amor 
finalmente possível. Os leves movimentos que agitam o corpo de Wanda. 
coberta pelos lençóis, sugerem mesmo um erotismo necrófilo, como se 
essa voz e essas palavras acendessem ou reacendessem o desejo de 
Wanda. Quando acorda, reapaixonou-se pelo ex-marido e nessa paixão 
sonâmbula ficará até ao fim (a figura de repetição, final, no casamento,é 
uma figura onírica, metáfora evidente dessa prisão).
Benilde teme-se sobretudo da noite — essa noite que todos temem — 
e durante ela ou elas deu-se o misterioso encontro com o imaginário pai 
do filho que traz no ventre (seja qual seja esse pai). Ela própria é sonâmbula 
(assim a vemos pela primeira vez) e todo o seu comportamente é 
determinado pelo que durante esses sonhos se possa ter passado e de que 
não guarda —acordada — qualquer memória.
O Amor de Perdição (e, por esse lado, o romance de Camilo sempre me 
pareceu fugir à definição clássica da tragédia) é uma obra onírica, em que 
a passividade de Teresa e Simào (e até a de Mariana) parecem porvir mais 
de uma impossibilidade de acordar do que de uma qualquer moira. O acto 
irremissível de Simào (o assassinato de Baltazar) é perpetrado à luz da 
madrugada, entre o sono e a vigília, como se fizesse parte de um sonho. 
Oliveira sublinhou essa visão (mais uma vez, dando-nos a ver a morte de 
Baltazar em imagem repetida) e as vozes do Delator e da Providência 
parecem presidir a um pesadelo, num esforço condenado e contraditório 
(de antemão impossível) para despertar os protagonistas que, pelo 
6 8 contrário, preferem a morte à vida, ou o sonho ao real, sabendo que só nas
sombras podem perfazer o que a luz lhes roubou. Quando, no final, se 
ouve a própria voz de Oliveira, assumindo o lugar de Camilo, para nos 
dizer que nunca mais abrirá o Amor de Perdição, é ainda como se esse 
fantasma reencarnasse (no do realizador) prometendo a esconjuração do 
sonhado.
No sonho (bailado das sombras) sob a égide da lua, fundem-se (ou nâo) 
os corpos de D. Rodrigo e Dona Prouhèze, na sequência de Mogador, em 
Le Soulier de Satin. Se alguma vez se uniram foi assim, no mais fulgurante 
momento de cinema da obra de Oliveira. E é evidente a estrutura onírica 
de O Meu Caso (da peça à visão de Job, desta à da Cidade Ideal) como é 
evidente em Os Canibais.
Tinha pano para mangas, mas tenho pressa de chegar a Francisca.
A imensa singularidade e fascínio do filme reside no facto de ninguém 6 9 
ficar a saber — como ninguém nunca soube, excepto Francisca e a real ou 
inexistente criatura com que foi ou não foi para a cama — se as cartas 
constituíram uma calúnia ou disseram a verdade. Ou seja, é um filme 
construído sobre um «buraco negro». Nem Agustina nem Oliveira nos dào 
qualquer pista que nos ajude a saber se José Augusto tinha razão para os 
ciúmes (se é que é preciso haver razão para eles). Não sabemos sequer se 
José Augusto o soube. Para o saber, mandou autopsiar o corpo de Fanny 
Owen, a quem Oliveira preferiu chamar Francisca. Mas os resultados dessa 
autópsia — se os houve — não os conhecemos. E, como Oliveira tem 
sublinhado, o que José Augusto guardou dela foi o coração, não o hímen.
Mas é como criatura de sonho — como aparição — que Francisca surge 
a José Augusto logo na sequência do baile, quando a camélia que ele tinha 
na lapela se desfolha ao toque de Fanny. E Camilo diz a José Augusto que 
«esse baile foi a antecâmara por onde entraste para a esfera onde vivem os 
espíritos», onde existem segredos só reveláveis «quando a civilização partir 
os sete selos» (Agustina).
É no baile que Camilo diz a Fanny que José Augusto «é um homem de 
temperamento funesto», porque «não tem alma» e »cada sorriso que ele lhe 
dirigir apaga uma das luzes das mil que alumiam o seu mundo». E repete- 
-Ihe por duas vezes: «Deixe-o passar.» É então que ela lhe responde que 
«a alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é...»(grande 
pausa, câmara e imagem especular e, em off, Camilo a querer que ela 
complete a frase) «E um vício. A alma é um vício.» Foi então (novamente 
há repetição da sequência) que Camilo disse «Meu Deus!» e só Deus sabe 
o que percebeu ou entreviu.
Daí para diante é só esse vício (figurado por memórias, elipses, sonhos) 
que Francisca persegue em José Augusto e ele nela. Mais uma vez, a união 
deles só pode dar-se no sono total, na morte inexplicável de Fanny. 
«Morreríam por não serem uma só pessoa», diz Agustina. Só nos sonhos se 
morre assim.
A propósito deles (sonhos) escreve Agustina — e filma Oliveira — ci­
tando Hõlderlin, que «o homem que sonha é um deus, o que pensa é um 
mendigo». E ao morrer (com José Augusto, oniricamente, fora e dentro do 
7 0 plano) Fanny diz que a memória se lhe foi com a alma, ou seja, em termos 
dela, com o vício. E com ela se foram as borboletas brancas que «também 
nào têm alma» e sabem «como ninguém tocar as flores» substituídas pela 
borboleta negra da fulcral sequência (outra vez repetida) em que José 
Augusto exibe as vísceras de Francisca.
A única lógica deste discurso é a do sonho. A única lógica de Francisca 
do sonho vem. Por isso — e como sucede a quantos fazem depender a 
visão diurna das visões nocturnas — Francisca acorda em mim os 
fantasmas do desejo, que Agustina e Oliveira chamaram «parente pobre da 
eternidade». E, por isso, às vezes me pergunto se sonhei esse filme ou se 
esse filme me sonhou a mim.
OS FILMES DA MINHA VIDA 71
0 LADRÀO DE BAGDAD
Lembro-me imperfeitamente. Eu tinha seis anos. Foi no Natal de 1941 
e eu estava com os meus pais e as minhas irmãs naquele grande camarote 
que havia no Éden, com vidro espelhado para uma só visão. Quem estava 
lá dentro via tudo; quem, da sala olhava para o camarote, não via ninguém. 
Assim se protegiam os senhores (com ou sem senhoras) de olhares 
indiscretos. Eram os efeitos especiais, à anos 40, ou à anos 30, quando tudo 
estava ainda no seu sítio.
Foi nesse camarote que travei conhecimento com o «ladrão dos 
ladrões», esse das Mil e Uma Noites e de Bagdad, ao tempo em que essa 
cidade devia ser bem apetecível. Como no meu camarote, as princesas 
também se protegiam dos olhares das turbas. Não com vidros de uma só 
72 visão — embora o filme mostrasse invenções bem mais estarrecedo- 
ras — mas por decretos que proibiam, sob pena de morte, a presença de 
qualquer um nas ruas por onde passassem. Ver era morrer.
De todos o filmes da minha infância, O Ladrão de Bagdad, com a 
Branca de Neve, o Pinóquio, o Dumbo ou o Feiticeiro de Oz, foi o que mais 
me marcou para a vida. Estive muitos, muitos anos sem o rever. Mas, 
durante todo esse tempo, quando me falavam do filme, eu via. Via uma 
praia, onde um miúdo encontrava uma garrafa. Abria-a, um estrondo 
enorme, e de lá saía, imenso, imenso, um gigante careca e terrível, às 
gargalhadas. O gigante crescia, crescia e o miúdo ficava minúsculo, 
minúsculo. Lembrava-me de um pé descomunal, quase a esmagar o rapaz. 
E via muitas rosas azuis, muito azuis, que uma princesa cheirava e morria. 
Ia jurar que me lembrava do perfume dessas flores, adocicado, entre o 
incenso e a alfazema.
Se a imagem do gigante «conferia» — é célebre esse episódio das Mil 
e Uma Noites, uma das muitas variações do princípio do mais pequeno e 
do maior—, a da princesa e dos perfumes intrigava-me. Nào era plausível 
que a princesa morresse no filme, mesmo a cheirar rosas. Quando 
finalmente o revi — cerca de 10 anos depois — descobri que a princesa 
nào morria. O perfume apenas a deixava adormecida, numa «pequena 
morte» que, ao contrário das intenções de quem lhas dera a cheirar, apenas 
a faziam sonhar mais e mais com o belo árabe que ousara turbar o viso 
vosso. Há mortes e mortes. Nada de espantar que uma criança as tivesse 
confundido. Nào confundi foi as cores, apogeu do Technicolor do dr. Kal- 
mus e da sua mulher, Nathalie, que pôs uma geração — a minha — a sonhar 
em Technicolor (nunca perguntei aos meus filhos em que «processo» se 
passou a sonhar depois dos anos 50, com medo que me respondessem que 
nào tinham escolhido o VistaVision).
The Thief of Bagdad, já tinha havido um e bem célebre na história do 
cinema, mas, esse, tinha-se estreado muito antes de eu nascer e só há 
pouco tempo se me apresentou. Realizara-o Raoul Walsh, em 1924, para 
Douglas Fairbanks e com Douglas Fairbanks no protagonista. O lendário 
espadachim tinha visto na Europa Der Müde Tod (A Morte Cansada)de 
Fritz Lang, provavelmente o filme que mais vocações despertou 
(Hitchcock e Bunuel diziam ter começado a filmar por causa dessa 73
obra). Deslumbrado com os «efeitos especiais- mandou o seu art 
director William Cameron Menzies, estudá-los e aperfeiçoá-los. O resul­
tado foi o mais espectacular e imaginativo dos orientalismos dos twenties, 
saudado pela crítica como o maior prodígio de efeitos que já se havia 
visto.
Quinze anos depois, o inglês Alexander Korda resolveu bisar e a cores. 
Chamou outra vez William Cameron Menzies (à época a trabalhar em Gone 
With the Wind) e alargou os cordões à bolsa. Em má altura porque, quase 
ao mesmo tempo, os alemães começaram a largar bombas sobre Londres. 
Com trem e equipagens, Korda partiu para a América e foi lá que a London 
Film acabou o segundo Tbief ofBagdad, o que hoje evoco e há 47 anos 
vi.
Três realizadores o dirigiram: Michael Powell, Ludwig Berger e Tim 
Whelan. A música é de Miklos Rozsa, da minha predilecção. Os efeitos 
especiais são de Lawrence Butler e Percy Day. A fotografia, de Georges 
Périnal e ganhou um Óscar. Mas os veros autores foram Alexander 
Korda e Cameron Menzies, na que pode ser considerada a obra-prima de 
ambos.
Hoje, que anda tanta gente respeitável à procura da «identidade» do 
cinema europeu, não fica mal recordar que este filme inglês, rodado na 
América, é, como quase todo o grande cinema anglo-americano dos anos 
30 e 40, um cinema europeu que se desconhece. Todo o portentoso 
imaginário de The ThiefofBagdad vem da Europa Central. Não só por via 
das coisas que Cameron Menzies aprendeu com Fritz Lang e com os 
decoradores dele. Mas também por via de Korda, um húngaro, do 
argumentista Lajos Biro (húngaro, também), de Miklos Rosza (outro 
húngaro), do alemão Ludwig Berger, do francês George Périnal, ou da 
presença no c<zsí desse autor fenomenal que se chamou Conrad Veidt e que 
um dia fora o sonâmbulo César do Gabinete do Dr. Caligari de Robert 
Wiene.
No filme, faz de vizir, o terrível Jaffer, causador de tantos males e que 
tanto cobiça a belíssima princesa (June Duprez). E o que ele diz com os 
seus imensos olhos azuis — gélidos, escaldantes — está para além de 
qualquer descrição.7 4
The Thief of Bagdad é uma das melhores aulas práticas sobre cinema 
que se podem dar. Se está lá todo o passado (esse da Alemanha dos anos 
20 e da América dos primitivos geniais, como o foram Fairbanks e Walsh), 
está lá todo o futuro, todo o cinema de aventuras dos nossos dias. Duvida- 
-se? Então quando tiverem ocasisão vejam essa aparição do Gigante (Rex 
Ingram — a não confundir com o cineasta primitivo do mesmo nome 
— fez o papel), vejam a história dos três desejos do ladrão (o «índio» Sabu, 
que nessa altura tinha 15 anos), vejam os voos de Sabu às costas do gigante, 
por cima dos Himalaias ou no tapete voador, vejam a expedição dele ao 
templo hindu, com as aranhas e os esqueletos, vejam a colecção de 
brinquedos do velho rei das barbas brancas (Miles Malleson). Se não se 
lembram de nada, é porque nunca viram Os Salteadores da Arca Perdida 
ou IndianaJones, que mais não fizeram do que recapitular, 40 anos depois, 
o que em The Tbief of Bagdad é mais novo e mais belo. Até RogerRabbit 
nasceu aqui.
Travo as referência cinéfilas. Porque este é o filme que vai de surpresa 
em surpresa, de encanto em encanto, de magia em magia. Se fosse preciso 
demonstrar que o cinema era uma arte mágica bastava exibir este filme, 
antecedido ou seguido por The Wizard ofOz. Tbe Wizard é de 1939; The 
Thief de 1940.
Quando começa o filme, vê-se um barco com um olho. Não está lá por 
acaso ou para decoração. Como no meu camarote do Éden, tudo se passa 
entre o doce deleite de ver e a acre proibição de ver. A princesa que nào 
podia ser vista apaixona-se pelo príncipe que, transgressoramente, a viu, 
quando «?na água a imagem reflectida dele. É entre os dois olhares (ambos 
proibidos) que passamos para «o outro lado do tempo», «até ao fim dos 
tempos». É para apagar essa visão que o homem que tem nos olhos o mais 
absoluto desejo que já vi em olhos de alguém (Conrad Veidt) condena o 
rival à cegueira, após outro prodigioso interlúdio visual, que é a espécie 
de «vídeo dentro do filme» constituído pela premonição televisiva do 
brinquedo do rei. E a cegueira do belo Ahmed (John Justin) — You Shall 
Remember— leva ao sono e ao sonho da princesa. My dream! Always my 
dream! Para Ahmed voltar a ver, a princesa tem que tocar no corpo do 
vizir. 75
E, na progressão erótica de qualquer história infantil, entra o tema do 
vento (o ciclone de Oz, as ondas de Tbe Portrait of Jennié) como entram 
os outros sentidos todos: um rei beijado até à morte por uma boneca 
mecânica de oito braços, Sabu a comer ovos com salsichas (satisfazendo 
o primeiro desejo que formulou ao gigante), o cheiro das rosas azuis do 
esquecimento, os sons que fazem desabar montanhas.
No final, quando Ahmed e a princesa casam para serem muito felizes, 
o único que não está contente é Sabu, o Ladrão de Bagdad. Muito pouco 
à vontade nas vestes ministeriais com que o presentearam, agarra o tapete 
e parte pelos ares, à busca de «some fun and adventure».
Nunca um filme nos deu tanto de uma e outra. Se não acreditam, vejam. 
E se quiserem exagerar — há sempre quem exagere — levem para casa 
o medalhão encarnado com June Duprez lá dentro.
7 6 JOÃO BÉNARD DA COSTA
DO CÉU CAIU UMA ESTRELA
Já vou atrasado com sugestões cinéfilas para o sapatinho. Mas quem 
acreditar em mim deve procurar as excepcionais memórias de Frank Capra 
(The Name Above The Title) e oferecê-las a quantos amigos tiver, roídos 
pelo bicho do cinema ou feitos de matéria susceptível de servir de pasto 
a tal bicho.
Nessas memórias, conta Capra tin-tim por tin-tim a gênese da pasmosa 
obra que em Portugal teve o título desta crônica e no original se chamou 
Lt's a Wonderful Life (1946).
Capra — hoje, com 91 anos, último sobrevivente da gloriosa geração 
dos thirties — era um nome celebérrimo, muito «above the title», quando 
regressou a Hollywood em 1945, depois de ter cumprido na guerra os 
deveres para com o seu país (incluindo a memorável série Why WeFight). 
Entre 1933 e 1939, fora nomeado cinco vezes para o Óscar de best director. 
Os títulos são lendários: Lady for a Day {Milionária por um Dia, 1933), Lt 
Happened OneNightl Uma Noite Aconteceu, 1934), MrDeeds Goes To Town 
{Doido com Juízo, 1936), You Can ’t Take It With You {Não o Levarás 
Contigo, 1938), MrSmith GoesTo Washington {Peço a Palavra, 1939). Três 
vezes ganhara a estatueta {Uma Noite Aconteceu, Doido com Juízo, Não o 
Levarás Contigo). Além destes cinco gloriosos títulos, recebera um quarto 
Óscar pelo documentário Prelude to War (1942) e conseguira êxitos 
prodigiosos com filmes como LostHorizon {HorizontePerdido, 1937), Meet 
John Doe (Um João Ninguém, 1941) e Arsenic and Old Laces {O Mundo é 
um Manicômio, 1944).
Quase todas essas obras (com expressão paradigmática em MrDeeds, 
You Can 't Takelt, MrSmith ou John Doe) foram as que mais longe levaram 
uma certa imagem da América rooseveltiana com os seus heróis (ora Gary 
Cooper ora James Stewart) a representarem, na quintessência, a luta 
triunfal do indivíduo contra uma sociedade corrompida. E a demonstrarem, 7 7
simultaneamente com o máximo simplismo e a máxima complexidade, 
que, nos anos 30 e na América, quem combatia o bom combate era sempre 
recompensado.
Conhecendo-se o mundo de Capra, conhecendo-se esses filmes, pode 
perceber-se o entusiasmo do realizador quando, na sua difícil readaptação 
a uma Hollywood muito diversa, um amigo lhe entrou pela porta dentro 
com meia dúzia de páginas dactilografadas, em forma de cartão de Boas- 
-Festas, contendo o script que Dalton Trumbo extraíra do conto -The 
Greatest Gift», de Philip Van Diren Stern. A palavra a Capra: “Era a história 
que toda a vida eu procurara. Uma cidadezinha. Um homem. Um homem 
bom, ambicioso. Mas tão preocupado em ajudar os outros que deixara 
perder todas as oportunidades que tinha tido na vida.Um dia, perdeu a 
coragem. Desejou nunca ter nascido. Esse desejo era-lhe satisfeito. Meu 
Deus, que história! O gênero de história para fazer dizer às pessoas quando 
eu já for muito velho e estiver a morrer:“Foi ele quem fez The Greatest Gift
Capra não se enganou. Agora, que está velho e que a vida se lhe 
aproxima do fim, gerações e gerações continuam a dizer «Foi ele quem fez 
It'sa WonderfulLife». Nos países anglo-saxónicos, esse filme — ex-aequo 
com TheWizardofOz(F\eming, 1939), MeetMe in St. Louis(Minnel\i, 1944) 
e Dr. Dolittle (Richard Flescher, 1967) — é o mais programado pelas 
cadeias televisivas nas noites de Natal ou de Fim de Ano. Tão bem o 
conhecem os velhinhos que o viram à data da estreia, nas grandes salas dos 
anos 40, como os filhos e os netos deles, a quem lhes veio a casa misturado 
com o Pai Natal. No caso em questão, não há corte geracional. A história 
do homem bom — George Bailey chamado — é patrimônio da nação.
George Bailey é, obviamente, James Stewart, «o único actor que podia 
ter feito aquele papel». Foi Capra quem escreveu que rodou o filme em 
quatro meses (de Abril a Agosto de 1946) num «orgasmo ininterrupto». 
Quando o concluiu, estava firmemente convencido de que era: «The 
greatest film I have ever made. Better yet. I thought it was the greatest film 
anybody ever made.»
Teve uma amarga desilusão. A América e o mundo tinham mudado 
muito. Se o filme ainda valeu a Capra sétima e última designação para o 
Óscar que perdeu, o sucesso, nesse Natal de 46, foi bastante relativo. Não78
faltou quem dissesse que o «Capra-corn» se estava a tornar cada vez mais 
com e cada vez menos Capra e quem brincasse com a pieguice da história. 
O sisudo Bosley Crowther, na sua tribuna do New York Times, chamou ao 
filme «um reportório de banalidades melodramáticas».
Mas cerca de dez anos depois (dez anos que assistiram ao final da 
carreira de Capra, com filmes cada vez mais desfasados) It’s a Wonderful 
Lifereconquistou tudo e todos. Desde os anos 60 que é o mais amado dos 
filmes de Capra. Recentes inquéritos consideram-no tão popular como The 
WizardofOz, Gone With The U7mí/(Fleming, 1939), CasaWanca (Michael 
Curtiz, 1942), The Sound Of Music (Robert Wise, 1965) ou Star Wars 
(George Lucas, 1977). 7 9
Para mim, é paixão antiga, desde que o vi no Politeama, noutro Natal, 
o de 1947. Muitas e muitas vezes, ao longo da vida, me tenho lembrado 
da moral dessa fábula (com ou not com) e a tenho contado a gente que 
repete, como James Stewart, que «era melhor não ter nascido». E nunca 
consegui deixar de chorar no tearjeckingfinale, quando James Stewart, na 
noite de Natal, recupera, entre a família e os amigos, o gosto e a alegria de 
viver.
O filme começa nessa mesma noite, quando ele desespera. Uma voz off 
informa-nos que estamos em Bedford Falis (nome da cidadezinha). A neve 
cai, ouvem-se os sinos natalícios e orações. Depois, a câmara sobe até às 
estrelas. Uma voz autoritária chama um anjo, chamado Clarence. Pre­
sumivelmente, é a voz de Deus, já que o anjo o trata por «Sir». Com tom firme 
e duro (tom de patrão), Deus manda-o sentar e dá-lhe uma hora para ele 
se vestir. Quando já está sentado (tudo isto sempre nas estrelas, sem 
vermos qualquer personagem ou figuração), o Altíssimo convida-o para 
um «bom filme». O filme da vida de George Bailey desde o dia, aos sete 
anos, em que salvou o irmão mais velho de morrer afogado nos gelos, até 
essa noite de Natal (a noite de Natal que é tempo de todo o filme), vinte 
e cinco anos depois. Ao princípio não se vê nada (quem não tem asas, 
como era o caso de Clarence, anjo de baixa extracção, não vê de outros 
planetas), até que a «imagem foca» e começa o filme. Quando passamos da 
infância de George à idade adulta, quando vemos pela primeira vez James 
Stewart, Deus diz ao anjo «Take a good look on him.» E a imagem imobiliza- 
se em «paralítico», comjames Stewart de braços todos abertos, no arquétipo 
da imagem capriana que tinha sido a dele (Não o Levarás Contigo, Peço a 
Palavra) e que também no cinema nunca mais voltou a ter.
O filme da vida de George Bailey é o filme de coisas tão bonitas 
como Gloria Grahame a fazer parar o trânsito; o «graduation bali» de 1928 
em que ele conhece Donna Reed, «the prettiest girl in town», com quem 
viria a casar; as cenas de amor entre ambos nos arbustos quando o roupão 
dela cai; os «discursos» de Stewart, sempre demagogicamente na conta; o 
prodigioso plano-sequência (câmara sempre imóvel) do primeiro beijo 
deles; a noite de casamento na casa velha-nova; as lutas de Stewart contra 
8 0 a maldade de um velho rico de cadeira de rodas (Lionel Barrymore); os 
pobres amigos de Stewart (esse genial tio pateta chamado Thomas 
Mitchell).
Até que o tio lhe perde o dinheiro, o dinheiro que toda a cidade confiara 
a George. George está perdido e numa ponte, sobre o rio revolto clama: 
■■Quem me dera não ter nascido.» Então, ao lado dele, aparece o anjo (Henry 
Travers, velhinho de sobrancelhas brancas que não vinha à terra desde o 
século XVIII) para lhe satisfazer o voto. E é a noite da inexistência de 
Stewart, a noite da cidade como a cidade teria sido sem ele. Noite terrível 
em que George vê o mundo como se não houvesse George. O irmão 
morreu, um farmacêutico que salvou é uma ruína humana, a mulher é uma 
solteirona azeda, a cidade está convertida num vasto lupanar, entre strip- 
teasers e luzes de néon.
Finalmente, James Stewart pede para voltar a viver. É a vitória do anjo, 
que com tal feito ganhou cobiçadas asas. E toda a gente em casa de Stewart 
lhe dá as economias todas, milhares de notas de 1 dólar, na apoteose do 
Natal.
Tudo o que até aí fora um pouco mágico (coisas de anjos e estrelas) 
explode e encarna nessa noite de Natal, à roda de George, com os filhos 
ao colo, a redescobrir o valor da solidariedade humana, a redescobrir que 
«It’s a wonderful life». Tudo muito falso, por que na vida não é assim? 
Exactamente. E exactamente por isso, muito verdadeiro, porque no grande 
cinema é assim. E é o cinema que nos faz acreditar na vida e raramente o 
inverso. //s a wonderfulfilm.
OS FILMES DA MINHA VIDA 81
M
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iiii
PERSONA: A EXISTÊNCIA DO TERRÍVEL
Foi em 1955. A 16a. longa-metragem realizada por Ingmar Bergman 
— Sommamattens leende (Sorrisos de Uma Noite de Verão) — ganhou 
em Cannes o Prêmio Especial do Júri. Subitamente, 400 críticos à procura 
de um autor criaram um fenômeno para que se inventaram palavras 
como Bergmanorama ou Bergmanomama. De 1955 a 1960 — pouco 
mais ou menos — estrearam-se no Ocidente 12 dessas longas-me- 
tragens e mais as seis que o cineasta assinou entretanto. Dezoito filmes 
em cinco anos, quase à média de quatro, na segunda metada dessa dé­
cada.
Bergman tornou-se muito mais famoso do que os mais famosos dos 
seus predecessores (Sjõstrõm, Stiller, Sjõberg) e, no mundo do cinema,8 2
apenas dois compatriotas tiveram a fama que teve e tem: a homônima 
Ingrid e Greta Garbo. Através dele, graças a ele, actores ignotos consegui­
ram reputação mundial: Mai Zetterling, Maj-Britt Nilsson, Eva Dahlbeck, 
Gunnar Bjõrnstrand, Harriet Andersson, Ulla Jacobsson, Max Von Sydow, 
Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Erland Josephson. Repetiam-se de filme 
para filme, como Bergman se repetia de filme em filme, na fidelidade a um 
universo de rigor e de vertigem, herdeiro — único herdeiro — da 
dramaturgia nórdica dos fins do século passado e dos inícios deste, de 
Ibsen ou de Strindberg.
Em Julho de 58, escreveu Godard a sua súmula crítica, motivada 
sobretudo pela visão de Sommarlek (Um Verão de Amor), realizado por 
Bergman sete anos antes, em 1951. -Na história do cinema, há cinco ou seis 
filmes que apetece criticar apenas com as seguintes palavras: É o mais belo 
dos filmes; (...) Cinco ou seis filmes disse eu. +1. Porque Sommarlek é o 
mais belo dos filmes.»
Não há fome que não dê em fartura, principalmente quando uma obra 
— como a de Bergman — escava numa só direcção ou quando, para usar 
o poderoso gongorismo de Godard, cada filmeé como «uma estrela do mar 
que se abre e se fecha, sabendo oferecer e esconder o segredo de um 
mundo de que é, simultaneamente, único depositário e fascinante reflexo». 
Em 1960, começou a ser de bom tom afirmar que Bergman já não tinha mais 
nada para dizer e que se estava a tornar progressivamente irritante. O 
último dos filmes desse ano — Djãvullens Óga (O Olho do Diabo) — foi 
o pior recebido pela melhor crítica.
Mas esses 22 filmes, de 1946 a 1960, eram apenas o prelúdio. Aos 42 
anos que então tinha, Bergman traçara somente os geniais esboços da 
maturidade futura. Essa — hoje, retrospectivamente, não podemos ter 
dúvidas, ou, pelo menos, eu nào as tenho — iniciou-se com a trilogia de 
61-63 (Sasom i en Spegel, Nattvardsgãstema e Tystnaden que, em Portu­
gal, se chamaram, respectivamente, Em Busca da Verdade, Luz de Inverno 
e O Silêncio) e terminou em 1982 com o filme que Ingmar Bergman 
anunciou como o último: Fanny och Alexander. Foram mais 19 filmes 
excluindo o episódio (Daniel) de Stimulantia (67) ou os documentários 
sobre a ilha de Faro (69 e 79). Algumas dessas obras são comparativamente 83
menores (Skammen — A Vergonha de 68, Riten — Rito de 69, Berõringen 
— O Amante de 71), uma é falhada (Das Schlangenei— O Ovo da Serpente 
de 1977), mas todas tecem em torno do deus-aranha a mesma teia. Entre 
elas emerge o mais misterioso e fascinante dos seus filmes — em termos 
de Godard, o mais misterioso e fascinante dos filmes — Persona, datado 
de 1966.
Foi em Persona que surgiu, pela primeira vez, a última e a maior das 
criaturas de Bergman: a norueguesa Liv Ullmann. Chamava-se Elisabeth 
Vogler. Não dizia uma só palavra durante quase todo o filme (só na última 
sequência murmurava nada) mas a câmara quase nunca a largava 
em grandes planos que só têm equivalência nos que em tempos idos 
Griffith consagrou a Lillian Gish. Quem era? Uma actriz. Uma actriz que, 
um dia, ao representar a Electra, se calara no palco e nunca mais voltara 
a falar.
Era quando, após ter suplicado o perdão de Orestes, evocava os deuses. 
«E Vós, Divindades, Vós que algures nas trevas exteriores que a todos 
nos cercam me estais ouvindo, tende piedade de mim. Vós que 
sois o Amor.» Depois, uma gargalhada. Depois, o silêncio. Quem se lembra 
do filme, sabe que isto não está no filme. O que lá está quase a seguir 
ao genérico, e depois das muito enigmáticas sequências que o precedem, 
é o plano rapidíssimo de uma mulher de cabeleira postiça negra, com uma 
túnica grega, a representar uma cena de uma tragédia grega. Não diz nada 
e tem no rosto uma expressão de ofuscamento ou estupefacção. Tudo 
indica que estará num palco, mas vêmo-la a ser filmada, e distinguem-se 
os vultos de Ingmar Bergman e do seu inseparável operador, Sven Nykvist. 
E uma voz-q^fvoz do psiquiatra que a está a tratar no hospital em que 
a internaram) diz-nos que aquela aparição — aquele fantasma — é 
Elisabeth Vogler, a actriz que ficou sem voz no meio de Electra. Foi-lhe 
diagnosticada a doença de Méniere, perturbação do ouvido interno 
que se manifesta, entre outros sintomas, por vertigens e perdas de 
equilíbrio. Muito mais tarde — já lhe deram por enfermeira Alma (Bibi 
Andersson) — é esta última que, enquanto a vela, acende a telefonia e 
ouve fragmentos de uma peça que provoca a Elizabeth esse ataque de
8 4 riso.
Tudo em Persona — desde as sequências pré-genérico até à sequência 
final, ambas colocadas sob o signo do cinema e sob o ruído da máquina 
de projecção — é tão elíptico e tão críptico como o episódio em que me 
demorei.
Aparentemente, Persona (que como se sabe quer dizer máscara 
e é palavra grega que foi raiz do termo pessoa) é uma variação sobre o 
tema do vampirismo. Para obter a cura de Elizabeth, os médicos 
confiam-na a Alma, que a leva para uma casa à beira-mar (numa ilha) 
onde tenta comunicar com ela. Durante todo o filme, Alma fala, fala sem 
cessar. É enfermeira, é psiquiatra, é mãe, é filha, é confidente, é amante, 
é rival, é inimiga. Durante todo o filme, e através de todas as emoções, 
Elizabeth opõe-lhe o silêncio. Há um plano célebre em que as caras 
das duas se fundem, como se fossem uma só, metade Elizabeth, 
metade Alma, metade Liv Ullmann, metade Bibi Andersson. Há 
uma sequência em que Alma se vinga e espalha os vidros do copo partido, 
em que Elizabeth se fere. E, depois, repete o pedido de perdão de Electra 
a Orestes. Há o marido «cego» de Elizabeth (Gunnar Bjõrnstrand) que 
as visita na ilha e se dirige a Alma como se esta fosse Elisabeth. Especu­
larmente, já o foram ou são. Ou, como Alma dirá, depois, aterrada: «Duas 
pessoas podem volver-se numa só?» E, sendo possível, a Alma e a Máscara 
(o corpo) podem continuar a dividir-se, como se divide a imagem do 
filme?
Nas recentes memórias — Lanterna Mágica — Ingmar Bergman refere 
que um dos sonhos obsessivos e regulares da sua vida é com um filme que 
quer fazer e nào consegue fazer. O script está vazio, não há espaço para 
os movimentos necessários, os actores não lhe obedecem. Tem as peças 
de um mosaico, mas sabe que o sentido do mosaico só lhe pode ser 
revelado à hora da morte. Em certo sentido, Persona é esse sonho. Para 
mim, por mais vezes que o tenha visto e sonhado, por mais e melhores 
exegeses que tenha lido (e a melhor é a de Susan Sontag), é também um 
mosaico que nào fez sentido, ou só o pode fazer nessa hora, aquela que 
noutras das suas obras Bergman chamou do lobo.
Sinto-me diante de Persona como o miúdo que por lá aparece a tocar 
na tela e sem a transpor. Para lá daquele filme estará possivelmente o 8
sentido de tudo, mas não se pode ir para lá de um filme, como não se pode 
passar para lá de uma tela sem destruir a visão.
Nunca se pode quebrar o círculo encantado da solidão. Estamos 
sozinhos e não conhecemos ninguém; não conhecemos ninguém e 
estamos sozinhos. Bergman traduziu, assim, livremente, Georges Perec 
([/rz Homme qui dort) quando se pôs a questão de Rilke, a questão da 
«existência do terrível».
«Meu Deus, se fosse possível partilhar tudo isto com alguém. Mas 
se o fosse, alguém o seria, alguém o seria ainda?» A resposta de Per­
sona, a resposta de Elizabeth, não é não, é nada. O Malte de Rilke 
dizia que um só — um só — podia ser capaz. Mas que esse não o queria 
— ainda.
8 6 JOÀO BÉNARD DA COSTA
A MULHER DO CAPACETE DOURADO
O título original é Casque d'Or. Em Portugal chamaram-lhe — com 
maus modos e mau gosto — Aquela Loira. Realizou-o o homem a quem 
Godard chamou «Frére Jacques», o intimista e puríssimo Jacques Becker. 
Foi no ano de 1952, o ano de alguns e muito belos nascimentos. Como 
deles sei, sei de Casque d’Or, um dos filmes que mais amo.
Becker tinha então 46 anos e realizara já seis longas-metragens, entre 
as quais um certo Goupi, Mains Rouges (1945) e um certo Falbalas (1945). 
Realizaria ainda mais seis, até morrer prematuramente, em 1960, aos 54 
anos. Casque d’Or está, pois, situado no centro da sua obra. Com quatro 
filmes de Ophuls (LaRonde, LePlaisir, MadameDe... e Lola Montes), com 
três filmes de Renoir (French Can-Can. Elena et les Hommes, Le Déjeuner 
sur 1'Herbe), com três filmes de Bresson (Le Journal d’un Curé de 
Campagne, Un Condamné ã Mort sest Échappé e Pickpocket) forma o 
conjunto dos 11 mais belos filmes franceses dos anos 50, década apesar de 
tudo menos cinzenta do que nos quiseram fazer crer. Nenhuma «nova vaga» 
os submergiu. Os melhores frutos dela saíram deste ramo.
Casque D’Or é Simone Signoret. Uma Signoret de 30 anos, então 
belíssima, então louríssima e então, como sempre, fortíssima. Simone 
Signoret, inundada de luz, com o cabelo altíssimo, apanhado em cima, 
como um capacete ou um elmo dourado, casque dor. O filme é a preto 
e branco, mas não me lembro nunca , na minha vida, de ver uma actriz, 
uma mulher, tão loura assim. Sem qualquer preocupação realista, Becker 
fê-la sempre surgir rodeada de sol e ouro, mesmo quando nenhuma fonte 
luminosa justifica esse halo que a rodeia.
No filme chama-se Marie. Na Belle Époque — a acção situa-se noscomeços do século — andava com uma quadrilha de 40 ladrões, ou mais. 
Era mulher de muitos homens, andara por muitas camas. Até que um dia 
— uma tarde esplêndida de sol — lhe aparecia num fim de almoço nas 8 7 
hortas, au temps des cerises, num baile improvisado, Manda (Serge 
Reggiani), de bigodinho e chapéu de palha. E, desde que Manda a agarrava 
para dançarem a valsa das cerejas, todo o tempo se imobilizava e todo o 
espaço se abria à roda deles. Entre Marie e Manda, começava a mais bela 
das histórias de amor, encontro predestinado, fusào de corpos e almas, 
desde aí (e era logo no começo do filme) para sempre indissoluvelmente 
casados.
No fim, já depois da morte de Manda e do mais incrível plano de 
Signoret (vou falar muito dele) essa valsa voltava em flasb-back, início e 
fim de tudo. E tudo, no caso de Casque d'Or e de Simone Signoret, é a 
música e é o amor. Este é um filme de música, este é um filme de amor.
Truffaut chamou a Becker o Poulenc do cinema francês e, depois dele, 
muito se insistiu nas analogias entre a música de câmara e o cinema do 
autor de Le Trou. Lembro-me de um texto belíssimo do Alberto Vaz da Silva, 
há trinta anos publicado nos programas do CCC (iniciais de que em crônica 
futura decifrarei o mistério). Ele falava «de uma maneira de fazer cinema 
que prescinde de metais e se contenta com arcos e uns raros instrumentos 
de sopro.» É exactamente isso.
Não há muita música no filme, ao contrário do que possa pensar quem 
for levado pelo que digo. Até aos últimos 10 minutos, tem uma presença 
discretíssima, e, como os diálogos, reduz-se ao essencial. Mas o ambiente 
— o Paris Canaille — define-se tanto pela banda sonora como pela 
imagem. A tal dança de Marie com Manda. Depois Manda, que foi até à 
quadrilha por amor a Raymond (Raymond Bussières), o mais puro dos 
elementos dela, fica na quadrilha por amor a Marie. Roland, com quem ela 
vivia, nâo aceitou a derrota. Coisas dessas, com pessoas daquelas, 
resolvem-se à facada em duelos clandestinos. Lembro-me do pátio desse 
duelo, da sombra desse duelo, algures nas traseiras de um bistrot louche 
e ouço o latir dos cães que interrompiam o silêncio da noite e da refrega. 
Manda matava Roland. Marie pertencia ao vencedor.
Ia vê-lo na manhã seguinte — tanto, tanto sol — e vozes de crian­
ças eram o pano de fundo para o primeiro beijo, beijo na carne e da 
carne.
88 Mas Marie era também carne cobiçada pelo chefe, um asqueroso Leca
(Claude Dauphin). E, em jogo sujo, jogo baixo, traindo todos os códigos 
de honra, Leca denunciava à polícia Manda.
Manda fugia para o campo e para uma casa à beira do rio, onde Marie 
vinha ter com ele. Estava a dormir e Marie acordava-o, com umas 
palhinhas, vagas cócegas. Quando ele abria os olhos, via-a num dos mais 
fulgurantes grandes planos do cinema, contra o sol, feita luz. Tantos 
pássaros cantavam. Leca já percebera que espécie de homem era Manda. 
E acusa do crime, Raymond, o amigo. Este não abre boca, em fidelidade 
total. Leca vai então visitar o casal. Estavam numa igreja, a assistir a um 
casamento. Havia por ali o sagrado doutra união. À saída, Leca previne 
Manda que pode voltar, que Raymond foi preso em vez dele. Começa a 
cerraçào. Ouvem-se sinos.
E todos esses sons dizem tanto quanto a imagem (o pátio negro, de 
paredes muito brancas do duelo; a profundidade de campo do terreiro 8 9
vazio do beijo da Signoret; o campo-contra-campo do despertar de Manda 
por Marie; a lenta panorâmica a «fechar espaço» que se sucede ao anúncio 
da prisão de Raymond (com Marie a apertar o xaile) sobre o que vai 
acontecendo aos personagens, sobre o fatal percurso que sobre eles se 
abate. Tudo culmina no crescendo final. Manda condenado à guilhotina, 
depois de se ter vingado de Leca, depois de ter descoberto no quarto dele 
os chinelos dela, breve Tosca desse Scarpia. Marie e Manda nunca mais se 
vêem. Vê-lo ela, na madrugada final, perdido todo o ouro dos cabelos, 
quando assiste à execução, num miserável quarto de hotel. E a longa nota 
silenciosa é o rosto dela, sem uma lágrima, toda a vida feita morte, minutos 
e séculos detida sobre a visão do cadafalso e a última imagem do homem 
pelo qual fora ao fim de tudo.
Nessa altura do filme — os citados 10 minutos finais — já a música 
(agora, em sentido literal!) ocupou o primeiro plano. É a canção «Le Temps 
des Cerises» que começou in, nas vozes desafinadas de uns cegos com 
quem Manda e Leca se cruzaram no seu implacável ajuste de contas, e 
continuou em qff (genial raccord) com a explosão desse tema musical. A 
letra da canção fala de «plaie ouverte» e de «souvenir que je garde au coeur». 
O último plano de Simone Signoret, esse que nunca consegui ver sem as 
lágrimas que ela já não tinha para chorar, dizem o resto sobre a ferida e 
a saudade: «Et Dame fortune / en metant offerte / ne pourra jamais fermer 
ma douleur.»
Percebemos então que toda a luminosidade de Casque d’Or, toda a 
revisitação à pintura francesa contemporânea da acção, de Manet a Monet 
passando por Renoir, só prepara a cerração da madrugada final em que a 
luz de um candeeiro de petróleo dá lugar à luz que precede a aurora tão 
coada e tão fria como só se vê nalgumas telas de Greco.
Para trás, em filigrana, «tão bela como», para voltar a citar Alberto Vaz 
da Silva, ficou a história do amor de Manda e Raymond, um pelo outro 
morrendo. E quando Manda confessa, há um breve movimento da cabeça 
de Raymond, iluminado por uma luz que dele passa aos olhos de 
Manda.
A exuberância de formas, de carnes e de conflitos que povoam Casque 
íZ Or esbatem-se contra o plano final. Breves são os tempos dos grandes 90
amores, longos são os tempos das grandes mortes. Mais il est bien court le 
temps des cerises. E depois do terrível plongé da execução, depois, outra 
vez e outra vez, desse plano de Simone Signoret assistindo a ela até ao fim, 
regressa o momento da dança.
Becker fixou uma memória fantomática para prolongar e perpetuar a 
ilusão dela.
Vi o filme, pela primeira vez, em 1954. Desde então, há 35 anos, não 
consigo desprender-me desse tempo de valsa, desse temps des cerises e 
da mulher de capacete dourado que passou de toda a luz a toda a 
sombra. Chamava-se Simone Signoret e foi acesa e apagada por Jacques 
Becker.
OS FILMES DA MINHA VIDA 91
A CONDESSA DESCALÇA
«Oh toi, dont la beauté je suis impuissant à nommer / je trouverai an art 
nouveau pour fimmortaliser». Esta feliz tradução de um verso de Kleist era 
a epígrafe de um artigo publicado nos Cabíersdu Cinéma nos inícios dos 
anos 50, intitulado «Portrait d'Ava Gardner». Só uma «arte nova» (o cinema) 
podia ter imortalizado Ava, revelando, da beleza dela, tudo que em 
palavras não cabe.
Outros chamaram-lhe prosaicamente «o mais belo animal do mundo». 
Eram tempos em que as «deusas do amor» umas às outras se sucediam. O 
cognome fora inventado para Jean Harlow, nos anos 30, essa Harlow de 
9 2 quem também se disse que Ava era a versão aciganada. Jean morreu, com 
um ataque de urémia, aos 26 anos, em 1937, e dois anos depois (Only 
Angels Have Wings) sucedeu-lhe Rita Hayworth que «morreu» em 1948, 
quando Orson Welles lhe cortou os cabelos e lhe dilacerou a imagem em 
The Lady from Sbangai. Nesse anos «nasceu» Ava Gardner, no papel de 
Vénus e com mais do que «one touch» dela, como rezava o título do filme 
de William A. Seiter que a divinizou (SpeakLow, mandava a canção de Kurt 
Weill e Ogden Nash que nele se cantava). O reinado durou os mesmos oito 
anos concedidos a Rita. Foi de 1948 a 1956, entre os 26 e os 34 anos 
dela.
Hoje, aos 67 anos, desfigurada pela celulite, por muitos copos e 
estranhas doenças, arrasta uma longuíssima agonia, pateticamente exposta 
nos últimos filmes que fez (e filmou até 1982). Periodicamente os jornais 
anunciam que parece iminente o seu fim. Mas, há 40 anos, o espelho da 
Branca de Neve repetia-lhe, em todas as línguas do mundo, que era ela a 
mais bela e num filme famoso (TheBand Wagon, de Minnelli), Fred Astaire 
descobria, com mágoa, que a multidãode jornalistas que esperava o 
comboio em que vinha, nào estava lá por ele, mas se precipitava atrás e 
à frente de Miss Ava Gardner que entrevíamos, fulgurante, num breve 
plano.
Ava Gardner foi A Condessa Descalça (The Barefoot Confessa) no filme 
de Joseph L. Mankiewicz que hoje convoco. De todas as obras do seu 
período áureo, essa, estreada em 1954, foi a que melhor lhe captou o mito 
e a magia. Mais, muito mais, do que os outros títulos para sempre a ela 
associados: Pandora (51), aonde a sua boceta abria os ventos que 
redimiam o holandês voador chamado James Mason, sob o esteticismo 
decadente e requintado de Albert Lewin e Bhowani Junction (56) onde 
encontrou George Cukor e, half-cast, se dividiu entre o amor pela índia, 
onde o filme se passava, e o amor por um coronel inglês e opressor, 
interpretado por Stewart G ranger.
The Barefoot Confessa esteve longe de ser um êxito, público e crítico, 
à data da estreia. A poderosíssima Pauline Kael chamou-lhe «a trash 
masterpiece» e Gavin Lambert, um dos pontífices do «free-cinema» britânico, 
escreveu que «this cxample of the Higher Lunacy must vie with Johnny 
Guitar for the silliest film of the year». Mas desencadeou, igualmente, 93
paixões tào fulminantes quanto estes ataques. Por elas fui um dos 
atingidos, quando o filme por cá se estreou. E ainda não me curei. Com 
o tempo, só cresceu a minha paixão pela Condessa Maria Torlatto-Favrini.
Não era como condessa que Ava começava o filme, se o quisermos 
arrumar cronologicamente, coisa que Mankiewicz não fazia, pois a 
estrutura da obra era constituída por quatro longos flash-backs, iniciando- 
-se e terminando na chuvosa tarde do enterro da condessa, junto à campa 
encimada pela estátua dela, descalça. Ao princípio (primeiro flasb-back') 
chamava-se Maria Vargas, era espanhola e dançava o flamengo num cabaré 
de Madrid. Uma família pobre e sinistra, uma mãe odiosa e que ela odiava 
(tanto que as legendas da censura portuguesa da época lhe resolveram 
chamar madrasta em vez de mãe, para não chocar os respeitos que se 
devem).
A dançar flamengo a descobriam e a descobríamos. Quem? Um 
magnate de Hollywood, caricatura do mais grosseiro producer em tudo 
quanto de pior se possa pensar deles (Warren Stevens) e dois dos seus 
acólitos: um servil e suado public relations (Edmond O’Brien) e um 
realizador frustrado e amargo que, nas suas próprias palavras, sonha poder 
ser, ainda, um rival de Lubitsch e Fleming, de Van Dyke e La Cava, em 
curiosa sintomatologia dos valores mais cotados pela Hollywood artística 
de então. Era esse o papel confiado a Humphrey Bogart, um Bogart no 
ocaso da carreira e da vida que terminariam três anos depois.
Vendo Maria Vargas, os homens de Hollywood convenciam-se de que 
haviam achado a star que procuravam para o seu novo filme. Era difícil 
convencê-la a ela, mas Bogart ganhava essa batalha. E não se enganavam. 
No primeiro filme, Maria Vargas tornava-se «an instant star». A primeira 
projecçào privada era um êxito. Bogart triunfante, tomava o lugar do ecrã 
e deitava uma baforada de fumo do eterno cigarro, fumo que servia de 
cortina para o fim do primeiro flash-back (narrado por Bogart) e para o 
regresso ao cemitério inicial. Uma panorâmica conduzia-nos a Edmond 
O’Brien, segurando o chapéu-de-chuva do produtor, e detinha-se nos pés 
nus da estátua. Traveling para a frente, e O’Brien iniciava o segundo 
racconto em que Ava era deusa da Justiça, enfrentando escândalos e 
9 4 multidões.
Muitos homens giravam em torno dela: o produtor que a comprara 
e a julgava possuir, Bogart que se afirmava seu «amigo, patrão, confessor 
e psiquiatra amador»; um multimilionário boliviano (Marius Goring) que 
a arrancava ao produtor em bravata fácil e a levava, depois, para cruzeiros 
e casinos; um cigano misterioso que mal víamos e a rondava desde o 
princípio ao fim, sua sombra ou seu clandestino amante; finalmente, o 
nobre italiano (Rossano Brazzi) que lhe dá o título, um palácio em Rapallo 
e um casamento que só depois de celebrado ela sabe ser branco, com a 
confissão de Brazzi de que a metade inferior do seu corpo ficara destruída 
na noite de 25 de Outubro de 1942, em Bengazi.
Com o Conde Torlatto-Favrini se tornava explícito o tema do filme: o 
da impotência. Mas se só o conde era literalmente impotente, todas as 
outras personagens metaforicamente o eram também. Os pés de Maria, nus 
na estátua, nus a dançar flamengo, nunca aceitaram sapatos, esses sapatos 
que Bogart piedosamente retira ao cadáver dela, quando percebe que 
nessa história nunca lhe coube outro papel senão o de voyeur.
Truffaut, em tempos idos, pegou nessa «chave» (a impotência) para 
tentar uma aproximação do mundo de Mankiewicz com o de Stendhal, de 
The Barefoot Contessa com Armance. E escreveu o célebre artigo «La 
Contesse était Beyle». (Henri Beyle, como se sabe, era o verdadeiro nome 
de Stendhal.)
Não sei se tinha razão. Não sei se Maria acreditou, como Armance, amar 
mais o conde «depuis que je ne le crois plus si parfait». Não sei se é Maria 
quem reduz à impotência todos os homens que a rodeiam ou se é essa 
impotência de todos os homens que a conduz à permanente busca, 
culminando na sua destruição, procurando o mármore e a morte para, 
finalmente, se apaziguar.
O filme não dá respostas e nunca conhecemos o ponto de vista de Ava. 
Este filme, sobre a máxima feminilidade, é, inevitavelmente, um filme 
narrado por homens de «dentro» da morte (esses flash-hack típicos dos 
fifties) e de «dentro« do cinema, film onfilm que também é. E, todo ele, está 
dominado pela fatalista divisa dos Torlatto-Favrini: «che será, será». Talvez 
seja ela quem, afinal, conduz Ava Gardner ao palácio de Rapallo, 
percorrendo todas as circunstâncias até ao destino, à procura da key-light 95
que só pode vir de dentro dela, como Bogart lhe diz numa das mais belas 
definições de síarque já ouvi em cinema.
Bogart, o realizador, queria um cinema em duas dimensões. Desco­
bre que não tem nenhuma. E esse é o segredo da genial mise en scène 
de Mankiewicz neste filme tão onírico, tão necrófilo, tão surreal e tão 
lírico.
O «dedo do destino já escreveu tudo» quando Ava conhece o conde no 
casino, numa sequência fabulosa repetida do ponto de vista de O’Brien 
e do ponto de vista de Brazzi.
Depois, lembro-me de Ava Gardner, «maja desnuda», no iate, de fato de 
banho preto. Há um plongé e quando chega à praia, o fato de banho é 
verde. Lembro-me de Ava Gardner a sair da casa de Bogart, depois de lhe 
contar como se decidiu a dar um herdeiro ao marido, possivelmente com 
o cigano que lá estaria também. Falhou esse cálculo (ou acertou-o) e a 
honra ferida dos Torlatto-Favrini redime-se em sangue, com dois tiros off.
Tudo, neste filme, está para além da psicologia. Na obscuridade, entre 
a chuva e o sol, entre o verde e o preto, entre os jardins húmidos e as areias 
do Mediterrâneo, o que conta é outra ordem de mistério. Chamemos-lhe 
o da Beleza. Ou o da Mulher. No caso de Ava Gardner é igual.
Ava-Maria!
9 6 JOÃO BÉNARD DA COSTA
ESTE OBSCURO OBJECTO DO DESEJO
Creio que é o filme mais recente até hoje chamado a estas crônicas. Data 
do Verão de 1977. Não tem 12 anos. Pelos padrões da nossa Comissão 
Etária, quem nasceu no dia da estreia dele (17 de Agosto, em Paris) ainda 
o não pode ver. Mas não me convertí a novidades. Quem o assinava tinha 
77 anos. Cet Obscur Ohjet du Désir foi o último filme do aragonês Luis 
Buhuel (1900-1983).
Confesso — e não há mania de contradição — que não sou particu­
larmente apreciador dos últimos e festejadíssimos Buhuel: Le Charme 
Discret de la Bourgeoisie (72), LeFantôme de la Liberté (74). Acho mesmo 
que quando Buhuel começou a trabalhar com o argumentista francês Jean- 
-Claude Carrière, a partir de LeJoumal d’uneFemme de Chambre (63), se 
lhe acentuou progressivamente uma tendência para fazer «trop Buhuel». 
Ou Buhuel «mieux que nature». O que na fase anterior do cineasta 
funcionara «automaticamente» , em boa obediência à filiação ou pater­
nidade surrealistasque foram dele, passou a ser calculado, às vezes quase 
calculista. Carrière forçou-lhe a mão, talvez a imaginação.
Estranho destino, aliás, esse de Don Luis! Nos chamados «melhores 
tempos da vida», dos 32 aos 46 anos, não o deixaram filmar, permanecendo 
na memória cinéfila apenas por uma longa-metragem (Z Âge dOrde 1930) 
e duas curtas (Un Chien Andalou de 29 e LasHurdesde 32), cuja fama lhe 
foi tão nociva quanto o escândalo. Depois (período da sua fixação no 
México) contaram os tostões que lhe deram e só pôde filmar com meios 
artesanais (e essa fase durou de 46 a 59, enquanto o cineasta ia contando 
os anos do século em que nasceu). Mas depois dos 60 anos — e do casas 
belli de Viridiana (61) — obrigaram-no a ir a todas, mesmo quando o 
cineasta se começou a queixar que estava velho e cansado, farto de filmes 
e farto de vedetas e que queria que o deixassem em paz. Não o deixaram. 
E o que lhe faltou toda a vida, teve-o nesses anos em excesso: dinheiro, 9 7
fama, prêmios, até um Óscar de Hollywood. Por mim, continuo a preferir 
a essas perfeitas produções finais muitos dos filmes em décors de papelão 
e com péssimos actores que fez no México e tanto enervaram os defensores 
do acabadinho. Obras-primas geniais, como Susana, Demônio y Carne 
(50), Subida al Cielo (51), El (52) ou La Vida Criminosa de Archihaldo de 
La Cruz (55). Mas não há regra sem excepções e, a ter que escolher um, 
fixo-me em Cet Obscur Objet du Désir, a obra derradeira, a única — com 
Tristana — que me parece escapar ao -efeito de repetição» da girândola 
final.
O título talvez seja demasiado «sabido» e não é certamente inocente. 
Nunca Buhuel falou doutra coisa, senão da obscuridade do desejo e dos 
objectos (ou do objecto) dele. Buhuel parecia ir, de novo, ao encontro da 
imagem que lhe fixaram. Mas nào foi.
O filme baseia-se num romance de Pierre Louys (1870-1925), chamado 
La Femnie et le Pantin. Já fora duas vezes levado à tela. Em 1935, por 
Sternberg, no último dos seus filmes com Marlene, quando os produtores 
resolveram dar sexo ao diabo e chamaram à adaptação The Devil is a 
Woman. Em 1957, por Duvivier. Conservou-se o título original, Brigitte 
Bardot foi a femme infame e Antônio Vilar o «fantoche» dela, sob a forma 
do ganadeiro espanhol. Já na altura Buhuel queria fazer esse filme e não 
se consolou que Iho tivessem tirado. O romance era obsessão dele e tinha 
as suas razões e os seus fantasmas. Também já tinha decidido dar ao «pâle 
objet du désir» de que Pierre Louys falou a obscuridade total.
Só não tinha decidido o que apenas decidiu em 1977, já as rodagens 
haviam começado. Que esse «obscur objet», chamado pelo romancista 
Conchita Perez (a acção passava-se em Espanha) não fosse interpretado 
por uma só actriz, mas por duas. Duas actrizes, duas mulheres com­
pletamente diferentes: a loura e fria francesa Carole Bouquet e a morena 
e quente espanhola Angela Molina.
Nada disso estava previsto. Em princípio, Maria Schneider (a do tango 
e da margarina) devia fazer o papel. Mas as coisas correram mal e Schneider 
foi corrida. Já havia muito dinheiro gasto e foi então que por puro acaso 
(como Buhuel contou) o realizador disse ao produtor: «Podíamos usar duas 
actrizes. Disse duas, como podia ter dito três ou dez, a brincar», contou98
ainda Buhuel. Mas o produtor tomou-o a sério e assim se fez. Em 
obediência a um «mistério» ou a um «automatismo», de novo uma expressão 
de Buhuel.
Os críticos depois deram muitas interpretações. Gênero: «São duas, 
porque ninguém conhece a mulher que ama que é sempre uma e outra», 
ou «São duas, porque representam a mulher, todas as mulheres do mundo». 
«Tonterias», respondeu Bunuel que achou a primeira explicação demasiado 
lógica e a segunda, pior ainda, simbólica, que era a coisa que mais 
detestava. «Me hubiera dado verguenza pensar en eso». Repetiu à saciedade 
que a trouvaille foi completamente arbitrária e que não há que explicar o 
que não tem explicação.
Só que o público mordeu a isca. Ao contrário dos receios de Bunuel 
(«vão pensar que são duas personagens diferentes») toda a gente aceitou 
e muitos até viram o filme sem perceber que a actriz não era a mesma. 
Foi o meu caso e foi uma das minhas grandes humilhações críticas. 
Quando vi o filme pela primeira vez, não reparei na diferença e só cá 
fora, quando gabei a intérprete, a minha companheira de visão me 
fez observar — atônita, porque consciente do seu estatuto «amador» face 
ao meu estatuto «profissional» — que não havia intérprete mas intérpretes.
Como confundi eu — que não me considero propriamente ignaro — 
um ovo com um espeto e Molina com Bouquet? Ainda hoje não sei explicar, 
mas é rigorosamente verdade. E, para engolir a vergonha limito-me a 
aceitar a nada vergonhosa explicação de Bunuel: «É para que vejam como 
o cinema é uma espécie de hipnotismo.»
Mais de uma vez me veio à memória Hitchcock e a Judy-Madeleine do 
Vertigo. Dir-me-ào que é uma «tonteria» porque Judy-Madeleine são uma 
só actriz (Kim Novak) e aqui o processo é inverso. Mas, no fundo, é o 
mesmo. No filme de Hitchcock, James Stewart, apaixonado por Madeleine, 
via-a (depois da suposta morte dela) em todas as mulheres e, finalmente, 
nela própria, sob a aparência de Judy. Para Fernando Rey, protagonista do 
filme de Buhuel, Carole Bouquet e Angela Molina não se distinguem. Num 
caso, as aparências iludiram; no outro, as aparências passaram desper­
cebidas. Em Vertigo tratava-se de paixão; em Cet Obscur Objet de desejo. 
10 0 Mas onde estão as fronteiras entre uma e outro? Ambos são ilusões, passes
de hipnotismo, obscuridades. Nas trevas, tudo é possível, tudo pode 
acontecer.
Nas trevas e na ilusão de desejo se situa o filme. Vezes sem conta, ao 
longo dele, Conchita (as Conchitas) repete(m) ao velho e rico Fernando 
Rey que o ama(m) muito mais a ele do que ele a(s) ama a ela(s). Mentira? 
Tudo no filme parece confirmar que, de facto, mente(m) para convencer 
tão ingênuo sedutor. Mas quem pode garantir que assim seja? Reduzir o 
filme à fábula habitual do velho gaiteiro ou do anjo mais ou menos azul, 
é não perceber nada de nada. Porque se há mito convocado nesta obra, 
não é o das fábulas moralistas. É o das Mil e Uma Noites, a mulher sabendo 
que o seu poder reside na sua não doação. Reter o desejo. Suspendê-lo para 
a noite seguinte. «Lá serei tua amante», diz Conchita a Mathieu (F. Rey). 
«Hoje?» E logo ela se desmente e lhe promete «depois de amanhã». Rey tenta 
todos os estratagemas, quando acredita na (falsa) explicação que Conchita 
só nào quer é perder a virgindade («Há muitas maneiras de satisfazer um 
homem»),
Conchita foge-lhe sempre. Foge-lhe também ele a ela, no comboio, 
aonde conta aos estranhos companheiros (um anão, uma criança, uma 
pacata mãe de família) a sua assaz extraordinária história. Mas acabam por 
se reencontrar. E o último plano do filme mostra-os fascinados (por quê?) 
a olhar uma montra onde se faz e desfaz um bordado virginal. A teia de 
Penélope não acaba nunca, seja para iludir os pretendentes, seja para mais 
os atiçar.
Há ratos em armadilhas, onde menos se espera. Caem moscas em <7ry- 
-martinis. As interpretações desses «interlúdios» são todas tão ilusórias (e 
enganadoras) como a dualidade das protagonistas. Há sempre outra coisa 
por detrás de outra coisa.
Fernando Rey — às vezes figurado como o «homem do saco» noutra 
obscura alusão — é interrogado, nas margens do Sena, porque é que exige 
uma parte do corpo e não se contenta com a outra. Porque é que o desejo 
é sempre outro? Porque é que o desejo é a única coisa que é impossível 
de satisfazer? Porque é que o desejo é obscuro? Objecto ou sujeito?
No termo do seu caminho, aos 77 anos, Buhuel não reinventou uma 
mulher de duas caras (ou dois corpos) nem o mito de Janus bifronte. 10 1
Preferiu dividi-las e fragmentar, de cena em cena, de plano em plano, a 
identidade una. Cet Obscur Objet du Désir é, quanto a mim, o filme que 
reinventou o falso raccord, ou seja, que viu o cinema como a possibilidade 
da nulidadeda visão sequencial. Atrás umas das outras, aquelas sombras 
continuarão. Cet Obscur Objet du Désir não é a história do homem que 
perdeu a sombra, mas a do homem que, encontrando-a, a viu dividir-se e 
se dividiu nela. Há quem chame a isso prazer. Eu prefiro aterrar-me (e 
enterrar-me) na obscuridade.
Ou continuar a pensar que Carole Bouquet e Angela Molina são uma 
só mulher chamada Fernando Rey.
1 0 2 JOÃO BÉNARD DA COSTA
0 REI DOS REIS
Há dois The King of King ’s que são filmes da minha vida. Um é o de 
Nicholas Ray, de 1961. Outro, é o de Cecil B. De Mille, de 1927. É do último 
que vou falar hoje, filme das minhas Semanas Santas, filme das minhas mais 
antigas Páscoas.
Naquele tempo, andava eu pelas escolas, os cinemas mais bem 
educados, para pessoas mais bem educadas, abstinham-se de programar 
na Quinta e Sexta-Feira Santas. «Devido à solenidade do dia, hoje não há 
espectáculos», era o anúncio que se lia nos jornais, nos locais reservados 
a essas salas.
Também não se ia ao cinema quando se estava de luto, no mínimo 
enquanto durava o luto pesado com prazos fixos conforme o grau de 
parentesco. Como nào se ouvia música. Tinha eu quatro anos — posso ser 
tão preciso porque sei que o facto se deu no dia da declaração da Segunda 
Guerra Mundial — uma tia-avó minha privou-me de ouvir a Carmen 
Miranda a cantar o «Pra Você Gostar de Mim», quer era a coisa de que então 
eu mais gostava, porque tinha morrido um outro tio-avô meu, chamado 
Prosper e dono da Farmácia Barella. Não lhe era nada a ela (tios-avós por 
lados diferentes), mas era o meu luto que ela, assim, entendia respeitar. 
É de criança que se aprende a beber o chá das pompas. Fúnebres neste 
caso.
Por luto de Cristo, Nosso Senhor, o São Luiz e o Tivoli, talvez o Éden 
e o Politeama, fechavam as portas nos anos 40. Mas havia empresários 
menos respeitosos que nào mais hábeis. Justificavam os maus modos, 
alterando a programação e projectando filmes que convinham à quadra 
e à gravidade dela. Eram, invariavelmente, O Rei dos Reis e A Vida de 
Cristo.
Nem toda a pachorra e nem todo o saber do Luís de Pina conseguiram 103 
descobrir que Vida de Cristo era essa1 de que me lembro tão mal e só vinha 
às telas nesses dias. O Rei dos Reis era The KingofKing’s desse genial Cecil 
B. De Mille, sobre quem se continuam a repetir os mais grosseiros dislates.
Era um filme de 1927, mas que foi reposto, em cópia sonorizada, nos 
finais dos anos 30 e se arrastou (o rei dos reis saberá em que estado) pela 
década de 40 e por essas semanas. Se nada lembro da Vida de Cris­
to— a não ser que começava com o Menino nas Palhinhas — nunca mais 
esqueci The King ofKing ’s, que já nessa altura — louvado seja eu — de 
longe preferia ao outro. E, para minha edificação, lá me levavam ao Odeon 
ou ao Palácio, onde o filme passava, naqueles tempos e naqueles dias.
A infância do Senhor era inteiramente omitida nessa versão adaptada 
dos “Four Gospels in the Holy Bible», como vem nas filmografias de De 
Mille. Começava tudo — se a memória e os resumos da bibliografia 
demilliana me não falham — numa grande orgia. Obviamente, a palavra 
não fazia parte do meu vocabulário de então. Mas fascinava-me uma 
mulher coberta de jóias, a abrir muito os olhos, e embevecida com um tigre 
que a vinha afagar (ou ela a ele). Como já adivinharam era Maria Madalena, 
antes de arrependida. Jacqueline Logan, filha de um arquitecto e de uma 
prima donna da ópera de Boston, ex-Ziegfeld Girl, «among the prettiest 
and most popular leading ladies of the silent screen» fazia o papel. Não sei 
em que Evangelho se baseou De Mille para lhe dar como apaixonado Judas 
Iscariotes (o grande, grande Joseph Schildkraut), mas para o caso nada 
importa. De Mille nào é cineasta para puristas, nem para puritanos. Se 
começava por aí, era para nos fixar nos -maus». Entre o traidor e o tigre 
começavam a minha aflição e o meu deslumbramento.
Até que surgia Cristo, muito saint-sulpiciano, igual às visões de que 
tanto gosto de Ciseri, o pintor. Surgia sob os traços de H. B. Warner que 
andava pelo cinema desde 1914 e só acabou a carreira e a vida com o 
mesmo De Mille — no último De Mille — a fazer de Aminadab em The Ten 
Commandments (1956), aos 80 anos. Nessa altura, tinha 50, era grave, 
austero, longos cabelos e longa barba. Era Deus. Para quem ainda nào
1 Em fins de 1989 descobri que essa Vida de Cristo en italiana. Chamava-se no original Cbristuse Giulio 
Antamoro realizou-a em 1916. Onze anos mais velho, portanto, do que o filme de De Mille, arrastou-se 
ainda mais pelas salas (em versào sonorizada, feita nos anos 30) até aos anos 40.7 04
distinguia muito bem entre as Pessoas da Santíssima Trindade, vê-lo era 
vê-lO.
Olhava-a — olhar terrível — e sete diabos saíam dela, mais os tigres e 
muitos outros animais. Jacqueline Logan caía-lhe aos pés, que The lavava 
e enxugava com os cabelos.
Depois, havia milagres, cada um mais aparatoso do que o outro e com 
mais efeitos especiais. Lembro-me das caras de poucos amigos dos 
Apóstolos. Depois, só me lembro da Agonia no Horto, do beijo de Judas 
e do julgamento. A coroa de espinhos, a flagelação, o sangue, os ladrões. 
O ecrà ficava escuríssimo e milhares de figurantes acompanhavam a subida 
ao Calvário, e a morte na Cruz.
Era um sorvedouro de gente, espirais de corpos, hoje diría o esplendor 
da carnalidade de De Mille. Pouco depois, deram-me um livro (o livro da 
minha vida) sobre os museus alemães, Berlim, Dresde, Munique. Lá vi o 
Cristo na Cruz de Rubens que está na Pinacoteca de Munique e em que 
o Corpo do Crucificado pende da Cruz tanto quanto nela se ergue, 
recortado contra um imenso escuro. Associei sempre essa reprodução à 
imagem final de H. B. Warner no filme de De Mille.
Muito, muito mais tarde, quando vi muitos, muitos outros De Mille 
soube como tinha razão. Se há cineasta rubensiano ele é Cecil B. Não me 
perguntem por que caminhos que nào lhes sei responder. Mas é o mesmo 
sangue, ou melhor a mesma carne. Os temas de De Mille são os mesmos 
que Argan vê em Rubens: o mito, a história, a natureza, a alegoria, a fé. 
Argan disse das composições de Rubens o que se pode dizer das de De 
Mille: “Dinâmicas em espiral, feitas de oblíquas, curvas, órbitas, abismos 
abertos e massas concentradas em turbilhões. A cor formando torrentes im­
petuosas que regressam sem cessar, aliando os tons mais claros aos 
coloridos mais exuberantes. Futuro e passado que nào dissolvem sen­
sações mas as intensificam e aceleram numa posse do presente em que os 
sentidos têm um papel predominante.»
Apreendendo directamente — primitivo que também foi duma arte 
nova como o cinema — o imperialismo do Olhar que Hollywood, de que 
foi fundador, trouxe à tradição plástica precedente, De Mille conseguiu, 
10 6 através de uma poética e de uma retórica, reencontrar os valores de 
Rubens, ele também directo apreendedor de outro momento similar da 
história das formas. E, talvez por isso, como ele, defendeu e revalorizou 
imagens ao serviço de uma dogmática, tentando provocar a piedade e o 
terror e vendo, como finalidade última deles, a capacidade de persuadir.
Piedade e terror são palavras que para mim se confundem com a 
memória desse filme e do imaginário a que em mim se associou. TheKing 
ofKing ’s fez-me um medo imenso e vergou-me os joelhos perante a Origem 
desse medo. Vejo distintamente seis ou sete imagens — as que evo- 
quei —, mas tanto me basta para dar todo o sentido ao que, pela mesma 
altura, me inculcavam em colégios de freiras (juro que é verdade) e em 
histórias de Aparições, ora demoníacas ora celestiais. TheKing ofKing's foi 
o primeiro dos meus Nomes Divinos. Ainda hoje não sei se o não continua 
a ser.
OS FILMES DA MINHA VIDA 107
0 CARTEIRISTA
Com um saber de experiências feito, posso garantir que a segunda 
metade dos anos 70 (mais precisamente, de 1976 a 1980) foi o período 
dourado da cinefilia portuguesa. Depois da ditadura, depois do gonçalvismo, 
uma significativa fatia de espectadores achou-se no direito— talvez com 
o dever — de se pôr em dia com tudo quanto, durante uma vida inteira, 
tinha ouvido falar, mas não tinha visto.
Só isso explica fenômenos tão insólitos como o aparatoso êxito de 
algumas retrospectivas ou reposições que, antes ou depois, não levariam 
às salas mais do que uns felizes poucos. De todos os casos que conheço, 
o mais singular e o mais surpreendente foi o de Robert Bresson. A 
10 8 retrospectiva integral da sua obra, levada a cabo pela Fundação Calouste 
Gulbenkian, em 1978 (com as excepçòes de I.zlçge/z/que ainda nào existia 
e de Quatre Nnits dun Rêéeurúe que se nào conseguiu cópia), esgotou 
as lotações do Grande Auditório (1200 lugares) durante as 11 sessões dela.
Que tem isto de extraordinário, perguntará o leitor menos familiarizado 
com Bresson? Simplesmente o facto de em nenhum país do mundo, que 
eu conheça, Bresson ter reunido alguma vez uma tal assistência em 
simultâneo para um só dos seus filmes, quanto mais para 11. Ainda hoje, 
deixo os franceses boquiabertos com tal brilharete. Tanto mais que. no 
caso em questão, nenhuma culpa é de assacar à «longa noite de 48 anos» 
ou à censura dela. Perante Bresson. os censores fizeram o que 99 por cento 
dos portugueses fizeram também: adormeceram ao fim de 10 minutos e 
deixaram passar no fim. se houvesse quem quisesse e quem gostasse, já 
que há gostos para tudo.
As estatísticas nào mentem: das 13 longas-metragens assinadas por 
Robert Bresson entre 1944 e 1983 (retenham o número 13 e o vagar da obra, 
que a um e outro já volto) apenas seis se estrearam comercialmente em 
Portugal e. todas antes do 25 de Abril, entre 1959 e 1974. Nem a penúria 
desses anos nem o nihil obstcitdã censura convenceram os distribuidores 
a pegar em mais quatro que datam dessa época. Quanto aos três filmes que 
Bresson assinou depois de 1974 (Ixmcelot du Ixic. Le Diable Probablement 
e I. Aiyent), nenhum foi comprado por Portugal que nào vê Bresson numa 
sala (refiro-me às «normais») há 15 anos, desde a estreia de Au Hasard 
Baltbazar... «prima delia rivoluzione». Parafraseando o título que por cá 
deram a esse filme, tem sido uma «peregrinação exemplar».
Mas nào estamos «orgulhosamente sós». Se a situação nào foi tào drástica 
noutros países, os desastres de Bresson sucederam-se e só nos finais dos 
anos 60, inícios dos anos 70 (quando adaptou, a cores, Dostoievski em Une 
Femme Doucee QuatreNuítsdun Rêreur), conheceram uma algo relativa 
pausa. Mais do que Dreyer, mais do que Oliveira — para me limitar aos 
muito, muito grandes —, Bresson prova o «analfabetismo primário» do 
público-que-tem-sempre-razào. Nào sabe ver e nem sequer tem muita 
culpa porque ninguém o ensinou. Os professores que lhe deram sofrem 
da mesma ou doutras miopias. Eram e sào igualmente analfabetos, com a 
peculiaridade de se exprimirem num latim bárbaro, incompreensível tanto 1 0 
para os latinos como para os bárbaros. Por isso os filmes ficaram à espera 
de quem os saiba ver, ou vistos, apenas, pelos que só precisaram de ver 
para crer.
Bresson nunca facilitou a tarefa. Este grande senhor, hoje com 87 anos 
(nasceu em 1901 e não em 1907 como dizem quase todas as fontes), sempre 
entendeu que «o cinema não é um espectáculo, é uma escrita- e escreveu 
nos seus 13 filmes uma complicada história teológica, em torno de questões 
tão pouco populares como a Predestinação, o Acaso ou a Graça, na 
dependência de um catolicismo austero, a que por vezes se tem chamado 
jansenista.
Não usa a palavra cinema. Prefere o termo «cinematógrafo» para 
sublinhar a diferença -entre os filmes correntes e a arte cinematográfica» e 
diz que «o cinematógrafo é a aplicação em imagens insignificantes ( não sig- 
nificantes)».
Actores? É coisa que, para ele, não há. Se nos primeiros filmes (Les Auges 
duPéché, de 44; Les Dames du Bois de Boulogne, de Á5, Joumal d'un Curé 
de Campagne, de 51) ainda transigiu e ainda foi escolher à Comédie actores 
(e actores de teatro) para os seus personagens, a partir do opus 4 (Un 
Condamné à Mort sest Echappé, de 1956) recorreu exclusivamente a 
homens e mulheres que não fizessem qualquer ideia do que fosse 
representar. Chamou-lhes «modelos» em vez de actores, e quis que modelos 
fossem em vez de parecerem actores. «Não se trata de representar com 
“simplicidade” ou de representar com “intensidade”, mas de não represen­
tar de todo». E exigiu-lhes que falassem como se falassem sozinhos, sem 
expressão. «Monólogos em vez de diálogos.»
Por isso, nunca usou duas vezes o mesmo modelo. Por isso, não 
perdoou aqueles dos seus modelos que, traindo-o, iniciaram com ele uma 
carreira de actor (o caso mais célebre é o de Dominique Sanda, seu modelo 
em UneFemmeDoucè). Por isso, os seus modelos parecem todos modelar- 
-se uns aos outros na mesma inexpressividade. Com a pintura aprendeu 
que não havia imagens belas mas imagens necessárias. E que, como dizia 
Cézanne, «à chaque touche, je risque ma vie».
Nunca se importou nada que o achassem ou chamassem reaccionário. 
110 Nunca se importou nada que cada um dos seus filmes demorasse anos a 
ser feito. Levou uma série de produtores à falência, tão mais exigente e 
gastador quanto menos se viam os seus filmes. Obcecado com os números 
e as sortes (ou os azares) construiu em 13 filmes um universo que não se 
parece com nenhum outro, e que ninguém nunca conseguiu imitar. 
Escrevendo sobre ele, Nuno Bragança escreveu: «Cristão que também sou, 
sinto a que ponto essa visão (a visão de Bresson) está, para muito do que 
marca o tempo em que vivemos, como sopa em tomo de uma mosca. Mas 
opto pela sopa.» Eu também.
E opto, particularmente, entre todos os seus filmes (nenhum a que não 
possa chamar «filme da minha vida») por Pickpocket (1959) que por aqui 
chamaram, com alguma imaginação, O Carteirista.
Já se disse que era «o filme mais branco da história do cinema» (só talvez 
Luz de Inverno de Bergman possa competir), pois é a mais ousada tentativa 
do seu autor para desmontar o real, através das suas aparências, ou, se se 
preferir, as aparências através da sua realidade.
Filme sobre um pickpocket, tão misteriosamente triunfador nos seus 
roubos iniciais, corno misteriosamente vencido no seu roubo final, tanto 
se pode falar dele em termos de «tratado de moral» (relações entre o roubo 
e a homossexualidade, relações entre o crime e a lei), como em termos 
de «tratado metafísico» (mais uma vez, a perene contradição dos filmes de 
Bresson, entre o «primado da Graça» e o «primado das Obras») ou em termos 
estritamente «materiais» (é um filme sobre mãos, olhares e gestos, sem outra 
metafísica que não essa).
A ausência de expressão dos personagens, das vozes dos personagens, 
da fragmentação dos personagens, tanto é uma expressão de ausência 
como a expressão de uma presença. Quem está ausente ou presente (como 
em todos os filmes de Bresson) é quem nào pode ser nomeado e, portanto, 
não pode ter imagem. Quando muito, a probabilidade dela. Dieu, 
probablement como, na sua penúltima obra, Bresson disse Le Diable, 
Probablement. Pickpocket é o filme de Bresson que mais joga com esse 
vazio, com esses vazios. Ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser 
pressentidos como o essencial, apenas porque o essencial se esgota na 
pura materialidade.
Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa 111
da sua ideia de que «o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada». E esta 
afirmação só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ner 
o que é esse nada que Pickpocket mostra.
Ao som da música de Lully. Bresson ilumina o caminho de um homem 
que sabe, paulinianamente, que a lei mata e o espírito vivifica. Um homem 
chamado Michel que a Graça acompanha, na sua trajectória entre a 
liberdade e a prisão. Livre, é prisioneiro do seu corpo e do seu espírito. 
Preso, encontra a alma e o misteriosíssimo sentido da frase que diz depois 
da morte da mãe: “Acreditei em Deus durante três minutos».
Bresson comentou que poucas pessoas poderão dizer que acreditaram 
em Deus durante tantotempo. Também poucas pessoas terão com­
preendido. como Michel. a razão da força irracional de um destino 
humano. Por isso, à única mulher que o amou e que, para o amar, também 
teve de abandonar toda a ordem e toda a racionalidade. Michel dirá, no 
final, entre as grades, com o inconfundível acento neutro dos personagens 
bressonianos, a seguinte frase: «O Jeanne, pour aller jusqu a toi. quel drôle 
de chemin il m'a faliu prendre.» E o Magnificat de Lully invade a banda 
sonora, imobilizando esse encontro e essa frase na sombra da iluminação 
total.
112 JOÃO BÉNARD DA COSTA
A SAGA DE ANATAHAN
Este filme de Josef von Sternberg — o último filme de Josef von 
Sternberg — nunca se estreou em Portugal. Foi aqui visto, pela primeira 
vez, no Ciclo de Cinema Americano dos Anos 50, organizado pela 
Gulbenkian em 1981, 28 anos depois da sua estreia mundial no Festival de 
Veneza de 1953, aonde foi gelidamente acolhido. A Gulbenkian e a 
Cinemateca voltaram a programá-lo, em 1984, por ocasião da retrospectiva 
dedicada ao realizador. O ano passado, o 2° Canal da RTP — na grande 
era Sternberg dele — passou-o para mais vastas audiências. À memória 
delas me confio para ressuscitar as memórias de Anatahan.
Sternberg — muito particular paixão minha — já apareceu nestas 
crônicas por via do Anjo Azul como pretexto ao -outro lado do espelho», 
que são os meus filmes da vida.
Entre esse celebérrimo filme de 30 e esta obscura obra, correram os 
tempos da ascensão e queda do vaidosíssimo von, austríaco (emigrado 
para a América aos 14 anos, em 1908), que aliás usurpou a aristocrática 
partícula como usurpou muitas outras coisas e se chamava, efectivamente, 
Jonas Sternberg (Jo Sternberg em versão americana). Tinha um ego do 
tamanho do talento e fez uma fulgurante entrada no reino das imagens 
— ou, na sua específica terminologia, no reino dos imponderáveis—, em 
1925 com The Salvation Hunters, que um crítico da época dizia ser -tão 
esmagador como uma tragédia grega». A obra foi apadrinhada por Charles 
Chaplin, Douglas Fairbanks e Mary Pickford (a nata de Hollywood, os 
unitedartists), e Sternberg tomou a nuvem porjuno. Aprendeu à custa dele 
que realizadores convencidos que eram gênios nào faziam parte da espécie 
de gente de quem os estúdios mais gostava. Aprendeu à custa dele que as 
admirações tinham o limite da inveja: se se gabou da honra única de 
Chaplin lhe ter dado carta branca para o único filme que Chaplin produziu 
mas nào realizou — TheSea Gull, de 1926 — apanhou de volta com a honra 7 1 3
nas trombas. Chaplin, por ciúme, por despeito ou por mau feitio, resolveu 
suprimir essa obra uma vez concluída e, até hoje, ninguém sabe o que foi 
feito dela, jamais distribuída e jamais vista, a nào ser por meia dúzia de 
convidados ilustres que assistiram a uma preview em Maio de 1926, em 
Beverly Hills. Disseram eles e disse Sternberg que era o «mais belo filme 
jamais feito». Se tinham razão, é coisa agora impossível de saber.
Sternberg domesticou-se, tanto quanto tal palavra se pode aplicar a 
tal homem. Dentro das regras do jogo fez, para a Paramount, alguns 
clássicos dos fins dos anos 20 e começou a ser o «director» mais bem pago 
da casa. Subiu a parada quando lhes trouxe da Alemanha, em 1930, 
Marlene Dietrich que revelou para o mundo no tal Anjo Azul. Com 
Marlene, entre 1930 e 1935, realizou sete filmes que permanecem os mais 
sublimes dela e das obras mais crípticas que o cinema alguma vez nos deu. 
Até que ele próprio sucumbiu à magia da sua Circe. Houve muitas histórias, 
muitos boatos. Da parte de Marlene, confessada e repetida gratidão ao 
homem «a quem devo tudo». Da parte de Sternberg, cáusticos comentários 
sobre essa «Dietrich weibe», com quem fez da vida um inferno: «Essa mulher 
nào é um mito. Talvez o tenha sido para outros, nunca o foi para mim. O 
verdadeiro mito sou eu, atrás de uma câmara, no acto de criar o que vocês 
chamam o mito de Marlene. Se há algum mistério, é porque a transição 
da realidade para o cinema é ainda misteriosa.» Sternberg escreveu isto 
nas suas fabulosas memórias, a que chamou Fun in a Chinese Laundry, 
que daria em português qualquer coisa como Festa na Aldeia dos Ma­
cacos.
Mas a festa ou a fun acabaram-se no dia em que Marlene ou Sternberg 
(ou os dois) decidiram nunca mais filmar juntos. A partir daí, o realiza­
dor foi de colapso em colapso, de hreakdown em break.down, até ser 
completamente marginalizado pelo sistema. Em Londres, 1937, interrom- 
peram-no a meio das filmagens de uma megalómana adaptação do 
1 Claudius de Graves (30 anos depois, a BBC desenterrou os rushes e 
montou-os num belíssimo TheEpic That Never Was). Em 1941, conseguiu 
algum dinheiro para novo filme só dele. Foi o labiríntico e perverso The 
Shanghai Gestureque «toda a gente» achou incompreensível e demencial 
114 (e, meu Deus, talvez tenham razão). Depois, nunca mais o chamaram ou
OS FILMES DA MINHA VIDA 1 7 5
chamaram-no para dar uma mão e filmar obras que a seguir mudaram de 
cabo a rabo.
Até que em 1951 — tinha ele 57 anos — um produtor japonês que o 
admirava mais do que a ninguém, lhe bateu à porta com a proposta de um 
filme a ser rodado no Japão, com a história que ele quisesse e liberdade 
sem condições. Assim, nasceu The Saga of Anatahan, realizado, escrito, 
fotografado e narrado por Josef von Sternberg. Intérpretes: 17 desconhe­
cidos actores japoneses do kahuki: 16 homens e uma mulher.
Anatahan é uma das 2000 ilhas do Arquipélago das Marianas, que 
antigamente tinha pertencido à Espanha, depois à Alemanha, e entre 1918 
e 1945 fora do Japão. É um rochedo selvático e vulcânico, a meio caminho 
entre o Japão e a Nova Guiné, a 1500 milhas das Filipinas, 16e a norte do 
Equador. A 12 de Junho de 1944, -no quarto ano de uma guerra a que 
dedicámos as nossas vidas, como crianças entretidas num jogo que nào 
previram nem destinaram», um barco de guerra japonês, o Heike-Marn, foi 
bombardeado ao largo de Anatahan. Quinze homens conseguiram salvar- 
-se, percorrendo a nado a distância que os separava da costa, sobre uma 
fossa com a fundura de 70 000 m.
Na ilha encontraram um misteriso casal. E até que os fossem buscar, ou 
ajudar, decidiram fazer desse rochedo um bastião do Império do Sol. Só 
os foram buscar sete anos depois — mais precisamente, a 1 de Julho de 
1951. A guerra tinha acabado há seis anos, mas eles nào sabiam. Quando 
receberam as primeiras notícias nào acreditaram. «Era impossível que fosse 
verdade. A guerra ainda mal tinha começado. Estávamos preparados para 
combater mil anos. Dominávamos a Ásia, dominávamos quase todo o 
Pacífico. Como é que podíamos ter perdido tudo tão depressa?»
A história do filme é a história desses sete anos em Anatahan, tão 
rigorosamente marcados no tempo como tào absolutamente devorados 
pelo tempo. Podiam ter sido sete horas ou sete séculos. O tempo nào existe 
em Anatahan.
Chegaram à costa 15 homens. Regressaram oito. Os sete que morreram 
nào morreram às balas do inimigo (esse inimigo sempre esperado e sempre 
ausente), mas morreram pela força destruidora do inimigo que «cada um 
116 de nós traz dentro de si». Inimigo que dá pelo nome das paixões que 
Sternberg traçou num roteiro-diagrama, desenhado como se fosse uma 
carta de navegação e a que chamou o mapa de Anatahan: desejo, vontade 
de poder, ciúme, saudade, cobardia e violência. Essas seis paixões, 16 
homens e uma ilha circulam verticalmente ao longo das 22 sequências do 
filme. Mas o lugar central de todos eles e todas elas é a mulher que tudo 
isso aglutina: Keiko, «the only woman on earth», imagem, metáfora ou 
símbolo final da Mulher na obra de Sternberg, última encarnação de 
Marlene Dietrich e do mito através dela perseguido.
Começaram por encontrar Kusakabe, o homem que vivia com ela mas 
não era marido dela, que lhes disse que vivia sozinho. Havia sido capataz 
de uma plantação de copra. «Era um homem agreste, agreste connosco, 
agreste com ele próprio». Depois descobriram que ele escondia Keiko. «Ao 
princípio foi só um ser humano,arremessado à costa naquele ponto 
perdido do mapa. Depois, tornou-se numa fêmea, a nossa fêmea. Por fim 
numa mulher — a única mulher na terra.»
E no dia em que Keiko «entrou em circulação», começaram as mortes 
e os zangãos começaram efêmeros reinados em torno da abelha-mestra. 
O inimigo já estava em Anatahan. «Os dias podem ser mais mortíferos do 
que balas. É fácil ver os erros alheios. Mas falta-nos um espelho que reflita 
as nossas próprias acções. O engenho do homem para se destruir a si 
próprio é maior do que qualquer outro. Nos seres humanos, os furacões 
desencadeiam-se imprevisivelmente. É difícil reconhecer os sinais que os 
anunciam. Gastamos grande parte da vida a tentar conseguir que os outros 
gostem de nós. Bem pouco tempo gastamos a tentar gostar de nós 
próprios.»
Todas as frases que cito são do filme. Não são ditas por nenhum dos 
actores que falam japonês, sem dobragens ou legendas que os traduzam. 
São ditas pela voz offáe Sternberg que funciona como narrador da saga 
de Anatahan, como coro da tragédia de Anatahan. Ora narra, ora antecipa, 
ora comenta, ora resume, ora elide, ora mostra o que diz elidir.
Para filmar este filme de sete anos e de tempo nenhum, Sternberg nào 
foi a Anatahan nem a espaço nenhum. Por mais incrível que pareça a quem 
veja o filme (todo passado na selva tropical e em rochedos inóspitos), 
Sternberg não saiu de um estúdio de Quioto. 117
Tudo é mapa, sinal e décor. Só assim se pode dizer quão «cosa dura» é 
esta «selva selvaggia e aspra e forte / che nel pensier rinova la paura».
Só conta (e só se conta) uma única coisa: a história da viagem do homem 
ao fundo de si próprio, com a variante da história da posse de todos os 
homens pela Mulher. O objecto do desejo é só o desejo. Entre os corpos, 
as armas, as roupas, as conchas, as lianas, o que fica é a inanidade — e o 
absoluto — do que circularmente se persegue: ser-se complementar, ser- 
-se único.
Citei A Divina Comédia, podia ter citado A Odisséia. Anatahan funde 
essas peregrinações sem exterior e sem exteriores. Está para o cinema 
como o Ulisses de Joyce para a literatura. Reconverte a uma linha o que 
descobre em múltiplas paralelas. As que jamais se encontram. Nem no 
infinito.
1 1 8 JOÃO BÉNARD DA COSTA
CASABLANCA
Sinto-me como o pianista a quem se pede um «encore». Ao sentar-me 
ao piano para tocar hoje — porquê só hoje? — o «As Time Goes By», algum 
burburinho é inevitável. Voltem a sentar-se e esperem pelo silêncio.
Não fui daqueles que viu Casablanca na estreia lisboeta, a 17 de Maio 
de 1945, no Politeama, dois anos e meio depois de uma discretíssima 
estreia mundial. (Já vou contar, tudo.) Não o vi sequer durante as dez 
semanas que o filme esteve então em cartaz, em fenômeno sem preceden­
tes. Só visitei Casablanca cerca de dez anos mais tarde, já se haviam 
acalmado há muito algumas das paixões que o filme suscitou nesse Maio 
do fim da guerra na Europa.
Só de ouvido conheço as histórias que se passaram no Politeama, com 
o público a levantar-se para ouvir a Marselhesa abafar o Die Wacht am 
Rhein, como se diz que um rei de Inglaterra se levantou para ouvir 
o «Alleluia» do Messias de Haendel. Esse gesto real inaugurou uma 
«praxe» seguida há mais de 200 anos. O gesto português — por cuja 
originalidade não respondo — talvez não tenha tão longa posteridade, mas 
enquanto houver cinema e cópias de Casablanca emoções semelhantes 
voltarão a produzir-se a cada nova visão do filme. Desvanecido e 
desaparecido como símbolo da resistência (e, assim, Lisboa o viu nas horas 
unitárias de 45) não se desvanecerá nem desaparecerá como símbolo 
do romantismo e do romantismo no cinema. Casablanca é o Wertber do 
século XX. Quem o vir impassível, ou já perdeu a alma, ou já perdeu 
o coração, ou já perdeu uma e outro. E ser humano de companhia a evitar 
cuidadosamente.
O lado político do filme é só uma das pontas por onde se pode começar. 
Começa-se sempre nalgum lado. Mas talvez não fosse a preocupação 
dominante da Warner quando decidiu confiar aos irmãos Epstein, pri­
meiro, e a Howard Koch depois, a libérrima adaptação da peça Everybody 119
GoestoRick, de Murray Burnett ejoan Alison. Estava-se em 1942, a América 
tinha entrado na guerra há seis meses e os estúdios ainda hesitavam na dose 
de propaganda a administrar. A história levou voltas e mais voltas e 
conta-se que, quando Howard Koch foi chamado a meter-se nela, nem 
ele sabia como acabá-la, nem os actores (já em rodagem) percebiam quem 
era quem e para quê. Também se conta que, em 1982, o jornalista 
americano Chuck Ross enviou o script original de Casablanca a 217 
agentes literários de grandes estúdios, apresentando-o como um novo 
argumento para um novo filme. Só 32 reconheceram que se tratava de 
Casablanca.
O primeiro realizador convidado a dirigir o filme — William Wyler. 
então no auge do seu prestígio — declinou. O mesmo fizeram George Raft 
e Hedy Lamarr, que o produtor Hal B. Wallis queria nos papéis de Rick 
e lisa. Hal B. Wallis reflectiu então no êxito que estava a ter Kings Roír. 
de Sam Wood (1941), com Ronald Reagan e Ann Sheridan. Também era 
um filme da Warner. Propôs a repetição do par com Dennis Morgan 
no papel do heróico e infeliz Laszlo. Esteve por um triz (há quem jure 
que há uns rushes em que Ronald Reagan aparece a pedir a Sam 
■■play it again», a mais famosa line do cinema actually never spokeri), 
e só não se concretizou porque nem Wood, nem Sherman, nem Keighley 
(tudo realizadores de serviço na Warner) quiseram meter-se «naquilo». 
Até que se chegou ao húngaro exilado que fizera para os Irmãos os 
mais célebres filmes de aventuras e de piratas lá da casa, obras esplendoro­
sas como Captain Blood (1935), The Charge of the Light Brigade (1936), 
lhe Adventures of Robin Hood (1938), The Sea Hawk (1940), The Sea 
Wolf (1941). Chamava-se Michael Curtiz (americanização de Mihaly 
Kertész) e percebeu — Deus o abençoe! — que só tinha que puxar ainda 
mais da capa e da espada e conseguir que Humphrey Bogart introver­
tesse tanto quanto Errol Flynn extrovertia. O resto, na famosa expressão 
de Chabrol, era questão de timing. Timing no filme, timing para o 
filme.
«Chapeau» três vezes: primeiro, porque depois da tal discreta estreia 
(ainda em 42), Casablanca foi escolhida para cenário do primeiro encontro 
12 0 Churchill-Roosevelt, em 1943, quando as tropas de Eisenhower e Mont-
gomery «seguraram, pela primeira vez, os alemães no Norte de África. A 
fama da cidade pedia um filme à altura e Casablanca voltou aos cinemas, 
agora para ficar.
«Chapeau», segunda vez, porque essa simultânea passagem, no mesmo 
ano e no mesmo filme, de dois «neutros» (Bogart e Rains) para a mais Santa 
Causa personificou eternamente que ninguém sentimentalist at beart 
(como Rains suspeita que Bogart era) podia continuar neutral naquela 
guerra. A famosa frase final de Bogart para Rains (enquanto este atira fora 
a água de Vichy) «Louis, I think this is the start of a beautiful friendship» 
marca o fim dos tempos em que era possível alguém dizer — como Bogart 
diz no início — «I stick my neck out for no one». A partir daí qualquer 
pescoço vertical, como Lisboa percebeu dois anos depois, tinha que ficar 
bem exposto e só para um. 12 1
«Chapeau», terceira vez, porque Curtiz percebeu que a aparente moral 
da história tinha que funcionar às avessas. No fim do filme, na celebérrima 
sequência em que Ingrid Bergman e Paul Henreid apanham o avião para 
Lisboa («O que é que há em Lisboa? O avião para Nova Iorque.») Bogart 
diz a Ingrid, para a convencer a partir com o marido, além do «Heres 
looking at you, kid», que os problemas de três pessoas «don’t amount 
to a hill of beans on this crazy little planet». Mas essa razão de fundo 
planetária que importava fazer prevalecer em 1943 — e justificava o 
sublime sacrifício dos amantes de Paris — era afinal bem falaciosa. Se 
Casablanca fez chorar milhões de pessoas nos últimos 30 anos, e milhões 
fará chorar nos próximos, é precisamente porque são os problemas de 
«threelittle people» o que mais conta e o que mais ordena. Quem chora com 
Casablanca hoje, não chora por causa dos nazis e aliados (que já não 
riscam nem prego nem estopa neste crazy littleplanet), mas por causa dos 
amores tão belos quanto efêmeros de Ingrid Bergman por Humphrey 
Bogart e vice-versa.
Se Casablanca é um prodígio de concisão e timing durante o primeiro 
quarto de hora (em que somos apresentados a todos quantos não arriscam 
muito a pele, ou a arriscam mas não mexem na nossa), o filme só «pega 
fogo» quando Ingrid Bergman entra no Ricks Bar e Sam pára de tocar e olha 
para ela. Nunca o olhar de Ingrid foi tão quente, tão desarmado, tão húmido 
como quando pediu que lhe tocasse (não «outra vez» mas pela «primeira 
vez») o «As Time Goes By». Nunca o olhar de Bogart foi tão cerrado, tão frio, 
tão seco como quando ouvindo a música e antes de ver Ingrid, diz: «Sam, 
I thought I told you never to play...» E depois (secreto sinal de Sam) o 
contracampo. Rick réllsa e nós remos tudo em Rick e em lisa, quando ainda 
não sabemos da missa o início quanto mais a metade.
É em torno dessa música (a mais vulgar e a mais famosa das canções, 
escrita por um tal Herman Hupfeld, que a ela deveu toda a sua glória) 
que se estabelece todo o conflito dos dois anos que passaram 
entre a ocupação de Paris e o reencontro em Casablanca e o tempo que 
para sempre imobilizou esse flash-back em Paris (haverá algo de mais 
romântico do que umas férias em Paris?) e o faz regressar, fanto- 
12 2 maticamente à cidade de todos os fantasmas: Casablanca. «Sempre teremos
Paris», diz, no fim, Rick a lisa. A imensidão desse adeus vem de sabermos 
que não. Terão Paris (sempre) como terão Casablanca (sempre) enquanto 
saudade e amor perdido. Nunca mais terão Paris, nunca mais terão 
Casablanca, porque nunca mais se tocarão e se beijarão como em Paris e 
em Casablanca. Ficaram com todo o tempo, quando já sabiam «as time goes 
by».
É prodigioso observar como essa passagem rima com a famosa 
sequência da Marselhesa. Se o hino francês ganha ao hino nazi não é pela 
conotação ideológica que tem no contexto. Mas porque ao ritmo marcial, 
introspectivo, sombrio, do Die Wachtam Rhein (ritmo que até aí fora o de 
Bogart, irmão na máscara do oficial nazi e do capitão francês) se sucede 
a explosão romântica da Marselhesa, tão fremente, tão generosa e tão 
confiante como Ingrid Bergman o era. Aparentemente, nessa sequência, 
triunfa o patriotismo sobre a traição, a coragem sobre o medo, o desafio 
sobre o silêncio. Mas, sobretudo, triunfa a expansão do grande amor sobre 
a contenção dele, a dádiva de Ingrid Bergman sobre o ressentimento de 
Humphrey Bogart. É precisamente porque as duas lutas pulsam ao mesmo 
compasso que a nossa identificação é tão assombrosamente total. Essa 
sequência é a catarsis para todas as opressões, políticas ou sentimentais. 
Em raccord com o «As Time Goes By» permite a consumação da nossa 
suprema infelicidade de sabermos que nunca mais veremos Bogart e 
Bergman em Casablanca.
Todas as outras histórias cruzadas (e de Peter Lorre a Joy Page, tantas 
e tantas são) confluem para esse caudal que, depois, só pode ir em 
crescendo até à morte de Veidt e à conversão de Rains.
Antes, no filme, este dissera: «If I were a woman... Pd love Rick.» Qual 
homem o não disse também? E qual mulher não disse igualmente: «If I were 
a man... I’d love lisa». Quem nào precisa de senão precisou de mais nada. 
Se viu Casablanca, amará, até ao fim, Bogart e Bergman. E procurará toda 
a vida o Rick’s Bar em Casablanca, sabendo perfeitamente que nào há 
nenhum Rick’s Bar em Casablanca e que nào há outra Casablanca senão 
aquela onde-um-dia-se encontraram e se perderam Ingrid Bergman e 
Humphrey Bogart. Se isto não for o cinema é porque o cinema não existe. 
Nem eu, nem tu. Nem nenhum de nós. 123
0 RETRATO DE JENNIE
O cinema continua a fazer uso da voz off. Mas jamais esta voltou a ter 
o papel desempenhado em Hollywood, nos anos 40, quando, mais do que 
nunca, sobre as primeiras e mal definidas imagens, nos convidava ao 
grande sono hipnótico.
Por vezes era radiofônica (ou neutra, ou enfática) indo buscar ao outro 
grande médium de então o fôlego imperativo ou reportorial. Vozes offdo 
início do Citizen Kauede Welles (41) ou de The Roaring Twenties (Walsh, 
39). Outras vezes, tomava o som do sonho e sussurrava-nos ao ouvido 
12 4 saudades sobrepostas, quase sempre confiadas a femininas vozes. Assim 
entrámos na Rebecca de Hitchcock (40), guiados pela voz de Joan 
Fontaine, assim prenetrámos no SecretBeyondtheDoor, de Fritz Lang (48), 
com o fio da voz aquática de Joan Bennett.
Amo esses filmes todos e os muitos mais que me vêm à memória, 
enquanto escrevo e ouço essas vozes primordiais, vindas do escuro e do 
lado de lá das imagens. Mas a voz que mais me enfeitiçou foi a que um dia 
veio a mim, das nuvens e das alturas, para metafísica e divagantemente me 
perguntar: «What is time?» -What is space?» «What is life?» «What is death?» 
«Since the beginning, — eram as primeiras palavras —, men has looked into 
the infinity and asked the eternal questions.» Estas eram, então, vagarosa­
mente ditas. Depois — já a música do genial Tiomkin preparava o seu 
caudaloso encontro com a paleta de Debussy — a voz continuava 
pomposa e vinda dos pontos mais distintos do infinito: -Durante centenas 
de civilizações, filósofos e cientistas deram-nos respostas, mas a obscuri­
dade permanece. Porque cada alma tem que demandar o segredo da sua 
própria fé. A estranha lenda do Retrato de Jennie baseia-se nos dois 
ingredientes da fé: verdade e esperança.»
Entretanto, pelo meio da voz e pelo meio das nuvens, interrom­
pendo a audição de uma e a visão de outras, já uma legenda ocupava a 
tela. Era a passagem de Eurípides que Chestov também citou a abrir as 
Revelações da Morte-. -Quem sabe se a Morte não é, finalmente, a vida e o 
que os mortais chamam vida não é, finalmente, a morte?»
Depois, à medida que as nuvens se iam dissipando e a imagem focava 
em Nova Iorque, Central Park, Inverno de 1934, («New York is a cold place 
in the winter», era a voz de Joseph Cotten — Eben Adams, o pintor que um 
dia pintara o retrato de Jennie quem no-lo dizia) —, a voz off ainda 
continuava, mais explicativa, a murmurar-nos que «a nossa história tem 
origem tanto nas sombras do desconhecimento como num retrato que está 
no Metropolitan Museum. A verdade dela não reside neste écran mas no 
vosso coração. And now The Portrait of Jennie.»
Foi há 39 anos que ouvi e vi pela primeira vez tal voz e tais imagens 
(o filme é de 1948, mas só se estreou em Portugal em 1950) e raras vezes 
um início de filme me magnetizou tanto. Os segundos balcões da época, 
tão atônitos como eu, mas em diverso sentido, começavam a fazer ruídos 12 5
significativos do seu desagrado. Elitíssimo, juntava-me aos poucos «chius» 
da sala. Aquilo nào era para ignaros.
David O. Selznick, produtor de The Portrait ofjennie, ofereceu esse 
filme como presente de amor à sua futura mulher Jennifer Jones. com quem 
já aqui esgotei os adjectivos do meu vasto reportório quando escrevi sobre 
Gone to Earth. Diz-se que foi o mais caro presente que lhe deu. David O. 
tinha o seu lado poético, sob a carapaça de tycoon. Gostava de histórias 
bizarras. Mas nunca se teria metido nessa adaptação de um romance de 
Robert Nathan, se nào fosse Jennifer, que perdeu a cabeça com essa viagem 
no tempo e no espaço. E o rigor das contas cedeu perante a assolapada 
paixão. Se Jennifer queria sonho, ia tê-lo e como jamais visto. Inclusive a 
sequência fulcral — a sequência da tempestade e do maremoto no farol 
quando Jenny «morre» pela segunda vez — foi tintada a verde e filmada em 
tecnicolor especial, exigindo especial projecção em ciclorama. Gastou 
milhões, perdeu-os todos, já que ninguém se orientou nessa poética 
encenação da teoria da relatividade. Atribuiu as culpas ao realizador, o 
alemão Wilhelm Dieterle, há muitos anos baptizado na América William 
Dieterle, e que em tempos fora discípulo deMax Reinhardt.
Este, por sua vez, ficou fascinado com as possibilidades que tal história 
lhe dava para reencontrar as suas feéries germânicas e os fantasmas dela. 
Em verdade, em verdade, aquele era o filme por que esperara nos 17 anos 
de exílio hollywoodiano e de servidor dos secos Irmãos Warner.
'lhePortrait ofjennieé o filme mágico do encontro (único) entre essas 
várias vertentes: o onirismo hollywoodiano dos forties, o expressionismo 
reinhardtiano de Dieterle e a magia de Jennifer Jones. À época, só o 
perceberam alguns surrealistas, como Buhuel que tanto amou este filme 
e o citou, uma vez, entre os seus dez favoritos. Selznick veio a saber disso 
muito depois e ainda mandou um convite ao autor de LAge d'Orpãrã ir 
até à América, dirigir Jennifer. Mas, como Buhuel comentou depois, era 
muito tarde para ele, já metido noutras aventuras e muito tarde para 
Jennifer, que já não tinha os 28 anos que contava quando fez o filme.
The Portrait ofjennie é também o filme mágico do encontro (único) 
entre o tema dos «duplos» (tão caro à tradição alemã e aos Murnau e Leni 
12 6 que tinham sido companheiros e amigos de Dieterle) e o tema da «dupla
imagem» (retrato — filme, quadro fixo — imagem em movimento) que fora 
uma das mais perenes constantes dos filmes americanos dos forties. 
Por este último lado (o tema do retrato) culmina uma longa tradição que 
vem de Reheccae passou por Gaslight, de Cukor (44), Latira, de Preminger 
(44), The Woman in the Window, de Fritz Lang (44), ThePicture ofDorian 
Gray, de Lewin (45), The Ghost and Mrs Muir, de Mankiewicz (47), para 
só citar «filmes da minha vida». A singularidade de Portrait of'Jennie foi ter 
elevado essa conjugação ao máximo de hiper-romantismo e onirismo, 
sustentando, no limite da alucinação, a «realidade do irreal». No final do 
filme, depois da sequência do farol, e quando toda a gente, até a sua 
protectora e amiga Ethel Barrymore, duvida que o pintor (Joseph Cotten) 
tivesse visto Jennie, este olha para as mãos de Ethel e vê nelas a écharppe 
de Jennie. E a velha senhora responde-lhe que o encontraram com ela, nas 
rochas da ilha. Perante essa prova, quando também Cotten vacila na sua 
certeza de ter encontrado a morta-viva, tudo se reordena. O pintor sorri e 
diz que agora está tudo bem. Jennie existiu mesmo, para além do retrato. 
Jennie foi real.
Mas Jennie — esse fantasma que lhe apareceu ainda criança vestida de 
marujo, em 1934 ou em 1910, nas neves do Central Park — e a espaços 
de semanas e meses «ressuscitou» cada vez mais crescida, recapitulando 
num ano a vida que vivera em dez — tem no filme outro «duplo» bem mais 
terreno, mas não menos triste e romântico. E essa velha protectora — Ethel 
Barrymore — que desencadeou a aparição de Jennie e vive do outro lado 
da idade um romance de amor análogo ao de Jennie com Cotten. As 
mulheres da vida deste, os seus fantasmas ou duplos, são, assim, uma 
criança que morreu dez anos antes de ele a conhecer (cedo de mais? tarde 
de mais?) e uma velha que podia ser mãe dele (tarde de mais? cedo de 
mais?). O retrato de Jennie é um misto de Jennifer Jones e Ethel Barrymore, 
criação do duplo das duas, criação dupla das duas.
«Where I come from nobody knows — and where I’m going everything 
goes. The wind blows, the sea flows — and nobody knows.» Jennie canta 
esta canção a Cotten quando lhe aparece, pela primeira vez, miúda e de 
tranças, com os seus «grandes e tristes olhos». E a canção repete-se como 
leitmotif do filme a cada uma das suas aparições, até sabermos que ela 127
repete circularmente o seu destino e voltará a morrer, engolida pela onda, 
no maremoto de 5 de Outubro de 1924, revivido a 5 de Outubro de 1934. 
Traz com ela todas as «provas» do tempo passado (jornais antigos, 
memórias antigas) mas traz também com ela todas as provas de tempo e 
espaço nenhum. E traz nas suas metamorfoses (Jennie aos 10 anos, Jennie 
aos 20 anos, Jennie-filha, Jennie-mulher), graças ao prodígio de Jennifer 
Jones, o encontro eterno do amor louco, esse de que morreu por não ter 
conhecido (no antes do antes do filme) esse de que morreu por ter 
conhecido (no depois do antes da vida).
Este filme desmedidamente romântico, encontra, através dela, da 
iluminação prodigiosa do grande Joseph August, no seu último trabalho, 
e da partitura debussyana de Tiomkin, os nicbtgeboren («seres nào 
nascidos») de que falou Hoffmanstahl, sempre fast verlorenen («cedo 
perdidos») mas reencontráveis no espaço do imaginário fílmico que 
Dieterle foi buscar ao mais fundo da sua alma germânica. Ou, como disse 
Wordsworth, «a imaginação recua perante tudo, excepto o plástico, o 
flexível e o indefinido». Chamemos-lhe em The Portrait ofJennie, o cinema. 
Por isso o amo tanto. E por isso, continuarei, como Cotten, a subir e a descer 
a escada do farol, para ver ressurgir no mar encapelado da antiga névoa, 
as velas do barco de Isolda-Jennie, ou de Isolda-Jennifer.
128 JOÀO BÉXARD DA COSTA
VONTADE INDÓMITA
Muito antes de me apaixonar por este filme de King Vidor, que só 
conhecí 20 anos depois da sua estreia, apaixonei-me pelo livro em que ele 
se baseia: TheFountainhead, de Ayn Rand, que li, adolescente, nos pinhais 
de Venda de Galizes, na tradução francesa chamada La Source Vive.
Naquela altura, já sabia que havia um filme «tirado» do romance e 
lembrava-me de ter visto os cartazes dele, no Tivoli, na Páscoa de 1950. Mas 
quem me recomendara o livro detestara a fita e, por isso — sempre fiel aos 
mestres —, me afastei cuidadosamente dela para nào estragar a impressão 
que a leitura me dera.
Ayn Rand ganhou o Pullitzer com esse telúrico e exaltante hino ao 
artista maldito, em luta contra uma sociedade que lhe não compreendia o 
gênio. É, provavelmente, um dos últimos resquícios de uma mitologia 
herdada do romantismo, em que «só contra o mundo» a inesgotável fonte 
de inspiração proclama a sua soberana liberdade contra as regras do gosto 
comum. No caso em questão, o artista era um arquitecto — Howard Roark 
— que edificara em Chicago e Connecticut, nos inícios do século, os 
arranhas-céus que impuseram o primeiro modernismo e depois planeara 
uma cidade nova, Cortland chamada. Embora Ayn Rand escrevesse no 
prefácio a habitual frase de aviso sobre o carácter fictício de personagens 
e situações, toda a crítica identificou Howard Roark com Frank Lloyd 
Wright, de quem The Fountainhead seria velada biografia.
Como Wright — ainda vivo à data da publicação do livro, como à data 
da estreia do filme (morreu em 1959, com 90 anos) —, Roark começou por 
privilegiar a ossatura metálica, como Wright procurou romanticamente 
conciliar o racionalismo da máquina com um imaginário poético devedor 
de Ruskin e Viollet le Duc, como Wright procurou ligar o mundo «natural» 
ao mundo «urbano», num novo regresso à natureza, organicista e funcional. 
E o episódio que mais me maravilhara nas tardes desse Verão agreste da 129
Beira, em 1953. também tinha lendariamente a ver com Wright. No livro, 
Howard Roark, quando sabe que o seu plano para a cidade de Cortland 
fora consideravelmente alterado por medíocres sem gênio nem escrúpu­
los. dinamita os edifícios principais. Há quem diga que Wright fez o mesmo 
para o edifício Cheney, em 1904. «O arquitecto deve recusar tudo o que está 
em desacordo com a natureza e o carácter do homem.»
Para os meus 18 anos, essa figura do Grande Artista, incorruptível e 
sobranceiro, domando e dominando com idêntica mestria materiais brutos 
e mulheres sofisticadas, deus das Artes e deus do Amor (e mal com o amor 
por causa das Artes) era um arquétipo. Sonhei com Howard Roark como 
sonhei com outros deuses análogos que, pela mesma altura, me eram 
propostos por outras biografias igualmente romanceadas que li de 
Gauguin (o livro de Maugham) à geração dos malditos dos anos 20 (os 
livros de Gertrud Stein). Foram prelúdios à leitura (já feita com mais de 
mim) das cartas de Vincent a Théo. Mas se essas ainda as considero hoje 
o mais arrasante documento que conheço sobre a criação artística(e releio- 
-as tantas vezes como as cartas de Rilke ao «jovem poeta»), receio bem que 
se voltasse a ler The Fountainhead o meu delírio dos anos 50 nada 
reconhecesse nem se reconhecesse. Fontes dessas só as de Charles Morgan. 
Ayn Rand passou como epifenómeno, e duvido que ainda tenha — ou 
mereça ter — muitos leitores do gênero do que fui.
Já tinha mesmo esquecido o livro, quando, uns 15 anos depois, me 
achei na Cinemateca de Paris, em retrospectiva Vidor, a ver o filme que, 
em 1949, King tinha extraído do best-seller de Mrs Rand. Como me tinham 
avisado, não havia na obra as «páginas de doutrina estética» em que a 
escritora se espraiara. Não havia muitas e diversas mulheres, mas uma só. 
Nào havia finais pungentes, havia bappy-end. Mas havia uma paixão 
«without dignity and without regrets» e havia, numa das mais poderosas 
imagéticas de que me consigo lembrar, a recapitulação da estrutura do 
cosmos na estrutura de um corpo (corpo de Gary Cooper, que na tela 
interpretou Howard Roark) e a da estrutura do espírito na da obra. E havia 
a recapitulação da função criadora nos pólos antagônicos e complemen­
tares dessa criação. Do mais panteísta dos cineastas, o mais panteísta dos 
130 filmes.
Grande é a minha paixão por King Vidor (gigante que atravessou toda 
a história do cinema de 1919 — Better Times — a 1959 — Solomon and 
Sheba\ de todos os cineastas o mais operático e o mais plástico. Grande 
é a minha paixão por The Big Parade (PTIS) e Renée Adoré a correr atrás 
do camião que lhe levava John Gilbert e a agarrá-lo pelo sapato, única coisa 
dele com que ficava nas mãos; por La Bohème <3926) que, se não é a ópera 
de Puccini, pode ser visto ao som dela; por ZfeeCrozcc/(1928) com essa cena 
de amor nas Cataratas do Niagara; por Halleluiah! (1929), o filme que 
inventou o som no cinema dando voz ao diabo; por Bird of Paradise 
(1932), com os amantes supliciados e os tabus revisitados; por Cynara 
(1932), com o desmaio de Phyllis Barry, vestida de Miss, nos braços de 
Colman; por Stella Dallas<3937), em que Barbara Stanwyck obscurecia no 
comboio a imagem romântica para, do lado d.e lá do túnel, se paramentar 13 1 
com a imagem trágica; por An American Romance(1944), que me ensinou 
que o aço, e nào apenas o binômio de Newton, pode ser tão belo como 
a Vénus de Milo; por Duel in theSun (1946), em que Gregory Peck morre 
como Radamés eJennifer Jones como Isolda; por Ruby Gentry (1952), com 
o vento a fustigar os pântanos e Jennifer Jones, outra vez.
O parágrafo foi enorme (valham-me os pontos-e-vírgulas) e omiti mais 
do que escolhi. Mas, quanto mais o tempo passa e quanto mais revejo The 
Fountainhead, mais me convenço que é essa a obra-prima de Vidor, no 
essencial de tudo o resto.
King Vidor parece que não o pensava. Lamentou a escolha de Gary 
Cooper («Não era um papel para ele: eu queria Bogart!»), discordou do final 
que achou -estúpido e ridículo», e lhe foi imposto pela Warner, e lamentou 
que os irmãos fossem tão forretas que nào o tivessem deixado reconstruir 
edifícios e décors, obrigando-o a maquetas e estilizações.
Salvo o devido respeito, não teve razão. Sem Gary Cooper jamais 
teríamos esse plano final (o plano mais fálico da história do cinema) em 
que a fabulosa Patrícia Neal sobe pelo arranha-céus em construção, até 
chegar a Cooper, de pé no alto dele, em literal ascensão até ao homem. 
Sem o tal final, nào teríamos tido a plena oposição linha vertical/linha 
horizontal, entre o homem de coragem mas sem força (o marido de Patrícia, 
Raymond Massey) e o homem para quem a força é coisa diferente da 
coragem (Cooper). E não teríamos tido o suicídio de Massey, o business 
man, com o tiro em off e as folhas sobre a mesa a voar, numa daquelas 
elipses em que se define o gênio de um cineasta. E sem as maquetas, Vidor 
nào teria sido obrigado a criar a sensação de espaço, onde ele não existe, 
com as sombras insolitamente descentradas, através de uma portentosa 
distribuição de volumes.
Males que vêm por bem: nunca um décorteve tanta presença como a 
que assume em The Fountainhead. Um exemplo entre muitos. Logo no 
início do filme morre o velho Henry Cameron (Henry Hull), mestre de 
Roark e que esteve para este como Sullivan esteve para Wright. Antes, é 
conduzido ao hospital numa ambulância.
Colocando a câmara no interior desta e filmando do ponto de vista do 
13 2 moribundo (com os arranha-céus no prolongamento da cruz da am-
bulância), Vidor impôs uma sensação alucinante da arquitectura de 
Manhattan, ao mesmo tempo que ligou a sua morte ao que fora razão 
de ser da sua vida.
A partir daí, está dado um tom cujas raízes se encontram no filme de 
1928, The Crowd. A cidade como extensão do homem e da natureza, e o 
espaço urbano como espaço cósmico, ocupando o lugar que noutros 
filmes de Vidor tiveram os espaços naturais.
Ver The Fountainhead a partir do seu jogo de luzes e sombras, da 
utilização da profundidade de campo e da distorção dos enquadramentos, 
é um nunca acabar de surpresas formais que tornam este filme, do ponto 
de vista plástico (e King Vidor foi também um dos grandes «pintores» 
americanos) numa das mais complexas e elaboradas obras alguma vez 
saídas dos estúdios de Hollywood.
Muito mais se compreenderá da sua complexidade se se considerar que 
essa graduação de luzes, essa profundidade, essa distorção, sào o exacto 
equivalente das paixões dos protagonistas, eles também vivendo de 
tensões luminosas e obscuras, da profundidade do seu combate (do seu 
amor e do seu ódio), e da distorção dos seus sentimentos. The Fountain- 
beadèo filme da desmedida e da determinação, uma e outra só em termos 
físicos podendo cabalmente explodir.
Por isso, é também o mais erótico dos filmes de Vidor, com as 
perfuradoras, as pressões, as infiltrações e Patrícia Neal como corpo 
cadente, seguindo em queda livre a perseguição do corpo erecto de Gary 
Cooper, numa busca de absoluto que, quanto mais presa ao corpo dele, 
mais o faz clamar pela liberdade de nada esperar e nada desejar. A estátua 
que ela atira do alto do arranha-céus (na proclamação dessa liberdade) 
regressa no corpo deificado do Homem que sobe esse arranha-céus e, 
como deus e como homem, dará sentido a esse absoluto físico que coincide 
com a absoluta libertação e a absoluta entrega.
E nessa entrega — aos pés do falus — The Fountainhead, o mais 
dionisíaco dos filmes, atinge o cerne do próprio mito da apoliniedade.
OS FILMES DA MINHA VIDA
134 JOÃO BÉNARD DA COSTA
DEUS SABE QUANTO AMEI
Dos melodramas de Vincente Minnelli, há dois entre os quais sempre 
hesito quando me pedem hierarquias de preferência: The Clock, realizado 
em 1945, e que em Portugal se chamou A Hora da Saudade, e Some Came 
Running, estreado em 1959, e que em Portugal se chamou Deus Sabe 
Quanto Amei.
The Clock, que já alguém comparou — e não fui eu — à Aurora de 
Murnau, é talvez o mais belo dos breves encontros do cinema, encontro 
de 24 horas entre o mais magoado dos actores dos forties— Robert Walker 
— e a mais magoada das actrizes de sempre — Judy Garland. A mesma 
velha história do soldado em licença na grande cidade, que encontra uma 
rapariga, ela apaixona-se por ele, ele por ela, casam à tardinha, têm uma 
noite e depois ele volta para a guerra. Quem sorri e diz que já viu cem vezes, 
é porque nunca viu Tbe Clock, onde tudo isso acontece mas acontece como 
se nunca tivesse acontecido.
Mas se Deus sabe quanto amo esse filme, apesar de tudo, escolho hoje 
Some Came Running, até porque há hipóteses de ser ouvido por mais 
gente (o filme é mais conhecido e passou há pouco tempo na RTP, embora 
não em scope, sem o qual só por memória funciona).
Os dois filmes — para lá da marca específica de Minnelli, o homem 
que, como a varinha de condão, transformou em ouro tudo quanto to­
cou — têm em comum uma aproximável concepção do tempo e uma 
aproximável variação dos desígnios do destino nos limites daquele. Em The 
Clock (de que aqui me despeço), Judy e Bob corriam contra o título e a 
favor do título. A lentidão dosmovimentos do ponteiro só era inevitável 
porque o ritmo da paixão deles o era também. Em Some Came Running, 
só se corre aparentemente no final, esse final alucinante, das múltiplas 
montagens paralelas, com Dean Martin e o assassino (Steven Peck) a 
tentarem ser mais velozes do que os fados na busca de Shirley MacLaine 135
e Frank Sinatra, recém-casados e engolidos pela multidão que comemora, 
na feira de todos os carrocéis, o centenário da cidade de província 
(Parkman, Indiana) onde a acção decorre. Só nessa altura descobrimos que 
o tempo correu todo o tempo, e que todos o perderam. A sensação que 
temos, quando relembramos o filme, é que houve tempo para tudo e 
subitamente não há tempo para nada.
Houve tempo para conhecermos a família de Dave (Frank Sinatra), com 
o irmão pusilânime, a cunhada sinistra e a sobrinha bonita. Houve tempo 
para conhecermos a professora puritana, essa Miss French(Martha Hyer) 
que às vezes lembra Eva-Marie Saint e que usava carrapito com medo que 
lhe soltassem os cabelos, como Sinatra fez naquela única e incrível tarde 
de amor deles. Houve tempo para muitos batoteiros e muitas pegas, 
paisagem acidental e essencial para dela emergirem Bama (Dean Martin), 
o homem que nunca tirava o chapéu, e Ginny (Shirley MacLaine), a mulher 
que nunca largava a mala de mão em forma de coelhinho de peluche. 
Houve tempo, até para uma bela e efêmera secretária, Miss Barclay (Nancy 
Gates), que rima com todo o resto. Só não houve tempo para o tempo do 
mais belo amor da mais bela mulher, Ginny-Shirley, essa que veio a correr 
e morreu no fim para salvar Sinatra, que lhe deitou a cabeça em cima da 
berrante almofada encarnada que a pedido dela lhe dera, e que era a coisa 
de que ela mais gostava no mundo.
«Menina e moça me levaram de casa da minha mãe. Qual fosse a causa 
daquela minha levada, era pequena não na soube então.» Some Came 
Running fez-me sempre lembrar o começo da novela de Bernardim. 
Quando Shirley MacLaine acorda no autocarro onde até aí não a víramos 
(a câmara só nos mostrara Sinatra a dormir), depois de ler o anúncio da 
companhia transportadora («and leave the driving to us») ou de ouvir o 
primeiro diálogo dela com Sinatra («You’re a nice kid. I like you. Take 
care»), sinto essa sensação de «levada», um dia, menina e moça (Shirley 
MacLaine que o não era, era-o mais do que outra nenhuma), de «casa da 
minha mãe» (sempre gostei mais dessa variante do texto do que da usual, 
que diz «de casa de meus pais») por causas que os pequenos nunca sabem, 
que faz parte de serem pequenos nunca saberem. Há, no filme de Minnelli, 
uma mesma dupla acentuação da inocência, a mesma saudade por um136
quente mundo perdido, a mesma viagem, o mesmo lento sublinhar do 
tempo, do «então». E, mais importante ainda, a mesma equivalência nas 
cores, no décor e nos olhos de Shirley MacLaine para as labiais de 
Bernardim, com o corte final (a «dental») do «então», no movimento sublime, 
duma rapidez feita tanto de reflexo, como da ausência de reflexão, com que 
a moça menina se atira para cima do corpo de Sinatra, apanhando em cheio 
nas costas a bala que a ele era destinada.
Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema 
alguma vez inventou, Ginny é menina e moça perdida na vida e perdida 
na morte, no sentido em que também se diz «mulher perdida», «mulher da 
vida», tão belas expressões. E no fim, no enterro dela, percebemos que se 
Dean Martin nunca tirou o chapéu, foi para o tirar nesse momento, para 
a única mulher que a esse gesto obrigava.
Metera-se, uma noite, num autocarro e atravessara centenas de 
quilômetros porque Sinatra, sentimental de mais quando bebia de mais, 
a convidou a segui-lo. Passada a bebedeira, na manhã da chegada a 
Parkman, ele já nem se lembrava dela. Mas lembrava-se ela e ficava, numa 
ida sem volta, apesar da nota de 50 dólares que Sinatra lhe metia na mão.
E ficava, atrapalhada, atrapalhante, sem perceber de que terra era, 
sempre com coisas a mais nas mãos (a tal carteira, a tal almofada, as flores 
artificiais), sempre com os penduricalhos, sempre a pintar os olhos, a pôr 
rimei nas pestanas, «leaving the drive to others».
E há as duas sequências mais inesquecíveis.
A primeira é quando decide ir até à escola, conhecer a professora 
por quem Sinatra se apaixonara, para «tirar a limpo» aquela história. 
A professora ensina literatura e explica aos alunos que as bebedeiras 
de Poe, as drogas de Quincey, a «neurótica promiscuidade» de Baudelaire 
nào os tornavam menores. «Eram grandes homens, grandes na força, 
grandes nas fraquezas.» A campainha toca no fim desse parvo discurso. 
E enquanto os estudantes saem, aparece na frente daquela mulher 
que sabe tudo e nào percebe nada, a mulher que nào sabe nada e percebe 
tudo. Vem nervosíssima, timidíssima, amedrontadíssima. Se a profes­
sora gostar tanto de Sinatra quanto Sinatra gosta dela, todos os seus 
sonhos morrerão ali. Como ela própria diz, na profundidade de campo 13 7
cia aula vazia, contra um quadro onde está escrito um texto de Zola: 
«You don’t know how scared I was.» «I want him to have whatever he wants. 
Even if it means you instead of me.» Durante toda a sequência, nào 
disse nem fez uma coisa feia. Só ganhou o campo-contra campo porque 
a professora era incapaz de olhar para além do campo dela e ver para 
além das aparências a «rival» que nào tinha nada, «not even a repu- 
tation».
A segunda sequência é pouco depois, quando Sinatra chega a casa, 
possesso de dor de corno, porque Miss French lhe dera com os pés («I don’t 
like your life. I don’t like what you think. I don’t like the people you like»)na 
ressaca desse face a face com a «pega».
Sinatra insulta-a a despropósito. Há uma panorâmica sobre ela e ela 
a dizer «You gotta remember I’m human. Fve feelings». Depois, Sinatra 
arrepende-se. Mas tudo quanto tem para dar àquela mulher que antes 
tinha dito que era capaz de fazer tudo, tudo quanto ele lhe pedisse (e veio 
a fazer mais) é perguntar-lhe: «Do you clean that place for me?» E o que a 
frase podia ter de horrível ou frustrante é salvo pelo sorriso de Shirley e 
aquele «Oh! Could I?», como se acabasse de receber o mais belo dos 
presentes.
Corte e Sinatra lê-lhe o romance com que acabara de ganhar um prêmio. 
Sentada no chào, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, 
Shirley está toda nele e nada no que ele diz. E, quando ele a acusa de nào 
ter percebido uma palavra do que ouvira, ela responde com esta tirada 
prodigiosa: «No, I don't. But that don't means I don’t like the story. I don’t 
understand you, neither, but that dont means I don’t like you. I love you, 
but I don’t understand you. What’s the matter?» Vira a cara para o lado, 
amuada. Há uma «pausa côncava de assombro» preenchida apenas pela 
espantosa partitura de Elmer Bernstein. A câmara fica fixa no rosto de 
Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumulara nele (tempo, clécor, 
cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no 
inesperado pedido de casamento. Segue-se a incredibilidade de Shirley 
(«Nào deves brincar com essas coisas») e depois o abraço, abraço incrível 
de entrega e doaçào. Há o degrau e a coda volta ao início: «You gotta 
13 8 remember, I’m human.»
Nestas duas sequências — como na sequência final do crime, como em 
todo o filme — Minnelli atinge o apogeu da sua arte. Há cineastas, como 
há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se 
destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além 
de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. 
Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros. Como diria 
Shirley MacLaine: «Thanks, awfully, so awfully much.»
OS FILMES DA MINHA VIDA 139
OS MEUS FILMES DA VIDA
1-4 2 JOÃO BÉ.XAKD DA COSTA
A SEGUNDA VERSÃO
Várias vezes me têm proposto um ciclo de remakes, ou seja daqueles 
filmes de que, na história do cinema, foram feitas várias versões. A 
Cinemateca Portuguesa até já fez um, emJulho de 1983. Passaram, entre 
muitos outros, o Nosferatu de Murnau (1922) e o Nosferatu de Herzog 
(1978), La BêteHumaine de Renoir (1935) e a adaptação do mesmo livro 
de Zola chamada Human Desire(Fritz Lang, 1954), AnAmerican Tragedy, 
de Sternberg (193 D e outra versão do mesmo livro de Theodore Dreiser, 
intitulada A Place in the Sun (George Stevens, 1951).
Foram 22 filmes, podiam ter sido 220, já que desde que o cinema é 
cinema inúmeras vezes se repegou numa antiga história para lhe dar outra 
volta.
Mas se há remakes explícitos, às vezes com o mesmo título e basea­
dos na mesma obra, muitos mais são os remakes implícitos. Histórias 
muito diversas mas que, no fundo, vão dar ao mesmo. Para falar apenas 
de cinema — que isto é crônica de filmes — François Truffaut notou, um 
dia, que obras tão diferentes como A Fonte da Virgem (Jungfrükallen) 
de Bergman e Psycho de Hitchcock eram, ambas, transposições, mais 
ou menos conscientes, do Capuchinho Vermelho. Efectivamente, em cada 
um desses filmes há uma menina que saiu da estrada e encontrou um 
lobo mau...
No fundo, em qualquer arte narrativa há muito poucas histórias novas. 
Bem se pode dizer que ainda ninguém inventou coisas diferentes de 
A Ilíada ou de A Odisséia. Questões de eternos retornos.
Na literatura contemporânea, Jorge Luis Borges foi dos mais atentos a 
esse fenômeno de repetição e usou, de todas as formas e feitios, histórias 
escritas por outros.
El Otroé exactamente o título de um conto que publicou em 1972 e em 
que lhe apareceu, ao norte de Boston, em Cambridge, um “duplo» (ou um 143
«replicante») que, como ele, se chamava Jorge Luis Borges e tinha vivido 
a mesma vida do que ele. Borges acaba o conto sem saber se o outro o 
sonhou a ele ou se ele sonhou o outro. E como o sobrenatural deixa de 
ser aterrador quando acontece duas vezes (palavras de Borges), marcou 
ao outro, outro encontro para o dia seguinte. «No dia seguinte nào fui. O 
outro também nào.»
Ora, há um meu filme da vida em que a mesma história sucedeu, com 
algumas variantes. Contou-mo Duarte de Almeida que o nào chegou a 
realizar.
Quem conhece Duarte de Almeida sabe que ele é tudo menos bonito. 
Mas foi-o, em criança e, narcisista como é, tem em casa, em evidência, um 
retrato desse tempo, muito louro, de bibe, tirado no Amer da Rua do Ouro, 
fotógrafo que, na verdade, existiu nos anos 30 e 40.
Uma noite estava a dormir e apareceu-lhe esse miúdo. Tinha 4 ou 5 
anos, estava vestido e penteado como no retrato, só que perdera o 
ar sorridente dele e vinha bem triste. Sentou-se aos pés da cama e, em 
tom surpreendemente adulto, acusou o outro de o ter morto. Perante 
o espanto do acusado perguntou-lhe apenas isto: -Se não me mataste, 
onde é que eu estou? Que é feito de mim? Nunca mais ninguém me viu. 
E tão bem tomaste o meu lugar que ninguém deu pelo meu desapareci­
mento. A minha própria màe — ou devo dizer a nossa própria mãe? — nào 
chorou uma lágrima por mim. Habituou-se, com o tempo, ao meu 
desaparecimento e nem sequer pergunta hoje pelo que foi feito de mim. 
Convenceste-a — como convenceste toda a gente — que tu és eu. 
Mas olha para nós: há alguma semelhança? Que é feito destes meus 
cabelos louros, deste bibe, destes dentes de leite? Que é feito de mim? Que 
é feito de mim?» E desatou a chorar, choro de criança. Muito assus­
tado, muito inquieto, Duarte de Almeida respondeu-lhe que ele era 
o que era feito dele e que assim mudara, sendo o mesmo. «O mesmo?», 
perguntou com enorme e terrível amargura a criança. «Olha para o espe­
lho, olha para ti e vê se tens coragem de repetir o que acabaste de 
dizer.»
Duarte de Almeida nào tinha espelho. Mas nào precisou dele, bastou- 
-Ihe o olhar do outro, lembrar-se do retrato, para perceber que o miúdo144
tinha uma terrível e horrível razão. Contou-me que acordou como se 
acorda de um pesadelo e se levantou.
Quando chegou à sala, olhou para o retrato. Viu-o em grande plano, 
apagou as luzes e fugiu para a cama, aterrado.
Nunca mais viu o retrato como até aí o vira. E nunca mais se esqueceu 
da outra expressão do outro (que não era a outra expressão dele) a dizer- 
-Ihe: «tu mataste-me.»
Policialmente pode estar descansado. Ninguém condena ninguém, por 
crime de morte, na ausência de cadáver. E não há cadáver dessa criança. 
E o que é mais horrível — ele mo disse — é que sabe perfeitamente que 
não pode haver esse cadáver. Quando o houver será ainda outro. Quem? 
Qual?
OS MEUS FILMES DA VIDA 145
0 FIM DA GUERRA QUE ACABOU
O filme que vou contar tem vinte anos. É de 1968, o tal ano com que 
toda a gente tem que ver, embora metade dela passe hoje na rua de cabeça 
virada para o outro lado a fingir que o nào conhece. Feia coisa, essa de não 
cumprimentar amigos em desgraça. Feia coisa, essa de nos arrependermos 
do que fomos, até porque ainda o somos.
Em 1968 — que culpa tenho eu? — aconteceram-me várias coisas pela 
primeira vez na vida. Uma delas passou-se n’ O Tempo e o Modo, 
onde naquela data eu era chefe de redacção. Entrou-me pelo gabinete 
um antigo conhecido que, depois de ter tomado todas as precauções 
da praxe e da época para comunicações clandestinas (pediu-me 
14 6 que desligasse o telefone, tapasse o bocal do mesmo, etc.) me informou
em voz ainda mais baixa da que normalmente lhe é habitual: «Eu sou 
militante do Partido Comunista Português.»
Nunca ninguém mo tinha dito, e não se devia dizer. Se ele mo dizia, 
obviamente tinha ordens expressas para o fazer e havia razões poderosas 
para tais ordens. Vieram a seguir. O Partido desejava organizar brevemente 
uma reunião no «exterior» (leia-se, fora de Portugal) com «democratas de 
todas as tendências» e, nomeadamente, representantes dos chamados 
«católicos progressistas». Era nessa última qualidade que eu estava a ser 
formalmente convidado.
Preveni-o que, antes de decisões, tinha que falar com os tais «católicos 
progressistas» (designação pomposa para as cinco ou seis pessoas que 
sobravam de uns restos de movimento pseudoclandestino que se chegara 
a chamar «Resistência Cristã») e com outro grupo político — não mais 
numeroso — a que me achava vinculado. Nenhuma objecção, já que todos 
esses nomes mereciam ao Partido a necessária confiança.
Houve longas e nocturnas reuniões para se saber — nas duas «sedes» 
— se se devia aceitar o convite. Bastante tentado por ele (mais coisa do 
meu lado curioso e vaidoso do que do meu lado militante e resistente) 
insisti quanto pude em resposta afirmativa. Foi essa a conclusão final, 
ficando assente que eu representasse os ditos «católicos progressistas» e um 
outro os «progressistas» que não eram católicos. Um «terceiro homem» 
(igualmente ligado aos dois grupos) nos aconselharia e guiaria, sem estar 
presente. Só nós três saberiamos.
Foi-nos dito que o local da reunião era França e o mês Setembro. Em 
Paris meteram-me num autocarro onde encontrei os meus companheiros 
de viagem, representantes de outras «tendências». Há segredos que tanto 
se querem calar que para sempre ficam. Nunca mais fui capaz de me 
lembrar do nome da aldeia ou vila, algures na Borgonha, onde fomos 
levados para uma estada de cinco dias e cinco noites, numa velha casa 
isolada, onde nos esperava a representação «exterior» do PCP ao mais alto 
nível.
Logo na primeira noite nos demos conta — eu e o «progressista» não 
católico — que, do «interior», éramos os únicos que nào pertencíamos ao 
PC. Todos os outros estavam a representar inexistentes independências. 
Mas do «exterior» havia vários convidados que o não eram e há muito 147
haviam perdido a radiosa virgindade com que, ali, apenas nós dois nos 
apresentámos.
O ambiente toldou-se logo no segundo dia. Um desses não PC do 
■■exterior» quis saber se o Partido já tomara posição quanto à intervenção 
soviética em Praga, que ocorrera dias antes. Soubemos então que, ao 
contrário de quase todos os partidos comunistas de paises ocidentais, o 
português abençoara a invasão e colocara-se, sem reservas, ao lado do 
Grande Partido Irmão. Enorme gelo, ácidasdiscussões cortadas cerce com 
o argumento — que também ouvi pela primeira vez — que estávamos ali 
para falar de Portugal e não da Checoslováquia.
O resto foi-me singularmente penoso. Tudo aquilo me lembrava 
experiências passadas de «retiros» católicos (nem faltava o tempo de 
meditação ou de direcção espiritual) e de hora a hora me dava conta que 
aquela inflexível e dogmática fé me era tão estranha como a da outra Igreja 
que, por essa altura abandonara. Acabei a vilegiatura com um princípio de 
depressão, coisa a que até não sou muito dado. E com medo que julgassem 
que o meu crescente mal-estar vinha do medo das consequências dessa 
reunião, se um dia ecos dela chegassem à Polícia portuguesa. Mas é 
verdade que seriamente me perguntava se aquela semana valia — hipótese 
sempre possível — os aninhos de cadeia a que, conhecida, no mínimo 
daria direito. :
Com estes lúgubres sentimentos voltei a Paris onde devia esperar a 
chegada do «terceiro homem», das raras pessoas que me apetecia abraçar 
e com quem me apetecia desabafar. E, no dia dessa chegada, para fazer 
horas, entrei num cinema da Rue Saint-Séverin, onde passava La GuerreEst 
Finie de Alain Resnais, que a censura tinha proibido em Portugal.
Era com Yves Montand, que fazia o papel de um comunista espanhol 
com muitos problemas de consciência e farto de acreditar nos «amanhãs 
que cantam». Apaixonava-se pela Ingrid Thulin, tinha uma história com a 
Geneviève Bujold (nessa altura novíssima) e era preso no fim, numa cilada, 
quando estava bem perto de se convencer que a Guerra de Espanha estava 
morta e enterrada.
O filme veio a Portugal depois do 25 de Abril, ainda recentemente 
passou na Cinemateca, e hoje nào o julgo uma obra-prima. Mas nessa tarde 
de Setembro, em Paris, entre o retiro na Borgonha e o regresso a Lisboa,148
acertou-me nas partes mais íntimas. Embora seja bom para isso, julgo que 
em toda a minha vida de adulto nunca foi tão abundante a saraivada de 
lágrimas e soluços.
Depois da sessão, andei um bocado pelas ruas para me recompor (até 
chuviscava, em ajuda ao décor) e fui sentar-me no Café de Cluny. Comprei 
o Le Monde que passei pelos olhos ainda encarnadíssimos e ainda cheios 
da cara grave de Montand e das costas nuas de Ingrid Thulin. Fui fazer um 
telefonema. Quando voltei, o Le Monde estava de barriga para baixo, ou 
seja com a última página para cima. A meio dela nas «últimas», em letras 
não muito grandes, li: «Salazar opéré d’urgence à un hemathome cérèbral». 
Sob tal título, a notícia limitava-se a transcrever o comunicado oficial que 
saíra em Lisboa nessa mesma manhã.
Fiz então duas das coisas mais irracionais da minha vida. Comprei um 
segundo exemplar do Le Monde a ver se era igual ao que tinha e voei para 
a casa em que estava, a tentar ouvir em ondas curtas a Emissora Nacional, 
a voz de Lisboa em Paris. Queria mais notícias e parecia-me impossível nào 
as ter.
Depois, fui ao hotel do amigo que esperava e deixei-lhe um recado: 
«Compra o LeMonde e vê a última página.» Umas horas depois ele chegou. 
Fomos jantar e festejámos. Quase me esquecí do passado (reunião, filme) 
para só falarmos do futuro. A certa altura, ele disse-me: «Mesmo que o gajo 
se safe, isto é o princípio do fim.»
Lembrei-me então do enjoo enfartado com que na Borgonha ouvira 
quantos falavam da hipótese da morte de Salazar para breve (essa 
conversa, para mim, tinha barbas de dez anos e o homem já era imortal). 
E lembrei-me de um diálogo do filme de Resnais. Um polícia francês a 
dizer: «avec ces clandestins, on ne sait jamais. On nous dit qu’ils sont 
indésirables, puis ils reviennent ministres.»
No dia seguinte, voltei para Lisboa. Não me aconteceu nada depois, nos 
seis anos em que essa história ainda durou. Mas, para mim, foi mesmo o 
princípio do fim. Uma guerra que começou a acabar. Daí para diante só 
me esperavam estilhaços. Ou, como disse o outro, «foi só fumaça». Mas 
muita gente se aleijou.
OS MEUS FILMES DA VIDA 149
CENAS DE LUTAS DE CLASSESNOS CINEMAS DE LISBOA
Nem sempre as coisas se passaram como nestes cinzentos anos 80. Nem 
sempre qualquer pessoa por quaisquer 325 mil réis (ou mélréis, expressão 
que prefiro, porque associa melhor a doçura à monarquia) passou sem 
distinção de um supermercado a um cinema, com fortes probabilidades de 
não encontrar lá ninguém.
Antigamente, antigamente sim. Por exemplo, chegava-se a casa a 
contar que se tinha ido ao São Luiz. E começava-se a história com 
a referência ao facto de, mesmo ao lado da porta de sahida (ainda 
se escrevia em português nesses tempos), haver um letreiro que dizia: 
15 0 Lotação Esgotada. Normalmente tal aviso não era obstáculo de maior.
Ou a menina da bilheteira nos conhecia e os Primeiros Balcões lá 
se arranjavam; ou não conhecia mas não resistia ao charme do nosso apeli­
do, pronunciado com tom firme e evidente; ou dali mesmo se telefonava 
ao João (ou a alguém de família) e os bilhetes lá vinham, até com pe­
didos de desculpa para a rapariga que era nova e da rapariga por ser 
nova.
Só que nesse dia — continuo a referir-me ao narrador da peripé­
cia — tinha sido mesmo difícil, porque a sala estava mesmo a abarrotar. 
Era então que uma tia velha interrompia, perante tão apocalíptica 
descrição: «Ah sim? E estava lá alguém?» Estava sempre alguém no São Luiz, 
como estava sempre alguém no Tivoli, que também se podia pronunciar 
Tívoli. Noutros cinemas — Éden, Polytheama, Gymnasio ou Condes, cui­
dadosamente hierarquizados por esta ordem — as possibilidades de haver 
lá alguém eram menores, mas ainda decrescentemente consideráveis (no 
Condes, era praticamente impossível, embora ainda teoricamente imagi­
nável).
A partir daí era o Sahará, fora da rota das caravanas: casos do Odéon, 
do Palácio (costumava-se dizer Odéon-Palácio, por a programação ser a 
mesma), do Capitólio e sobretudo — horror dos horrores e abjecção 
suprema — do Olympia. Esse ao menos — honra lhe seja — conservou as 
tradições. Hoje como como ontem infama quem lá entra e deve ser — ex- 
-aequo com os urinóis do Rossio — o local de Lisboa que nos últimos 50 
anos recebeu menos visitantes do sexo feminino. Nesses anos, mesmo, 
nenhuma senhora lhe passava à porta, preferindo — mal por mal — o 
passeio do Odéon. Mas como «il faut que jeunesse se passe» e «os rapazes 
não têm nada a perder» (pelo menos, nessa altura não tinham) abria-se uma 
excepçào para a mocidade masculina. Essa, iniciava-se lá, quase tanto 
como no 100 da rua do Mundo.
Uma semelhante hierarquia — em escala miniatural, como a que separa 
a das Potestades da dos Arcanjos — existia para os cinemas da «reprise», 
com o Chiado-Terrasse no topo e «coisas» como o Promotora, o Animato- 
grapho do Rossio ou o Palatino, no fundo do buraco. E havia mesmo (mas 
esse nem vinha nos jornais) o Salão Ideal, no Loreto, onde, em vez de 
bilhetes, se carimbavam as palmas das mãos dos espectadores com o 151
1 52
número do lugar e se subia para o balcào por uma escada de corda, oferta 
de um velho marujo.
Mas engana-se quem pensar que um ninguém qualquer estava 
impedido de entrar no São Luiz ou no Tivoli. Para eles havia, no antigo 
Theatro D. Amélia, o segundo balcão e a geral e na Sala da Avenida o 
segundo balcào. Os frequentadores de tais alturas entravam por uma porta 
diferente (porta de serviço), tinham um bar boçal à disposição e eram 
impedidos por severos guardas de descer, nos intervalos, as escadas 
nobres para se misturar com os alguénscâ de baixo. Às vezes dava direito 
a furiosas perseguições.
Mesmo assim, com a evolução dos costumes e o aparecimento, devido 
à guerra e às Avenidas Novas, de volframistas e patos-bravos, ninguém de 
alguém podia estar inteiramente tranquilo num Primeiro Balcào ou numa 
Platéia até no Sào Luiz ou no Tivoli. Por isso, conheci alguns mais alguém 
que quando iam sozinhos com a Mulher ao cinema, compravam invaria­
velmente uma Frisa ou um Camarote onde cabiam cinco pessoas. Ao 
menos aí, podiam estar inteiramente seguros que nenhuma alheia perna 
procuraria aflorar noescuro a carne da sua carne. Idênticos cuidados havia 
com as filhas, já que se murmuravam histórias terríficas de virgindades 
destroçadas, entre o 12 e o 14 da fila H da Platéia do Tivoli, lugar para 
sempre olhado com néscia mescla de horror e atracçào.
Nos anos 50, esta paz começou a ser perturbada. Construíram-se em 
Lisboa três novos cinemas: O S. Jorge primeiro (assim mesmo, já com o Sào 
reduzido a S.), o Monumental e o Império. Demoraram algum tempo a 
restabelecer-se hierarquias. Após violentas polêmicas, em década propícia 
a mésalliances, o S. Jorge subiu ao topo da escala, sobretudo entre os 
alguém teenagers. Aos sábados, a «segunda matinée» — assinalável ino­
vação com que o S. Jorge perturbou os fins de tarde lisboetas e, até mesmo, 
a hora de jantar — passou a ser o único ponto de encontro de jupeslongues 
e fatos Príncipe de Gales capaz de fazer concorrência à Missa da uma, nos 
Mártires ou na Estrela.
Mas, apesar de tudo, já nào era a mesma coisa. Nenhum destes cinemas 
tinha camarotes ou frisas e inventavam-se uns novos nomes, assim a modos 
de quem muda a PIDE para DGS: o Balcão de Primeira, passava-se a 
chamar «Balcão de Luxo» (muito mau gosto), o balcão de 2a. balcão superior 
(mesmo com letra pequena, a palavra era mal escolhida). E havia no S. 
Jorge um homenzinho a tocar órgão eléctrico, roubando a possibilidade de 
ver aquele fabuloso anúncio em que o Zézinho, de dedo na cabeça, 
«pensava e voltava a pensar / por que é que não casava com a Maria 
Guiomar». Os perigos da situação só talvez tenham sido percebidos por 
alguns quando o São Luiz se casou com um caixote chamado Alvalade, em 
tributo a sítio que a decência me impede aqui de nomear. Já tinha sido visto 
muito, até a filha de um ministro a clamar por um castelo melhor. Mas tanto 
ainda nào se usara.
O fim veio nos anos 60: cinemas só com uma espécie de lugares («todos 
platéia») e preço único. Não tinham saídas, quanto mais sahidas. E, em vez 
de nomes santificados, greco-romanos, ou — vá lá — românticos, salas 
com nome de número (444, 222, ou coisas quejandas) ou com nome de 
capitais europeias (Roma, Londres, etc.). Nào faltou muito para se chegar 
onde se chegou hoje e os cinemas serem como os andares, ou se pára no 
1, ou no 4, com os lugares onde os há e não onde os escolhemos. O São 
Luiz (transformou-se em S. Luís) desapareceu: o Tivoli é uma montra de 
néons; o Éden e o Politeama tornaram-se infrequentáveis. E marcam-se 
encontros para Las Vegas, Hollywood ou coisas assim. O próprio jornal 
onde escrevo assenta sobre um wagon que dá pelo nome de Cinebolso. 
Calculo que nem o director se atreve a passar por lá antes de chegar à 
redacção.
Já não há ninguém que seja capaz de distinguir a Ingrid Bergman do 
São Luiz da Ingrid Bergman do Polytheama, a Jennifer Jones do Tivoli da 
do Éden, a Rita Hayworth do Condes da do Império. Quem sabe hoje — 
desaparecida a última fila do balcão do Tivoli — o que é um plongéé! Ou, 
desaparecido o camarote 37 da terceira ordem do Gymnasio, o que é um 
enquadramento em oblíqua? Mesmo os espectadores da Ia. fila (agora, a 
quilométricas distâncias de minúsculos écrans) ignoram em absoluto o que 
seja um autêntico contre-plongée. Orson Welles e William Wyler, para que 
é que serviram?
Quem diga que isto não tem importância alguma é porque de luta de 
classes e de cinema não percebe mesmo nada de nada de nada. 1
154 JOÃO BÉNARD DA COSTA
AS ÁRIAS DO CATÁLOGO
Hoje, dia 31 de Julho de 1988, dia dos anos da Madalena, acabei de 
rever as terceiras e últimas provas de um dicionário sobre gente que 
entrou nos 180 filmes de um Ciclo de Cinema designado O Musical. Que 
começou no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian a 20 de 
Dezembro de 1985 e acabou na Cinemateca Portuguesa a 27 de Março de 
1986.
Nessa tal noite de 20 de Dezembro de 1985, noite do Singin ’in theRain 
(evidentemente) devia ter começado a vender-se o catálogo referente ao 
Ciclo, obra colectiva de João Paes, Luís de Pina, M. S. Fonseca, Miguel 
Esteves Cardoso e de quem está a poer esta crônica. Estava ainda previsto 
José Ribeiro da Fonte, mas esse, pelo meio, despediu-se à francesa.
Dois anos, sete meses e onze dias depois, já saíram dois volumes (796 
pp. de grande formato, vindas à estampa há coisa de um ano), e faltam 
outros dois (996 pp. para mais e não para menos) que nào juro vos ponha 
no sapatinho no vosso próximo Natal. Até porque o volume IV é com o 
director deste jornal, que ainda só cumpriu 75 por cento do que prometeu. 
E aqui, publicamente, o comprometo.
Se há um ano, quando saíram os primeiros volumes, me chamaram 
(ou me mandaram chamar) indesculpável diletante, que irei ouvir em 1989? 
Ora o que aconteceu — e sou só eu o culpado de tamanho e estarrece­
dor atraso — é que me perdi a dicionarizar. Do Verão de 1985 ao Verão 
de 1988 (quando tudo começou e tudo acabou) tenho feito muitas 
coisas, como alguns saberão. Mas 75 por cento do meu tempo útil e 
das minhas noites brancas têm sido passados a dicionarizar 849 criaturas 
musicais (ou que cruzaram «o musical») a começar em Abbot, George 
e a acabar em Zwerin, Charlotte. Não cheguei às «mille e tre» que, a acre­
ditar em Leoporello, D. Giovanni «comeu» em Espanha, mas ultrapassei 
as «seicento e quaranta» que, segundo a mesma fonte, lhe couberam em 1 
Itália. E, no meu catálogo, como no dele, há de tudo: brunas e brunos, 
biancas e biancos, grassottas e grassottos, magrottas e magrottos, «grandi 
maestose» e «piccine ognor vezzosi». De diferente — para além de uma 
omnissexualidade a que a etérea matéria me obrigava — apenas a 
preferência etária nas paixões. Dicionarizei muito poucos ou muito 
poucas «giovine principianti». No gênero, não foram, nem são, -ma passion 
predominante».
Mas «giovin principiante», começou esta minha paixão pelos di­
cionários. Muito antes de os começar a fazer, desfiz variadíssimos (sempre 
fui um incorrigível destruidor de livros) nessa paixão prematura de os 
desflorar. O primeiro era uma versão da Lello do Petit Larrousse que dava 
bom dinheiro para reaver (destruí quantos exemplares conhecidos havia 
em minha casa e nas casas da família).
Se a primeira parte era dedicada a «nomes comuns» (e não me 
atraía muito), a segunda parte, dedicada a gente com nome próprio, 
foi, ainda antes da Condessa de Ségur, a mais obsessiva das minhas 
leituras.
Livro no chão, deitado no chão, de barriga para baixo, descobri toda 
a gente que por lá havia a descobrir, desde Abd Al Mumin, primeiro califa 
almôada, a Ulrich Zwingli que liturgizou a língua alemã e foi morto na 
batalha de Kappel, em 1531. Lia em voz alta e aprendi muito. Por exemplo: 
chegado a Cherubini — dez anos antes da Callas —, eu lia Xerubini. Os 
adultos ouviam-se, riam-se e corrigiam-me a pronúncia. Duas páginas 
adiante (o dicionário era bem mais sucinto do que os meus) vinha Chopin. 
Obediente aos mestres, eu lia Kópin. Mais risos e mais recta-pronúncia. 
Assim descobri que nestas coisas de kultura não há regras. Antes de abrir 
a boca, é melhor perguntar. Tudo são excepções.
Mas o que era esse livrito comparado com os seis enormes volumes 
do Larrousse du XXême Siècle que lá em casa também havia e só podia 
esprei- tar em alheias mãos, já que as minhas toda a minha vida me foram 
nefastas? Mais do que as calças compridas, a minha passagem ao estado 
adulto foi marcada pelo dia em que me deixaram pegar neles. Felizmente 
— nesses tempos — ainda a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira ia nos 
15 6 princípios. Estão a ver o que me tinha acontecido se tivesse dedicado tanta 
atenção ao terceiro subsecretário das Obras Públicas e Comunicações do 
Estado Novo, como a que então dedicava a Fra Bartolomeo ou a Anatole 
France?
A pouco e pouco especializei-me. Ah, aquele Dictionnaire universelde 
la peinture, com um volume só para A-CARL! E os escritores, músicos, 
futebolistas, por aí fora. Até que chegou o cinema e, um dia, o ns. 54 dos 
Cabiersdu Cinéma, publicado no Natal de 1955. Aos 20 anos, copiei-o todo 
à mão, para,depois, poder completar e acrescentar. Depois da tal 
enciclopédia Lello da minha infância e dos Números e Nomes do Futebol 
Português de Ricardo Ornelas, foi o livro que maior prazer me deu, mais 
horas me acendeu.
Estava então bem longe de sonhar que havia de vir o dia em que ia 
passar de passivo a activo. Mas veio. Foi em 1977, num catálogo sobre 
Cinema Americano dos Anos 30, organizado pela Gulbenkian. Como 
qualquer masoquista perante um par de atacadores, fui convenientemente 
tímido e prudente. Hoje, quando olho para esse dicionário (apenas 38 
páginas, para dezenas de celebridades), córo de vergonha. Mas no comer 
e no dicionarizar tudo está em começar. Fui sendo (e deixaram-me sê-lo) 
cada vez mais afoito e cada vez mais prolixo. Cada vez mais subjectivo, 
também. Entenderam-me alguns (raríssimos) provavelmente com a mesma 
tara. Daqui, um abraço muito especial para João Miguel Fernandes Jorge 
que, na CapitaKem tempos) e no primeiro número de O Independente (há 
pouco) escreveu as coisas mais bonitas e que mais gostei de ouvir. Muitos 
outros, pelo contrário, irritaram-se progressivamente. Estava a informar ou 
a confessar-me? Só não tinham toda a razão, porque qualquer confissão 
(mesmo as mais anônimas, às 6 da tarde, no vazio da igreja do Loreto a um 
padre italiano) começa — quando não acaba — por uma série de 
informações: o quê, quem, como, quando, quantas vezes. No fundo, a 
perplexidade é semelhante à daquela história — que se conta em francês 
— quando, à tal pergunta sobre o número de vezes, o confessado 
respondeu sobriamente: «Mon Père, je suis ici pour m’humillier et pas pour 
me vanter.»
Esta crônica também é de humilhação e de vaidade. Humilhação, 
porque — retomando o fio à meada — de delírio em delírio acabei nisto: 157
três anos de vida em actos solitários com Alice Faye e Judy Garland, Esther 
Williams e Cyd Charisse, Betty Grable e Vera-Ellen, Don Ameche e Mickey 
Rooney, Van Johnson e Gene Kelly, Cesar Romero e Donald O’Connor, e 
um etcetera maior do que oito centos, ocupando cerca de oitocentas 
páginas de um calhamaço enorme, a sair quando já ninguém se lembrar 
do pretexto dele.
Vaidade, porque nessas oitocentas páginas ficará — julgo — muito do 
melhor do que foi o tal meu filme da vida. Um filme «ali technicolor», com 
muita música de fundo e muitos «production number».
Agora que chegou a girândola final, olho para todos esses — vivos ou 
mortos do cinema, vivos ou mortos da vida, mas todos vivos na minha vida 
de filmes —■ e sinto-me bem, sinto-me contente. Contente comigo? Não só. 
Contente de mim.
158 JOÀO BÉNARD DA COSTA
HISTÓRIAS DA CLANDESTINIDADE
Nos últimos dias, os jornais têm noticiado a polêmica que já para aí vai 
acerca de TheLast Temptation ofChrist, o último filme de Martin Scorsese. 
Um tal Bill Bright, milionário puritano da Califórnia, já ofereceu 10 milhões 
de dólares para comprar todo o material do filme (negativo e cópias) e fazer 
com ele «uma fogueira purificadora». Franco Zeffirelli (olha quem!) ameaça 
retirar o seu The Young Toscanini do próximo Festival de Veneza se esse 
produto da escória cultural judia de Los Angeles se mantiver no certame. 
Ou muito me engano, ou a procissão vai no adro. E todos sabemos, de cor 
e salteado, os argumentos que humilhados e ofendidos dos dois campos 
vão esgrimir entre si. Só espero — Je Vous Salue, Marie— que desta vez 
me poupem. Para essas santas guerras, não tenho mesmo mais paciência 
nenhuma.
De resto, vão-se extinguindo e parece que, hoje, só o cinema e a 
televisão as deflagram. Depois da Lolita de Nabokov (e já lá vão 30 anos) 
nào me lembro, no chamado mundo livre, de mais nenhum romance para 
que se pedissem labaredas bentas. Depois do retrato de Estaline por 
Picasso (e já lào vão 35 anos) não me recordo de uivos e fúrias a reclamar 
incinerações de quadros. O Indexda Santa Madre Igreja julgo que acabou 
com o Vaticano II. As obras completas de Sade andam em livro de bolso. 
As de Henry Miller também. Só o cinema nos continua a dar destas festas, 
normalmente abrilhantadas pela Igreja de Roma ou pelas Igrejas Evange­
listas.
Talvez o «papa» doutra «igreja» (a surrealista), se fosse vivo, gostasse. 
Pelo menos Bunuel contava que, nos anos 60, Breton se lhe queixava 
amargamente que «hoje em dia já ninguém se escandaliza com nada.» 
Gostar, gostam certamente os sacerdotes de todos os marxismos-leninis- 
mos que, nestas alturas, se sentem menos sós no zelo de que não 
abrandaram nem abrandam. Os profetas foram sempre gente com razoável 159
propensão para a ira. Há muito que estabeleceram que Deus e deuses 
podiam e deviam cultivar esse pecado, incluído noutro rol entre o dos 
mortais.
Mas é impossível que uns e outros não saibam que a História nào 
conserva memória de uma só cruzada destas que não tenha acabado como 
as outras acabaram: em desastre ou em ridículo. Por outro lado, é 
impossível também que não saibam que nenhum filme, nenhum livro, 
nenhuma peça conseguiu jamais mudar definitivamente coisa nenhuma. 
Walter Jens, em artigo publicado há anos (Setembro de 1976), na revista 
Colóquio-Letras, tinha toda a razão quando escrevia, a propósito da poesia, 
estas linhas que a qualquer arte se aplicam: "Pobre poesia! É capaz de 
incentivar modas e de ter um efeito semelhante à droga; é capaz de obrigar 
jovens a envergar um fraque azul e a suicidar-se; é capaz de levar povos 
inteiros a entusiasmarem-se, ou pela Polônia, com os jovens alemães, ou 
pela Grécia, com Byron: mas fazer com que evite uma guerra ou que uma 
lei seja decretada — disso não é capaz. Diga-se o que se disser, o que 
parece certo é que ela nào é uma força política.»
Mas persiste — irracional — o medo que o seja. Os bispos que já 
brandem o báculo contra o filme de Scorsese (que, evidentemente, não 
viram, o que também faz parte destas histórias) não acreditam, não podem 
acreditar, que por mais blasfemo que o filme seja, ponha ou possa pôr em 
causa os fundamentos ou mesmo a prática do cristianismo. Mas defendem- 
-se, irracionalmente, como se acreditassem que pode pôr. Esse é um dos 
paradoxos das atitudes censórias, que nào começaram ontem e não vão 
acabar amanhã.
Walter Jens, que citei, ocupa-se com particular lucidez desta questão. 
E começa por contar um caso, por cuja veracidade jura, ocorrido, 
precisamente a propósito de um filme, em 1926, na América. O filme era 
o celebérrimo Bronenósets Potiomkine, vulgo Couraçado Potemkine de 
S.M. Eisenstein (1925). Um antigo cossaco, emigrado na América, viu o 
filme e, após a projecçào, foi entregar-se às autoridades, exigindo a própria 
condenação. Descobrira, durante a visão, que «era um criminoso», pois o 
seu regimento participara no massacre de Odessa, que inspirou uma das 
mais famosas sequências da obra. E escreve Jens: «A alternância entre os160
soldados que avançavam e abriam fogo e a multidão indefesa, a dramática 
confrontação da razão e injustiça, aqui as botas da soldadesca, ali a velha 
professora com as suas lunetas, a mãe agonizante, o carro de bebé a rolar 
e o terror nos olhos da criança: esta sequência a preto-e-branco abrira os 
olhos àquele homem. Agora, de repente, ele sabia o que, na realidade, se 
tinha passado em Odessa: nesse momento em que — esclarecido por uma 
obra de arte em cuja montagem a realidade era retrata-da — subitamente 
começara a compreender a dupla perspectiva de um acontecimento que 
há muito caíra no olvido.» (Os sucessos narrados no filme, reportavam-se 
a 1905.)
É possível que a história seja verídica e é plausível (todos nós o sabemos 
em maior ou menor grau) que uma obra de arte possa contribuir para um 
semelhante despertar. Mas não foi com receio que agentes da Polícia se 
fossem entregar em tribunais ou mudassem de campo que, em Portugal por 161 
exemplo, O Couraçado Potemkine esteve proibido 48 anos. O medo 
era que esse, ou outros filmes, subvertessem a ordem estabelecida. Ora 
isso, como também nota Jens, jamais aconteceu. «Por mais explosiva que 
possa ser [...] a força despoletadoradesse manifesto proletário que é o 
Potemkine [...] aqui e agora, o filme não mudou coisa nenhuma.» Nem 
sequer para os que o encomendaram e aplaudiram mudou: comandaram 
eles massacres bem piores do que o das escadarias de Odessa. Quatro anos 
antes da estreia do filme, Trotsky ordenara mais sangrenta chacina em 
Kronstadt.
Mesmo para nós — falo de quantos viveram o Potemkine como 
fantasma e paradigma de uma revolução sonhada e adiada anos a 
fio —, o filme foi sempre mais acto de clandestinidade do que acto de 
subversão. E, hoje, é muito mais memória da primeira do que da segunda. 
Quem não recorda essas sessões (anos 60, 70) em casa de amigos que 
tinham trazido uma cópia do filme de Paris ou de Londres, em que um 
projector alugado de 16 ou Super 8 mm acendia num lençol a fingir 
de écran as imagens proibidas? Saíamos dessas noites sentindo-nos mais 
transgressores, nào mais resistentes. Simbolicamente, um dos dois grandes 
anacronismos que presidiu à tarde de 1 de Maio de 1974 foi o cartaz 
anunciando o filme, no Império, ao cimo da Alameda. O Couraçado 
ancorava em Lisboa. O outro (anacronismo) era essa multidão imensa 
trauteando A Internacional, cuja versão portuguesa por completo des­
conhecia.
Mas há nesse filme uma sequência — igualmente celebérrima — que 
pode esclarecer muitos destes efeitos de ampliação proibidora. É a do 
início da revolta dos marinheiros, quando se recusam a comer a carne 
podre que os oficiais lhes destinavam. Manoel de Oliveira explicou-ma um 
dia e fiquei sempre a pensar nisso. O plano mais impressionante (mais 
forte) da citada sequência, mostra a panela da carne, coberta de vermes. 
É um plano «irrealista», pois que, por piores que fossem os oficiais, não 
quereríam certamente (até para ter quem continuasse a conduzir o 
Couraçado) envenenar a tripulação toda. Esse «irrealismo» é sublinhado por 
Eisenstein em dois planos subjectivos. Um é o do marinheiro, que vê os 
vermes, outro o do oficial que os não vê. De facto, não estão lá bichos162
nenhuns e a carne não estava podre. Mas, defacto, a comida dos oficias 
era diferente da dos marujos. E contra essa diferença que eles se revoltam.
Foi sempre contra diferenças que nos revoltámos. Por exemplo, contra 
a de não poder ver o que outros viam. Ao fim e ao cabo, parece que todo 
o barulho à roda do filme de Scorsese vem de uma sequência sobre uma 
visão. O que é emblematicamente sintomático do cerne desta questão. 
Quem se recusa a vê-la é porque prefere imaginá-la. Na clandestinidade 
e na memória dela. Vivi o suficiente de uma e noutra, para que fale em 
conhecimento de causa. Tenho outras histórias para contar. Ficarão para 
a próxima.
OS MEUS FILMES DA VIDA 163
NOVAS HISTÓRIAS DA CLANDESTINIDADE
Há quinze dias saiu neste cartaz «Histórias da Clandestinidade». Acabei 
a prometer que continuavam brevemente nesta sala. Estreiam-se hoje. E tào 
cedo nào terão continuação. Venham elas.
Como alguns se recordarão, estava-se no Potemkine. Quando eu 
comecei a ver cinema com a ajuda dos críticos (um dia destes também 
falarei disso) descobri simultaneamente os nomes de Eisenstein e Po­
temkine. Ao princípio, ainda confundi Eisenstein com Einstein e, tais não 
eram os elogios, cheguei a convencer-me de que o autor da teoria da re­
latividade entretinha os ócios em filmes tão geniais quanto ela. Depois (os 
meus mestres eram gente de esquerda e a censura complicava-lhes a peda­
gogia) lá descobri que o homem era russo e, por isso, lhe não podia ver 
164 os filmes.
Nesse tempo, todos eram felizes e ninguém estava morto (nem sequer 
Estaline). Por isso, Eisenstein era proclamado «une voce» o maior e O Cou­
raçados. obra-prima das obras-primas. Se sabiam (duvido que soubessem) 
nào me diziam que a segunda parte do Ivan já tinha ido parar às urtigas 
e que a terceira ficara no tinteiro. Para eles — e para mim, caloiro em todas 
essas andanças — tudo estava como em 1925. Fiquei a sonhar com o dia 
do meu encontro com o Potemkine. Anos depois, já na «católica», o Nuno 
Portas foi o primeiro ser de carne e osso conhecido que já tinha visto o 
Potemkine, numa ida a Paris. Fiz-lhe mil perguntas e quis ouvir mil vezes 
as impressões dele. Era mesmo? Era, era.
Quando chegou a minha altura de chegar à cidade que, neste particular 
caso, era mesmo luz, corri para a Cinemateca de Langlois para matar a sede 
de anos. O filme passava às 8, mas com medo de nào ter bilhetes, sentei- 
-me na sala às 2 e vi como aperitivo (programa dessa tarde de Agosto de 
1958) Westfront 1918Í.G. W. Pabst, 1930), Vampyr(Csr\ Th. Dreyer, 1932) 
e On The Bowery (Lionel Rogosin, 1956). Às 10 da noite (obviamente saí, 
sem ficar para Scbichinin no Samurai / Os Sete Samurais de Akira Kuro- 
sawa, 1954) já fazia parte dos eleitos que tinham visto o Potemkine. E só 
ampliava tudo o que lera e ouvira. No regresso, Paris fora tanto a Vztóna 
de Samotrácia, a Gioconda, a Saint-Chapelle, ou Notre-Dame, como fora 
o Potemkine.
Essa tarde, essa primeira viagem, foram apenas o prelúdio do que quase 
invariavelmente se passou de 1958 a 1974, de cada vez que fui a Paris. 
Como artes e ofícios me levaram lá com razoável regularidade, posso 
calendarizar esses dezasseis anos de vida a filmes proibidos, filmes de 
Paris. 1959, EtDieu Créa laFemmede Vadim com a B.B. e «ce n'était pas 
sale puisque c’était beau»; 1960, LesAmantsde Louis Malle e ainda era tào 
ingênuo que nào percebi o que é que o Jean-Mare Bory estava a fazer a 
Jeanne Moureau, na cama solarenga, ao som de Brahms; 19è2,JulesetJim 
de Truffaut e se Jules «était ému comme par um symbole qu’il ne 
comprenait pas», a nossa emoçào (o plural nào é majestático mas nào têm 
nada a ver com isso) vinha de o compreendermos bem de mais; 1964, 
Tystnaden (O Silêncio) de Ingmar Bergman e, nesse caso, até a censura 
francesa tinha dado tesouradas.
E, por aí fora, até casos mais recentes, que ainda cá chegaram quen- 1 65
tinhos, no rescaldo do 25 de Abril; Ultimo TangoaParigide. Bertolucci, em 
73, La GrandBouffe de Marco Ferreri, já em 74. Ou os primeiros filmes por­
nográficos, esses não em Paris, mas em Cannes, 1970. Ou — clandesti- 
nidades diversas e unas — quase todos os “últimos» Godard, Pasolini. 
Straub, Rivette, Skolimowski. Que, por esses anos, havia muitos últimos e 
muitos primeiros e progressivamente se acentuava a «décalage» entre os 
limites do visível na Europa e os do invisível em Portugal.
Aos mais distraídos — ou mais esquecidos — lembro que as primeiras 
maminhas que por cá se viram foram as da Romy Schneider em La Piscine 
de Jacques Deray. A ousadia (permitida pela primavera marcelista) deu-se 
em 1969, pouco antes de outra Schneider (Maria) dançar outro gênero de 
tangos com Marlon Brando.
Tão importante como essas visões clandestinas, eram os rituais que as 
cercavam. O dia de Agosto de 58 e do Potemkine «ce n’était qu’un début». 
Durante 16 anos, eu — e alguns outros com a mesma saúde — talvez tivés­
semos direito ao «guiness» do máximo número de filmes por dia. Começava­
mos à hora do almoço e só paravámos noite dentro. O pouquíssimo tempo 
disponível era dedicado a correrías no «métro», com inenarráveis sofrimen­
tos nos intermináveis túneis de Châtelet ou Montparnasse — Bienvenue, 
estações fatídicas para quem tivesse horários tão apertados, entre os 
cinemas do 8ème e os do 5ème (nesses tempos, ainda não havia por lá 
tapetes rolantes).
Outro ritual era a compra imediata, à chegada a Orly, e ainda antes 
do Nouvel Obs, da Semaine de Paris. Nunca tão poucos devem ter folhea­
do tanto uma revista. E naquelas páginas onde vinham «todos os filmes da 
semana» começávamos a pôr cruzinhas, dividindo-os pelos «films 
nouveaux» («esse não, que depois vai a Portugal»), os «films en exclusi- 
vité», as «reprises» e — fecho da abóbada — os «films de la Cinémathè- 
que». Voltávamos exaustos e felizes. À chegada, a primeira frase começava 
invariavelmente com a primeira pessoa do singular do pretérito perfeito 
do verbo ver. Invariavelmente, a primeira pergunta que me faziam eraa tal «é mesmo?». «Se é...». Todos eram mesmo, mesmo os que o não 
eram.
Mas havia graus e hierarquias, dependendo tanto da «politique des 
7 6 6 auteurs» dos Cahiers, como do grau de proibição e transgressão.
Muito especial foi o caso da Viridiana de Bunuel, em 1962. O filme 
estreara-se no Festival de Cannes de 1961, em representação da Espanha 
e o mundo veio abaixo. O director-geral da cinematografia espanhola, 
que convencera Franco a deixar rodar «aquilo», após vinte e cinco anos 
de exílio de Bunuel, foi corrido do lugar num abrir e fechar de olhos. 
O Osseruatore Romano chamou-lhe «obra sacrílega e blasfema» e os 
tribunais italianos condenaram o cineasta, à revelia, a um ano de ca­
deia. Franco, que, segundo Bunuel, viu o filme duas vezes («a acreditar 
no que me contaram e com tudo o que já tinha visto, o filme pareceu-lhe 
bastante inocente») moveu céus e terras para que Viridiana não fosse 
visto em parte alguma. Os céus foram-lhe bastante favoráveis (todos 
os episcopados avisaram fiéis de que não podiam ver o filme sem incorrer 
em pecado mortal), as terras menos. Após um ano de hesitações, de diz- 
-que-diz-que, de pressões franquistas e eclesiais, Viridiana estreou em 
Paris.
Eu e outros católicos ainda hesitámos à porta do cinema, junto do cartaz 
que falava do «realizador mais cruel do mundo» («Tamanha estupidez en- 
tristeceu-me muito», escreveu Bunuel nas memórias). E ainda me lembro 
de terríveis discussões, mesmo entre «espíritos livres».
Bunuel chamou à história de Viridiana (nome de santa, que vem do 
latim viridium-, sítio verde) «um sonho de loucura e finalmente o regresso 
à razão».
Às vezes, penso que é uma boa imagem para todos esses anos e para 
o que agora acontece. Outras vezes, estou menos certo. Em 1962, nunca 
acreditaria se uma fada (boa ou má) me viesse dizer que vinte anos depois 
o filme passaria tranquilamente em Lisboa e tranquilamente eu o progra­
maria para o Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. E melhor esta 
paz, ou foram melhores tais guerras? Como para a heroína de Bunuel, fica 
sempre em nós a saudade de alguma clandestinidade de ou de alguma 
perversidade. Se não ficasse, não conseguirira escrever esta crônica, nem 
calendarizar a minha vida a nomes de filmes e em nome de filmes.
OS MEUS FILMES DA VIDA 167
OS DOIS FOSCARI
Li há pouco tempo que um partido político italiano — ou tão-só um 
deputado, já não me lembro bem — propôs uma solução para salvar 
Veneza dos turistas. Quem a quisesse visitar, tinha antes que responder a 
um inquérito, concebido de modo a não deixar dúvidas sobre a relação 
preexistente entre o candidato à visitação e a cidade dos doges. Veneza 
deixaria de ser para quem pode ou para quem quer, para passar a ser para 
quem a merece. A mesma notícia me informava que o projecto fora 
chumbado. Parece que o acharam pouco democrático. E em alturas dessas 
que duvido das virtudes da democracia.
Se a lei tivesse ido avante, coisas como a Bienal de Veneza ou o Festival 
de Cinema teriam, muito justamente, acabado. Sempre me pareceram 
excêntricas em Veneza, mesmo quando situadas no Lido, essa bizarra 
contrapartida romântica para uma cidade que os românticos nunca 
entenderam, e que de romântico nada tem. Veneza exige a concentração 
do olhar com que a pintaram tantos, de Carpaccio a Canaletto. Nào é 
compatível com as grandes dispersões. O cinema, etimologicamente, está 
nas suas ruas e canais. Não pode habitar, impunemente, o outro lado da 
laguna. É um contracampo absurdo. Só se pode vê-lo tranquilamente, se 
se esquecer Veneza ou se Veneza for indiferente. Num caso como noutro, 
não há cinefilia, pois se n£o pode ter uma paixão e não ter a outra.
O Festival de Veneza é, pois, uma variação perversa do suplício de 
Tântalo. Quanto melhor for e mais apetecível o programa, mais infernal se 
torna, pois mais rouba da única razão possível para se estar em Veneza. 
Tentei soluções ecléticas — gênero três dias sem sair do Lido, três dias sem 
lá pôr os pés — e foi ainda pior. Andava por Veneza a pensar em filmes 
e andava por filmes a pensar em Veneza. O meu campo de consciência, 
muito apertado, não dá para aventuras dessas. Chego ao fim sem saber por 
onde comecei. 169
A primeira experência — como normalmente sucede em casos análo­
gos — foi a mais traumatizante. Não conhecia Veneza, nunca tinha ido a 
um "grande festival». Vim de lá com a sensação de não ter perdido nem uma 
nem outra virgindade. E a achar-me bastante promíscuo.
Propuseram-me essa viagem em 1962. Havia, em França, uma fede­
ração chamada «des loisirs et culture cinématographique» (vulgo FLECC) 
que editava uma revista de nome Telé-Ciné. Publicava úteis e didácticas 
fichas sobre filmes, que nos serviram de muito nos tempos do CCC, iniciais 
do Centro Cultural de Cinema, dos universitários cristãos que nessa altura 
éramos. Agente deles em Portugal, era o Padre José Vieira Marques, que 
ainda não pensava na Figueira da Foz. Graças a ele e graças à FLECC, fui 
a uns encontros que a última organizava nos arredores de Paris e voltei de 
qualquer deles singularmente pervertido. Graças a ele e graças à FLECC, 
fui baptizado nas águas dos canais e dos festivais, pois por lá decorria uma 
qualquer assembléia em que era supostamente importante que estivesse 
um português. Tiradas as sortes, coube-me a mim.
Para poupar todos os tostões (eram poucos) fui e vim de automóvel, 
em excursão estritamente familiar. A primeira humilhação foi fronteiriça. 
Na louca pressa de partir (Itália e Veneza eram, desde a infância, os mais 
desejados dos meus sonhos permitidos) esqueci-me que era necessário 
apresentar em Vilar Formoso uma certidão do dono do carro (emprestado) 
autorizando-nos a levá-lo para o estrangeiro.
Mandar vir esse papel demorava 24 horas, fatais para o meu apertado 
calendário festivaleiro e turístico. Já amaldiçoava a sorte, quando uma irmã 
minha, que ficara a discutir com o funcionário da alfândega, me veio dizer 
que perante os malefícios que podiam advir para a causa do cinema se a 
proibição se mantivesse, o homenzinho começava a hesitar e a admitir, 
portuguesmente, a hipótese de dar um jeito. Mas para o dar, queria 
conversar comigo. Lá fui a correr, numa tarde de fim de Agosto, com um 
calor de rachar, mais suado, mais desfraldado e mais desbraguilhado do 
que o meu costume, já de si largamente permissivo em tais matérias. Do 
que se passou depois, há duas versões. Na minha, naturalmente mais 
benigna, o homem teria dito: «Este é que é o crítico?» Na da minha irmã, 
a pergunta teria sido: «Zsío é que é o crítico?». Mas este ou isto, lá se 1 70
convenceu e lá conseguimos na mesma tarde passar a Fuentes de Onoro. 
Quatro dias a quatro noites de viagem e ao quarto — alta madruga­
da — cheguei a Veneza.
Logo começou o tal suplício de Tântalo. O hotel (reservado pelos 
organizadores) era no Lido. Assim, enquanto a minha irmã e o marido se 
metiam no vaporetto para Veneza, a Ana Maria e eu fomos embarcados 
em mais paquidérmico navio de onde nos levaram para um autocarro (au­
tocarro em Veneza!) até à rua de asfalto e não de Adriático, onde ficava o 
tal hotel.
No dia seguinte, já enredado em programas e marcações, só me 
consegui ver livre do Lido quase no fim da tarde. Quando confidenciei aos 
meus anfitriões a vontade imensa de ver Veneza, lá me satisfizeram 
convidando-me para um copo na Piazza de San Marco. No caminho, ouvi 
pela primeira vez aquele mágico San Zaccaria, abertura de todos os 
Sésamos, antes de pôr o pé na Piazzetta e olhar pela primeira vez o cor- 
-de-rosa do Palácio dos Doges.
San Marco recebeu-me com outra humilhação. Olhei para a lista das 
bebidas e resolvi guiar-me pelo som para um long-drink condizente com 
o cenário, a minha sede e o calor. Capuccino pareceu-me palavra 
suficientemente vibrante. E assim o pedi, contra os wbiskies dos meus 
comensais. Notei-lhes um ar espantado. Acho que até me perguntaram se 
era mesmo isso que eu queria. Reincidi, com a autoridade dos connais- 
seurs. Nada terá sido menoscondizente com o êxtase profundo da primeira 
tarde de San Marco do que a expressão com que fiquei quando vi na minha 
frente uma chávena fumegante de café com leite. Foi o primeiro e o último 
capuccino da minha vida.
Depois, começou a tal partilha de meios-dias e meias-noites. Se trouxe 
de Veneza aquele grande plano de Anna Karina a chorar com a Falconetti 
do Dreyer ( Vivre sa Vie de Godard); Sue Lyon e os chupa-chupas iLolita 
de Kubrick); as muito ricas horas de Agnés Varda (Cléo de5a 7)\ e as cores 
de Rotunno para Pratolini (Comaca Familiare de Zurlini), aprendi mais e 
melhor cinema em San Giorgio degli Schiavoni com os frescos de 
Carpaccio que me ensinaram — tanto quanto Mizoguchi, Lang, Hitchcock 
ou Oliveira — que tudo nesta arte é mise en scène. E entre a Veneza do 1 71
quatrocento e do doge Francesco Foscari (esse do retrato de Bellini) e a 
Veneza do outro Foscari (Giuseppe Volpi di Misurato que para Mussolini 
criou o festival em 1932), fixei-me, sobretudo, nas cores transparentes e 
aquosas do primeiro.
Assim sucedeu. Assim voltou a suceder sempre. Quer quando vi Veneza 
com os espectros de Boticcelli (Boticcelli em Veneza? — esse também foi 
o meu espanto), quer quando — muito recentemente — aí vivi a hora 
pulcra em que Manoel de Oliveira partilhou o Leão de Ouro com Fellini 
e Huston, no ano de Le Soulier de Satin. Mas até nesse festival, sobrepus 
às fugas de Oliveira o alucinante barroquismo de uma igrejinha de que 
ninguém fala (San Pantalon) e do imenso fresco em trompe-l’oeil que lhe 
serve de tecto, pintado por um tal Fiumani, de que não consegui encontrar 
notícia em parte alguma.
Ah, e já me esquecia. Foi a andar pelas ruas, para ver e rever o 
Bartolomeo Colleoni de Verrochio, a mais bela estátua equestre do Mundo, 
que desde miúdo me persegue, que, nas traseiras do Campo San Giovanni 
e Paolo, encontrei a praça com o poço em que Farley Granger pedia a Alida 
Valli, citando Heine, que não pensasse nem em infernos nem em paraísos. 
Sempre me perdi à procura dessa praça. Para ela me guiou o freio nos 
dentes do condottiere e nela me encontrei com a única luz de cinema que 
não desfoca em Veneza: a luz de Murnau, na cidade de Nosferatu.
1 72 JOÀO BÉNARD DA COSTA
PIRATAS EM WATERLOO
Eu era ainda muito novo. Sete ou oito anos, quanto muito. Mas recordo, 
com enorme nitidez, décor e personagens. Décor. uma cozinha velha, 
ainda com fogão de lenha, banca corrida, lava-louças de pedra, castanho 
escuro, castanho-velho. Igual, ou quase igual à da minha casa, pois 
pertencia a uns amigos dos meus pais, que viviam no mesmo prédio, 
debaixo de nós. Personagem: uma criada magra, ainda nova, com muitas 
sardas e cabelos loiros, cor-de-palha. Chamava-se Maria.
Costumava-me contar os filmes que via, ao domingo, tarde de saída 
dela, de 15 em 15 dias, como então era horário. Ela, como todas as criadas, 
saía depois de lavar e arrumar a louça do almoço dos patrões, por volta das 
3 da tarde. Às 7, tinha que estar de volta para fazer o jantar. Tinha quatro 
horas livres, duas vezes por mês. Normalmente, era quando arranjavam 
magalas. Esta, como disse, aproveitava-as para ir ao cinema com o magala 
que já tinha arranjado. À segunda-feira de manhã, eu ia para o pé dela, 
ouvir a fita, enquanto ela lavava a roupa e a punha a secar, pendurada em 
cordas que davam para as traseiras.
Esqueci-me de todos os filmes, menos desse. Chamava-se Waterloo 
Bridge e Mervyn LeRoy realizou-o em 1940. Vivien Leigh e Robert Taylor 
eram os protagonistas. Talvez tenham visto, há pouco tempo, na televisão. 
O meu amigo Elias Savada persiste em dizer que é um dos melhores filmes 
americanos dos forties. Muito, muito mais tarde vi-o e revi-o. Não tenho 
essa opinião, mas simpatizo.
Não vou contá-lo como o vi, crescido. Vou contá-lo como o ouvi nessa 
manhã de 1942 ou 1943. Robert Taylor era um soldado, Vivien Leigh 
uma artista de variedades. Conheciam-se e amavam-se em Londres durante 
a guerra, numa licença dele. Eram felizes e sonhavam com o futuro, 
em longos passeios pela ponte de Waterloo. Mas a licença acabava-se e 
Robert Taylor voltava para a frente. Vivien Leigh chorava muito na 1 73
despedida na ponte, enquanto lhe jurava amor eterno. Casariam quando 
ele voltasse.
Mas a vida ficou-lhe difícil. Desemprego, fome, muitos homens a rondá- 
-la, já que era tão bonita como a Viven Leigh. As cartas dele davam-lhe a 
resistência possível. Até que, um dia, chegou a notícia fatal: Robert Taylor 
morrera em combate. Na ponte, sozinha no nevoeiro, Vivien Leigh tinha 
a grande cena de lágrimas e saudades. «Viúva», a coragem era menor. E 
acabava por arranjar outro namoro, com um homem mais velho e mais rico.
Se a narração até aí fora pormenorizada e coerente, nesse episódio eu 
começava a notar pressas, silêncios e alguns mistérios. Lembro-me de fazer 
perguntas: «Ela gostava do tal homem? — Não, continuava a gostar do 
Robert Taylor. — Era feliz, agora que tinha dinheiro? — Não, era uma 
desgraçada.» A palavra parecia-me pesada. Se era desgraçada e não gostava 
do homem, porque é que namorava com ele? E a narração continuava.
Um belo dia — ou um triste dia — Vivien Leigh estava na estação de 
comboios (não me explicaram a fazer o quê) e de repente dava de caras 
com o Robert Taylor que afinal não tinha morrido. Tudo se resolve, 
pensava eu, lembrando-me de como era verdade a canção da Laurindinha. 
Rapaz novo torna sempre a vir. Mas eis que a voz da narradora se 
embargava e com muitas elipses e sínteses me informava que afinal nada 
acabara bem. Pelo contrário. Na ponte de Waterloo, Vivien Leigh cami­
nhava ao encontro do carro de Robert Taylor, não para lhe cair nos braços, 
mas para se suicidar. Lembro-me do imenso espanto. Então ela gostava do 
Robert Taylor, o Robert Taylor gostava dela, estavam os dois vivos e de boa 
saúde, ele afinal não morrera e quando tinham tudo para ser tão felizes, 
a rapariga matava-se? Aos meus infinitos porquês, a criada devolvia-me um 
silêncio embaraçado. Finalmente, veio uma resposta que eu já conhecia 
mas de que, neste caso, não estava à espera: «São coisas que o menino não 
pode perceber.»
Não consegui obter mais pistas. E vezes sem conta remoí a história, para 
ver se percebia onde estava o que eu não podia perceber. Resolvi tirar o 
caso a limpo e, um dia, pedi à minha mãe para ver a fita. A resposta 
imediata: «Não é filme para a sua idade.» Respondí que já conhecia a história 
toda e denunciei quem ma tinha contado. Nessa tarde, percebi que estavam1 74
a ajustar contas. Mas o que mais me enfureceu foi a resposta da criada: «Ele 
não percebeu nada.» A partir daí, fiquei com uma irresistível tendência para 
associar censura a Waterloo. E a achar que também não me diziam tudo 
quando me contavam a derrota de Napoleão.
Lembrei-me particularmente desse episódio quando, cinco ou seis anos 
mais velho, vi Frenchman ’s Creek de Mitchel Leisen (1944). Era um filme 
de piratas, que em Portugal se chamou A Gaivota Negra. Joan Fontaine, 175
muito bonita e muito decotada (foi a primeira actriz por quem me 
apaixonei), era casada com um homem muito mais velho. Outro (Basil 
Rathbone) queria-lhe fazer imensas maldades. Até que chegava a tal 
gaivota negra e o pirata (o mexicano Arturo de Córdova). O pirata era bom 
e romântico. Acabava por matar Rathbone num duelo. Mas, no fim, em vez 
de casar com Joan Fontaine, fazia-se ao mar e despedia-se à francesa. 
Quando me estarrecí, responderam-me que se ele tivesse ficado, o filme 
seria imoral.
É possível que «histórias reais» me tenham provocado perturbações 
análogas. Mas, se as houve, não as lembro bem. Quase sempre «o que eu 
nào podia perceber», «o que ainda não era para a minha idade» acontecia 
a propósito de filmes, de quadros, de poemas. E como ninguém respondia 
às minhas perguntas, comecei a pensar que esses mundos se organizavam 
segundo outras regras e que nào valia a pena tentar entender o que 
provavelmente fora feito para nào ser entendido.
Sem o saber, os meus educadores estavam-me a daruma lição preciosa 
e que me ficou pela vida fora. A tal ponto que, às vezes, pensando nesses 
filmes — um que ouvi, outro que vi, um a preto e branco, outro a cores 
—, eles se misturam, para meu maior fascínio, num só filme ainda mais 
enigmático e ainda mais misterioso. E acontece-me ver Vivien Leigh atirar- 
se para baixo do pirata, e Joan Fontaine a abrir ainda mais o decote nas 
névoas de Waterloo.
1 76 JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS HESICASTAS
No século VI da nossa era, Justiniano, Imperador de Bizâncio, fundou 
no Monte Sinai o Mosteiro de Santa Catarina. A ábside da igreja principal 
foi decorada com um mosaico que representa a Transfiguração. Para os 
primeiros monges do convento, essa visão só concedida a três Apóstolos 
(Pedro, Tiago e João) e em que Cristo, no Monte Tabor, lhes apareceu ao 
lado de Elias e de Moisés, era a única manifestação da «luz de Deus», depois 
da Aparição deJeová a Moisés, no Monte Sinai. Sintomaticamente, em toda 
a tradição da mística ortodoxa até ao século IV, a «luz dos séculos a vir» (essa 
luz que tornou as vestes de Cristo mais resplandecentes e brancas do que 
qualquer greda de terra na descrição de Marcos, 9 2-8), surgida por 
antecipação no Sinai, manifesta-se plenamente no Tabor. Para atingir o 
êxtase dos Apóstolos em tal momento (êxtase tal que Jesus, quando 
desciam do Monte, lhes proibiu que contassem o que tinham visto fosse 
a quem fosse «até que o Filho do Homem ressuscitasse dos mortos») essa 
luz foi o objecto mais procurado pelos monges do Oriente Cristão.
Entre eles, avulta João, chamado Clímaco, Higómeno de Santa Catarina 
entre 580 e 650. O cognome veio-lhe da sua obra mais célebre: A Escada 
do Paraíso (klimax é o nome grego para escada). Nesse livro, onde se 
reflectem influências muito mais antigas, como as de Macário o Egípcio e 
de Evagro Pôntico, desenvolve-se um complexíssimo sistema de espiritua­
lidade monacal e estabelece-se uma radical diferença entre o hesicasta 
(de hésiquia=solidão) e o cenobita. «O hesicasta é aquele que aspira a 
circunscrever o Incorporai no seu corpo carnal. É o que vive sozinho com 
Deus. O cenobita precisa da ajuda dos irmãos. O hesicasta só pode ser 
auxiliado pelos anjos.» Por isso, «fechai a porta da vossa cela ao vosso 
corpo, a porta da vossa boca à vossas palavras, a porta interior aos espíritos. 
Mais vale um pobre obediente do que um hesicasta distraído. A solidão é 
um culto e um serviço ininterrupto a Deus. Seja a vossa respiração (“sopro”) í 77
tão una como a memória de Jesus. Percebereis, entào, a necessidade da 
solidão.»
A oração de Jesus está, pois, no centro de toda a espiritualidade 
hesicástica. O Nome do Verbo Encarnado confunde-se com as funções 
essenciais à vida: está presente no «coração», está ligado à «respiração». Mas 
João, o Clímaco, como todos os grandes doutores da «oração ininterrupta», 
avisa contra as possíveis confusões entre «a memória de Jesus» e os efeitos 
que a imaginação pode produzir na alma dos monges. Nunca essa 
«memória» deve tomar a forma de «meditação» sobre tal ou tal episódio da 
vida de Cristo, nunca o noviço deve representar uma imagem exterior a si 
próprio. Só assim, «a visão luminosa» pode deixar de ser entendida como 
símbolo ou como consequência da imaginação, para ser rigorosamente 
uma teofania, tão real como a do Monte Tabor, pois que nela se tornará 
presente o próprio Corpo Deificado de Cristo.
A distinção entre a visão desse Corpo Deificado (que só três Apóstolos 
tiveram no Monte Tabor) e a representação do corpo humano (visto por 
todos os que conheceram Cristo e imaginável em qualquer representação 
de Cristo) é capital na patrística ortodoxa como o fora na patrística grega. 
Tinha a vencer dois escolhos consideráveis, de sinal oposto: ou uma tal 
abstracção da Pessoa de Cristo que o mistério da Encarnação acabava por 
ficar elidido (concepção neoplatónica da divindade natural do intelecto, 
que ainda é dominante em Evagro Pôntico) ou uma representação tão 
presente do Seu Corpo Humano que «a luz dos séculos a vir» se podia 
reduzir à imagem mental. E João, o Clímaco, retoma a distinção na própria 
visão do Cristo sobre Si Próprio. O que os Apóstolos viram na Transfigu­
ração jamais Ele o viu. «O Seu próprio Corpo era um limite à Sua Glória. 
Era um Corpo que podia ser tocado por outros corpos, ao contrário do 
Corpo Ressuscitado ou Transfigurado (Noli mi tangerei.- Se alguns prede- 
cessores do autor da Escada do Paraíso (por exemplo, os Messalianos, para 
os quais Deus e Satanás coexistiam no homem como forças iguais) tinham 
tendido (como o maometanismo que, em parte, deles descende) para a 
interdição de qualquer representação da imagem divina, os hesicastas de 
Santa Catarina insistiam nessa representação (precisamente para a separar 
da visão) e incluem, igualmente, como acima disse, as primeiras pinturas 
7 7 g conhecidas tendo como tema a Transfiguração. Mais tarde, Gregório de
Nissa falará das «trevas de Deus» ou da «treva luminosa» e Simeão acentuará 
o realismo intenso de uma mística cristocêntrica, distinguindo a Essência 
Divina (que a teologia apofática ou negativa postulara como radicalmente 
inacessível) e a presença de Cristo nos homens e como homem, acto 
(energeia) livre de Deus.
A esta altura desta árida crônica (uma vez não é costume e só poucos 
saberão como estou a banalizar-me) quem ainda não desistiu perguntará 
a que propósito vem tudo isto e o que é que tudo isto tem que ver com 
os meus filmes da vida. Apetecia-me responder-lhes com um flasb-back 
sobre a velha Faculdade de Letras (a do Convento de Jesus) e sobre o meu 
professor de História da Filosofia Medieval, o dr. Luís Ribeiro Soares que, 
em mim e noutros, incutiu para sempre o gosto por estas questões. Não 
é culpa dele se tendi sempre a vê-las mais sob espécie estética do que 
teológica. Mas se não fosse o que com ele aprendi, também teria ficado com 
uma visão meramente estética do filme de Scorsese, The Last Temptation 
of Christ. 179
180
Porque uma das reflexões mais apaixonantes que se podem fazer em 
torno deste filme é precisamente a do conflito nele figurado entre o texto 
de Kazantzakis que Scorsese adaptou (profundamente imbuído desta 
tradição da mística ortodoxa) e a formação católica do realizador, inscrita 
numa tradição que, há muitos séculos, subalternizou ou esqueceu estas 
questões. O filme de Scorsese surge, assim, por um lado, como uma 
metáfora católica do mistério da dupla natureza de Cristo e, por outro lado, 
como uma aproximação à visão dos hesicastas, retratando Cristo dentro 
dessa antiquíssima tradição.
Duas sequências do filme colocam o problema de modo inédito no 
imaginário ocidental.
A primeira é a sequência da ressureição de Lázaro. Se nela subsiste o 
conhecido paralelismo com a ressurreição de Cristo (como Cristo, Lázaro 
foi ressuscitado ao fim do terceiro dia) a representação, nessa sequência, 
dos corpos de Cristo e de Lázaro, ecoa a distinção capital entre visão e 
imagem. Face às trevas do túmulo, e à abertura da gruta onde jaz Lázaro, 
Cristo é quase reduzido a silhueta, como se se despisse da corporalidade 
e fosse pura luz. Pelo contrário, Lázaro, quando ressuscita, é a imagem do 
Cristo das Dores da tradição ocidental. Mas quando caminha para Cristo, 
uma luz diversa o nimba, como se ele também fosse prefiguraçào da -luz 
dos séculos a vir».
A outra sequência é a da entrega por Cristo do seu Coração, imagem 
fortíssimamente carnal, mas que reconduz a quanto atrás se disse sobre a 
fusão do Verbo Encarnado com as funções essenciais à vida. Em muitas 
outras sequências, nomeadamente na prodigiosa sequência da tentação no 
deserto, o que Scorsese encena é, rigorosamente, a distinção entre visão 
e representação, memória de deus e imagem do mundo. Por isso, é tão 
singularmente coerente que a última tentação seja uma representação 
(.representação conduzida por um anjo, único companheiro do Cristo 
Hesicástico), representação apenas interrompida quando a visão se 
sobrepõe a ela, ou seja, quandoCristo se redescobre, sozinho, na Cruz. Por 
isso, Kazantzakis fala do «tudo está consumado» como de um «grito triunfal». 
«Porque era como se dissesse: tudo começa.» Conseguir essa visão através 
de uma imagem — último plano do filme -— é proclamar a realidade da 
energia e a radical inacessibilidade da essência.
Nada se entende de nada, se não se entender isto.
MÁS COMPANHIAS
Houve, em tempos, uma pia publicação chamada A Imeldista. Se não 
me engano dirigia-se privilegiadamente, às «criadas de servir», magnífica 
designação que, durante séculos, antecedeu o eufemismo «empregadas 
domésticas».
Recordo-me particularmente bem de um número que continha dois 
artigos aterrorizadores. Num deles, narrava-se a história da jovem Inês. 
Filha embora de pais tementes a Deus e obedientes à Igreja, a criança, ainda 
no berço, começou a manifestar extraordinárias disposições para o 
pecado. Com os anos — e foram seis — essas disposições atingiram 
proporções alarmantes. O artigo não especificava (a revista, aliás, não tinha 
carácter especializado) que gênero de pecados mais praticava Inês. Mas, 
aos seis anos, apesar das admoestações e orações paternas, tinha a alma 
da cor do carvão e Satanás exultava de alegria em sua ardente morada. Até 
que a criança contraiu grave enfermidade. E, após meses de «longo e 
doloroso sofrimento», as preces dos pais foram ouvidas. Na hora da agonia, 
Inês deixou de berrar as habituais blasfêmias para erguer as pequeninas 
mãos e pedir a Deus que se amerceasse da sua alma. Na Sua Infinita 
Misericórdia, o Senhor ouviu-a. Mandou-lhe um mês dos mais inima­
gináveis padecimentos físicos. Tudo Inês suportou estoicamente, sabendo 
que pouco pagava pelos pecados cometidos. E morreu confortada, 
subindo célere para o assento etéreo. Moral da história: Deus perdoa até 
aos mais empedernidos pecadores, como era o caso de Inês, a criança de 
seis anos.
No outro artigo, tecia-se idêntico retrato, só que o vil sacrílego tinha 15 
anos e não se arrependia. A esse, era o demônio que o vinha buscar. Numa 
história e noutra, quais as causas de tanta impenitência? O cinema, que 
frequentavam semanalmente desde os dois anos (nessa altura ainda nào 
havia classificações etárias) e as más companhias. Que um e de outras nos 18 1
guardássemos era a instante exortação final. E explicava-se que havia 
normalmente relação de causa a efeito entre os dois factores. O cinema 
levava a procurar más companhias. As más companhias levavam-nos ao 
cinema. Era um círculo perfeitamente vicioso.
Talvez fosse o ponto em que o santo articulista tivesse mais santa razão. 
Pelo menos, no meu caso, e até bastante tarde, a visão de um filme 
dependeu quase tanto das relações que estabelecí com ele, como das 
relações estabelecidas — ou desestabelecidas — com aqueles com quem 
ia ao cinema. Muitas vezes me estragaram um filme, do qual fiquei com 
péssimas recordações, por motivos não imputáveis ao realizador ou a 
qualquer dos nomes do «cast». Outras tantas me douraram a visão, 
conferindo à obra uma aura paradisíaca, também não atribuível a méritos 
dos seus autores.
Eis um tipo de considerações que escandalizará muitos cinéfilos mas 
que é um fenômeno típico da cinefilia. Quem disser que as más compa­
nhias — ou, noutra perspectiva moral, as boas — nunca lhe afectaram as 
visões, ou a recordação de um filme, não é verdadeiramente digno do 
nome de cinéfilo. Contra mim falo, mas um Robert Wise de mão na mão, 
joelho no joelho, etecetera no etecetera, pode ser mais inesquecível do que 
um Hitchcock se, em noite dele, a mão e o joelho pretendidos a outros se 
vão encostar.
Nem é preciso ir tão longe, e nem é preciso sempre «chercher la femme». 
As vezes, basta mau hálito, sovaquinho ou digestões menos discretas. 
Outras, alguém que ri quando não deve ou chora quando não pode. Muitas 
mais, o engraçadinho ou comunicativo que acha que os filmes precisam 
sempre de “voz off». Ou, simplesmente, aquele ou aquela que está a 
embirrar (mesmo que passivamente) com tudo quanto eu gosto, ou a 
gostar (mais ou menos activamente) de tudo com que eu embirro. Pelo 
contrário, estar em completa harmonia com os companheiros do escuro 
(sintonizados em gostos ou desgostos) é condição necessária e suficiente 
para a perfeita visão. Digam-me com quem vi o filme e eu vos direi como 
vi o filme.
No meu caso, nem é preciso dizerem-me. Ainda nos meus anos de 
18 2 neófito, uma prima minha, bastante mais velha — a quem devo, entre
outras coisas, uma poderosa iniciação ao cinema — mostrou-me um 
caderninho que tinha e em que tomava nota de todos os filmes que via, 
com os nomes dos principais actores. Tudo isso, ordenado por anos, ou 
antes por temporadas, que, como os anos lectivos, são melhor medida de 
tempo para estas coisas do que o calendário gregoriano.
Comecei logo a imitá-la, nuns cadernos que por essa altura havia com 
o Bucha e o Estica desenhados na capa. Mas sempre fui do gênero 
de acrescentar um ponto aos contos que me contavam. E assim, além 
desse rudimento de ficha técnica, juntei coisas da minha lavra. Nào o nome 
do realizador, ou o título original, dados que nessa altura ainda não 
existiam para mim. Mas o nome do cinema em que os tinha visto, o lugar 
que ocupei na sala (em que isso tinha a importância que já justificou 
uma destas crônicas) e a pessoa ou pessoas com quem tinha ido ver o 
filme. 1 8
Quando folheio esses caderninhos que conservo ciosamente (eu 
guardo tudo) essa última indicação é-me frequentemente preciosa para 
perceber porque é que na minha memória valorizei em excesso um 
determinado filme e em excesso desvalorizei outro. Às vezes tenho 
surpresas. Anotei uma fita que não me lembro nada de ter visto. Olho para 
o nome da companhia e percebo a razão do facto, nào vi mesmo o filme. 
O filme foi outro e só eu e mais alguém se pode lembrar dele. Noutro caso, 
ia jurar que vi o filme em certa idade e reparo que estou a fazer grande 
confusão de datas. Tratou-se, simplesmente, de confusão de pessoas. 
Fenômenos de premonição, ou fenômenos de repetição. Também me 
aconteceu jurar que vi tal filme várias vezes e só o vi uma. Ou perceber 
porque é que a simples evocação do título me dá tamanha neura ou 
tamanha saudade. E há gente a quem ainda não perdoo ter-me estragado 
um filme e outra que abençoo por me ter feito ver nele o que sozinho jamais 
veria. E, nestas últimas alíneas, raramente incluo pessoas com mais saber 
e mais gosto, exclusivamente cinematográfico.
Mas nada disto é alheio ao cinema, como alguém mais austero pode 
apressadamente supor. Por exemplo, a plena experiência da riqueza de 
uma banda sonora só talvez se possa apreender nos casos dos filmes que 
vimos sem ver, demasiado envolvidos nas más companhias. Essas músicas, 
essas vozes, esses ruídos, tornaram-se fundo sonoro não do filme 
projectado na tela mas do que decorria na sala. Voltar a ouvi-las permite, 
às vezes, experiências proustianas, ou sinestesias assaz inesperadas. Em 
limite, podem até funcionar como afrodisíacos.
São ainda assinaláveis, os efeitos das más companhias, ao retardador, 
ou seja, quando já as não temos. Muitas e muitas vezes assinalei no tal 
caderninho, no lugar dela, a lacônica referência «sozinho». Mas há abismos 
de diferença entre os filmes que se vai ver «sozinho» porque assim calhou 
ou porque assim apeteceu, e os que «sozinho» se viu em ressaca da má 
companhia que se deixou de ter. Se, nesta última hipótese, ainda por cima 
o filme puxa ao sentimento, o efeito amplia-se desmedidamente. Alguma 
autoridade na matéria leva-me mesmo a sustentar que jamais se teriam feito 
«weepies» (ou até melodramas) se se não soubesse que a frequência das 
salas comporta boa percentagem de desacompanhados desses. Os grandes184
melodramas da nossa vida foram os que vimos assim. E se, à saída, estiver 
a chover miudamente, a experiência pode ser inesquecível.
Fizeram-se muitos «films on film». Mas fizeram-se poucos sobre este 
gênero de «filme». No entanto, talvez não seja por acaso que tantos etantos 
dos melhores incluem aquelas breves sequências (às vezes ideais para 
apostas cinéfilas) em que a câmara passa de um ecrã com o filme a chegar 
ao «the end» para a sala dele. Com as luzes a acenderem-se e os 
protagonistas ainda abraçados, a custo acordando para uma luz que nunca 
mais verão como antes viram. Ou como antes não viram.
OS MEUS FILMES DA VIDA 185
186 JOÀO BÉ\ARD DA COSTA
A FORÇA DO SEXO FRACO
Houve um filme de Ingmar Bergman que teve em Portugal o nome 
desta crônica. No original chamava-se Fôratt inte tala om ala dessa kvinnor 
e data de 1964. Não sei sueco, mas suspeito bem que nessa série de 
sons não haja qualquer palavra que, traduzida, tenha alguma coisa que ver 
com força, com sexo, ou com fraco. Também não interessa nada, agora, 
porque, apesar de gostar muito dessa comédia a cores (deliciosamente 
mozartiana), não a incluo entre “Os filmes da minha vida» e não é dela que 
vou falar.
Era com «todas essas mulheres» (as dele), Harriet Andersson, Bibi 
Andersson, Gertrud Fridh, Eva Dahlbeck, etc. e quase por lá não havia 
homens. Foi um fracasso comercial (Bergman queixa-se disso nas memórias) 
e baseava-se numa receita antiga de filmes no feminino. Quem levou mais 
longe esse tipo de aposta foi George Cukor no espantoso The Women 
(1940), em que até os animais (caninos ou galináceos) eram todos do sexo 
feminino. Obviamente, num e noutro filme, só se falava de homens e 
obviamente tanto Bergman como Cukor pertenciam à série dos chamados 
«cineastas de mulheres», normalmente misóginos. Daí que talvez se 
perceba o desabafo de uma espectadora que eu conheci, quando chegou 
à rua, depois de sair do Éden onde The Women por cá passou: «Que bom 
que é voltar a ver homens.»
E lembro-me, pelo menos, de dois filmes (deve haver muitos mais) que 
usaram como gag «o único local da terra onde o homem nunca pôs os pés: 
The ladie’s room». Era com essa ribombante legenda, acompanhada por 
solene música, e seguida pela visão do quarto proibido, que Lubitsch 
começava That Uncertain Feeling, também de 1940 (curiosa, essa atracçâo 
por mundos exclusivamente femininos, um ano antes de começar, para a 
América, o mundo exclusivamente masculino da guerra); era o acesso à 
«casa de banho das senhoras» que divertia, muitos anos mais tarde, em 1963, 
Charlie, um Dom Juan impenitente, quando, para castigo dos muitos 
pecados dele, Deus o matava e o reencarnava como mulher, na aparência 1 8 7
de Debbie Reynolds. O filme chama-se GoodbyeCharliee foi realizado por 
Minnelli.
Em todos estes casos (e para o justo luto das feministas, a lista de obras 
a pôr neste index quase se confunde com a lista dos filmes até hoje feitos) 
tratava-se de ilustrar a moral da celebérrima canção de Loewe e Lemer que 
Rex Harrison berrava no My FairZ«í(y(Cukor, 1964): «Why can’t a woman 
be like a man?»
Infelizmente (ou felizmente) não pode. E, talvez por isso, não haja nada 
mais chato (regra geral) do que os filmes feitos por mulheres como res­
posta a Harrison. Para ver as coisas «do lado de lá» (e tratar as mulheres 
muito muito bem e os homens muito muito mal), ainda nenhuma mulher- 
-realizadora chegou aos calcanhares de Renoir ou de Mizoguchi. A 
«justa luta» tem sido particularmente injusta no cinema. E foi o cinema, 
muito mais do que este pequeno incidente chamado vida, que me deu 
as melhores razões para duvidar da justiça de um combate tão 
bem protagonizado, em Portugal, pela enga. Maria de Lourdes Pinta- 
silgo.
Quero eu dizer que na minha pessoal descoberta dos factos e das razões 
que levam um homem a ser diferente de uma mulher, contaram menos 
as brincadeiras aos pais e às mães ou aos médicos e aos doentes do que 
meia dúzia de filmes que vi em criança e eram, evidentemente, revela­
dores.
Lembrei-me disso durante o recente ciclo de Filmes de Aventuras na 
Cinemateca. Na grande época deles, que coincidiu com a da minha 
infância, era raro o filme de piratas ou de espadachins que não incluísse 
uma situação que me deixava confusíssimo. O pirata ou espadachim 
(normalmente Errol Flynn ou Tyrone Power) arrombava a porta do quarto 
ou do beliche em que os seus inimigos guardavam a beldade que deviam 
levar a porto seguro (normalmente Olivia de Havilland ou Maureen 
O’Hara). Além de muito bonitas e muito decotadas, eram valentes e de pêlo 
na venta. Quando o fora-da-lei entrava, com sorrisinho sobranceiro e 
atrevido, após a sacramental pergunta: «How dare you?» muito coradas, 
mostravam logo que preferiam a morte ao destino que as tinham 
convencido ser pior do que ela.
Sempre sorridentes, e sem fazer caso das ameaças, Errol Flynn e Tyrone 
Power avançavam para as donzelas e pregavam-lhes enorme chocho.188
Olivia de Havilland e Maureen O’Hara debatiam-se muito e, na primeira 
pausa, respondiam com um par de estalos tão exuberante quanto as suas 
formas. Os olhos chispavam-lhes. Na platéia, parecia-me evidente a 
mim que o caldo estava mesmo entornado, sem quaisquer segundos 
sentidos que, à época, naturalmente ignorava por absoluto. Mas os piratas 
voltavam à carga e acontecia então, invariavelmente, a cena que tanto me 
confundia. Após mais alguns debates, Olivia ou Maureen, em vez de 
multiplicarem as bofetadas, ficavam instantaneamente inertes. Logo de 
seguida, as mãos deixavam de bater e agarravam-se ao pescoço de Tyrone 
ou de Errol. E, amplamente correspondido, seguia-se um daqueles beijos 
que, por essa altura, se chamavam «à americana» ou «à cinema» e que, por 
causa disso, ainda hoje me pergunto se serão fenômenos naturais ou 
culturais.
Como e porque é que a donna tinha sido tão mobile e a fúria tão 
passageira, era mistério para que não encontrava explicação. Ninguém ma 
dava e reparava que os adultos, homens ou mulheres, não pareciam tão 
chocados como eu por tão flagrante irrealismo. Em vez de perguntar, era 
melhor experimentar. Devia ter 10 anos, a minha Maureen 11, e não fui 
nada feliz. Houve o beijo, houve a bofetada, mas na altura decisiva — a 
reincidência — interpuseram-se entre nós os mais crescidos (que, antes, 
puxando pelo meu machismo e pela feminilidade dela, tinham favorecido 
a «brincadeira») e separaram-nos. Simulei uma aparente vitória (tinha dado 
o beijo), enquanto a autora da bofetada era levada em lágrimas para um 
gineceu a que eu não tinha acesso. Nunca mais me falou.
Imodestamente, nào me convencí que a diferença da situação real para 
a situação cinematográfica se devesse ao facto de eu não ser nem o Errol 
Flynn nem o Tyrone Power. Atribuí-a à falta de hipóteses para o segundo 
beijo e à presença de tantos mirones que não costumavam estar presentes 
no Pirata Negro ou no Gavião dos Mares. Um dia, a mais recato, tiraria a 
prova.
Infelizmente, a memória dos homens é curta, a das mulheres também, 
e se a tirei ou quando a tirei, já não me lembrava dos filmes de piratas, nem 
essas cenas me perturbavam tanto. A vida é assim: sempre, muito cedo ou 
muito tarde. «Why can’t a man be like a woman?»
OS MEUS FILMES DA VIDA 1 8 9
190 JOÃO BÉNARD DA COSTA
TODAS AQUELAS ILUSÕES ANTIGAS
Hoje, dia 25 de Novembro, Benilde ou a Virgem-Mãe de Manoel de 
Oliveira passa na Cinemateca Portuguesa, integrado no ciclo em que toda 
a obra dele pode ser vista ou revista. Se for por mim, vá até lá. Faz-lhe bem.
Há 13 anos, estava o filme em cartaz, pela primeira vez, no Apoio 70. 
Tinha-se estreado quatro dias antes: 21 de Novembro de 1975. No dia 25, 
quem lá fosse não via nada. Como se lembram, Lisboa estava às escuras, 
no único estado de sítio das nossas vidas.
A 21, já era bem previsível que dezanove meses de carnaval político 
estavam a chegar ao fim. Ou vinha aí a quaresma, ou, sem transição, uma 
sexta-feira de trevas que, mesmo breve, nos faria ter saudades da tal longa 
noite de 48 anos.
O ambiente era mesmo pesado. Por isso, no tal 21 de Novembro, o 
Apoio 70 estava à moscas para a estreia de Benildee, dessa vez, por razões 
a que o nome de Oliveira era alheio. Virgens-Mães eram a última das nossas 
preocupações, pois mesmo quem se fiava naVirgem, corria por todos os 
lados e para todos os lados.
A experiência dessa noite — com a visão de tal filme, aparentemente 
vindo de outro planeta e sem nada que ver com Abris ou Novem­
bros — foi assaz singular. Para a descrever, ancorado na minha vida, só 
tenho à mão duas imagens: uma cinéfila, outra literata.
A imagem cinéfila ficou-me de Olérceiro HomemCIheThirdMani.um 
celebérrimo filme inglês de Carol Reed, datado de 1949. Quem viu o filme, 
lembrar-se-á que um romancista americano de cordel, Holly Martins 
(Joseph Cotten interpretava-o), chegava a Viena, ainda destruída pela 
guerra, e ainda ocupada por americanos, ingleses, franceses e russos, para 
o enterro de um velho amigo, de nome Harry Lime (Orson Welles). Cedo 
percebia que a morte de Harry envolvia vários mistérios e várias histórias 
de guerra fria (já se disse que The ThirdMan é o primeiro filme «reflector» 191
dessa guerra). Havia gente que não estava mesmo nada interessada em que 
ele andasse por Viena a meter o nariz de americano tranquilo e indiscreto. 
Já o queriam despachar por falta de papéis, quando o director de um clube 
literário, obviamente com falta de convidados (era o genial Wilfrid Hyde- 
-White quem fazia esse papel, como sempre magríssimo, como sempre 
bem-educadíssimo, como sempre a esfregar as mãos, respeitador e irônico) 
o ouvia identificar-se como escritor. E, levado por enorme confusão de 
nomes e pela admiração de um sargento americano, convencia-se que 
Joseph Cotten — que só escrevera westerns aos quadradinhos e só lera, em 
toda a vida, Zane Grey — era um dos maiores nomes da literatura dos EUA. 
Logo o convidava para uma conferência. Esse providencial convite dava 
a Cotten o pretexto legal para ficar em Viena.
Seguiam-se imensas e rocambolescas peripécias e tanto o espectador 
como Cotten se esqueciam por completo do velho senhor. A páginas 
tantas, Cotten voltava ao hotel, a saber de mais e a tremer pela pele. E eis 
que o atiravam para o fundo de um carro que arrancava a toda a brida pelas 
ruas de Viena. Quando nós e Cotten nos convencíamos que iam dar cabo 
dele, o automóvel parava à porta do clube literário, onde Hyde-White, 
nervosíssimo, aguardava o «grande escritor» que nunca mais se lembrara do 
convite é chegava com horas de atraso.
E eis que um pobre diabo, a julgar viver a última hora de vida, era 
sentado numa mesa formal, rodeado de senhoras de chapéu e intelectuais 
excêntricos, para lhes ser apresentado como um dos expoentes do 
romance americano, a quem se pediam eruditas digressões sobre o mesmo. 
E, com meia-dúzia de assassinos profissionais no encalço, a viver angus- 
tiadíssimas horas, tinha que debitar paleio sobre assunto de que não sabia 
a ponta de um corno. O fiasco ficou completo, quando um ouvinte quis 
saber o que pensava ele de James Joyce. Cotten confessou que nunca 
ouvira falar de tal cowboy. A assistência retirou-se escandalizada. Essa hora 
no clube literário é uma boa metáfora para a noite da estreia de Benilde 
ou a Virgem-Mãe. Chegar a outro mundo, com o mesmo mundo à porta.
A imagem literária nào a vivi em filmes, mas em Paris, Maio de 68, 
quando nem eu nem ninguém ainda sabíamos que Maio de 68 era Maio 
de 68. Estava lá a convite da Association Internationale pour la Liberté de192
la Culture e devia assistir, no Odeón, a um recital de poetas de países em 
que não havia a tal liberdade, desde Portugal à Bulgária.
O metro já não circulava e para ir de Saint-Michel ao Odéon, atravessei 
estudantes e polícias e granadas de gás lacrimogêneo a rebentar por todos 
os lados. Era o pandemônio total. Com as lágrimas a correr pela cara abaixo 
(por causa dos gases) entrei no Odéon, onde vinte pessoas, não mais, 
ouviam os ditos poetas dizer versos deles nas línguas deles. De Portugal 
estava Sophia de Mello Breyner Andresen. Lá dentro, não chegava um só 
som do cá fora. Subitamente, tudo aquilo parecia um sonho ou um 
pesadelo, como a conferência de Cotten no Terceiro Homem-, a beleza da 
poesia em línguas estranhíssimas (do servo-croata ao bósnio-herzegovino) 
as palmas para os poetas, os elogios à cultura livre, entre os sussurros de 
um ou outro organizador a pensar como é que íamos sair dali.
Lá saímos, por traseiras e ruas mais esconsas, a discutir poesia, 
enquanto à roda se reclamava todo o poder à imaginação. Foi a minha mais 
forte experiência do Maio de Paris, donde saí no dia seguinte, no último 
avião que descolou para Lisboa, sem saber, como o herói de Stendhal em 
Waterloo, que se estava a escrever História à minha volta. Só ouvi poetas.
Para a estreia de Benilde, nào fui tão distraído como para o recital do 
Odeón, ou tão forçado como Cotten para o clube literário. Mas no grupo 
político de que então fazia parte — conhecido na gíria jornalística pelos 
«ex-MES» — o espanto com que souberam que eu tinha trocado fundamen­
tal reunião pelo filme de Oliveira, foi radical e só desculpável pelas minhas 
idiossincrasias.
Ao contrário do que depois fez história (pequena, neste caso), nenhum 
de nós tinha qualquer ilusão (vá lá, quase nenhum de nós corrijo eu a 
lembrar-me de certa imagem) sobre o que ia ser de Portugal e sobre o que 
ia ser de nós, se os vencedores do 25 de Novembro tivessem sido os 
vencidos. Para essa hipótese, nos precavemos mesmo, com toda a 
gravidade, arranjando uma casa clandestina que nos iria servir de abrigo 
durante a eventual «Comuna de Lisboa». A casa estava equipada como os 
abrigos suíços para a guerra atômica: comidas e bebidas para semanas 
(quotizámo-nos para as comprar), biblioteca para as noites brancas, 
baralhos de cartas e outros utensílios úteis. O segredo da morada era total 193
e só um exterior contacto tranquilizaria os familiares e fornecería, em 
código, novas de eventos exteriores.
Visitei essa casa, em missão de reconhecimento, no dia 21, o tal dia da 
estreia de Benilde. Não era muito fotogénica. E reparei num quadro que 
representava uma seara alentejana. Pensei que não ia apreciar muito ter 
que olhar para aquele quadro durante bastantes dias.
A noite, na Benilde, vi um quadro semelhante. Era por lá — no iní­
cio -— que se saía do fabuloso traveling nos estúdios para se entrar na casa 
de Benilde, a casa amaldiçoada, «culpada» de todos os males. Nessa altura 
descobri que, ao contrário das aparências, o único filme que reflectiu o 
fundo de Portugal, 74-75, em raccord com o passado de 48 ou 480 anos, 
era mesmo o filme de Oliveira. Os «alienados» não eram os que estavam 
na sala, não era Oliveira, mas os que, no exterior, ecoavam os uivos do 
idiota, putativo pai do filho da virgem.
E percebí ainda, que ao «sol-poente» da luz belíssima do filme, aquela 
«virgem que passava», sem que ninguém desse por isso, cantava, também, 
como no célebre soneto de Antônio Nobre, «todas aquelas ilusões anti­
gas / que eu vi morrer num sonho, como um ai...»
Nào houve casa, nào houve clandestinidade. Mas todos as vimos 
«morrer como num sonho». Sem um ai. Antes, à portuguesa, com um truc 
televisivo que nos levou do delírio de um capitão arrebatado (em Lisboa) 
para um filme de Danny Kaye (vindo do Porto). Faz hoje 13 anos, em fundo 
de Oliveira. Por mim, aprendi a liçào.
1 s> 4 JOÃO BÉNARD DA COSTA
A STAR IS BORN
Não é só de médico e louco que todos temos um pouco. De actor, jaz 
sempre um bocado no fundo de todos nós. Raras são as pessoas que, 
falando de actores ou com actores, não deixam escapar, como desabafo, 
quanto gostariam de ter tentado, de tentar, ou de vir a tentar. E há sempre 
uma alma caridosa a reforçar-lhes a convicção. «Tu, é que tinhas jeito. Tu, 
é que davas um óptimo actor.»
Tais intuições (próprias ou alheias) resultam normalmente de 
enormíssima e santa ignorância. Há um abismo entre o jeitinho (nor­
malmente avaliado em função do exibicionismo congênito de cada qual) 
e a potência, e outro, ainda maior, entre esta e o acto. O verdadeiro actor 
é espécie raríssima e misteriosíssima. Está nos antípodas do «verdadeiro 
artista» do Herman José, esse, por sinal, dos grandes actoresque temos. 
Nada tem a ver com habilidades. Qualquer menina prendada é capaz de 
tocar a Marcha Turca para deleite de familiares e desespero de vizinhos. 
Tocá-la mesmo, só conheço Edwin Fischer. E o mistério do actor é ainda 
maior do que o do intérprete musical. Por isso, tanto tem fascinado outros 
criadores. Herberto Helder escreveu um poema belíssimo sobre isso.
Posso falar à vontade, porque fiz a experiência. Também achava, 
também achavam, que eu tinha o tal jeitinho. E, um dia, a fortuna bateu- 
-me à porta. Gostei imenso, diverti-me imenso. Mas aprendí que entre mim 
e um actor há a mesma distância que entre um ornitorrinco e um dinaus- 
sauro. Quem os confundir, arrisca-se a surpresas desagradáveis.
Foi em 1970. Manoel de Oliveira preparava O Passado e o Presente. 
Faltava-lhe um actor para o papel de Honório. A Maria Cabral, que andava 
a ajudá-lo em «testes de actores» e que era uma das pessoas que achava que 
eu falhara a vocação, falou-lhe de mim. O Manoel de Oliveira costuma 
escolher actores por arquétipos físicos (imagens, aparências) e deve ter 
achado — imagino eu — que entre a minha triste figura e a de Honório 19
havia afinidades. Disse à Maria Cabral que me sondasse. Ao princípio, levei 
a coisa toda a brincar. E lá fui, aos estúdios do Valentim de Carvalho, em 
Paço de Arcos, para fazer uma cena. A minha vaidade ficou toda inchada 
quando percebi que tinha chegado, visto e vencido. Logo ali, Manoel de 
Oliveira me convidou «a sério».
Foi a minha vez de ficar aflito. Um ano antes, pouco mais ou menos, 
tinha tomado posse do lugar de 'responsável do sector de Cinema da 
Fundação Gulbenkian. Lugar e secção tinham sido criados para acompa­
nhar a primeira grande aposta da Gulbenkian no cinema, traduzida no 
subsídio integral a quatro filmes, entre os quais O Passado e o Presente. Era 
dificilmente compatível essa função de «vigilante» do filme (da produção 
do filme, entenda-se) com a minha intervenção nele. Em vez de ir para 
Castelo Branco (onde decorreu grande parte das filmagens) no papel de 
«senhor da Gulbenkian» ir no papel de actor, ou, como terá dito justamente 
escandalizado, alguém lá de cima, «meter-me a galã».
Se fosse galã... Mas Honório, o personagem que representei, era tudo 
menos isso. Era banqueiro acaciano e pomposo, enganado pela mulher 
com o primeiro sedutor de Alcântara que lhe aparecia e que jamais se dava 
conta do que se metia pelos olhos dentro do mais cego. Nem era o último 
a saber. Não o sabia nunca. E passava o filme a mandar vir, sem nunca 
perceber que, de todos, era o mais rídiculo.
Hesitar, hesitei muito. Estava a gostar do papel na Gulbenkian e não me 
apetecia perdê-lo. Mas menos me apetecia perder o papel de actor. E, à 
última hora, com a irresponsabilidade (ou a responsabilidade) que Deus 
me deu, para escândalo de muitos e descrédito da minha já tão desacredi­
tada imagem, disse que sim a Oliveira. E fui para Castelo Branco. Não perdi 
o lugar (há pessoas generosas), não perdi o papel (há pessoas confiantes). 
Diverti-me muito, aprendi muito.
Logo no primeiro dia, aprendi que a coisa não era de carregar pela boca. 
Na primeira sequência que fiz, tinha que passear pelos jardins da casa onde 
a acção se passava, a conversar com Firmino, segundo e odiado marido da 
protagonista, Wanda. Conversar é como quem diz.
Honório — o meu personagem — não entendia como é que Firmino 
19 6 se prestava tão passiva e molemente aos maus tratos da mulher ou, em
termos do filme, ao «papel de marido escarnecido». E, convencionalissima- 
mente, descompunha o outro, verbalizando superior desprezo. Enquanto 
isto, nas minhas costas, nas costas de Honório, a minha mulher (Angélica, 
chamava-se) raspava-se para dentro de casa, para ir para a cama (ou, 
melhor, para o chão) com o peralta que a tinha debaixo de olho. Bem me 
prevenia Firmino que «Deus queira que nunca lhe aconteça ser tão ridículo 
ou mais do que eu». Honório, seguríssimo, respondia-lhe que estivesse des­
cansado, que isso nunca aconteceria.
Era um longo plano-sequência, à Oliveira, com os personagens 
enquadrados a meio-corpo e acompanhdos por um longo traveling.
Preocupado em dizer bem o texto (esse impossível texto), eu nào 
prestava qualquer atenção às marcas feitas no chão, que me comprimiam 
os movimentos por forma a nào sair do «quadro». Entusiasmava-me e dava 
uma volta que me fazia desaparecer da imagem. «Corta», dizia Oliveira, que, 
com infinita paciência, voltava a explicar-me que eu não podia pisar o risco 
e voltava a mandar fazer marcas gigantescas no chão. Eu pedia desculpa 
e prometia atenção. Voltava tudo ao princípio e zás, lá estava eu esquecido 19 7
da marcação. Se a memória não me engana, a cena repetiu-se quinze vezes 
e só se fez, porque, à décima quinta, Oliveira se tirou dos seus cuidados 
e pôs-se ao meu lado, de gatas, para não ficar no plano. De cada vez que 
eu tentava «fugir» dava-me um valente encontrão. Acabei exausto, e ele 
ainda mais. Foi por essa altura que teria dito a alguém: «O João Bénard é 
óptimo, mas só da cintura para cima.»
Eu, nessa altura, conhecia muito mal Manoel de Oliveira. Tinha falado 
um pouco com ele, nos anos 60, na altura dessas unitárias homenagens que 
lhe fizeram quando saiu o Acto da Primavera. Se tinha gostado muito desse 
filme e dos outros que até então Oliveira tinha feito pensava para dentro 
que o «velho» (Oliveira andava, nessa altura, à roda dos 60 anos) era capaz 
de estar muito ultrapassado. E, sinceramente, detestava a peça de Vicente 
Sanches, adaptada em O Passado e o Presente. Aquela história — sobretudo 
aqueles diálogos — pareciam-me o cúmulo do rídiculo. Pareciam-me a 
mim, e pareciam a toda a gente que eu prezava. Nomeadamente, aos não- 
-actores do filme, que eu já conhecia «cá de fora» e se baptizavam como eu: 
a Maria Reis (Maria de Saisset no filme, no papel de Wanda, a protagonista), 
a Gabriela Vieira de Almeida (Bárbara Vieira no filme, no papel de 
Angélica, minha mulher), o José Martinho Alves do Rio (José Martinho no 
filme, no papel de Fernando).
Todos demos enorme luta a Oliveira, para o levar a mudar o texto, para 
dar uma volta «àquilo». Completamente só contra tudo e contra todos 
(inclusive, tendo, a certa altura, que enfrentar «guerra aberta» de dois dos 
actores e de parte da equipa técnica), Oliveira persistiu. Nessa altura, 
percebi o que é a solidão de um criador, tanto maior quanto mais 
dependente dos outros. Mas demorei mais tempo a perceber que só ele 
tinha razão. Como Ravel dizia do seu Bolero (contra um adversário 
chamado Toscanini), o que havia a fazer não era tomar o Bolero suportável, 
mas ir até ao limite do que a peça exigia: a insuportabilidade. Com 
O Passado e o Presente era a mesma coisa. Só por ser como é, o filme é 
como é. Isso, que muitos perceberam depois, percebeu-o Oliveira, antes. 
E venceu-nos a todos.
Venceu-me a mim que, desde essa altura, me rendi a ele, sem 
condições. Foi ele quem transformou um «crítico», convencido que sabia 198
de cinema e convencido que tinha jeito para actor, na imagem impossível 
que por lá se vê. Ensinou-me que eu estava certo no papel — e ele certo 
ao escolher-me — sem que isso quisesse dizer que eu possa ou pudesse 
ser actor. Devo-lhe essa lição. Devo-a, também à única actriz do filme — 
Manuela de Freitas, a maior actriz portuguesa — que eu conheci no 
Passado e Presente e continuarei a conhecer no Futuro.
Os não-actores, como acima disse, esconderam-se sob pseudônimos. 
Eu também. Nesse filme nasci como Duarte de Almeida. Voltei para 
Oliveira (Amor de Perdição, Francisca, Le Soulier de Satiri), para Raul Ruiz 
(tudo tão, tão diferente), para Paulo Rocha (ODesejado). Mas, se sempre 
me diverti muito, só com Oliveira esse tal Duarte de Almeida nasceu e 
existiu. E certamente a ele — muito mais do que a mim — deverei ficar a 
ser lembrado, quando de tudo o resto já não houver memória. Como um 
não-actor. De Oliveira.
OS MEUS FILMES DA VIDA 199
NATAIS BRANCOS
«Um Natal sem presentes nem parece Natal.» Era assim,se a memória 
me nào trai, que começava o popular romance cie Louise May Alcott, Little 
Women, tantas vezes adaptado ao cinema. Estou de acordo. Sempre adorei 
dar e receber presentes, no Natal mais do que nunca. E sou daqueles que 
gosta do Natal, que gosta imenso do Natal. Natal com todos os efes e erres, 
com todas, todas as tradições. Desconfio até das pessoas — falo daquelas 
que não entraram para a vida pela porta de serviço — que nào gostam do 
Natal. No sentido em que Godard dizia, no Petit Soldat-, «Méfiez-vous des 
femmes qui n’aiment pas manger.»
Mas quando eu era miúdo, nào era só um Natal sem presentes que não 
era Natal. Era um Natal sem Cinema, ou um Natal sem Circo. Filmes e 
Coliseu eram inseparáveis da festa. Com as tias velhas e os primos 
diferentes, foram das coisas que perdi. As tias morreram, os primos 
tornaram-se mais diferentes (ou indiferentes), o Circo acabou. Só o Cinema 
continua.
Em relação ao Circo tinha sentimentos contraditórios. Fascinava-me 
mas assustava-me. As feras, os faquires, os prestidigitadores, os ventrílo­
quos, sobretudo os palhaços. E o sr. França, que não se chamava José- 
-Augusto. Eram reais e irreais, ao mesmo tempo e demais. Depois, um triste 
dia, descobri que não havia palhaços, que os palhaços não existiam. Foi 
quando me cruzei na rua com um sisudo e insignificante cidadão e alguém 
disse que aquele era o palhaço rico, da cara branca, do Coliseu. Tive um 
choque muito maior do que no dia em que soube que afinal não era o 
Menino Jesus quem descia pela chaminé para me pôr os presentes no 
sapatinho, ou quando soube como nasciam as crianças. Se a minha fé em 
‘Deus e nos homens resistiu a isso, é porque resiste a tudo. Graças a Deus, 
foram revelações tardias. Nunca suportei também aqueles pais pedagógi­
cos que, em nome da verdade, acham que não se deve contar às crianças 201
a história do Meninojesus. Como se os pais não existissem senão para dizer 
mentiras, como se educar não fosse senão mentir. Quando muito transijo
— com pouca simpatia — na substituição pagã do Menino Jesus pelo Pai 
Natal.
O cinema era o décor— a profundidade de campo — de onde saíam 
todas as maravilhas dos dias seguintes, já que, geralmente, acontecia antes 
de tudo o resto, no dia em que era conveniente que estivéssemos fora de 
casa, para nào ver os preparativos do Natal. A minha mais antiga 
recordação vem dos cinco anos e tem como nome O Feiticeiro de Oz. que 
em 1989 fará 50 anos (a Portugal só chegou no Natal de 1940).
Esse filme, que continua a ser um dos «filmes da minha vida», esse filme 
de que já se tem dito, com carradas de razão, que é a mais portentosa 
metáfora de Hollywood (até se diz que todos os filmes posteriores contêm 
uma referência a The Wizard ofOz\ foi paixão à primeira vista. Dorothy 
«Over the Rainbow». A passagem do sépia às cores. O Espantalho, o 
Homem de Lata e o Leão (sempre amei mais o Leào do que todos os outros). 
A Cidade-Esmeralda, o Feiticeiro, os «Munchkins», os sapatinhos de rubi, 
os chupa-chupas liliputianos. E a bruxa, aquela bruxa má, primeiro de 
bicicleta e, depois, soterrada, a seguir ao ciclone, só com os sapatos de fora. 
O único ciclone da minha vida — Lisboa, 1941 — misturou-se tanto com 
o do Kansas que já nào sei onde começou um e acabou o outro. Também 
dizem que aconteceu na vida real. Há quem jure que no dia da morte de 
Judy Garland um ciclone se abateu sobre Kansas. Assim deve ser. «De cada 
vez que vemos Judy passar para lá do arco-íris — escreveu Denny Peary
— temos vontade de a avisar que é preciso ter muito cuidado.» Ela nào teve. 
Só me pergunto se o cuidado a ter é com os ciclones que nos levam ou com 
os balões que nos trazem.
The Wizardq/Oz está ainda ligado à minha primeira dúvida metafísica. 
Nesse Natal — o tal Natal de 1940 — o Meninojesus deu-me um livro de 
Frank L. Baum, reeditado, em português. Tinha uma capa dura, amarela, 
onde estavam Dorothy (Judy Garland), o Leào (Bert Lahr), o Espantalho 
(Ray Bolger), o Homem de Lata (Jack Haley) e, a um canto, o Feiticeiro 
(Frank Morgan). E tinha uma cinta onde se dizia, mais ou menos, «O livro 
20 2 que serviu de base ao filme da METRO-GOLDWYN-MAYER actualmente 
em exibição no cinema Éden». Não foi a descoberta da vocação publicitária 
do Menino Jesus que me fez suspeitar. Mas o excesso de precisão. Como 
é que, lá no Céu, a distribuir Feiticeiros de 02-por todo o mundo, o Menino 
Jesus acertava com o cinema de Lisboa? Mudava de cinta conforme os 
países e as cidades? Não sou capaz de reconstituir exactamente os 
fundamentos da dúvida, mas andavam à roda de tão particular localização. 
Lá me deram uma explicação qualquer (a omnisciência do Menino) e 
convenci-me. Admirei-O ainda mais depois de tal façanha. E essa capa 
ficou para mim como a prova suprema da existência divina, certamente 
mais convincente do que o argumento de Santo Anselmo.
No Natal de 41, foi The Thief of Bagdad. Sabu tomou o lugar de Judy 
Garland e Conrad Veidt o de Margaret Hamilton (a Bruxa Má).
O Natal de 42 foi o do meu heterónimo Dumbo, outra criatura já aqui 
convocada e que, desde essa altura, me comove tanto como comovia 
aquele general do 1941 de Spielberg. Passei a sonhar a cor-de-rosa e ia de 
maravilha em maravilha e de voo em voo: o voo dos balões no Feiticeiro; 
o voo de Sabu às costas do gigante no Ladrão deBagdad, o voo de Dumbo, 
com as orelhas a fazer de asas.
A voar continuei, no Natal de 43, sem reparar que mudara de imaginário 
e dos campos então em conflito. O filme desse ano era alemão e chamava- 
-se Münchbausen (Josef Von Baky, 43). Em Portugal, chamaram-lhe 
O Barão Aventureiro. Vi-o no Ginásio. Deve ter sido das primeiras vezes 
que fui ao cinema sem adultos, já que me lembro bem que o meu único 
companheiro era um amigo do colégio, da mesma idade que eu. Está-me 
ligado na memória a uma das minhas primeiras humilhações sociais. 
Quando lá chegámos a lotação estava praticamente esgotada e só havia 
lugares no Balcão de 3a- Comprei os bilhetes e lá subimos até aos 
carrapitos, com ele muito calado. Antes do filme começar, olhando com ar 
desaprovador a sala, disse-me secamente: «E eu, habituado a Platéias e 
Balcões de Ia., venho hoje para um Balcão de 3a.» Engoli em seco. Afinal 
era a precoce manifestação de uma vocação. É, hoje, Embaixador de 
Portugal.
Mas o filme fê-lo esquecer a posição de classe, como me fez esquecer 
a mim o embaraço. Hans Albers — o Barão — tinha uma bola de cristal 2 03
e voava de corte em corte e de prodígio em prodígio. Deu-nos uma lição 
de geografia e uma lição de astronomia. Passámos a seguir em mapas e em 
colecções de selos os países por onde tinha andado o Barão de Münchhausen, 
que deixara os russos de boca aberta perante os poderes mágicos dos 
alemães, em contraste flagrante com o que no mesmo ano se passava, mas 
não entrava nessa história nem na nossa história. Rússia era a de Catarina, 
não era a de Estaline. Alemanha era de Münchhausen, não era a de Hitler. 
Não me venham dizer que o cinema aliena.
Natais seguintes foram menos mágicos e mais religiosos. Passei-os com 
o Padre O’Malley (Bing Crosby, mais querubínico do que nunca) ora às 
voltas com um velho sacerdote rabugento (o genial Barry Fitzgerald) em 
GoingMy Way (Natal de 44) ora às voltas com uma freira sadia e sorridente 
(Ingrid Bergman) em The Bells of St. Mary's (Natal de 46). Ambos foram 
realizados pelo mais romântico e mais céptico dos cineastas de Hollywood: 
Leo McCarey. Nessa altura, dei mais pelo romantismo e menos pelo 
cepticismo. Chorei muito com a chegada da velha mãe de Barry Fitzgerald 
no final do Bom Pastor (título português de GoingMy Way) e não percebí 
bem por que é que Bing Crosby e Ingrid Bergman nào se casavam no final 
de Os Sinos de Santa Maria.
A vida-cinema ensinou-me que Going My Wayé. também um dos mais 
sinistros filmes sobre a solidão e que The Bells of St. Afarfs acaba com uma 
das mais equívocas lines de qualquer diálogo de Hollywood. É quando 
Bing Crosby se despede de Ingrid Bergman e lhe diz:«If you’re ever in 
trouble dial O for O’Malley.”
No fundo, é uma despedida equivalente à de Judy Garland do 
Espantalho quando se mete no balão e lhe diz: «Fm going to miss you most 
of all.» É sempre a mesma história, ficam sempre as mesmas saudades. Ao 
som de Irving Berlin e do White Christmas, cantado pela primeira vez 
noutro filme natalício, Hollidaylnn (Mark Sandrich, 42) com Bing Crosby 
e Fred Astaire.
No cinema, como no Natal, tudo mudou para tudo ficar na mesma. 
Louvados sejam.
204 JOÃO BÉNARD DA COSTA
BODAS DE OURO E ANOS VELHOS
Morreu Hirohito. Dentro de dias, vou voltar a ver imagens do enterro 
de um imperador do Japão. Foram as primerias que vi em toda a minha 
vida, miudíssimo era. Pertenciam a um filme em 9,5, já muito antigo, pois 
que a última morte imperial na nação que Femão Mendes Pinto chamava 
«japoa» ocorreu cerca de dez anos antes de eu nascer.
Mas, não sei porquê, esse filme era um dos dois que acompanhavam 
um projector alto, negro e quente que os meus pais nos deram. Apagavam- 
-se as luzes, punham-se os rolos nos carretos e na parede em frente à minha 
cama (associo essas projecções a doenças) via milhares de japonezinhos 
à espera que a catedral rolante passasse. Devia ser um plano fixo que 
durava imenso tempo até que o imenso carro entrasse «em campo». 
Ensinavam-nos que ele se chamava Hoshihito, o que não era bem verdade. 
A única atracção — sempre esperada — era quando uma mulher se virava 
para a câmara e fazia uns esgares. Era quase imperceptível, mas destoava 
de tal modo da ausência de acção que só ela justificava a nossa paixão por 
essa película fúnebre.
O outro filme era mais acidentado. Tinha só dois personagens (um 
homem magro e outro gordo) e acabava com o primeiro a dar um valente 
pontapé no traseiro do segundo. Ignoro os realizadores ou país de origem 
dessas duas obras-primas que, como o projector, levaram sumiço e são 
provavelmente missingfilms. Mas foram as primeiras imagens animadas da 
minha vida e devo-as ter visto mais vezes do que o Johnny Guitar.
Se posso precisar estes factos, já nào posso jurar sobre a data e o local 
da minha primeira ida ao cinema. As investigações que fiz e mandei fazer 
apontam para a Branca de Neve e os Sete Anões. Graças ao Luís de Pina, sei 
que o filme se estreou em Lisboa a 12 de Dezembro de 1938, no Tivoli. Se 
o vi na estreia, ocorreu há pouco ou ocorre agora o 50Q. aniversário: as 
minhas bodas de ouro de espectador de cinema. 20 5
Como ninguém se lembrou de as comemorar condignamente (digo-o 
com algum azedume), celebrei-as eu, revendo, no mesmo Tivoli, no 
passado dia 30, WhoFramedRogerRabbit?T\A ver se simpatizava mais com 
o coelho, mas não fui bem sucedido. Aliás, desde Saludos Amigos (45) ou 
The Three Caballeros( 45), a mistura de humanos e desenhos nunca me deu 
caixinhas de surpresas. Só exceptuo desse rancor persistente a dança de 
Gene Kelly com Tom e Jerry no «The King Who Couldn’t Dance», de Sammy 
Fain e Ralph Freed, para o fabuloso Anchors Aweigb de George Sidney, 
Stanley Donen e Gene Kelly, em 1945.
Não foi portanto uma noite feliz essa das minhas supostas ou reais 
bodas de ouro. Aliás, voltar ao Tivoli, agora, 50 anos depois, não alegra 
ninguém. Sobretudo quem, como eu, associa a sala aos anos 40 e 50, aos 
filmes da Fox com Gene Tierney ou Linda Darnell, aos Preminger ou aos 
Mankiewicz, do tempo em que Lubitsch lhes passara o facho. Era ainda o 
Tivoli de Walter Gieseking e de Jascha Heifetz, ou da Filarmônica de Viena, 
quando os «entendidos» não perdoavam à gerência ter falhado com a 
promessa de trazer a dirigi-la Wilhelm Furtwãngler, substituído por um 
«maestro de segunda» chamado Karl Bõhm... Havia critérios. E havia as 
«terças-feiras clássicas», que por si só merecerão um dia uma destas 
crônicas. «Antigamente, antigamente, sim», como diria a Agustina. E o Tivoli 
luzia a dourado velho, e depois do São Carlos, era a sala que cheirava 
melhor. Channel 5, Vétiver da Carven, ou, pouco depois, as primícias de 
Yves Saint-Laurent. Je Reviens, que, por sinal, era da Worth.
Agora, o que resta dos foyers está pejado de vitrinas de mau gosto e 
arranjos florais duvidosos e sediços. A luz é baça e gélida, as alcatifas estão 
esfiadas, com tapetes esgarçados a tapar os maiores buracos. A decadência 
esboroa cada milímetro e, para voltar a citar Agustina, pela boca de 
Honorato, o irmão de Leopoldo n’As Categorias, tudo aquilo me parece 
hoje «um anátema em escabeche».
Mudou a luz, mudaram os cheiros, mudaram as gentes, para lá de tudo 
quanto, de substantivo, igualmente mudou. A sala parece despedir-se e 
agonizar grosseiramente. Nas cadeiras de napa, o desconforto é solitário. 
A temperatura ambiente parecia calculada para uma noite exterior de 40° 
2 0 6 No intervalo, apareceu um homem a apregoar coca-cola e queijadas. O
écran tinha um rasgão, em baixo à esquerda, que acrescentava mais uma 
curva ao corpo da Jessica. Precedeu o filme um resto de jornal de 
actualidades, cantando a Europa connosco. A assistência recebeu-o com 
a banda sonora do antigo Olímpia. Os próprios bonecos — quer os de 
Disney quer os rivais da Warner — pareciam encolhidos, tão saudosos 
como eu do tempo da Branca de Neve. As minhas bodas de ouro 
transformaram-se em velório, daqueles onde não se conhece o morto e o 
cunhado faz cerimônia connosco e nós fazemos cerimônia com o cunhado. 
Dei por mim no cúmulo da miséria moral: a ter saudades do Amorei­
ras 6.
Merecia melhor. Porque, se as minhas contas estão certas, e descontado
o imperador do Japão, eu vi a luz cinematográfica no ano górgico de 1939, 2 0 7 
2 08
o ano em que o vento tudo levou, ciclone terrível para os humanos, zéfiro 
incomparável para a Cidade de Esmeralda, dita Hollywood. Porque nào foi 
só o ano do Gone, o ano em que Clark Gable disse a Vivien Leigh: «Frankly 
my dear, I don’t give a damn.» Foi em 1939 que, depois do «King», nasceu 
o «Duke», John Wayne em Ringo Kid no western homérico chamado 
Stagecoach, com que John Ford cobriu o luto de ter visto num necrotério 
de Phoenix (Arizona), de smoking branco e cinto de diamante, o corpo es­
patifado do único cowboy a Wayne comparável: Tom Mix, «that rough- 
-riding son of a bitch».
Foi em 1939 que John Ford — outra vez — pôs Henry Fonda a dançar 
a «Dixie» na mais bela «americana» de sempre, esse imponderável Young 
MrLincoln. Foi em 1939 que Howard Hawks nos ensinou que OnlyAngels 
Have Wings. Foi em 1939 que Greta Garbo riu contra a anedota de Melvyn 
Douglas na Ninotchka de Lubitsch. Foi em 1939 que James Stewart, 
perdido de rouco, fez a democracia brilhar mais formalmente do que nunca 
em MrSmith Goes to Washington, de Frank Capra. Foi em 1939 que Judy 
Garland foi «Off to See the Wizard» no filme dos meus brancos natais. Foi 
em 1939 que um táxi atropelou Irene Dunne quando ia a correr para o 
Empire State Building e deixou Charles Boyer sozinho à espera dela e do 
Love AffairAe que McCarey fez o mais belo melodrama do mundo. Foi em 
1939 que Ingrid Bergman surgiu em Hollywood, como Intermezzo pia- 
nístico na vida conjugal do violinista Leslie Howard. Foi em 1939 que James 
Cagney foi abatido nas escadas da catedral nos Roaring Twenties de Walsh. 
Foi em 1939 que Gary Cooper teve aquele Beau Geste e Cary Grant outro, 
não menos belo, no GungaDin, de Stevens. Foi em 1939 que Fred Astaire 
e Ginger Rogers dançaram pela última vez em The Story of Vemon and 
Irene Castle.
O sexto dos meus bagos de româ para 1989 foi engolido com o desejo 
de que tal milagre se repetisse. Mas o cinema nunca é como no cinema, 
ou melhor dito como na memória do cinema.
E também eu — febril e acelerado nestes inícios de 89 — estou a fazer 
alguma batota. Nenhum dos filmes citados os vi há 50 anos, quando só 
raramente, em Natais, Anos Novos e Anos Meus, ia ao cinema. Quando 
muito comecei a vê-los em 40 ou 41, anos meus de filmes já aqui evocados,
em que, além de Sabu e Judy Garland, só conhecí de respeito Errol Flynn 
e Olivia de Havilland no Robin Hood de Curtiz.
E se for mesmoabsolutamente sincero, nada foi tão cor-de-rosa como 
agora o apresento. Entre as minhas mais velhas memórias de mais velhos 
anos, contam-se mesmo dois dos filmes com que mais me chateei em toda 
a vida e dos quais impus — raríssima coisa comigo — que me levassem 
da sala a meio. Um foi TbeBlueBird(Walter Lang, 40). Devem ter achado 
que a Shirley — mais velha sete anos do que eu — era companhia para 
a minha idade. Mas fiquei desde aí com uma mortal embirração pela 
criancinha, primeira criatura a fazer-me fugir do cinema. O outro era uma 
premonição do recente filme de Cavalier, chamado no original Thérèse 
Martin e a que por aqui chamaram Vida de Santa Teresinha. Sei agora que 
foi realizado por um tal Maurice Canonge e também nào aguentei até ao 
fim tão pia edificação.
Pensando bem, nestas bodas de ouro que a elas se prestam, não se deve 
desanimar completamente. Aposto que o enterro de Hirohito vai servir de 
pretexto a bem melhores imagens do que as do pai dele que vi nesse 
projector caseiro dos anos 30. Quando se falham as bodas ganham-se os 
enterros. Uma nota de esperança em começo de ano fica sempre bem. Bom 
89, para todos lá em casa.
05 Mft/5 FILMES DA VIDA 2 09
ANJOS AZUIS
Aconteceu-me o ano passado, numa estação de táxis em Paris. Um 
pacato expectante olhou para mim fixamente e fez-me um sorriso de 
reconhecimento. Como sou patologicamente não-previsto (ainda estou 
para descobrir porque é que se chamam previstas às pessoas que 
conhecem toda a gente) e como já aprendi que 50 por cento dos meus 
inimigos os devo a essa tara, fiz o que faço sempre em ocasiões 
semelhantes. Correspondí com um sorriso ainda mais expansivo e mais 
expressivo, embora não fizesse a mínima ideia de quem se tratava.
O desconhecido ganhou coragem e abordou-me com a frase sacramen­
tal e normalmente fatal para as gentes da minha raça: «Você não me 
conhece.» Interrompí logo (outro «truque» que aprendi e jamais resulta) a 
2 10 desmenti-lo e a dizer que ora essa, então não o conheço lindamente. Só
que dessa vez o homem não se deixou abalar nem pareceu abalado, como 
se eu não tivesse qualquer obrigação de o conhecer. E repetiu que eu nào 
o conhecia, mas ele me conhecia muito bem. Do cinema. Troquei a aflição 
pela vaidade. Ora ali estava um francês «oliveiriano» que levava a conhecida 
admiração gaulesa pelo Mestre do Norte ao ponto de saudar na rua a 
familiar vedeta de O Passado e o Presentee do Amor de Perdição. Com falsa 
humildade, respondi-lhe que efectivamente, Portugal, Oliveira, etc. Foi a 
vez dele ficar interdito. Portugal dizia-lhe pouco, Oliveira menos. Falou- 
-me da Suécia e de Bergman. Confundira-me com Erland Josephson, o 
actor das Cenas da Vida Conjugal. Antes de cada um seguir no seu táxi, 
despedimo-nos até outra vida ou até outro filme.
Se nunca ninguém me tinha tomado por Josephson, já muita gente me 
tinha falado dessa suposta ou real semelhança, que não serei eu juiz em 
tal caso. Outros me evocam Fernando Rey e por causa de coisas já me 
quiseram espicaçar chamando-me Rafael (nome de Rey no Charme 
Discreto da Burguesia).
Não me estou a gabar, pois nenhuma das comparações é lisonjeira. 
Fernando Rey tem mais 18 anos do que eu, Erland Josephson mais 12. Mas 
ainda é muito menos lisonjeiro — e essa tenho-a ouvido de muitas bocas 
— quando me dizem que eu vinha a calhar para o papel do professor 
Immanuel Rath. Nesse caso, julgo que não se baseiam em parecenças 
físicas com o defunto Emil Jannings, mas em outras histórias. E não me 
puxem pela língua que tenho muitas contas para ajustar.
Immanuel Rath, como muitos saberão, era o nome de Jannings em Der 
Blaue EngeKO Anjo Azul) que Josef von Sternberg foi realizar à Alemanha 
a convite do próprio Jannings, em 1930. Ao contrário do que pensava o 
então celebérrimo actor, O Anjo Azul nào lhe ficou a dever a imensa 
reputação que há quase 60 anos tem. Se foi e é tão conhecido, como «toda 
a gente» sabe, isse se deve ao facto de nele ter «nascido» Marlene Dietrich, 
no fabuloso papel de Lola-Lola. O Anjo Azul, no imaginário colectivo, é 
ela, desde que, no cabaré com esse nome, escarranchada numa pipa, de 
ligas e chapéu alto, canta a canção de Hollander: «Ich bin von Kopf bis Fuss/ 
auf Liebe eingestellt» («Da cabeça aos pés/sou feita para o amor», em 
tradução livre e de pé quebrado). Como de facto o era, o professor 2 11
Immanuel Rath deixava de aterrar alunos com perdigotos nas aulas de 
literatura inglesa e juntava os trapinhos com Lola-Lola. Só podia acabar mal 
e acabava mal. E só não se lembra do «Cocoricó», quem nunca ouviu um 
amigo incerto numa ocasião certa prenunciar-lhe idêntica conversão em 
galináceo. Marlene arrulhava-lhe como pombinha no dia das bodas e o 
professor, vaidoso e babado, respondia com o canto do galo. Os 
convidados riam muito. Estava encontrado o papel que lhe convinha nos 
futuros espectáculos da «trupe» de Lola-Lola, até esse “Cocoricó» final, 
alucinado e demencial, quando Rath, integrado na companhia, voltava ao 
cabaré do Anjo Azul para actuar perante ex-colegas e ex-alunos. Rath 
transformara-se em Unrath, que literalmente quer dizer “merda».
Curiosamente (anjos com tal cor não se invocam em vão), esse filme 
transformou-se em maldição para os seus dois principais autores. Sternberg 
descobriu Marlene — só por isso lhe ficaremos para sempre gratos — mas 
ia viver com ela em cinco anos e sete filmes (ou plausivelmente, em toda 
a vida e em todos os filmes, já que nunca esconjurou esse fantasma), 
destino aproximável ao do professor. Jannings, apesar das honras futuras 
que os nazis lhe deram, nunca mais recuperou o estatuto que antes fora 
o dele. Amaldiçoou sempre essa “Dietrich weibe», como Sternberg conta 
que ele a chamava, que lhe roubou o filme e o realizador.
O Anjo Azul é o mais célebre dos filmes sobre o que Balzac chamou 
«le démon du midi». Coroa uma vaga romanesca, teatral e cinematográfica 
que, sintomaticamente, nasceu com o romantismo e cresceu com o 
expressionismo. Na tradição ocidental pré-romântica (no «antes da Revo­
lução») velhos gaiteiros eram personagens cômicas, para fazer rir o público 
da commedia delíarte ou da opera-buffa. Eram os tutores de todas as 
Rosinas. Falstaff (falo do de Verdi, não do de Shakespeare) foi a última 
expressão desses velhos libidinosos. Ainda é filosoficamente e com 
bastante fairplay que aceita que «tutto nel mondo è burla», e que somos 
«tutti gabbati». E solta, com todos, «la risata final».
Mas a ordem burguesa e a ordem do imaginário em que se reflec- 
tiu ■— a ordem onde todos nascemos e todos nos educámos — já não podia 
rir assim do que a ameaçava nos seus fundamentos. Tanto ou mais do que 
212 as adúlteras burguesas — as Luísas, as Bovary—, os velhos ensandecidos
por Susanas nada castas, passaram a ser, igualmente, personagens trágicos, 
como o professor Rath da minha vida.
Atrás do teatro, o cinema (sobretudo nos anos 20 e 30) deu-nos dezenas 
de personagens desses, quarentões e cinquentões, um dia tocados pela 
«tortura da carne», como se chamava em Portugal um filme de título 
sintomático, pertencente à mesma família (aliás com duas versões): The 
Way ofAll Flesh.
Ficou-me particularmente na memória uma dessa variantes, que vi 
muito antes do Anjo Azul. Era um filme inglês, baseado numa peça de Noel 
Coward, com o próprio no protagonista, realizado por Anthony Darn- 
borough e Terence Fisher. Coward era um psiquiatra casado e dominador 
de todos os segredos da alma. Mas falhava nos do corpo, no caso em 
questão o da bela Margaret Leighton, que uma noite o convidava para ir 
ao teatro. Por causa dela, abandonava a mulher — a suavíssimamente 
sofredora Celia Johnson — e por causa dela se suicidava em noite de chuva 
e ciúmes, ao som da música steineriana do mesmo Coward. Desde o início, 
um versículo bíblico prenunciara ao médico tal destino. O castigo para os 
que querem saber de mais é «the astonishment of heart». E The Astonishecl 
Heart se chamava o filme.
Mas se a componente fáustica (relida naturalisticamenteou expression- 
isticamente) é evidente nestas histórias, talvez não seja a sua raiz primacial. 
Apesar de tudo, o mito do Fausto tem mais que ver com o poder do que 
com o amor, com a vida longa do que com a vida nova.
E é precisamente na vita nuovade Dante que se encontra uma das mais 
complexas e fascinantes aproximações para os anjos ou demônios que são 
metáforas infalíveis nestas histórias. Refiro-me à visão de Beatriz, após 
Dante se ter cruzado com ela nas ruas de Florença, quando voltou ao seu 
quarto. O vulto de aspecto terrihileque se lhe anunciou como Senhor dele, 
trazia nos braços o corpo nu de Beatriz e o Coração Assombrado que lhe 
deu a comer. Na Divina Commedia, o Poeta, entre os círculos dos anjos, 
percebe que Beatriz é o símbolo teofânico em que o amor e o conheci­
mento se unem, como na esfera platônica.
Dante, como os trovadores seus contemporâneos, era um «fedeli 
d’amore». Quem o é, está à mercê de tais anjos (ou tais demônios) e, por 2 1
mais ferozes que sejam os exemplos, encontrará sempre mais deleite nas 
visões do que nos castigos.
Marlene acaba o filme de Sternberg em círculo, repetindo, sem 
contracampo, a canção inicial. Rath morre agarrado à tampa da secretária, 
sob um foco de luz. Segundo o místico islamita Abdul Karim Jali, terá sido 
envolvido por uma “dor aromática», antes de ascender ao Céu de Júpiter, 
o Céu Azul, o Céu dos verdadeiros Anjos Azuis, que tornam activo o 
princípio feminino, e passivo o princípio masculino.
Talvez por isso, sem querer ou por querer, desde os 15 anos fantasiei 
mais as asas do que os abismos e me fixei em anjos onde queriam que visse 
demônios. Nesses filmes, a minha vida ficou também assombrada.
2 14 JOÀO BÉNARD DA COSTA
ccc
Em crônica anterior, aludi de raspão às três iniciais capitulares deste 
texto, prometendo para breve futuro explicação delas. O tempo passa a 
correr e as promessas também. E é hora de se apagarem as luzes para o 
meu filme da vida, chamado CCC.
Para mim, foi um breve filme numa longa vida. Durou cerca de três 
anos, algures entre o Outono de 1957 e o Outono de 1960. Numa 
perspectiva menos idealista, começou a 6 de Novembro de 1956 — um ano 
antes de mim — e acabou em 1965, mais coisa menos coisa, que nào fui 
ao velório nem ao enterro e, desde 1963, já não era sequer visita da casa.
Embora não tivesse assistido ao nascimento, sei tudo sobre ele, graças 
ao Nuno de Bragança que um dia me ofereceu, em encadernação da lavra 
dele, as actas do registo e toda a história dos três primeiros anos da criança.
Pelo punho do Nuno de Bragança, com o famoso gato que usava como 
assinatura, está escrito no primeiro desses volumes o que a seguir copio:
«Este é o conjunto dos programas e “Folhas de Iniciação Cinemato­
gráfica” correspondente ao primeiro ano de actividade do Centro Cultural 
de Cinema, o qual nasceu de uma ideia de
Pedro Tamen
Nuno Cardoso Peres
Nuno Portas
José Jorge Escada
Fernando Sá
Nuno de Bragança
José Domingos de Morais.
«Este primeiro ano de actividade foi gerido por uma comissão admi­
nistrativa composta por 2 1
Pedro Tamen (presidente)
José Jorge Escada
José Campos de Oliveira
Nuno de Bragança
com a qual trabalharam
José Maria Torre do Vale
Luís de Sousa e Costa
Francisco Bugalho
Manuel Vicente
Carlos Caldeira Guimarães
Frederico Braga
José Eduardo Feijóo»
CCC vale pois por Centro Cultural de Cinema, subintitulado Cineclube 
de Universitários para uma Cultura Cinematográfica Cristã. No primeiro 
texto dado a lume, o próprio Nuno de Bragança explicou o que queria dizer 
essa divisa: -Fornecer aos sócios ferramenta cultural para ver cristãmente 
Cinema», ou seja, «este cineclube arroga-se uma pretensão dupla: ensinar 
a ver o Homem e fazê-lo por intermédio do Cinema».
O primeiro tema proposto era a Santa Alegria. Não lhe chamaram 
propriamente assim. Mas sob o nome de «A Alegria de Viver — As Virtudes 
Naturais», Jacques Tati (Les Vacances de MonsieurHulot), os Irmãos Marx 
(A Night at the Opera), Charles Chaplin (cinco curtas-metragens dos 
períodos Keystone e Essanny) e Tótó (Guardie e Ladri) ilustraram, em 
Novembro e Dezembro de 1956, em sessões realizadas no Jardim-Cinema, 
quatro dessas «Virtudes Naturais»: a Infância, a Alegria, a Simplicidade, a 
Naturalidade. Eram assim em 1956. Éramos assim em 1957.
O CCC foi um dos mais tardios frutos do movimento cineclubista que 
eclodira em Portugal a seguir à guerra, tendo como pioneiro o ainda 
existente — e resistente — Clube Português de Cinematografia, mais co­
nhecido por Cine-Clube do Porto, pois no Porto iniciou actividade em 
2 1 6 1945. A década de 50 foi o período áureo do movimento, com cine-clubes
OS MEUS FILMES DA VIDA 217
de norte a sul do país, de Viana do Castelo a Olhão. Normalmente, era tudo 
gente do reviralho que achava que o cinema podia e devia ter grande papel 
na «batalha das idéias» e usava e abusava dos filmes ditos progressistas (que 
a Censura deixava chegar até às nossas salas) a fim de doutrinar cinema­
tográfica e ideologicamente. O neo-realismo italiano, o realismo mexicano, 
o realismo poético francês, o sisudo cinema britânico e um ou outro autor 
americano (normalmente os que, por essa altura, tinham sido vítimas da 
caça às bruxas do senador McCarthy) eram a base da programação. Mas 
aprendia-se muito e uma geração — a minha — deve o amor pelo cinema 
a essas históricas sessões dos cine-clubes que, nos fins dos anos 50, 
começaram a ser implacavelmente perseguidos por um regime cada vez 
mais suspeitoso deles. Se é indiscutível que havia, em muitos, a mãozinha 
clandestina do PC, era abusivo generalizar e pretender — como por esses 
anos escreveu Domingos Mascarenhas —- que tivessem Moscovo numa 
ponta e a Lua na outra. Os tempos eram unitários e nem tudo era ortodoxia. 
Pelo contrário, até muita heterodoxia se fabricou lá.
Por mim, comecei a aprender cinema ainda nos mais velhos desses 
cine-clubes lisboetas (o ABC e o Imagem) em sessões que tinham por 
cenário o Capitólio, acolhendo então marginalidades bem diversas das que 
hoje o frequentam. Depois, começou o CCUL (Cine-Clube Universitário de 
Lisboa), para as bandas do Chiado Terrasse e foi nele, como «católico de 
serviço», que me iniciei em prosas cinematográficas e em lugares dirigen­
tes. À excepção de um artigo dedicado às meninas da JECF (Juventude 
Escolar Católica Feminina), publicado na revista delas (Ao Largo) a cantar 
da grandeza do cinema de Sua Graciosa Majestade, jaz num programa do 
CCUL a minha primeira prosa sobre filmes e vidas.
O filme era Miracolo a Milano de Vittorio De Sica, então na sua máxima 
cotação crítica e política. Acabava com mendigos a voar por cima da cúpula 
de San Pietro. Para que nào nos extasiássemos só com a poesia, os 
«controladores» ensinavam-nos a ver que esse voo era orientado para leste, 
apontando inequivocamente a direcção do paraíso aonde os proletários 
encontrariam a felicidade. Ainda hoje ignoro se De Sica teve alguma vez 
essa intenção.
2 18 Esse texto começava pomposamente com o axioma «Vittorio De Sica é 
o cineasta do Homem» e falava do reencontro «connosco e com os outros». 
A prosa era tão cristã quanto marxista, em tempo de linguagem cifrada. Fui 
muito cumprimentado.
Mas (outras influências) já começava com gostos bizarros. Nesses anos 
de 56 e 57, quando, ao meu lado, o CCC dava os primeiros passos, descobri 
no CCUL Nicholas Ray e Anthony Mann, Budd Boetticher e Richard Brooks. 
A programação desses autores levou a querelas infindas. Não me sentia 
em família e no ano seguinte ancorei no CCC ao lado dos «católicos pro­
gressistas» em cujas veias éticas corria o estético sangue azul que me 
fascinava.
O CCC inaugurara uma prática que destoava da dos outros cine-clubes. 
Não só os filmes escolhidos eram «diferentes» (Rossellini e Bresson 
eram os santos padroeiros), como os programas em vez de serem 
traduzidos dos clássicos eram em vernáculo, ou seja, em prosas nossas e 
originais.
Ao grupo matricial, juntaram-se, além de mim, o Alberto Vazda 
Silva, o M. S. Lourenço, o Manuel de Lucena, o Francisco Sarsfield Cabral, 
o Paulo Rocha, o Duarte Nuno Simões, etc. As prosas, seguindo a 
famigerada influência dos Cabiers du Cinema, começaram a ser progres­
sivamente delirantes e progressivamente herméticas. Mas publicaram-se 
por lá alguns dos mais belos textos sobre cinema escritos em portu­
guês, como os do Nuno de Bragança sobre os Irmãos Marx ou II Bidone 
de Fellini, os do Alberto Vaz da Silva sobre Casque d’Orou Jobnny Guitar, 
os do Manuel de Lucena sobre Arkadin de Welles ou Moby Dick de 
Huston.
O Jardim-Cinema (primeiro), o Roma (depois) esgotavam sistematica­
mente para essas sessões que foram ponto de referência para uma geração 
e uma classe. Ao princípio, em total sintonia com os gostos dos críticos, a 
pouco e pouco (progressivamente) desconfiados ou irritados com 
preferências que lhes pareciam heréticas. Como já uma vez recordei, o 
Alberto Vaz da Silva e o Manuel de Lucena eram os que mais iras suscitavam 
pela prosa hermética (signo e sina que os perseguiría vida fora, nas artes 
ou na política).
Mas a cólera das turbas explodiu com um texto meu — obviamente 2 19
sobre Nicholas Ray — efectivamente incompreensível a não ser para mim 
próprio e mais duas ou três pessoas que de mim sabiam.
Como já por lá se instalara a perniciosa divisão entre cérebros e braços, 
estes, conduzidos pelo jovem Magalhães Mota, meditaram a vingança. E 
antes de começar a sessão (Bitter Victoryde Nicholas Ray) a voz do futuro 
deputado fez-se ouvir aos microfones para «ler um texto muito esclarecedor 
do programa». E leu tudo (o tal meu texto) para uma sala cheia que ria às 
gargalhadas. Foi o primeiro grande enxovalho público da minha vida. Ce 
n 'était qu ’un début.
Aliás, tudo foram débuts nesses tempos e no CCC. Vivi nele o long, long 
trailer do meu filme da vida. A partir daí foram só variações. Jamais em 
forma de fuga.
220 JOÀO BÉNARD DA COSTA
TERÇAS-FEIRAS CLÁSSICAS
Há horas felizes. Uma delas, foi quando o dr. Fernando Abranches- 
-Ferrão me telefonou, vai para dez anos, a dizer que tinha em seu poder 
o espólio do pintor Guilherme Filipe referente ao JUBA (Jardim Univer­
sitário de Belas-Artes), mais conhecido na gíria lisboeta dos anos 40 e 50 
como A JUBA (e, de facto, pelo jeu de motsfora. o nome surrealisticamente 
escolhido). Esse espólio incluía toda a documentação referente às famosas 
sessões de cinema que, entre 1949 e 1955, A JUBA organizou às terças- 
-feiras, no Tivoli, às seis e um quarto da tarde, sob o pomposo nome de 
«Terças-Feiras Clássicas». Abranches-Ferrão propunha-se legar tal acervo à 
Cinemateca Portuguesa, intenção que se concretizou em 1981.
As caixas que hoje se conservam na Cinemateca contêm, além de todos 
os programas das 287 sessões, os originais dos comentários que ante­
cediam os filmes, confiados ao «quem era quem» da vida cultural lisboeta 
da altura. Todos marcados com o ferrete da Censura. Nuns casos, o 
«aprovado sem cortes», noutros «aprovado com cortes» (e o célebre lápis 
azul a riscar o que nào se podia dizer) e noutros um enorme carimbo, ora 
a azul ora a encarnado (nunca percebí a predilecção da censura por essas 
cores) com os dizeres REPROVADO. Quando assim acontecia, ninguém 
comentava o filme.
Nessas páginas se encontra um dos mais deliciosos cortes de censura 
que conheço. Refere-se ao comentário do filme Great Expectations 
(. Grandes Esperanças) de David Lean (1946), adaptação do homônimo 
romance de Dickens. Numa sessão de Dezembro de 1952, o ex-candidato 
à presidência da república, Orlando Vitorino, subiu ao pódio. Pretendia 
ajustar contas com quantos haviam chamado (a Dickens, ou, even­
tualmente, a ele próprio) reaccionário. E dizia que essa acusação era «o 
aviltamento de uma nobre atitude». Até aí, tudo bem para a censura. Mas 
quando explicava porque achava isso, a porca torceu o rabo. E a passagem: 22 1
«O verdadeiro reaccionário é aquele que se opõe à acção dominante, o que 
luta contra os vencedores e contra os que mandam. De qualquer modo, 
o reaccionário é sempre um herói» está cortada a lápis encarnado, com a 
indicação «reprovado». Já à continuação da frase («e, caso comprovativo, 
foram sempre os reaccionários os que mais se arriscaram, como aconteceu 
com o grande dramaturgo Kotzebus, assassinado por um jovem e lírico 
revolucionário») os censores disseram nada.
No espólio incluem-se também dezenas de cartas e os recibos dos 
comentadores pelas importâncias recebidas. Nessa altura, os intelectuais 
saíam barato e deixo o dr. Cadilhe a sonhar com os recibos de 300S00, 
passados por gente como Jorge de Sena, Antônio Pedro, Delfim Santos, 
Carlos Queiroz, Vitorino Nemésio, Casais Monteiro, Vieira de Almeida, 
Sophia de Mello Breyner, etc., etc.
Há por ali material precioso a estudar, de diversos pontos de vista e esse 
estudo está a ser feito. Testemunho dele foi a recente publicação pela 
Cinemateca do livro Sobre Cinema de Jorge de Sena, compilado por 
M. S. Fonseca e basicamente constituído pelas quinze conferências que 
Sena fez para A JUBA. Nesse livro se assinalam também os cortes da 
censura como aquele que a propósito de Les Visiteurs du Soir(Os Tro­
vadores Malditos) de Marcei Carné (1942), impediu Sena de dizer que «a 
liberdade do amor e o amor da liberdade, um e outro tão vigorosos, 
conscientes e firmes que contra eles as portas do Inferno não prevalecerão, 
representam imperativos constantes da nossa consciência, leis permanen­
tes da nossa personalidade.» As «portas do inferno» podiam não prevalecer 
mas a Censura prevaleceu.
As «Terças-Feiras Clássicas», com o subtítulo «Filmes que não esquecem», 
tiveram na aceitação do cinema como obra de cultura e obra de arte um 
papel decisivo e que, à época, se considerou triunfal. Pelo cinema como 
«Sétima Arte» tinham pugnado, entre nós, algumas poucas vozes nos idos 
anos 20 e 30, ecoando as do movimento francês «avant-gardista» que com 
tal numeração a designou. Remonta a 1917 a primeira tentativa quando, 
para «selecto público» em «selecta sala» (o Olympia, então o mais sofisticado 
cinema de Lisboa), o distribuidor e exibidor Leopoldo O’Donnell organi­
zou as Matinées de Arte. Sintomaticamente, convidou para as inaugurar22 2
JARDIM UNIVERSITÁRIO DE BELAS ARTES
FILMES QUE NÃO ESQUECEM
COMENTADOS POR ESCRITORES E CRÍTICOS DE ARTE
í-à.íA DISTRIBUIR Ê NAO AFIXAR
Receita Eventual 2
r’ * preSMt* eílyí* íiÇlLÇ—. exemplares pagou • 
R-ytíste do aftlp especial devido nos termos da trérb» 
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NASTERÇAS - FEIRAS CLÁSSICAS TIVOLI
DAS 18.15 ÁS 20.30
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Antônio Ferro (com 22 anos e nas sua fase do Orpheü) que, não menos 
sintomaticamente, escolheu como tema o cinema italiano e «As grandes 
trágicas do silêncio» que eram três e se chamavam Francesca Bertini, Pina 
Menichelli e Lyda Borelli.
Depois, em revistas dos finais dos anos 20, futuros realizadores também 
eles à roda dos 20 anos, como Brum do Canto, ou Lopes Ribeiro, partiram 
para a mesma guerra, na defesa da avant-garde francesa, do «expression- 
ismo» alemão, de Griffith, Stroheim e Chaplin, ou —- até já — dos clássicos 
russos. Eles e outros mantiveram a chama acesa até ao fim da segunda 
guerra, mas a ideia de uma «nobreza» do cinema foi, até 1945, coisa de 
raríssimos e para raríssimos. Como recordei em crônica anterior, só o 
movimento cineclubista venceu essa cruzada, por razões, muitas vezes, 
excêntricas ao fulcro dela.
As «Terças-Feiras Clássicas», que apanharam esse movimento na crista 
da onda, juntaram o útil ao agradável. Se as razões do combate de 
Guilherme Filipe eram afins às dos cineclubes, soube ele travá-lo com 
melhor táctica. Mais eclético na escolha dos comentadores e dos filmes, 
acertou na sala certa. Esse Tivoli, à época genericamente aberto a toda a 
«grande arte» e aonde se sucediam em concertos, a Sinfônica de Bamberge a Filarmônica de Viena, Keilberth e Bõhm, Gieseking e Rubinstein, 
Moisewitsch e Brailowsky, Heifetz e Menuhin. Conquistou, assim o «tout 
Lisbonne.» Entre 50 e 54 — a grande época das «Terças-Feiras Clássi­
cas» —, o Tivoli esgotava sempre: o «esquerdalho», como lhe competia e 
parece que volta a competir, enchia o Segundo Balcão; Platéia, Primeiro 
Balcão, Camarotes e Frisas tinham «as melhores famílias de Lisboa».
Às vezes, havia incidentes curiosos. Lembro-me, por exemplo, dum 
comentário de Frei Diogo Crespo ao filme de Vittorio De Sica, La Porta dei 
Cielo (A Porta do Céu). O franciscano chegou de hábito e sandálias e em 
jeito de homilia exortou as «senhoras e senhores» a «que a lição deste filme 
seja para vós um banho de espiritualidade». Mal acabou, em vez do banho 
pedido, choveu a pateada dos cucurutos da sala. As bases, responderam, 
por reacçâo, com uma standing ovation de gente bem vestida e bem 
nascida. Sorridentemente, o bom frade abençoava uns e outros.
2 2 4 Perdi poucas dessas «Terças-Feiras Clássicas» às quais devo, como aos 
cineclubes, os meus anos de formação. Vi religiosamente os filmes, ouvi 
religiosamente os nomes acima citados e muitos outros (médicos, advoga­
dos) de que lembro, entre os de maior nomeada, Azeredo Perdigão e 
Adelino Palma Carlos, Celestino Gomes e Reynaldo dos Santos, Diogo 
Furtado e Eduardo Coelho.
A selecçào dos filmes obedecia aos padrões críticos da época. Chaplin, 
René Clair e De Sica — ensinavam eles — eram os três maiores vultos da 
história do cinema. Tudo quanto deles existia em Portugal era passado e 
repassado. Do neo-realismo italiano, não faltava nada que até cá não 
tivesse chegado. O cinema francês desses anos — depois universalmente 
execrado — era objecto de nacional adoração e por lá vi todo o meu Camé, 
todo o meu Delanoy, todo o meu Autant-Lara. Sobretudo — e aí, mesmo 
meu — lá conheci Cocteau, cujo Orphée, salvo erro, nessas sessões se 
antestreou e que vi em êxtase. O mesmo se passava com o cinema inglês. 
Cinema americano pouco e muito maltratado. Eram os tempos em que se 
achava que a partir de 1945 só havia em Hollywood dois cineastas que 
mereciam esse nome: John Huston e Preston Sturges. Hitchcock passava 
raramente e para ser tratado com os pés (puro entretenimento), John Ford, 
idem idem aspas aspas, Howard Hawks nem era nome que se pronun­
ciasse em tal santuário.
De todos os comentários ouvidos, três me ficaram particularmente na 
memória.
Lembro-me de ouvir Nemésio (mas quem esquece cada intervenção de 
Nemésio?) a defender Crime and Punishment (Punição) de Sternberg 
(1935). Sempre se disse — o próprio Sternberg o dizia — que era um filme 
menor e uma traição a Dostoievsky. O texto de Nemésio (que publiquei 
em 1984 no catálogo Sternberg, da Gulbenkian e da Cinemateca) é o 
melhor de quantos conheço sobre o filme, do qual Nemésio dizia que «nele, 
lemos Dostoievsky», através de sombras e luzes e através da «atmosfera de 
subterrâneo, fosca e subliminal».
Lembro-me de ouvir Sophia (mas quem esquece cada palavra de 
Sophia?) a comentar Anna Karenina de Duvivier (1948), ou antes o livro 
de Tolstoi, ou antes Tolstoi. Lembro-me de a ouvir dizer que em Tolstoi 
havia perdão para toda a gente. «Só um homem não pede justiça e nào pede 22 5
verdade.” Era Napoleão. E lembro-me de a ouvir acabar, recitando em 
francês, o poema «A Isnaia Poliana» que está escrito no túmulo de Tolstoi. 
«Des myosotis au printemps».
E lembro-me de um excepcional comentário de Vieira de Almeida (mas 
que comentário dele não era excepcional?) ao Rashomon de Kurosawa 
(1950). Pela «forma de narrar», Vieira de Almeida comparou Rasbomon ao 
Fédon de Platão. Em ambos «não se trata só de voltar atrás, como alguma 
vez ocorre em certas narrativas», mas da «oscilação permanente entre a 
narrativa do passado e uma evocação mágica que o torna presente.»
Lembro-me, muitas vezes, dessa analogia. Sobretudo nestes Meus 
Filmes da Vida, em que nenhum Equécrates pediu ao Fédon que nào sou 
que lhe narre a morte e vida de tantos momentos-história que tanto se 
confundem com a história de momentos. As »Terças-Feiras Clássicas» foram 
um deles.
226 JOÃO BÉNARD DA COSTA
A PAIXÃO SEGUNDO BERGMAN
O meu filme da vida, agora, chama-se Ingmar Bergman. Não estava 
previsto — devia vê-lo de longe e em profundidade de outros campos que 
mais tinha obrigação de semear —, mas aconteceu. Um pouco como 
naquele genial filme dele, que agora revi com muito diverso olhar, 
chamado Fãngelse (quer dizer Prisão e passou esta semana na Cinemate­
ca pela primeira em em Portugal), em que um velho professor de 
matemática de um realizador chamado Martin Grande lhe entra pelo 
estúdio, aonde rodava pacificamente um filme de amor, e lhe propõe uma 
obra sobre o diabo, sobre a Terra como inferno. O cineasta fica natu­
ralmente baralhado (apesar do professor ter saído recentemente de um 
manicômio) e demora 80 minutos (tempo de duração do filme) a 
responder-lhe que o projecto é inviável. Ou Deus existe e tal acção 
dramática não tem razão de ser ou Deus não existe e não há solução. Falei 
de 80 minutos. Podia falar de 40 anos, porque esse nonsense é o sentido 
da obra de Bergman, pelo menos desde A Prisão, estreado há precisa­
mente quatro décadas.
Como ia dizendo, também não estava previsto que Ingmar Bergman me 
reaparecesse em Março de 1989 para me meter no filme dele e me convidar 
para tão faústica diversão. Andava longe dele, há séculos que não o via 
(a última foi quando aqui escrevi sobre Persona) e planeara ser visitante 
ocasional do espaço que lhe estava reservado na programação da 
Cinemateca.
Mas, por que toma e por que deixa, comecei a rever-lhe os filmes, 
alguns até a vê-los pela primeira vez, pois o jovem Bergman nunca andou 
por Portugal até à semana que está a correr. E — tratando-se de Bergman 
e de mim — fui apanhado em cheio. Vivo com ele, como com ele, durmo 
com ele. Sempre fui menino de manias e quando uma me pega tudo me 
larga. E Ingmar Bergman é altamente contagioso. Apanhei a minha terceira 2 27
bergaminite, depois da primeira (muito violenta) em 1958-60 e da segunda 
(mais demorada e resistente) em 69-71. Desta vez, formou-se mais 
depressa e espero que passe com o calendário, quando o ciclo acabar, a 
13 de Maio, na Cova da Iria.
Da primeira vez, tinha todas as predisposições. Desde 1955 e dos 
Sorrisos em bergmanomania (já aqui falei disso, mas Bergman convida à 
repetição) que as minhas bíblias cinematográficas me falavam tanto dele 
como os mass media hoje falam da SIDA. Por isso se compreende que 
tenha muito adequadamente aproveitado a minha lua-de-mel em Paris 
(Verão de 1958) para perder descontroladamente mais essa virgindade. 
Somarlek(Um Verão de Amor), de 1951, Gycklamas Afton( Noite de Circo). 
de 1953, e DetSjunde Inseglet (O Sétimo Selo), de 1957, foram as primícias 
e fiquei infectado. Em 1960, a febre era alta e o pulso muito acelerado. Foi 
o ano em que por cá se estrearam Sommamattens Leende (Sorrisos de Uma 
Noite de Verão), de 1955, e Smultronstãllet (Morangos Silvestres), de 1957. 
logo seguidos por En Lektion i Kárlek (Uma Lição de Amor), de 1954 e 
Jungfrükallen (A Fonte da Virgem), de 1960. Vi-os e revi-os uma data de 
vezes, uma data de vezes escrevi sobre eles e até embarquei numa 
chumbada colectiva chamada Bergman no Cerco, em cujo «genérico» 
figuram também os nomes de Alberto Seixas Santos, Antônio Escudeiro, 
António-Pedro Vasconcelos, Ernesto de Sousa, João Veiga Gomes, Jorge 
Pegado Liz, José Cardoso Pires, José Fonseca e Costa, José Vaz Pereira e 
Manuel Villaverde Cabral. Santos tempos, como se diz noutro Bergman da 
juventude, esse chamado Skepp till Indialand (Barco para a índia), de 
1947, também visto esta semana na Cinemateca, em prima assoluta em 
Portugal.
Depois — era o meu tempo de modas — fartei-me e julguei curar-me 
desse vírus. Torci o nariz ao Rosto(Ansiktef), de 1958, por cá estreado em 
1962, torci outras partes do meu corpo a Djãvullens Õga (O Olho do Diabo), 
de 1960, também vindoaté ao Império (lugar de todos eles, honra seja feita 
ao Eng. Gil) em 1962.
Passei a escrever alegremente que Ingmar Bergman era «um daqueles 
poucos autores que não se devem amar em conjunto ou rejeitar em 
2 2 8 conjunto. De vez em quando uma luz não suave mas oculta inunda-o e
descobre-nos. Nas trevas, onde há choro e ranger de dentes». Escrevi isto 
em 1963, quando porca passou Nattvardsgãsterna (Luz de Inverno), filme 
da colheita desse mesmo ano e que me voltou a extasiar.
No fim da década, já me julgava imune. Mas apareceram-me ou 
reapareceram-me com Persona (A Máscara), de 1966, Vargtimmen (A 
Hora doloho), de 1968 e En Passion (A Paixão), de 1969. Com a ajuda de 
Liv Ullmann e Max von Sydow voltei a recair. Contribuíram muito coisas 
cá minhas e que terei pudor de contar seja a quem for. Mesmo neste 
permissivo jornal há limites de decência.
Foi a seguir a essa crise que julguei tudo composto. Já nào escrevia 
dislates extremistas como em 1960, nem dislates ecléticos como em 1963. 
Bergman vinha de tempos a tempos, ao sabor dos filmes, ora mágicos 
como a Flauta de Mozart, ora visceralmente abissais como Viskningaroch 2 2 9
rop (Lágrimas e Suspiros), com a putrefacção da carne e a «Sarabande» da 
Suite ne. 5 para violoncelo de Bach (tocada por Fournier), ora obscura­
mente convulsos como esse Ansikte mot Ansikte (.Face a Face) que é, 
porventura, o filme mais vezes projectado nos meus sonhos cinéfilos. E 
vieram as marionetas, e vivi Alexander em casa dos Ekdahl, ou em casa do 
Bispo. Herbstsonat (Sonata de Outono) também, sobretudo por causa da 
noite de Ingrid Bergman com Liv Ullmann.
Mas agora o caso é diferente. O que me salta às goelas não sào quatro 
ou cinco filmes, ou um de vez em quando, mas a súmula dos 41 filmes 
( mais um episódio) que constitui o ciclo que decorre na Cinemateca desde 
o dia 11 e até Maio. E, perante este corpus imenso (e ainda faltam Kris. de 
1946, Sãnt hãnder inte har, de 1950, e mais os sete filmes que Bergman 
escreveu mas não realizou), todos os sintomas da doença voltaram, 
agravados.
Dou por mim a fazer listas de nomes recorrentes (porque é que Henrik 
rima sempre com Frederik, porque é que todas as Karin são tão parecidas, 
por que é que há tantos Egerman, Vergérus ou Vogler), a perder noites em 
estatísticas de actores (mesmo os mais secundários), de técnicos, etc. Eu 
mesmo, no mais mim de mim, em rédea solta masturbatória. As coisas estão 
complicadas. E quando estão complicadas comigo gosto de as complicar 
para os outros. O meu desejo é que a epidemia alastre, é beber pelo copo 
do vizinho para lhe pegar a maleita, e pôr toda a gente a circular entre os 
espectros de Strindberg e as sonatas de Bergman.
Eu disse «toda a gente»? Estou pior do que pensava. Nem o sinto nem 
o desejo. Nestas coisas e nestas paixões, sempre fui elitista. O que eu queria 
dizer era «certa gente», quer a conheça quer não a conheça, mas que é 
sempre «certa» porque incerta e susceptível do mesmo desarrazoado. 
Gente com razão, burocratas de todas as artes e de todos os ofícios, por 
mais que se apliquem, ponho-os à porta, que isto é conversa para doentes 
e para loucos, gente de Bergman, gente de mim.
Sào esses que convido (estou a pensar só na semana que vem) para 
verem como Alma (Gudrun Frost) se despe na Noite do Circo-, para 
conhecerem as mulheres Lobelius em Kvinnors Vantãn ou os homens do 
2 3 0 mesmo nome em Kvinodrôm (mas Kvinnorpper sempre dizer «mulheres»);
para a festa de anos do Professor Erneman em Uma Lição de Amor, para 
beberem do cálice de Madame Armfeldt (Naima Wifstrand) nos Sorrisos, 
depois de terem sido introduzidos a festins pelo sol da meia-noite dos 
Verões de amor de Marie e de Monika, também chamadas Maj-Britt Nilsson 
e Harriet Andersson, minhas paixões maiores.
Às vezes, é um Cupido num biscuitquem nos convida a entrar na dança; 
outras, uma melopeia cantada por um cocheiro bêbedo ou sonolento; 
outras, ainda, um grande plano dos grandes olhos de Anita Bjork ou Ulla 
Jacobsson. Mas seja em scherzo seja em andante, seja em allegro, pouco 
ou muito sustentado, o convite de Bergman é sempre — foi sempre — para 
a ewige nacht mozartiana, essa que, em Vargtimmen, Max von Sydow 
iluminou para sempre com um teatro de marionetas.
Só quem sabe delas (as noites terríveis) pode também despedir-se de 
nós a dizer «Boa-Noite», como Bergman disse no final de Fângelse. Sabia 
disso o Nuno Bragança que dedicou A Noite e o Riso «à Carolina Fonseca 
Caupers, que me disse Boa-Noite quando nos despedimos antes de ela 
morrer».
Agora sei que Ingmar Bergman é o autor da única Paixão escrita no 
século XX. Só com essa Paixão pode ser compreendido. Só com essa 
Paixão pode ser visto, ouvido e vivido.
OS MEUS FILMES DA VIDA 23 1
MEIAS-NOITES DE TERROR
Cada vez estou mais convencido de que a humanidade se divide em 
duas espécies: aqueles para quem meia-noite quer dizer o meio da noite, 
ou seja que falta tanto para viver dela como o que dela já se viveu, e aqueles 
que nem dão por ela, pois estão a dormir há tanto tempo como o que lhes 
resta para dormir. Pensando bem, talvez nem seja isso o que divide a huma­
nidade mas o que divide a humanidade da infra-humanidade. Até há infra- 
-humanos para quem meio-dia é mesmo o meio do dia e não a hora de 
começar a acordar.
Se é verdade que, poeticamente, a meia-noite é hora de crime e traição, 
23 2 também o é que a essa hora começam as casas assombradas a ter algum 
interesse. E pode atribuir-se o assombro às mais diversas moradas, desde 
sotãos e andares com séculos de história a caves neófitas, mas que 
prometem. Coisas para quem sabe.
Sabem-no certamente os autores de filmes de terror que se vingaram 
— muito justamente — das despóticas e esclarecidas maiorias, reservando 
para essa hora o princípio dos seus efeitos especiais. «Vai alta a lua! Na 
mansão da morte / já meia-noite com vagar soou.» É mais ou menos isso, 
que os românticos sabiam destas coisas.
Sempre gostei de filmes de terror. Aliás, o cinema foi sempre coisa do 
diabo, como muito bem viram santos padres, do tempo em que os havia. 
Quando o comboio dos Lumière chagava à gare de Ciotat, a assistência não 
batia palmas, mas desandava a correr, para não ser esmagada pelo impa­
rá vel avanço da máquina. Mais tarde, desataram a fugir os que ouviram ru- 
gir, pela primeira vez, o leão da Metro, bem convencidos que o animal não 
demorava a saltar-lhes em cima. Nunca gostou de cinema quem nào gos­
ta do escuro. E de ter medo. Como dizia a publicidade de um dos últimos 
grandes filmes de terror — The Fly de David Cronenberg (1986), um dos 
raros casos em que o remake ultrapassou o original — «Be afraid, be very 
afraid.»
Houve uma altura em que os prosélitos desse culto tiveram em Lisboa 
templo e tempo especiais. Foi pouco antes do 25 de Abril e era às sextas- 
-feiras, à meia-noite, no Politeama.
Chamavam-se mesmo «Meias-Noites de Terror», e a sala enchia-se com 
uma fauna especial, cultivada e recrutada nas redondezas (do Intendente 
ao Socorro). Fazia parte dos rituais nào começar por dar parte fraca e partir 
para a expedição céptica e galhofeiramente. Pela mesma razão que faz de 
casas mortuárias e casas de passe lugares privilegiados para engraçadinhos 
e ataques de riso, os dez minutos anteriores à sessão eram o mais alvar 
espectáculo que já me lembro de ter visto. Gritos, uivos, estridências de 
soprano ligeiríssimo ou cavidades de baixo profundo. E o que faltava às 
gargantas era compensado por todos os órgàos ruidosos que temos.
Nào era nada, comparado ou comparável ao que se passava quando a 
sala obscurecia e se via na tela a trade-mark de qualquer distribuidor 
português. A banda sonora que a acompanhava desafiava qualquer efeito 
especial, concebido pelo mais perito. Uns puxavam de apitos, outros de 233
despertadores. Uns berravam «Tira daí a mão», outros «Oh filha, chega-te 
cá». Além das descargas orgânicas, sirenas, gaitas-de-beiços, cenas de 
pugilato, reais ou simuladas, pontapés e apalpões nos retardatários,acompanhavam os genéricos e o início do desenho das atmosferas 
sinistras. Sapientemente, os arrumadores fingiam impor ordem para 
suscitar mais desordem. Sapientemente a gerência da casa acendia as luzes 
ao fim de 10 minutos de filme a anunciar intervalo. Durante ele. metade 
dos ânimos esmorecia, enquanto a outra metade continuava, com provo­
cações ainda mais soezes, a tentar manter a chama acesa. Nova explosão 
acompanhava o recomeço do filme, mas não sobrevivia outros dez 
minutos. Finda essa infalível meia hora (10+10+10+10), depois da meia- 
-noite e meia, a sala mergulhava no mais religioso silêncio só se manifes­
tando — com nova algazarra — em dois casos: quando as cópias 
(normalmente estafadíssimas) davam mais saltos do que o habitual; ou 
quando, nos momentos de maior tensão, um desconhecedor das regras 
voltava com uma piada, que já não fazia parte do «filme». Os «xius!» eram 
então trovoada condigna do começo e rapidamente remetiam o importuno 
ao seu devido lugar.
Foi como cinéfilo que comecei a frequentar essas meias-noites, das 
primeiras que se fizeram em Lisboa. Porque se a programação habitual era 
muito má, de vez em quando caíam lá os ingleses da Hammer, Vai Guest, 
Freddie Francis ou, principalmente, Terence Fisher. Como quase todas as 
sessões especiais os ignoravam, era ocasião única para os ir ver. E também 
— mais esporadicamente — para reencontrar um ou outro Roger Corman 
e um ou outro Mario Bava.
É preciso explicar que o gênero (morta a série B e os grandes anos 50) 
andava pelas ruas da amargura sem ter reconquistado ainda as cartas de 
nobreza que Exorcistase Tubarõesihe voltaram a dar (algo ambiguamente) 
na segunda metade dos anos 70. Descendentes de Vai Lewton ou George 
Pal, do Monstro da Lagoa Negra ou da Tarântula, do Monstro dos Tempos 
Perdidos ou do Homem do Planeta X, só esses sobreviviam, tratados com 
os pés pela crítica bem-pensante.
Só não fui nessa cantiga, por duas razões: uma espontânea e outra 
cultivada. A espontânea devo-a ao Cine-Esplanada de Setúbal, aonde, nos 
2 3 4 anos 50 e em Verões da Arrábida, costumava matar o jejum cinéfilo das 
férias. Qualquer coisa servia e por puro acaso, o que por lá vi — e nunca 
mais esqueci — foram mesmo os filmes série B dos anos 50, de Jack Arnold, 
gênero Creaturefrom the Black Lagoon (modéstia à parte, o filme favorito 
de Marilyn, a acreditar em Billy Wilder e no Seven Year Itch) ou Revenge 
ofthe Creature. Ver Julia Adams ou Lori Nelson nos braços da Criatura, em 
noites de nortada e com a lua a reforçar o r/écor(a esplanada era ao ar livre 
e, com a devida vénia, o maior cinema do país) marcou-me para todo o 
sempre e estigmatizou-me nessas direcções.
A razão cultivada, devo-a ao Luís de Noronha da Costa, de quem fiquei 
amigo nesses inícios dos anos 70, e que tinha (e tem) por Terence Fisher 
uma admiração que me revelou e contagiou. Para ele — com carradas de 
razão — Fisher foi o único acontecimento no «impossível cinema inglês» 
desde Hitchcock até hoje (hoje — yourawful laundrette— ainda está pior 
do que nunca).
Com o Luís Noronha da Costa, nessas noites do Politeama, aprendí The 
BridesofDracula (1960), The Gorgon (1964), Dracula, Prince ofDarkness 
(1965) e, sobretudo, sobretudo, Frankenstein Created Woman (1967) e 
Frankenstein Must Be Destroyed (1968). Frankenstein Created Woman 
considerou-o ele, desafiando todos os partis-pris (como só ele os sabe 
desafiar, na pintura e no cinema, construtor de anjos e pacificador de 
demônios) um dos 50 melhores filmes de todos os tempos, numa lista 
elaborada em 1981. E a Fisher aplicou a frase do inventor do cinema 
(Leonardo da Vinci, como se sabe), que diz: «Guarda il lume e considera 
la sua bellezza. Batti 1’occhio e riguardalo: cio che di lui tu vedi, prima non 
era; e ció che di lui era, piu non é.»
De Corpos queimados pela imagem (cito, mais uma vez, o Luís 
Noronha) é feito o cinema de Terence Fisher, em que «o grito e o erotismo 
se encontram gelidamente no sublime do Horror». Nessas sessões do Po­
liteama, quando Peter Cushing metia a alma do enforcado inocente no 
corpo cauterizado da amante (Susan Denberg), aprendí as relações que se 
podem estabelecer entre o «Terror-Cinema» e a sala escura de projecção. 
O contracampo, nessas meias-noites do Politeama, não estava vazio. 
Povoava-o uma massa álacre e uniforme que, da mais terrível e' inocente 
das maneiras, dava imagem a essa contra-imagem. Julgo que, sem ela, 
jamais teria compreendido Fisher.
Mal sabia eu — então — que por essa mesma altura a Hammer (do 
nome do produtor William Hammer) chegava ao fim dos 16 extraordinários 
anos (57-73) em que foram produzidos esses monumentos de gothic 
borror. Mal sabia eu que, em 1973, Terence Fisher (que morreu em 1980) 
assinava o seu último filme, que já não veio nem a Portugal nem ao 
Politeama, chamado Frankenstein and the Monsterfrom Hell.
Em todo o caso, uma época findou com essas meias-noites de terror que 
nào sobreviveram ao 25 de Abril. Presumo que muitos dos espectadores 
se tenham deslocado paulatinamente umas dezenas de metros para cima, 
do Politeama para o Olímpia, e de Peter Cushing para Marilyn Chambers, 
a deusa do pomo.
As vezes suspeito que é nessas salas, marcadas a X, que está ainda, pelo 
menos do lado da platéia, o único terror que continua o antigo. Mas sou 
bem capaz de estar a ser levado por excesso de noites e excesso de 
fantasmas.
23 6 JOÀO BÉNARD DA COSTA
OS COFRES-FORTES
Em vernáculo cinematéquico, cofres sào as câmaras (mortuárias ou 
vitais) em que se armazenam, a conveniente temperatura e a conveniente 
humidade, os filmes de uma colecçào, a memória dos nossos fantasmas 
deste século.
«Os cofres», «verificar nos cofres» são termos da linguagem quotidiana 
dessa estranha gente — a que acabei por pertencer — que dedica a vida 
a guardar e recuperar filmes. Para um leigo, a expfessào presta-se a 
confusões que podem ser delicadas. Ainda outro dia, um afável visitante 
ocasional me perguntou, com certa curiosidade, se nós (nós, Cinemateca) 
tínhamos muito dinheiro. Pensei que estava na frente de mais um que tinha 
embarcado na «cabala» de que a Cinemateca Portuguesa é um organismo 
rico, a viver do dinheiro «desviado» do Instituto Português de Cinema, em 
prejuízo dos naturais beneficiários dos fundos deste: os realizadores. 
Quando me preparava para repetir pela enésima vez a argumentação que 
contraria esse malévolo boato, o senhor (que, por acaso, era senhora) 
respondeu-me que a razão da pergunta não era essa, mas a quantidade de 
vezes que, telefonando-me ou telefonando ao director da Cinemateca, 
tinha ouvido como resposta que não estávamos, «estávamos nos cofres». 
Imaginava-nos, assim, a passar parte do nosso tempo a contar notas nos 
ditos. Apressei-me a explicar-lhe a outra acepção da palavra, antes que ela 
nos imaginasse a reunir em malas dinheiro casb para ir às compras na 
Gandarinha.
Os cofres sào os subterrâneos das cinematecas, o lado oculto do que 
vem ao escuro nas sessões que estas programam. Nas grandes cinematecas 
do mundo (coitada da nossa ao pé delas) são galerias e galerias, povoadas 
de caixas onde se afixam os nomes dos filmes mais mágicos da história do 
cinema. Às vezes tão mágicos que, para evitar cobiças alheias, os títulos são 
substituídos por nomes de código. Henry Langlois — o pai de todos 2 3 7
2 3 8
nós — nem sequer os tinha. Sabia-os de cor (diz-se que eram 60 mil) ou 
guardava-os em pedaços de papel que só ele sabia onde arrumava. 
Quando Malraux o quis demitir (o célebre Affaire Langlois, de 1968) 
respondeu-lhe que se o ministro persistisse pegava naqueles papelinhos 
(tirou alguns dos enormes bolsos do enorme fato do enorme corpo) 
engolia-os. Nunca mais ninguém se entendería nessas criptas.
Mas, mesmo ele, que sabia tudo de tudo, às vezes tinha surpresas. 
Arrumadas a um canto, tinha algumas dezenas de latas, sob o título Les 
inconnus, referindo-se a filmes ainda nào identificados. Um dia, ao abrir 
unia delas, teve a surpresa de verificar que umdesses inconnusse chamava 
mesmo L Inconnu, título francês do famoso filme de Tod Browning, The 
Unknown (1927), em que Lon Chaney cortava os braços por amor de Joan 
Crawford.
The Unknown apareceu, mas de quantos, tão grandes como, se 
continua à procura, sem que ninguém saiba do seu paradeiro? Muitos e 
muitos desapareceram em incêndios ou em guerras, mas muitos mais de­
sapareceram Umissingfilms'), porque os estúdios acharam, sobretudo na 
transição do mudo para o sonoro, que não interessava a ninguém guardar 
cópias e ocupar espaço com movies que nunca mais se veríam. Como 
Langlois escreveu: «Nos anos triunfais da arte do filme mudo, nos anos que 
viram, depois de The Birtb of a Nation de Griffith e de The Cheatde De 
Mille, uma sucessão de obras-primas, nào passava pela cabeça de ninguém 
que pudesse haver gente capaz da selvajaria de destruir esses filmes ou de 
os deixar desaparecer.»
Não passava, mas passou e a selvajaria fez-se e continuou muitos anos 
a fazer-se. Nalguns países — Portugal é um deles — faz-se ainda. Findo o 
prazo da chamada «exploração comercial» (regra geral de 5 a 7 anos), lá vão 
os filmes para auto-de-fé, com testemunhas, actas e tudo. Nào acreditam? 
Pois eu vos juro que é verdade.
Dou só um exemplo, ao sabor da ocasião e para não ir ao tempo dos 
afonsinhos. Ao folhear um «Cinéfilo» de 1974, dedicado a Bergman, reparei 
numa notícia em que a revista informava de várias sessões com filmes dele, 
por todo o país. A Vergonha passava em Vila do Conde e Alcochete. A 
Paixão em Tortosendo e na Régua. Quinze anos depois — só quinze anos
— onde estão essas cópias? Nem sequer em Lisboa, quanto mais 
na província. Secamente, os distribuidores informam que foram ao abate.
Foi quando Langlois e outros se deram conta do que estava a acontecer, 
que se criaram as cinematecas. A mais antiga foi a de Estocolmo, em 1933. 
Depois, em 1935, as de Londres, Nova Iorque e Berlim. Em 36, a de Paris, 
tinha Langlois 22 anos, e era ainda «mince comme le petit doigt», como 
costuma dizer a sua viúva Mary Meerson, outro nome capital nesta história 
(um dia, falarei aqui melhor deles, dois dos seres mais extraordinários que 
jamais conheci). Mas era já tarde. Como Langlois repetiu vezes sem conta, 
as cinematecas nasceram com dez anos de atraso. Se tivessem nascido em 
1925, em vez de 1935, quase tudo se conservaria. «Apesar disso — foram 
palavras dele —, ainda se podia esperar que tivessem podido salvar o 
essencial. Era presumir demasiado dos maus hábitos, do desprezo ou da 
indiferença que votaram as obras de arte cinematográfica a matéria 
bruta para transformação em verniz para as unhas ou em algodão- 
-pólvora.» 2 3 9
2 40
São palavras de 1955. Mas, de 1955 a 1989, a lista somou e seguiu. 
Apesar de datar de 1938 a criação de um organismo internacional, a 
Federação Internacional dos Arquivos de Filmes (FIAF) que tinha por fim 
dar alerta em todo o mundo. Em 1938, a FIAF tinha só quatro membros. 
Hoje, tem mais de 80. Mas se dezenas de milhares de filmes se salvaram, 
muitos mais se perderam.
Portugal — como de costume — acordou tarde e a más horas. Durante 
mais de 40 anos, da década de 30 a 1980, a Cinemateca, consagrada na lei. 
pela primeira vez, em 1948 sob a designação de Cinemateca Nacio­
nal — confundiu-se com um homem, o Dr. Felix Ribeiro que, sozinho, no 
SNI, depois na SEIT e, por fim, no IPC, bradou no deserto para a urgência 
do que havia a fazer. Ninguém lhe deu um tostão, ninguém lhe deu 
ouvidos. Na hierarquia do funcionalismo público cabia-lhe o grau de chefe 
de secção, dependendo de chefes de repartição, que dependiam de 
directores de serviço, que dependiam de directores-gerais, que dependiam 
de secretários de Estado, que dependiam de ministros. Como ele sal­
vou — ainda — umas centenas de filmes é mistério que nem eu sei explicar 
e que se deve à sua imensa persistência e imensa pertinácia. Mas lembro- 
-me bem — e é só um exemplo — de ele me mostrar um dia (nos fins dos 
anos 70, já depois dos cravos) um despacho de um ministro qualquer que 
lhe negava 250 contos para adquirir cinco filmes de Stroheim que lhe eram 
«oferecidos» por essa irrisória quantia. A Poderosa Excelência achava a 
despesa injustificada.
Desde 1956 — graças a ele — era a Cinemateca membro da FIAF, desde 
1958 — graças a ele — começaram as grandes retrospectivas, na salazinha 
do Palácio Foz que foi tudo quanto arranjaram para lhe dar, mesmo assim 
obrigando-o a ceder metade das cadeiras a velhos adormecidos, da fa­
mília dos funcionários do SNI. Começou a rever-se o passado do cinema 
português, começaram a ver-se os clássicos do cinema alemão e do 
cinema americano (histórica, essa retrospectiva de 65 a que, terroris- 
ticamente, António-Pedro Vasconcelos e Alberto Seixas Santos chamaram 
n’ O Tempo e o Modo «a mais importante manifestação artística em Portugal 
desde o OrpheuO. Mas dinheiro para cópias não havia e nesses anos — pa­
ra me limitar ao cinema português — desapareceram as últimas (ainda 
existentes nos anos 50) de filmes como O Trevo de Quatro Folhas (Chianca 
de Garcia, 1936), Os Fidalgos da Casa Mourisca (Arthur Duarte, 1938), A 
Varanda dos Rouxinóis (Leitão de Barros, 1939), O Feitiço do Império 
(Anónio Lopes Ribeiro, 1940), Porto de Abrigo (Adolfo Coelho, 1941), 
Vendaval Maravilhoso (Leitão de Barros, 1949) (destes últimos filmes, 
conserva-se a banda-imagem, mas perdeu-se a banda-sonora).
Só em 1980 — quarenta ou trinta anos depois de quase todas as 
cinematecas —, a nossa conquistou finalmente cartas de nobreza, equipa­
rada a Direcção-Geral, com autonomia administrativa e financeira, sede e 
sala próprias, na Barata Salgueiro. Õ Dr. Félix Ribeiro ainda viveu dois anos 
dessa ressurreição (morreu em 1982) como ainda viveu para ver os seus 
cofres (de que ele fora pioneiro, mesmo a nível internacional) equipados 
com um mínimo de condições. Mas, por essa altura, os brados de guerra 
eram outros. Descobrira-se que nem os filmes salvos se podiam considerar 
como tais, porque até aos anos 50 todos tinham como suporte químico o 
nitrato de celulose, objecto de decomposição imparável e altissímamente 
inflamável. A FIAF lançava o grito de guerra «Nitrate don’t wait», e que não 
esperava mesmo, demonstraram-no tragicamente alguns grandes incêndios 
como aquele que em 1981 destruiu totalmente a recém-inaugurada sala da 
Cinemateca.
Transferir tudo para outro suporte (acetato de celulose ou triacetato), 
pôr os nitratos a recato, recuperar as cores que se degradavam, etc., etc. 
Só há dois anos (em 87) a Cinemateca conseguiu adquirir o terreno com 
condições ideais para cofres a sério. Só este ano se vão começar a construir 
os cofres de nitrato que se impunham para substituir os que, em 1981, 
foram construídos a título provisório. E o resto — esse resto capital que 
passa por centro técnico, novos cofres de acetato e bastante mais — está 
ainda para as calendas gregas.
Nos famosos cofres jazem hoje cerca de 800 longas-metragens nacio­
nais e estrangeiras, em vez das 200 que havia em 1980. Aumentou-se muito? 
Aumentou. Mas já não indo às 100 mil dos maiores arquivos, quão longe 
se está ainda das 2 mil ou 3 mil dos países pobrezinhos como o nosso. E, 
se calhar, há ainda tantas fitas para aí algures, em «boas mãos» ou em «más 
mãos», sem que se obrigue ao seu depósito na Cinemateca. E, se calhar, 24 1
no momento em que estou a escrever isto, algumas estão a ser destruídas 
ou a atingir o ponto irreversível da não-recuperaçào.
Agora, a ocasião é de festa. Pela primeira vez na história, a Cinemateca 
Portuguesa recebe a FIAF e, pela primeira vez na história, o congresso dela 
— o 45.2 — dança em Lisboa. Começa domingo, na Gulbenkian, sob o 
signo de Chaplin, um dos poucos — senão o único — que defendeu com 
unhas e dentes tudo quanto fez.
É ocasião única para todos acordarmos, desde os que andam pelos 
cofres aos que nunca ouviram falar deles. É a memória deste século que 
está em causa. E — pelo menos ao que se diz — é a arte dele que o está 
também.Mas só serão salvos se formos rapidamente e em força a esses 
cofres para salvar a imagem de Portugal neles e a imagem de Portugal 
deles. Este meu filme da vida por essas criptas dava outro filme. Queira 
Deus ■— e queiram os Altíssimos — que se vá ainda a tempo de poder ser 
o filme das vossas vidas. Quando acendi esta luz, em 1980, mal sabia da 
escuridão em que ia entrar. Se me aqueci às luzes da ribalta, faz-me muito 
frio pensar nas trevas dos bastidores. Tenham medo, tenham muito medo, 
que é caso disso.
242 JOÃO BÉNARD DA COSTA
0 FILME CENSURADO
Chego atrasado para as comemoraçõs de O Independente do 25 
de Abril. Foi uma questão de acertar o passo e nunca fui bom nisso. 
Mas de tanto nos termos habituado — já lá vão 15 anos! — a ver filmes 
sem precedência para o cartão que dizia «Visado pela Comissão de 
Censura», muitos se terão esquecido que ao 25 de Abril devemos a 
possibilidade de vermos o que queremos, sem nenhuma mão a tapar-nos 
os olhos para o que entendiam que não devíamos ver. Ainda houve, 
depois, uma ou outra tentativa (Saló, de Pasolini, Je Vous Salue, Marte 
de Godard, The Last Temptation of Christde Scorsese foram as que mais 
deram que falar) mas foi só «fumaça» e o «povo sereno» pôde vê-los 
com maior serenidade do que aconteceu, até, noutros países demo­
cráticos.
A história da censura ao cinema em Portugal está por fazer. Nào 
começou, como muitos pensam e escrevem, com o 28 de Maio, nem sequer 
com uma muito citada lei de 1917, quando Portugal entrou na Primeira 
Guerra Mundial. Antes dela, e desde sempre, os espectáculos de cinema 
caíam sob a alçada de disposições censórias aplicáveis aos espectáculos em 
geral e que, com variações regionais, funcionavam em todos os países, 
também por isso ditos «civilizados». A Ditadura Militar, depois o Estado 
Novo, pouco inovaram, inicialmente, nesse campo e foram até relati­
vamente liberais. Por exemplo, era possível ver a Maria do MarClhPó em 
topless, coisa que outras censuras do mundo nesse mesmo ano já não 
deixavam que acontecesse. Ninguém considerava vergonha nenhuma 
haver censura a filmes e num exemplar da revista Imagem, por esse mesmo 
ano de 1930, o director da Censura, de cara e peito aberto, dava numerosos 
exemplos (verídicos) de filmes censurados noutros países ocidentais e 
autorizados aqui. Regras e consensos mundiais facilitavam-lhe a tarefa, 
dado que nenhuma das grandes indústrias pisava o risco nos três terrenos 2 4
sensíveis. Havia respeito na cama (a partir de 1931, e do Código Hays, na 
América, nem sequer legítimos casais podiam partilhar uma só delas, 
mesmo que fosse para sono reparador), havia respeito para com o Poder 
(nada de subversões, fora um ou outro caso de que a polícia se 
encarregava), havia respeito pela vida e pela morte (suicídios, abortos ou 
crimes compensados eram temas tabu).
Só a partir de 1936 (início da Guerra de Espanha) os censores 
portugueses começaram a ter mão mais pesada, impedindo tudo quanto 
cheirasse ao frentismo desses anos ou a simpatias — sequer as mais líricas 
— com os republicanos espanhóis. Mesmo que fossem coisas tão inócuas 
como a confrangedora adaptação do For Whom the Bell Tolls de Heming- 
way, realizada por Sam Wood em 1943, com Gary Cooper e Ingrid 
Bergman nos protagonistas.
A guerra piorou as coisas. Neutrais como éramos, vetaram-se os filmes 
de propaganda. Mas, ainda aí, a censura foi mais equânime do que o que 
se costuma dizer. Se proibiu na devida altura os filmes ingleses ou 
americanos antinazis, também proibiu os filmes onde a ideologia nazi era 
mais explícita. Não vimos — durante a guerra — The Great Dictator de 
Chaplin (40), Man Hunt de Fritz Lang (41), To Be orNot To Be de Lubitsch 
(42), Casablanca de Curtiz (43) mas também não vimos Ohm Krugerde 
Steinhoff (40), Juden Suss de Veit Harlan (40), Die Rotscbilds de Erich 
Wartneck (41) ou DerEwigejude de Franz Hippler (41). Isto para me ficar 
por casos mais célebres.
Foi por essa altura e a propósito de filmes de guerra que a censura 
entrou como filme na minha vida, de fonna assaz perturbante. Lembro-me 
que era fim de Verão e que estávamos na Arrábida. O meu pai, angló- 
filo ferrenho, chegou entusiasmado com a visão de Mrs. Miniver 
(William Wyler, 42) que, em Setembro de 44, chegou ao S. Luiz 
para permanecer em cartaz umas então impressionantes 7 semanas. 
Contou o filme tintim-por-tintim e, ouvindo-o, impressionou-me 
particularmente a descrição da cena em que Greer Garson (essa 
actriz que bem podia ter sido mãe de Meryl Streep) no papel de 
Mrs. Miniver, matava um soldado alemão que lhe caía em casa de pára- 
2 4 4 -quedas.
Quando viemos para Lisboa quis ver o filme. Houve conciliábulos fa­
miliares para decidir se os meus 9 anos seriam idade suficiente para história 
tão geradora de lágrimas e suspiros. O voto paterno — suponho que para 
alicerçar na criança que então era comum amor à Liberdade e à Grã-Bre­
tanha — foi decisivo. Fui ver o filme, com uma tia. Esperei pela dita cena 
todo o filme e a dita cena não veio. Nem Teresa Wright por quem logo me 
apaixonei (e morria no fim, recém-casada e muito novinha, vítima das 
bombas da Luftwaffe) me compensou dessa inexplicável ausência. A saída, 
a minha tia atribuiu-a à fantasia do meu pai. Quando confrontaram visões, 
a discussão foi rija, entre acusações de nào saber ver e outras de ver de 
mais. Chamado a arbitrar, vi-me na difícil situação de ter que lhe dar razão 
a ela, colaborando na insinuação de que o meu próprio pai mentira. Foi 
a minha vez de ouvir alguns nomes, sobretudo o de nào perceber o que 
via. 24 5
A situação, pesada de consequências quanto a argumentos de autori­
dade, só se esclareceu dias depois. Entre a visão do meu pai, logo na 
primeira semana de exibição, e a nossa, interviera a Censura. Ao que 
parece a Embaixada alemã tinha protestado contra a imagem do soldado 
nazi e mais ainda contra as palmas com que o público festejava o acto 
justiceiro de Greer Garson. E, para evitar problemas, a censura puxara das 
tesouras, e cortara a sequência. Restabeleceu-se a paz familiar e eu fiquei 
com dúvidas metódicas para o resto da vida. Comecei a detestar censuras 
que nào me tinham deixado ver o que mais imaginara.
No ano seguinte — fim da guerra — foi uma festa. Para que a oposição 
nào continuasse a dizer que Salazar amara Hitler (coisa que, de resto, hoje 
objectivamente nào creio) a censura deu luz verde a todos os Raios de Luz 
que Hollywood gerara entre 41 e 45. Foi nào só esse — TheEdge ofDark- 
nessde Lewis Milestone, em 1943, com Errol Flynn e Ann Sheridan — como 
uma longa lista que incluiu os filmes acima citados e todos aqueles em que 
Hitler era pior do que péssimo. De todos, os que mais me fizeram soluçar 
chamaram-se (não é para me gabar) HangmenAlsoDieíAò), e Roma, Città 
Aperta (45). Ainda não sabia sequer que havia realizadores, quanto mais 
que os nomes deles eram, respectivamente, Fritz Lang e Roberto Rossellini.
Esta primeira «primavera- nào se passou sem facadinhas, por aqui ou 
por ali. Do discurso de Chaplin — Hynkel no Ditador (Ditador, em vez de 
O Grande Ditador, estreado nos fins de 45, no Tivoli, cinco anos depois 
da «première» em Hollywood) as legendas só deram abreviada versào, 
convenientemente expurgada. Na Roma de Rossellini, nunca se explicava 
que o resistente protegido pelo padre (Aldo Fabrizzi) era militante do PC. 
E, até mesmo na cena da tortura, quando o oficial da Gestapo berrava 
contra o sacerdote, perguntando-lhe se ele sabia que «lui è un communista- 
a legenda, fingindo ignorar o que até o menos linguisticamente dotado dos 
espectadores poucas dúvidas teria em identificar, escrevia «ipsis verbis»: 
«Ele é um homem malvado.» Apesar da enorme tensão da cena, as 
gargalhadas na sala faziam lembrar um filme dos Marx.
Foi por essa altura — mais ou menos — que um Deputado da Nação 
tomou a palavra em S. Bento a dizer que se estava a ir longe de mais em 
2 4 6 matéria de permissividade. O filme visado nào era nenhum filme antinazi 
mas TheBig Sleep

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