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INGLÊS NA SALA DE AULA INTRODUÇÃO 3 1. A PRÁTICA DO ENSINO DE INGLÊS: DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS OU LEGITIMAÇÃO DAS CRENÇAS? 5 Introdução 6 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 11 O Estudo 15 Os Resultados 16 Algumas Considerações 21 3. COGNIÇÃO, EMOÇÃO E REFLEXÃO NA SALA DE AULA: POR UMA ABORDAGEM SISTÊMICA DO ENSINO / APRENDIZAGEM DE INGLÊS 24 O Desejo Por Reflexões Epistemológicas na Linguística Aplicada 25 As Ciências Cognitivas e a Biologia do Conhecer 26 Emoções no Ensino / Aprendizagem de Inglês 29 São As Histórias que nos Dizem Mais: Emoção, Reflexão e Experiência Narrativa 31 4. ARTICULANDO EMOÇÃO, COGNIÇÃO E REFLEXÃO NA SALA DE AULA 35 Reflexões Finais 43 5. MOTIVAÇÃO E DESMOTIVAÇÃO NO APRENDIZADO DE LÍNGUAS 48 Motivação 48 Desmotivação 51 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 54 3 INGLÊS NA SALA DE AULA INTRODUÇÃO Esta apostila foi preparada com o intuito de oferecer subsídios à disciplina INGLÊS NA SALA DE AULA: como fazer. O objetivo do curso é fornecer um conjunto de elementos conceituais, teóricos e empíricos que permitam, a você, aluno do IBRA, desenvolver seus estudos e obter o conhecimento que você espera, com sucesso. Pretendemos sugerir métodos práticos e desenvolver as habilidades técnicas e conhecimentos necessários à difícil tarefa de ensinar. Sendo o planejamento fator essencial na orientação eficiente de um programa de ensino e, a partir da filosofia das escolas e dos objetivos propostos, deverão ser determinados os métodos e técnicas que fornecerão diretrizes para um melhor controle do processo ensino-aprendizagem. Sabe-se que a aplicação de técnicas pelo professor não é um mero processo mecânico e que a aprendizagem não está limitada por nenhum conjunto de técnicas. Assim, aberto ao professor, estão todos os meios que prometem ser produtivos ao trabalho, individualmente ou em grupo, guiando-se em experiências que poderão ser úteis e ajude a interpretar e reformular experiências vividas. Anexamos artigos que versam acerca de pesquisas sobre o ensino e a aprendizagem de inglês, bem como sobre o processo de formação de professores. Pretendemos, com isso, despertar em você uma formação crítico- reflexiva, que possibilite desempenho eficaz em suas carreiras profissionais. Esperamos que você faça uma excelente leitura e que tenha sucesso em seu curso. 5 INGLÊS NA SALA DE AULA 1. A PRÁTICA DO ENSINO DE INGLÊS: DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS OU LEGITIMAÇÃO DAS CRENÇAS? Abstrat Although most of the studies in the field of teacher education advocate that the practicum is the main source for the acquisition of the knowledge and skills required by good teachers (Richards e Crookes, 1988; Pimenta, 1997; Kulcsar, 1998; Piconez, 1998), research adopting a socialization framework questions the full impact of this stage of professional development. The study reported here intended to investigate the impact of the practicum, according to EFL student teachers´ own perspectives. They were enrolled in a university teacher education course in Brazil, through which they were exposed to new educational experiences aimed at contributing to better informed pedagogical practices and to the development of the knowledge base necessary for conscious professional work. Using semi-structured interviews and observation reports as the main 6 INGLÊS NA SALA DE AULA source of data, the analysis revealed that although the informants acknowledged the importance of the teaching practice experiences, there were limitations of their influence on developing the process of learning to teaching within a critical reflection mode (Tabachnick e Zeichener, 1991). The study also revealed that the student teachers were at elementary stages of professional development, according to Furlong & Maynard´s (1995) classification. Resumo A Prática do Ensino de Inglês (PEI) é uma das disciplinas que compõem o currículo do último ano dos alunos de Letras Anglo de uma universidade pública no norte do Paraná. Durante esse período, os futuros professores são expostos a novas experiências educacionais que pretendem contribuir para uma prática pedagógica informada e desenvolver bases analíticas para o trabalho profissional consciente. Embora boa parte dos estudos, nessa área, assegure que a experiência do estágio é a principal fonte para a aquisição de conhecimento e habilidades essenciais ao bom professor (Richards e Crookes, 1988; Pimenta, 1997; Kulcsar, 1998; Piconez, 1998), estudos que se fundamentam na perspectiva da socialização questionam o impacto da prática de ensino no processo de aprender a ensinar de maneira informada (Lortie, 1975; Feiman- Nemser e Buchmann, 1989; Freeman, 1992). Nesse sentido, o relato apresentado busca discutir o impacto desse componente na formação dos alunos de Letras, segundo suas próprias perspectivas. Para tanto, procedemos a análise de entrevistas semi-estruturadas, bem como de relatórios dos estágios. Os resultados apontam que, embora os futuros professores enalteçam esse componente curricular, há limitações do impacto da PEI sobre o processo de aprender a ensinar reflexivamente, numa perspectiva crítica (cf. Tabachnick e Zeichner, 1991). A análise revela ainda alunos professores em estágios elementares de seu desenvolvimento profissional, segundo a classificação de Furlong e Maynard (1995). Introdução É comum tomarmos por certa a relevância da Prática de Ensino no processo de formação de 7 INGLÊS NA SALA DE AULA professores. Quem de nós que trabalhamos com alunos nesse período já não os ouviu dizendo: “O estágio foi a melhor coisa do curso porque afinal consegui pôr em prática e entender muito do que sempre me foi dito”? Ou então: “Por que temos tão poucas horas de prática se essa se configura como a essência do curso de licenciatura”? Vistos de forma simples e sem uma análise mais criteriosa é realmente difícil contestar tais argumentos e mais; é impossível não afirmar que toda prática de estágio é componente fundamental no processo de formação dos futuros professores. E de fato, a Prática de Ensino deveria constituir-se no momento de síntese do curso de formação de professores, buscando não apenas integrar teoria e prática, mas assumindo a responsabilidade de formar profissionais conscientes de sua atuação social, capazes de contribuir para a mudança da realidade em que vivem. Há na literatura específica um número considerável de trabalhos que exploram a influência da prática de estágio sobre a formação do futuro professor. Para alguns pesquisadores, esta é, sem dúvida, a principal oportunidade que os alunos professores têm para adquirir, desenvolver e produzir conhecimentos e habilidades práticas que lhes possibilitem desempenho eficaz quando professores (e.g. Richards e Crookes, 1988; Pimenta, 1997; Piconez, 1998). Por outro lado, os estudos que se fundamentam na perspectiva da socialização vão além e questionam não somente o impacto do componente prático, mas dos próprios cursos de formação de professores no processo de aprender a ensinar. Nessa corrente encontram-se estudos que, baseados em Lortie (1975), entendem que o crédito concedido à prática deve ser limitado devido ao seu caráter restritivo: trabalho com um único professor colaborador; pouco acesso a diferentes técnicas de ensino; pouca influência do professor colaborador sobre o aluno mestre, entre outros. Em consequência desta estrutura, o autor afirma que o estágio não desafia a natureza rotineira da aprendizagem por observação . No entanto, Lortie reconhece que a prática informada, capaz de avaliaro ensino e de desenvolver bases analíticas para o trabalho profissional, só pode acontecer por meio de experiências de 8 INGLÊS NA SALA DE AULA socialização formal que desafiem as experiências trazidas pelos alunos professores. Da mesma forma, Freeman (1992) acredita que a educação do professor é uma forma pouco significativa de intervenção, a menos que lide com as concepções de ensino e aprendizagem trazidas pelos alunos professores. O autor entende que somente a partir da articulação do conhecimento tácito o futuro professor poderá vir a conceituar o ensino de forma diferente daquela feita quando era apenas aluno. Isso é o que Feiman- Nemser e Buchmann (1989, p. 136) chamam de transição para o pensamento pedagógico, que consiste em “pensar sobre o que os professores fazem em termos do que os alunos podem e devem aprender”. Portanto, mesmo autores que põem em xeque o impacto da prática de ensino reconhecem que este componente do processo de educação formal pode colaborar para o amadurecimento de perspectivas analisadas, até então, somente sob a ótica de aluno. Nossas experiências como formadoras de professores têm nos revelado as limitações do impacto que se pretende ter sobre os futuros profissionais, especialmente se analisado sob a ótica do “aprender a ensinar reflexivamente”, atingindo o domínio crítico dessa reflexão (cf. Tabachnick e Zeichner, 1991), no qual critérios éticos e morais devem ser incorporados. Com base na necessidade de tornar claros alguns dos aspectos da multifacetada tarefa de aprender a ensinar, esse estudo pretende analisar o impacto da prática de ensino sobre o desenvolvimento profissional de alunos professores, tomando como elemento de análise suas próprias percepções. A questão que se coloca, portanto, é qual o impacto da prática de ensino de Inglês no contexto investigado para a formação crítico-reflexiva das alunas em foco. Ter as percepções das alunas professoras como ponto de partida para analisar e discutir seu processo de formação permitirá trazer à tona os estágios de desenvolvimento nos quais se encontram ao mesmo tempo em que possibilitará compreender a relação entre o 9 INGLÊS NA SALA DE AULA impacto que desejamos como formadores e aquele que elas esperam como futuras professoras. Assim, iniciamos esse relato apresentando os referenciais teóricos que serviram como pano de fundo para a análise e discussão dos dados. Em seguida, contextualizamos a pesquisa dentro de um estudo maior, a partir do qual os dados foram derivados. A apresentação dos resultados dá destaque ao impacto da prática de estágio, segundo os futuros professores, tendo em mente as implicações da mesma para a formação de profissionais críticos e autônomos. Finalmente, traçamos considerações acerca desse componente curricular, levantando questões sobre sua relevância para a formação de professores. 11 INGLÊS NA SALA DE AULA 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para discutirmos os dados tomaremos como base os referenciais teóricos do modelo de formação reflexiva (cf. Tabachnick e Zeichner, 1991) e dos estágios de desenvolvimento dos professores (cf. Fuller e Bown, 1975; Furlong e Maynard, 1995). A concepção de prática reflexiva proposta pelo filósofo americano John Dewey, no início do século, influenciou outros educadores contemporâneos, dentre os quais Tabachnick e Zeichner (1991) que distinguem diferentes tipos de reflexão com base na dicotomia entre o pensamento cotidiano, rotineiro e o pensamento reflexivo. Assim, eles apresentam os domínios: Técnico, que revela preocupações com a eficiência dos meios ou técnicas utilizadas para se atingir os fins, normalmente estabelecidos por outras pessoas e que, por sua vez, ficam sem serem examinados; Prático, no qual predomina a necessidade de explicar e esclarecer os pressupostos e predisposições que norteiam as atividades de ensino e de avaliar a adequação dos 12 INGLÊS NA SALA DE AULA objetivos, bem como de que forma eles foram alcançados. Há, neste sentido, a consideração dos fins educacionais; Crítico, que incorpora critérios éticos e morais no discurso da prática. As questões centrais consideram o benefício dos objetivos, atividades e experiências educacionais diante dos conceitos de equidade, justiça e realização concreta para todos os alunos. Ortenzi (1997) argumenta que reflexões no domínio crítico, que idealmente deveria ser alcançado pelos professores, são possíveis somente na medida em que os [futuros] profissionais percebem a dimensão política de sua prática. Contudo, refletir sobre o ensino com base na aprendizagem de conceitos que extrapolem as limitações da nossa cultura educacional celular (Lortie, 1975) exige amadurecimento de questões mais elementares, conforme esclarecem Fuller e Bown (1975). Baseados em uma revisão de aproximadamente trezentos trabalhos, entre os quais alguns empíricos, Fuller e Bown (1975) conceituaram fases no desenvolvimento dos alunos professores e levantaram a hipótese de que as preocupações são sequenciais e cumulativas. Assim, antes que o futuro professor atinja a maturidade profissional e pense no ensino em termos do seu impacto sobre os alunos e seu crescimento – processo que Feiman-Nemser e Buchmann (1989) chamam de transição para o pensamento pedagógico – ele passa por fases reveladas por preocupações características. Outro estudo bastante representativo na área dos estágios do desenvolvimento de professores em pré-serviço é o de Furlong e Maynard (1995) por tentar expandir a noção sequencial proposta anteriormente. Para estes pesquisadores, o desenvolvimento do aluno mestre não se dá de forma linear, mas simultânea. Com base em dados coletados em cinco escolas públicas de ensino fundamental, com alunos do curso de educação primária, os pesquisadores elaboraram cinco categorias: (1) idealismo inicial; (2) sobrevivência pessoal; (3) lidando com dificuldades; (4) atingindo a planície e (5) seguindo em frente. 13 INGLÊS NA SALA DE AULA Na fase do idealismo inicial, os resultados de Furlong e Maynard corroboram a descrição de Fuller e Bown (1975). Também seus alunos professores identificaram- se muito mais com os alunos do que com os professores colaboradores e expressaram uma imagem idealizada do tipo de professor que gostariam de ser – caloroso, amigo, entusiasmado, atencioso e popular –, do tipo de relacionamento que gostariam de manter com seus alunos – amigável, mas respeitoso –, bem como da atmosfera alegre, calorosa e de cooperação que gostariam de criar em suas salas de aula. A crença de que o relacionamento pessoal do aluno professor com seus alunos é fator predominante para sua eficácia profissional, é vista por Furlong e Maynard como simplista e é rapidamente ofuscada pelas realidades da sala de aula, assim que tem início a prática de ensino. Neste momento, surgem as preocupações com a sobrevivência pessoal, que Furlong e Maynard caracterizam como o processo de ajustar-se às rotinas e expectativas do professor colaborador, de ser visto e respeitado como professor responsável pela turma e de conseguir o controle da sala de aula. Ajustar-se às rotinas significava, para muitos dos alunos professores estudados por Furlong e Maynard, copiar o estilo do professor, especialmente no que diz respeitoao seu relacionamento com os alunos. Fazendo isto, eles imaginavam não quebrar a rotina e ter a chance de conduzir seu trabalho mais suavemente. Consequentemente, a imagem de professor idealizada anteriormente cediaespaço ao tipo de professor que eles achavam que deveriam ser a fim de sobreviverem inicialmente. A necessidade de serem vistos e respeitados como professores da turma relaciona-se de forma direta com as questões relativas ao controle da disciplina em sala de aula. As preocupações mais recorrentes estão em preparar atividades que mantenham os alunos trabalhando e em desenvolver procedimentos que mantenham-nos em seus lugares. Nesta fase, os alunos professores temem desviarem-se dos planos elaborados e sentem-se extremamente frustrados quando suas ideias não dão certo e quando não conseguem controlar o comportamento dos seus alunos. A fase seguinte surge a partir da segunda ou terceira semana quando os alunos professores passam a ver as dificuldades da sala 14 INGLÊS NA SALA DE AULA de aula e a se preocupar mais com seu comportamento profissional. Neste período, eles procuram se estabelecer como professores, normalmente replicando aquilo que eles consideram ser o comportamento de um professor. Furlong e Maynard (1995, p. 82) apontam que os alunos professores “agem como professores, mas sem necessariamente compreender os propósitos subjacentes ou as implicações daquelas ações”. Além disso, preocupam-se em impressionar o professor colaborador e, especialmente o professor supervisor, responsável pela avaliação de sua competência profissional. Os alunos professores estudados revelaram que, apesar dos professores colaboradores os encorajarem a ver esta como uma experiência de aprendizagem, a maior preocupação estava em “fazer a coisa certa‟ para ser aprovado na disciplina. Devido à pouca compreensão que os alunos professores tinham dos pressupostos que fundamentavam suas ações, eles tentavam impressionar por meio de estratégias de ensino e de manejo de sala, preparando explicações claras e dinâmicas de grupo que os mantivessem no controle da disciplina. Foi bastante característica nesta fase a utilização de materiais extras que deixassem os alunos ocupados. Após terem adquirido confiança em seu conhecimento pedagógico geral, os futuros professores atingem a planície. Neste estágio, eles sentem-se como “verdadeiros professores‟. Contudo, não compreensão dos pressupostos que fundamentam suas práticas não lhes permite ainda perceber a relação entre o ensino e a aprendizagem dos alunos. A maioria dos alunos professores estudados por Furlong e Maynard, ao sentirem-se mais confiantes e relaxados, passaram a apresentar planos e avaliações menos elaborados e a perder o entusiasmo em tentar novas estratégias e atividades. Apesar de “verdadeiros professores”, neste estágio os alunos professores não se mostraram capazes de desenvolver atividades voltadas à aprendizagem 15 INGLÊS NA SALA DE AULA de seus alunos. Para que os alunos sigam em frente, ou seja, consigam analisar sua prática criticamente, compreender as responsabilidades de ser um educador, desenvolver as habilidades do pensamento pedagógico e fazer assim a transição para o papel de professor, é necessário que haja intervenções por parte dos professores supervisores voltadas diretamente para os propósitos e implicações da educação. Outros estudos mostram que sem desafio e suporte, os alunos professores dificilmente atingem este estágio. Furlong e Maynard (1995) argumentam que na fase do seguindo em frente os alunos professores eram levados a refletir sobre as implicações das atividades em termos da aprendizagem de seus alunos. Não sem resistência, muitos sentiam-se frustrados e até mesmo deprimidos, uma vez que este processo implica em questionar as próprias crenças, muitas já bastante arraigadas, sobre ensino e aprendizagem. O Estudo O estudo que apresentamos agora faz parte de um projeto de pesquisa intitulado “Aprendendo a ensinar Inglês: um estudo longitudinal com estagiários do curso de Letras”. Esse projeto foi motivado pela necessidade que sentíamos de verificar a interação entre o conhecimento gerado pelas experiências socializadoras e o conhecimento gerado pelas experiências educacionais na universidade em que atuamos. Tendo como referenciais teóricos estudos que reconhecem a importância de experiências anteriores aos cursos de formação de professores, bem como estudos que enfatizam a importância de se entender as ações do professor do ponto de vista de seu sistema de crenças e valores, esse projeto teve início em 1999, ano em que os dados foram coletados com 14 alunos do 4º e último ano do curso de Letras Anglo de uma universidade pública no norte do Estado do Paraná. À época da coleta dos dados, os alunos professores desse curso tinham em seu currículo 68 horas de prática do ensino de Inglês concentradas no último ano. Essa carga horária era distribuída entre observação de aulas em escolas públicas, confecção de relatórios de observação e de regência, planejamento supervisionado e direção de classe. O conjunto de dados coletados inclui autobiografia, inventário de crenças aplicado no início e final do ano 16 INGLÊS NA SALA DE AULA letivo, gravações em áudio de sessões de encontros para supervisão de estágio, relatórios de observação de aulas, relatórios de estágio e entrevistas semi- estruturadas. A análise seguinte concentra-se nos dois últimos instrumentos, uma vez que eles revelam com maior propriedade as percepções dos alunos sobre seu desenvolvimento durante a prática de ensino. O relatório de estágio apresentava-se como um dos componentes da avaliação da disciplina Prática do Ensino de Inglês: Estágio Supervisionado e tinha o propósito de sistematizar as reflexões feitas durante as 28 horas de regência. Era objetivo também do relatório permitir uma reflexão acerca do desenvolvimento profissional dos alunos professores e da interação entre suas experiências formais e informais. Por sua vez, as entrevistas semi-estruturadas conduzidas ao final do ano letivo pretendiam suscitar suas percepções a respeito do estágio, bem como do componente teórico do curso. O presente relato concentra-se em 2 das 14 alunas professoras envolvidas no projeto, que serão identificados pelos nomes de Adriana e Berenice. Tal escolha deu-se de forma aleatória, tendo em mente que os resultados apresentados pretendem melhor compreender o que os acontecimentos significam para os envolvidos nesse meio sócio- educacional. Os Resultados Os resultados dos alunos professores serão apresentados separadamente, tendo como ponto de partida suas próprias percepções acerca do impacto da prática de estágio, e como referencial as implicações desse componente curricular para a formação de profissionais críticos e autônomos. Adriana Adriana era uma aluna cujo ingresso no curso de Letras deu-se pelo sonho de aprender e ensinar Inglês. Tendo sido forçada a abandonar os estudos da língua em dois outros momentos de sua vida por motivos de ordem material, ela via na universidade pública a chance de aprender inglês. Contudo, o foco na gramática trouxe dificuldades extras durante o curso e por várias vezes ela dizia achar o ensino que havia recebido complicado, difícil e desestimulante. Contudo, casada e 17 INGLÊS NA SALA DE AULA grávida de seu primeiro filho, foi sempre uma aluna responsável e pontual em suas tarefas durante o curso. Diferente de muitos de seus colegas, Adriana havia feito magistério e tinha alguma experiência de sala de aula. Há alguns anos trabalhando com crianças no ensino primário, ela tinha crenças bem marcadas quanto ao seu papel. Para ela: o bom professor é aquele que tem umrelacionamento amigável com seus alunos, deve ser dinâmico, flexível e ter senso de humor. Consequentemente acreditava que: é preciso ensinar a matéria de uma forma diferente, dinâmica, quebrar a rotina. Assim como a grande maioria dos alunos mestres, também Adriana afirma ter sido a prática de ensino um momento importante em seu processo de formação. Segundo ela relata em seu relatório de estágio: Ao final do meu trabalho na prática de estágio, concluo que para mim a experiência em sala de aula foi muito válida e rica, no sentido de uma reflexão sobre a atuação do professor perante o processo de ensino-aprendizagem, e defendo a questão de que cabe ao professor o sucesso ou fracasso de seu aluno. Falar que a prática de ensino permitiu uma reflexão sobre a atuação do professor nos leva a imaginar que Adriana tenha sidocapaz de entender sua prática sob a perspectiva do aluno, ou seja, tenha se tornado capaz de refletir criticamente sobre as responsabilidades de um educador. Contudo, quando questionada durante a entrevista a respeito das certezas e dúvidas adquiridas a partir do estágio, ela comenta: no geral eu posso dizer assim que eu fui muito feliz no meu estágio, e tanto que gerou até assim um clima de amizade mesmo entre os alunos, né, que eu já sentia como se fosse minha própria sala de aula, né. Então, depois que eu saí, como eu moro num local próximo à escola, às vezes eu encontro com os alunos, né, fora da escola “ô professora, você não vai voltar dar aula pra gente?” e tal. Então, eu sinto assim que houve um envolvimento, que os alunos gostaram. Eu saí satisfeita por mais que sempre tem alguma coisa que dá pra ser melhorada (...) Então, eu 18 INGLÊS NA SALA DE AULA acredito que eu consegui desenvolver um trabalho, eu criei um clima de envolvimento com os alunos sim. Aqui é possível notar que apesar do impacto testemunhado pela aluna professora, sua análise não avança para além de questões centradas no ensino e nunca na aprendizagem. Ela avalia, de forma simplista, o sucesso de sua prática pelo grau de amizade que criou com os alunos. Embora reconheça a existência de limitações e dificuldades em sua prática é incapaz de compreender as complexidades do ensino. Se voltarmos aos estágios descritos anteriormente por Furlong e Maynard (1995), veremos que ela se encontra em uma etapa ainda bastante inicial, preocupada em lidar com as dificuldades e em avaliar a eficácia dos meios utilizados para alcançar seu objetivo pessoal: o de manter um relacionamento amigável e despertar o interesse dos alunos. Em outros momentos da entrevista Adriana também demonstra não ser capaz de refletir sobre sua atuação pedagógica para além do nível técnico. Se por um lado esse aspecto pode ser considerado elemento essencial para uma prática bem sucedida, por outro não parece suficiente para a construção de um conjunto de conhecimentos voltados à transformação da ação docente. Todas as vezes em que era indagada sobre sua prática ela a analisava em termos do que fazer e de como fazer: A professora levava letra de música, levava algum outro tipo de material que envolvesse mais, os alunos trabalhavam em grupos e eu percebia o envolvimento deles na aula. Então, eu fiquei imaginando como eu poderia trabalhar no meu estágio. (...) Mas a gente percebe que quando você chega na sala de aula com um jogo, com alguma coisa que interessa é bem diferente a aula, né, o envolvimento. (...) aí eu continuei pensando o que fazer nas outras aulas pra que continuasse aquele interesse, né, e eu percebi o seguinte: quando é desenvolvida a aula dessa forma, com dinâmicas, com materiais extras, eu conseguia um envolvimento grande; quando eu pedia pra usar o livro... A experiência de estágio descrita por Adriana como válida e rica parece ter servido para confirmar e tornar mais fortes as crenças trazidas e apresentadas desde o início da prática, como as que mostramos anteriormente. Nesse sentido, o impacto por ela 19 INGLÊS NA SALA DE AULA mencionado se distancia certamente daquele desejado por formadores de professores que entendem esse como um momento de contribuir para o desenvolvimento de uma prática pedagógica informada e consciente que permita a revisão de conhecimentos e crenças desenvolvidos no período da aprendizagem por observação. Além disso, a experiência da prática do ensino de inglês parece contribuir de sobremaneira para confirmação das escolhas, como mostra o seguinte trecho: ... dentro desse estágio que eu tive realmente a certeza da área que eu quero trabalhar porque antes eu não tinha certeza se era inglês, se era português. Mas eu acredito que dentro desse estágio eu consegui realizar um trabalho bom e tenho vontade de trabalhar nessa área, mais do que com o português. Essa certeza parece revelar uma identidade tardia com o curso, o que certamente traz consequências para a construção de imagens pessoais que deem conta de compreender e lidar com as complexas realidades das salas de aula (Ortenzi, Mateus e Reis, 1996). Berenice A experiência de Berenice como aprendiz da língua desde muito cedo em academias fez com que ela se apaixonasse pelo inglês. Seu sucesso como aprendiz e o apoio de uma de suas professoras a motivou para o ingresso no curso. Na universidade as sensações ficam todas misturadas, pois há medo, insegurança, entusiasmo, realizações e decepções. Mesmo assim, Berenice repete sempre a certeza de querer ser professora de Inglês. Contudo, sem experiência anterior alguma de sala de aula, as crenças de Berenice quanto ao papel do professor vinham de suas vivências como aprendiz de língua, como mostra um trecho de sua entrevista: Olha, eu me via assim como as minhas professoras eram no ginásio, é... seguia o livro didático ali tal, é... qualquer coisa mandava o aluno pra diretoria, aquela coisa bem autoritária, bem tradicional mesmo, né. Ser autoritária e tradicional são características de sua prática contra as quais ela parece lutar o tempo todo. Na verdade, essa é antes uma crença que concebe o professor como autoridade responsável pelo estabelecimento e manutenção da ordem em sala de aula (Feiman- 20 INGLÊS NA SALA DE AULA Nemser e Floden, 1986). Assim, contrariando os resultados de alguns estudos, Berenice iniciou sua prática menos preocupada em estabelecer um relacionamento amigável e caloroso com seus alunos e mais voltada para o tipo de professora que deseja ser. Desta forma, ela relata que no início: ... eu me peguei muitas vezes realmente mandando o aluno calar a boca, realmente querendo pôr o aluno pra fora da sala. (...) eu não gostaria de dar aula como eu tive aula; eu queria ser aquela professora amiga, que fosse aquela aula gostosa, descontraída. E é nesse aspecto que Berenice vê o impacto do estágio sobre sua formação. É exatamente no que diz respeito ao seu comportamento como professora, nas suas atitudes e posturas com relação aos alunos e ao ensino propriamente dito. Segundo ela própria afirma durante a entrevista: “...logo que eu comecei dar aula eu queria ser aquela professora bem tradicional, autoritária e de repente eu me vi e eu trabalhei assim olha até a metade do estágio. Aí, eu comecei a repensar e até hoje eu repenso nisso, eu fico pensando nisso, porque eu tô querendo criar um modelo de professor como eu gostaria de ser como modelo de professor. Então, eu fico tentando ver os meus professores, os que eu tive, os que eu tô tendo ainda esse ano, como eles dão aula, o que eu gosto, o que eu não gosto, sabe, eu tô tentando pegar umpedacinho decada e adaptar em mim.” Sem dúvida todo o esforço de Berenice estava em desenvolver-se como professora em termos daquilo que ela imaginava que deveria ser. Em momento algum ela se refere ao estágio como forma de considerar o que e como os alunos aprendem. Apesar do reconhecido impacto atestado por ela, Berenice continuou a “ver o professor como aluno‟, “tentando pegar um pedacinho de cada um” para compor seu personagem e não foi capaz de “ver-se como professora‟ responsável por promover a aprendizagem de seus alunos. Em todas as suas falas está fortemente presente a crença de que o professor é o responsável por trazer o aluno para sua aula e fazer com que ele 21 INGLÊS NA SALA DE AULA goste da sua disciplina, despertar o interesse e a atenção dos alunos, mostrar que aquilo que está sendo ensinado é importante. Como vemos, o foco de suas reflexões está no professor. Embora seja fundamental que o futuro professor aprenda a detectar sinais de compreensão e confusão na aprendizagem dos alunos e que seja estimulado a implementar suas preocupações nesta área, Berenice limita suas reflexões ao papel do professor, tomando por certo que afinidades pessoais levam diretamente ao “gosto” pela disciplina e, consequentemente, à quase misteriosa aprendizagem. Nesse sentido, ela se preocupa muito em comportar-se como professora, mas sem necessariamente compreender os propósitos subjacentes ou as implicações de suas ações. Esse visão ingênua de sua prática a coloca em um estágio bastante elementar de seu desenvolvimento profissional que não permite uma reflexão mais crítica de seu papel social. Mais grave, a prática que deveria servir como instrumento para a construção de um conhecimento criticamente informado, que permitisse à Berenice pensar sobre suas ações pedagógicas em termos do que os alunos podem e devem aprender, serviu para legitimar as experiências trazidas para esse contexto. As certezas de Berenice após quase um ano de socialização formal são as de que gostando delaos alunos gostarão de inglês, como mostra mais um trecho da entrevista: A certeza que eu tenho é que é isso mesmo que eu quero: ser professora. (...) Tô com muita expectativa, apesar que o governo tá fazendo essa bagunça com a educação, né, boas expectativas. Quero ser uma excelente professora. Quero que meus alunos gostem de mim, gostem da minha matéria, vou trabalhar pra isso. E essa é minha principal certeza: de que tô no caminho certo. A expectativa de promover o gosto pela disciplina como forma, ou como “o caminho certo” para uma prática bem sucedida simplifica em muito seu papel de educadora, inserida em um contexto carregado de responsabilidades sociais. Algumas Considerações Os dados apresentados 22 INGLÊS NA SALA DE AULA apontam que embora todos os futuros professores enalteçam a relevância da prática de estágio, há limitações do impacto desse componente curricular sobre o processo de aprender a ensinar reflexivamente, numa perspectiva crítica (cf. Tabachnick e Zeichner, 1991). A análise revela também que tanto Adriana como Berenice encontram-se ainda em estágios elementares de seu desenvolvimento profissional, segundo a classificação de Furlong e Maynard (1995). Ambas transitam entre os estágios de sobrevivência pessoal e lidando com as dificuldades. A caracterização das etapas alcançadas pelas duas estagiárias revela que a prática de ensino teve um impacto sobre o processo de formação de Adriana e Berenice, embora em graus diferenciados dos idealizados pelos supervisores, qual seja o de ser um “rito de passagem”. Talvez como consequência da forma como os estágios estão estruturados e pela própria ambiguidade de papéis do aluno professor, a experiência parece ter se configurado mais como legitimação das práticas adotadas rotineiramente pelos professores regentes. Em consequência, este estudo nos mostra que para as duas alunas professoras, mais importante do que tornarem-se conscientes do papel social do professor de inglês, capaz de confrontar seus conhecimentos e de considerar a qualidade e o valor daquilo que os alunos aprendem, importava adquirir segurança numa prática que elas já conheciam devido aos, pelo menos, 14 anos de aprendizagem por observação. Para nós, educadoras de futuros professores, o desafio que se coloca é como implementar um programa voltado para a formação reflexiva numa perspectiva crítica que permita a incorporação da dimensão política do fazer pedagógico e do conceito de transformação social nela implícita. Em nosso modo de pensar, importa não só adotar a reflexão como modelo para o desenvolvimento profissional de futuros professores, mas também imprimir-lhe uma qualidade diferenciada, ainda na fase pré- serviço. Quanto mais soubermos como interagem as crenças e o conhecimento formal nas diversas etapas de atuação do futuro professor, mais poderemos contribuir para esse objetivo. 24 INGLÊS NA SALA DE AULA 3. COGNIÇÃO, EMOÇÃO E REFLEXÃO NA SALA DE AULA: POR UMA ABORDAGEM SISTÊMICA DO ENSINO/APRENDIZAGEM DE INGLÊS Este artigo propõe articular a Biologia do Conhecer de Humberto Maturana (1998) à pesquisa narrativa de Jean Clandinin e Michael Connelly (2000), de modo a propor uma abordagem sistêmica para a pesquisa sobre o ensino e a aprendizagem de inglês e superar a dicotomia teoria-prática que domina comumente a reflexão no campo. Para tanto, apresento o estudo de uma narrativa em contexto de sala de aula de inglês que irá lançar luzes sobre a natureza histórica das relações operacionais entre emoção e cognição. Defendo que as emoções e a história de vida da participante da pesquisa especificam suas ações na sala de aula. Argumento que a construção de narrativas propicia a emergência de uma atitude reflexiva que possibilita transformações nas emoções e ações na conduta de sala de aula. Com isso, pretendo contribuir para a expansão de nossos horizontes reflexivos sobre a 25 INGLÊS NA SALA DE AULA inter-relação entre linguagem, cognição e emoção, fundamental para nossa compreensão da sala de aula. O Desejo Por Reflexões Epistemológicas na Linguística Aplicada Na virada do milênio, assistimos a uma explosão de artigos, mesas- redondas e debates que revisitaram o campo da Linguística Aplicada, repensando sua história teórico-metodológica e seus horizontes epistemológicos. É visível o sentimento de renovação para o qual acenam pesquisadores renomados do campo, e é amplo o reconhecimento de que a Linguística Aplicada está, de fato, fazendo com que sua disciplina mãe, a Linguística, repense alguns de seus conceitos fundadores (RAJAGOPALAN, 2003, p. 77-81). É nesse contexto que se insere este artigo, que expõe resultados parciais de minha pesquisa de doutorado, fruto das preocupações de um professor de inglês interessado no caleidoscópio sistêmico de variáveis envolvidas no complexo processo de ensino/aprendizagem em sala de aula. A certeza da importância de uma teorização consistente e crítica para a escolha de práticas de pesquisa que sejam sensíveis às diferenças e às variações individuais e contextuais e que evidenciem a mutualidade entre teoria e prática é o que me encoraja a desenvolvê-lo. Interessam-me, sobretudo, teorias que configuram a cognição e a linguagem como fenômenos que são dependentes da nossa dinâmica biológica e sociocultural, e que simultaneamente tanto são especificados por essas dinâmicas quanto as especificam, num processo recursivo e contínuo. Essas propostaspodem dar origem a diálogos fecundos no que concerne ao temário do ensino/aprendizagem de línguas. Ganhos sistemáticos podem ser obtidos se esse processo for configurado como um fenômeno observado no domínio das interações situadas dos seres humanos, de maneira dependente da nossa dinâmica biológica, em especial de nossas emoções, como especificadoras das dinâmicas relacionais, tanto interpessoais quanto com o meio físico. Meu principal interesse é contribuir para a reflexão conceitual já estabelecida na área da Linguística Aplicada ao Ensino/Aprendizagem de Línguas Estrangeiras, ao introduzir aí a 26 INGLÊS NA SALA DE AULA Biologia do Conhecer (MATURANA, 1998, 2001), aliada à pesquisa narrativa (CLANDININ e CONNELLY, 2000). Essa articulação nos permite desenvolver aquilo que Johnson e Golombeck (2002, p. 4) chamaram de uma epistemologia da prática. Primeiramente, apresento a fundamentação teórica da pesquisa, em seguida uma breve exposição de minha pesquisa e discussão de seus resultados parciais e, por último, proponho algumas reflexões sobre o exposto. As Ciências Cognitivas e a Biologia do Conhecer É comum ouvirmos dizer que o processo de aprendizagem de uma língua envolve a captação, o processamento e o armazenamento de formas e significados. Falamos cotidianamente sobre a linguagem como se ela fosse uma substância (LAKOFF e JOHNSON, 1980, p. 4- 10), algo da realidade que pode ser quebrado em pedaços e consumido por uma determinada faculdade mental ou cerebral. Essa concepção de ensino/aprendizagem como depósito gradual de substâncias numa mente, aliada à visão de linguagem como contêiner de conteúdos mentais (ideias) e da comunicação como transferência desses conteúdos através de um tubo (canal) entre nossas cabeças funda nossa maneira cotidiana de falar e teorizar sobre linguagem e cognição (REDDY 1979; MAGRO, 1999). Na metade do século XX, com o advento das assim chamadas Ciências Cognitivas (GARDNER, 1994), áreas de pesquisa como a Linguística Aplicada e as Neurociências foram se consolidando como campos de pesquisa autônomos. Nesses campos, a mente humana, a Neurobiologia e suas inter-relações com a aprendizagem e a linguagem passaram a ser construídas conceitualmente em termos do processamento e armazenamento de informações computacionais. Essa compreensão, aliada a pesquisas pautadas na física e no positivismo como modelos paradigmáticos do fazer científico, edificaram um modelo conceitual canônico para o ensino e a aprendizagem de línguas marcado por: Uma dissociação entre o fazer teórico e o fazer prático; 27 INGLÊS NA SALA DE AULA A idealização de falantes, padrões linguísticos, aprendizes, contextos e modelos de aprendizagem; A ênfase no ensino/aprendizagem como transmissão e processamento de informações; A marginalização de variáveis emocionais, históricas e políticas; O reducionismo e minimalismo explicativo (aragão, 2003). Nessa perspectiva, em conformidade com a tradição filosófica ocidental, a compreensão da cognição e da linguagem se dá pelo isolamento da razão, apontada como característica distintiva fundamental do ser humano. As emoções, nessa tradição, são tratadas como irrelevantes ou, quando reconhecidas, são consideradas secundárias e em geral perniciosas, com efeitos nocivos sobre a razão. Basta ver compêndios como os de Ellis (1994), Robinson (2001) e Lightbown e Spada (1999). É prática comum colocar as “variáveis” afetivas como secundárias às cognitivas e configurá-las de maneira limitada como “variáveis do aprendiz”, a partir de arquiteturas conceituais dicotômicas e estáticas dos indivíduos . A Biologia do Conhecer, como se denomina o conjunto da obra de Humberto Maturana sobre o viver, orienta de outro modo nossa compreensão dos sistemas vivos, em geral, e dos seres humanos, em particular; dos processos neurofisiológicos que dão origem aos fenômenos emocionais e interacionais humanos; das relações entre os seres humanos e desses com o seu meio. A Biologia do Conhecer é um mecanismo explicativo dos sistemas vivos, caracterizados como sistemas dinâmicos operacionalmente fechados a instruções do meio, tratados como seres em constante transformação no viver e em permanente acoplamento estrutural com o meio. Com efeito, todo o viver é um conhecer, e todo o conhecer é um viver. 28 INGLÊS NA SALA DE AULA A Biologia do Conhecer nos permite abordar sistemicamente os processos de ensino/aprendizagem e, no que nos interessa aqui, o ensino/aprendizagem de inglês. A adoção desse modelo nos leva a: Compreender cognição e linguagem como atividades mutuamente imbricadas, realizadas por agentes que co-constroem e coordenam ações de maneira recursiva em domínios consensuais operacionais e contextos relacionais, os quais envolvem a distinção de objetos e relações entre objetos, a distinção de si mesmo (autoconsciência) e de outras pessoas na convivência; Dirigir nosso foco de observação para a dinâmica operacional histórica, situada e relacional de fenômenos distintos em reciprocidade, mútua constituição, afetação recíproca, sem colapsá-las e sobrepô-las; Em conformidade com isso, apontar a reciprocidade de dois domínios não intersectantes e não redutíveis – a fisiologia e o comportamento; Entender que é o aluno, e não o meio, que especifica em suas interações o que pode ser ensinado/aprendido/compreendido : cognição e comunicação não dependem “daquilo que se entrega”, mas do que ocorre com aquele ou aquela que comumente se diz que “recebe”; Em consequência, entender que a metáfora do computador / dos contêineres para a cognição e a linguagem perde seu valor explicativo corrente; Apontar que os sistemas e os efeitos das perturbações interacionais são imprevisíveis e não têm relação com seu tamanho: uma pequena perturbação pode ter efeitos extensivos ou não ter o menor impacto ; Reconhecer, em conformidade com isso, que tanto a variabilidade quanto a congruência e a estabilidade de padrões interacionais são observáveis, pertinentes e merecedoras de tratamento científico unificado; Privilegiar descrições densas, que evidenciam a dinâmica das diversas variáveis que constituem o domínio sistêmico em operação, sobre as fórmulas dissecadas dos tratamentos formais. 29 INGLÊS NA SALA DE AULA Emoções no Ensino / Aprendizagem de Inglês Como falar aqui de emoções e compreender sua participação nesse processo? Maturana (1998, p.15-23) propõe compreendermos emoção como um fenômeno biológico relacional dos seres vivos, em especial, dos mamíferos. Do ponto de vista da Biologia, o que distinguimos como emoções são disposições corporais dinâmicas que especificam os domínios de ação, os tipos de condutas relacionais e interacionais possíveis num dado momento. Ao mudar de emoção, mudamos de domínio de ação, num fluir que Maturana chama de emocionar. Um domínio de ação é um domínio de condutas, comportamentos, posturas ou atitudes corporais que um observador distingue com uma emoção: é a emoção, e não a razão, que define a ação, embora em geral não tenhamos dificuldade de justificar racionalmente nossas ações. Dessa forma, se se deseja saber qual a emoção, deve- se olhar a ação. Inversamente, se se quer saber qual a ação, basta olhar a emoção (MATURANA e BLOCK, 1996, p.114-115). No cotidiano sabemos muito bem disso: quando estamos numa determinadaemoção, há coisas que podemos fazer e outras não, assim como há argumentos que aceitamos e outros não, dependendo da emoção. Lidamos cotidianamente com domínios nos quais só são possíveis certas ações e não outras, embora nem sempre nos damos conta disso. Portanto, a emoção define o que acontece na relação com os outros ou com nós mesmos, constituindo os espaços das dinâmicas relacionais em que nos movemos. Se olharmos o nosso próprio emocionar de maneira reflexiva, poderemos atuar coerentemente com ele ou mudar de domínio de ação, se assim o desejarmos e se isso for possível dentre o complexo de variáveis envolvidas (MATURANA e BLOCK, 1996, p. 117-118). Nesse espaço do saber sobre o saber, do dar-se conta de nossas ações e emoções, abrimos a 30 INGLÊS NA SALA DE AULA possibilidade de uma atitude reflexiva responsável e ética, e de uma autoconsciência relacional. E essa abordagem é radicalmente diferente daquela que advoga o controle das emoções. Sendo assim, o ponto de partida de um processo de ensino/aprendizagem tem a ver, sobretudo, com um convite – e a aceitação mútua – para participarmos em conjunto de um espaço de convivência. Tudo depende dessa emoção, dessa possibilidade de nos movermos juntos de um lado para o outro, de estarmos num mundo de uma maneira ou de outra constituída no fluir de nossos encontros. A partir do emocionar é possível efetivarmos, numa convivência particular recorrente, uma transformação mútua que gere condutas adequadas, ou aqueles comportamentos que um observador, um professor, por exemplo, distingue como apropriado num contexto interacional por ele especificado. Nessa perspectiva, aprender uma língua estrangeira significa, sobretudo, estar disposto a conviver com outros numa rede de conversações, num linguajar constituído numa lógica processual, numa racionalidade e numa emoção distintas, com as quais estamos acostumados a conviver no nosso cotidiano. O ensino é um guiar, um conduzir numa convivência particular em que nos transformamos de maneira constante. Isso alude à compreensão da aprendizagem de uma língua não como a aquisição de uma entidade, mas como um espaço operacional de distinções recursivas e de coordenação de comportamentos, configurado consensualmente a partir das ações e emoções recorrentes que se realizam numa sala de aula e se estabilizam ao longo de um tempo recorrente de interações dessa natureza. Portanto, ensino/ aprendizagem é um processo de transformação no viver coletivo, cuja orientação é definida pela maneira segundo a qual um professor envolve os alunos no desenvolvimento de habilidades operacionais que compreende como necessárias para viver num domínio particular de existência – nesse caso, o de coordenação de ações recursivas e consensuais, ou o linguajar na língua especificada. Assim, tomo a aprendizagem e o ensino não como fenômenos 31 INGLÊS NA SALA DE AULA apartados, nem sustentados por uma relação causal, mas como fenômenos processuais inter- relacionados de múltiplas e complexas maneiras. Dessa forma, o fenômeno de nosso interesse envolve um sistema de elementos processuais dinâmicos, relacionais, interativos e consensuais históricos, constituídos por uma ampla gama de componentes socioculturais, políticos e emocionais. Isso implica conceber a sala de aula como um espaço relacional multifacetado, um contexto co-constituído por alunos e professor no fluir de suas interações. São As Histórias que nos Dizem Mais: Emoção, Reflexão e Experiência Narrativa Essa compreensão da dinâmica histórica e situada do viver humano, no meio com outros, pode ser articulada à pesquisa narrativa desenvolvida por Jean Clandinin e Michael Connelly (2000), e ao conceito de descrição densa (GEERTZ, 1973), com consequências frutuosas. Em conformidade com a Biologia do Conhecer, a pesquisa narrativa argumenta que: A qualidade da experiência humana é o foco principal de investigação; As vidas humanas são tecidas por um processo histórico, situado, multifacetado e complexo; O conhecimento é fruto do compartilhamento mútuo e dialógico com outros num espaço particular de convivência; O ato de narrar, que envolve o entrelaçamento de emoção e razão no linguajar reflexivo, provoca uma transformação na maneira como a pessoa compreende a si própria e aos outros envolvidos em sua história; A pessoa advoga por um imbricamento entre o narrar, o conscientizar e o agir; Em consequência, a historicidade narrativa se constitui como um agente perturbador de atitudes reflexivas, que pode produzir um agente consciente, o qual se desloca de um círculo fechado de ação sem reflexão e passa a ser movido de seus desejos e escolhas. Clandinin e Connelly (2000) apontam que nossas identidades acadêmicas são construídas por histórias pessoais e profissionais e 32 INGLÊS NA SALA DE AULA as histórias dos outros constituem nosso meio de experiências, de modo que o coletivo e o pessoal são fios que produzem uma mesma imbricada teia. Somos indivíduos na coletividade, como sugere a Biologia do Conhecer de Maturana. Clandinin e Connelly enfatizam que vivenciamos os nossos encontros e interações cotidianas como histórias compostas de narrativas diversificadas. Tomando o conceito de experiência e continuidade de John Dewey, a pesquisa narrativa chama a atenção para a relação entre as variáveis históricas. Todo presente tem um passado e uma possibilidade de história futura enraizada nesse espaço prévio. Esse modo de caracterizar nossa experiência projeta importante conceituação sobre a construção da pesquisa de campo que é, sem dúvida, de grande valia para a compreensão qualitativa de nossas experiências profissionais cotidianas. Ao narrar histórias, memórias e eventos marcantes em sua vida, um aluno pode se conscientizar e agir coerentemente com seu emocionar. Como sugere Telles (2004, p. 80-81), no processo de recontar seu viver, os alunos podem reavaliar histórias antigas e partir para outras histórias com as quais desejam viver. Johnson e Golombeck (2000, p.3-5) afirmam, em conformidade com Telles e embasados na obra de Dewey, que na atividade narrativa há um processo de auto- conhecimento no qual se pode questionar sua própria conduta em relação ao seu meio contextual e agir em conexão com a compreensão de sua experiência e desejo. Durante esta atividade o aluno passa a ser autor de sua própria história, ao compreendê-la em sua forma processual e inter- relacionada a outros eventos marcantes (cf. p. ex. TELLES, 2002). O conceito de descrições densas, proposto por Geertz (1973), busca um tipo de esforço intelectual que envolve a observação mais completa possível e a interpretação cuidadosa de culturas particulares. Essa atividade é realizada na socialização e na participação dialógica do pesquisador no conviver com um determinado grupo de pessoas. Nesse processo de investigação, o pesquisador procura estabelecer conexões, padrões, rupturas e significados das ações no emaranhado sistêmico das relações experenciais humanas. Isso se dá 33 INGLÊS NA SALA DE AULA com a coleta de documentos variados de campo, que podem apresentar diferentes perspectivas dos participantes e do pesquisador, processo conhecido como triangulação. Com base nesses documentos, o pesquisador pode estabelecer um intercruzamento de dados na compreensão multicomponencial do processo de transformação na convivência. 35 INGLÊS NA SALA DE AULA 4. ARTICULANDOEMOÇÃO, COGNIÇÃO E REFLEXÃO NA SALA DE AULA A presente pesquisa, cujos resultados preliminares trago à reflexão, foi realizada numa sala de aula de língua inglesa no curso de graduação em Letras de uma universidade federal. Selecionei para realizá-la uma disciplina na qual se dá o primeiro contato dos alunos calouros com o ensino/aprendizagem de inglês. Nessa faculdade, o curso de graduação em língua inglesa se inicia no nível intermediário. A exigência do nível intermediário para o início dessa experiência para alunos interessados na habilitação em língua inglesa é parte constitutiva do cenário emocional da pesquisa. O universo da pesquisa envolveu dez participantes. O que vou expor aqui, no entanto, são minhas observações no contato com apenas uma aluna, que adotou o pseudônimo de Júlia. Em conformidade com os marcos teóricos adotados, a pesquisa de campo consistiu de uma diversidade de atividades (cf. p. ex. MICCOLI, 1997), nas quais os seguintes documentos de campo foram produzidos: 36 INGLÊS NA SALA DE AULA Uma narrativa autobiográfica escrita; Três transcrições de entrevistas semi-estruturadas que somadas representam 4 horas; Filmagens de 20 aulas; Notas de campo; Notas realizadas durante conversas informais com a participante; Uma colagem; Respostas a um questionário final; Um diário; A narrativa autobiográfica escrita pelos participantes versou sobre suas histórias de aprendizagem de inglês. A colagem, um interessante instrumento no qual, através de desenhos próprios ou imagens retiradas de revistas, o participante conta sua história, indica como se sente, sem as limitações da linguagem. Os alunos, em geral, narram seu contato com a língua inglesa como uma empreitada muito difícil, desafiadora, exigente e, muitas vezes, assustadora. Júlia descreve sua experência no excerto abaixo, em sua primeira entrevista: R - Você disse também que no curso se cobra muito do aluno? J - Acho que é a maneira como o inglês é colocado na faculdade, é como olha, o inglês é difícil, é um monstro e ele tem sete cabeças, se você não tem no seu currículo uma luta de bicho de sete cabeças, você não vai passar, entendeu, e sempre colocam o inglês assim, como esse “big monster” e está todo mundo querendo aprender, mas o professor está num patamar superior e o inglês é uma língua difícil. Essa metáfora, “lutar com o bicho de sete cabeças”, modula de maneira central as condutas relacionais de Júlia na faculdade. Ela está imersa em lutas com esse bicho e pretende vencê-lo a qualquer custo. Esse desejo, essa disposição relacional de querer vencer a luta contra o bicho de sete cabeças pode explicar, em parte, a perseverança de Júlia quanto ao seu aprendizado e ao seu sucesso final na disciplina. No roteiro para a terceira e última etapa do processo de reflexão, a colagem, lia-se a seguinte orientação: Numa folha, monte uma pequena história, um enredo, com palavras e imagens que descreva esta etapa de seu processo de 37 INGLÊS NA SALA DE AULA aprendizagem de inglês na faculdade. Pense na sua história nesta disciplina e lembre-se de suas expectativas, faça uma reflexão. Depois dessa atividade, fiz uma última entrevista com Júlia para esclarecer os sentidos das imagens que ela apresentou na colagem. Esta história narrada na última entrevista e desenhada como uma história em quadrinhos resume sua trajetória na disciplina: J - Então aqui começa a minha estória, o que podemos ver de cara é que ele (o aluno – personagem da história) começa tristonho e termina feliz. Ele entra cabisbaixo e vai falando “ai que droga de aula de inglês” e sai pior ainda, com a língua para fora: “puxa vida, achava que sabia alguma coisa de inglês, eu sou um fracasso”. E assim os dias se passaram e o aluno se sentia desvalorizado. Aí ele acorda cedo na cama dele para ir à aula e era um tédio e ele fala: “ai que droga, a professora vai ficar corrigindo exercícios e pensando que está ensinando, e eu fingindo que estou aprendendo.” Mas o tempo foi passando, mas o tempo só não passa como amadurece e o aluno foi tomando conhecimento, se tornando consciente de que ele é capaz e que dá conta, independente do que os outros digam e (...) Aí ele vai saindo da aula de inglês, ele passa a se sentir grande e confiante, levanta os ombros e acredita em si e consegue vencer, pena que esta não seja a história de todos. Então eu acho assim, que no final, hoje estou me sentindo muito segura, muito mais segura do que, vamos supor, nossa primeira entrevista. Eu estou me sentindo assim nesse semestre, achei que entrei para baixo e estou saindo super para cima. Eu vi que o meu inglês caminhou e eu melhorei meu relacionamento com a professora, isso também melhorou porque eu falei o que quis falar. Teve hora que discordei e levantei a voz na sala de aula e falei com ela as coisas e enfrentei ela. Não tive medo dela e isso para mim foi bom e foi bom pra eu levantar minha bola, entendeu? Dessa pequena história, gostaria de destacar: Júlia era aluna repetente; 38 INGLÊS NA SALA DE AULA Júlia iniciou o curso com baixa autoestima, constrangida, desacreditada, calada e decepcionada com a professora, consigo mesma e com o curso, mas terminou com autoestima, confiante em si mesma e com uma boa relação com a professora; Júlia conseguiu vencer o bicho de sete cabeças, perceber que é capaz e que a professora deseja ajudá-la, e não fazê-la fracassar; Acredito que o processo narrativo-reflexivo ajudou Júlia a desenvolver a autoconsciência de que precisava para deixar para trás algumas experiências decepcionantes, confiar em si mesma e participar das aulas em pé de igualdade com os colegas e com a professora. Em outras palavras, Júlia precisava mudar seu domínio de ações. À medida que deixa de se preocupar com o que outro está pensando a seu respeito, há uma mudança radical no que é capaz de realizar em sala de aula. Júlia trabalha, há pouco mais de um ano, numa escola infantil. Acredita que o objetivo de ensinar inglês para as crianças é semear o amor pelo aprendizado da língua inglesa. Sobre sua história pessoal e condição sócio- econômica, conta, em sua narrativa autobiográfica redigida no início do curso, que: J - Venho de família simples, que sempre batalhou e estudei sempre em escolas públicas, cujo ensino não era de muita qualidade. Iniciei o meu contato com a língua inglesa ouvindo e traduzindo músicas da Madona aos 12 anos. Sempre pedi a meus pais que me matriculassem em um cursinho de inglês, mas realmente não tínhamos dinheiro e teria que aprender sozinha. Esse aspecto de sua história auxilia a explicar sua tenacidade, persistência, determinação e o enorme desejo de domar o “bicho de sete cabeças”. No início de seu diário reflexivo, diz: “É claro que não vou desistir. É por isso que estou aqui hoje. Vou repetir quantas vezes forem necessárias (...) a coragem de nunca abandonar a nau é para mim o que há de mais valioso”. Numa conversa informal que tivemos na cantina, perguntei como encarava o processo de aprendizagem naquele semestre. Respondeu que estava subindo uma montanha e que tinha que deixar alguns pesos para trás. De fato, o que Júlia percebeu ao longo do semestre, à medida que avançávamos em nossas reflexões, era que deveria deixar para trás e superar as experiências negativas 39 INGLÊS NA SALA DE AULA que funcionavam como um bloqueio, limitando o seu desenvolvimento, sobretudo sua fluência oral. Além disso, precisava superar um pensamento depreciativo associadoa um sistemático discurso negativo de fracasso e reprovação de si mesma. Júlia veio estudar Letras com o desejo de se tornar professora de inglês. Como sua situação socioeconômica a impedia de frequentar um curso de inglês, tinha que aprender sozinha, conforme relata: J - Não tinha como praticar a língua, pois no colégio as aulas eram ministradas em português. Comecei a escrever pequenas frases em inglês nas cartas que escrevia a um amigo que sempre teve um bom nível na língua. Como era iniciante, errava muito. Ele, como era adolescente, também me ridicularizava na frente de todos os nossos amigos, ao invés de me corrigir à parte. O que poderia ter sido a alavanca para o crescimento tornou-se a areia movediça que me fez sentir inferior a todos. Sentia- me incapaz de conseguir aprender uma segunda língua. Cresci com este sentimento de inferioridade, até chegar na faculdade. A interação com o colega marcou Júlia de uma forma profunda e, posso dizer, é um dos marcos históricos cuja identificação Clandinin e Connelly (2000) consideram importante. De alguma maneira, esse sentimento de inferioridade, a autoavaliação negativa e a baixa autoestima acompanharam Júlia durante quase todo o seu processo de aprendizagem até então. O medo, o constrangimento e a insegurança que relata em suas narrativas limitavam seu campo de ação na sala de aula. Em nossas conversas e entrevistas, sempre procurava refletir sobre essas emoções. Sentava na frente junto a alguns colegas também repetentes, mas não participava das atividades propostas pela professora. Eu sentia que ela estava sempre em algum outro lugar. Para ela, falar inglês na sala é como “pisar em ovos” ou como “se o ar tivesse facas”. Essas metáforas nos auxiliam a compreender a dinâmica relacional de medo, cautela e desconfiança que levavam Júlia a participar pouco das atividades que envolviam o 40 INGLÊS NA SALA DE AULA uso de inglês em sala de aula. Numa conversa informal que tivemos no final de uma aula, procurei abordar a questão de sua participação nas tarefas da sala de aula. No primeiro mês, observei que não perguntava, não interagia com outros na turma. Indaguei-a sobre essa situação recorrente e esta foi sua resposta: “quando converso inglês sinto que o outro está sempre me corrigindo, é como se o ar tivesse facas, estou sempre pisando em ovos, parece que estão me julgando, avaliando, criticando.” Essa sensação de estar permanentemente exposto e julgado (cf. p. ex. MICCOLI, 1997) é um traço recorrente não só de Júlia, mas também dos outros participantes da pesquisa. Todos, com exceção de uma participante, relatam desse modo seu extremo desconforto ao falar inglês em público. Em linhas gerais, há um sentimento de bloqueio limitador da ação, de extrema preocupação consigo mesmo e com a opinião alheia, acompanhado de um sentimento de observação julgadora contínua de que os demais presentes podem estar criticando sua conduta. Acompanha esse desconforto o medo de errar, medo de fazer perguntas, medo do que o outro pode estar pensando sobre você, o constrangimento, a vergonha e o retraimento interacional. À medida que construía sua autoconfiança, a sensação de pisar em ovos foi se dissipando. Porém, até a última entrevista e nas últimas aulas, percebia que Júlia ainda oscilava em sua insegurança. Entretanto, depois da nossa segunda entrevista, observei uma mudança significativa. Na entrevista decidi enfatizar a sua preocupação com a opinião e a avaliação dos outros, esse sentimento de pisar em ovos na sala e a sensação de facas no ar. Num determinado momento, introduzi esse tema em nossa reflexão, ao qual retornei sistematicamente: R - Você faz perguntas, né? J - Faço. R - O que te leva a fazer uma pergunta? J - Do que surgir na hora. R - E você tem algum medo e receio de fazer pergunta? J - Agora não (risos), porque agora acho que eu escrachei...(risos) R - (risos) Por que agora não, Júlia? J - Estou mais segura, Rodrigo, graças a Deus, estou mais segura nesse curso. Acho que estou melhorando no inglês. Eu acho que tenho capacidade (...) 41 INGLÊS NA SALA DE AULA Procurei enfatizar essa questão na tentativa de torná-la mais consciente. No trecho seguinte, pergunto como está “o alpinista” na aprendizagem de inglês, com o intuito de fazê-la perceber que poderia superar suas dificuldades e a sensação de desconforto: R - Qual que é o problema do inglês, Júlia? J - Acho que o problema do inglês, no semestre passado principalmente, foi esse, foi um pouco do medo, desse medo de me achar incapaz, o medo de não dar conta, né? R - E como está o alpinista, Júlia? J - (risos) Acho que ele está subindo legal, Rodrigo, acho que ele está usando as ferramentas que devia, acho que ele está subindo com mais confiança. R - Qual é a origem desse medo, Júlia? J - É a crítica, o medo da crítica para mim, a Nati (uma colega de sala), por exemplo, não tem esse medo. R - Medo do olho do outro? J - É... por que que tenho esse medo do olho? R - Você tem alguma sugestão para superar isso? J - Yoga (risos). Estou brincando, não sei, mas alguma coisa desse tipo. R - De criar autoconfiança? J - De trabalhar isso com você, com o seu pessoal. R - Então se você se preocupar menos com o olho dele, com os seus erros... J - Mas eu preocupo demais, sabe, para falar esse pouquinho de inglês, algumas frases. Aí já vi que na minha cabeça aqui fervendo, será que estou falando isso certo? Será que o Rodrigo está corrigindo minha pronúncia? Será que eu tenho algum erro? R - Está passando da hora, vamos para a aula? J - Vamos, está na hora. Júlia foi para a sala, enquanto desci até a cantina. Quando voltei, Júlia estava sentada junto com os colegas que mais participavam oralmente da aula. Acompanhei quem detinha o turno durante uma atividade de resolução de problemas. Nessa atividade, havia um crime a ser solucionado e, a partir dos hóspedes da casa, os alunos tinham que provar quem era 42 INGLÊS NA SALA DE AULA o culpado. Júlia manteve o turno por trechos longos e entrou num embate conversacional com a aluna-participante Nati, a colega que Júlia achava ser superior a ela. Num determinado momento, a conversa começou a circular de maneira aberta na sala, de forma que poucas pessoas tomavam o turno conversacional. Mas nesse dia Júlia falou muito mais do que de costume. Alguma mudança radical ocorreu no que Júlia podia fazer na sala. Sua emoção, seu domínio de ação, sua atitude naquele meio relacional haviam se transformado. Era como se, durante aquela aula, tivesse deixado o espaço de sala de aula no qual pisava em ovos e driblava as facas que estavam no ar. Sua emoção ou, para relembrarmos o modo como estou aqui definindo esse fenômeno, sua disposição corporal para ação havia mudado, assim como mudou o seu ambiente interacional. Foi como se uma outra dinâmica tivesse entrado em cena. Observei que essa mudança se estendeu às aulas seguintes. Júlia descreveu em sua colagem e na entrevista final que falar inglês com fluência seria como “vestir a capa de um rei”. Naquele dia, Júlia colocou sua coroa de rainha. Falou com fluência e desenvoltura durante toda a aula. Fiquei atônito. Selecionei o trecho final de nossa última entrevista, quando procurei explorar os efeitos de nossa concatenação de reflexões acerca de sua experiência na aprendizagem de inglês, para reproduzi-lo aqui, na íntegra: R - Como avalia que esse processo de reflexão pode estar auxiliando nessa consciência de que você já sabealguns caminhos a percorrer? J - Eu acho que a sua presença na sala me dava segurança. Eu pensava assim: tem um doutorando na sala e esse trabalho que a gente fez, me fez pensar, me fez refletir mesmo sobre a minha capacidade, sobre a minha falta de confiança em mim mesma. Vi que não é por aí, que eu sei que alguma coisa eu sei, tanto que estou aqui. Minhas notas nesse semestre foram boas, mas ainda tem muito para aprender, mas estou muito mais confiante. Fui vendo que o professor da faculdade não é o rei e talvez eu também não vou ser nenhuma rainha para ninguém. Vai ver que vou ser essa rainha para mim, mas eu posso não ser para as outras pessoas que vão chegar e vão me contestar. Espera aí, não é assim que pronuncia, não é assim que se fala. Não, isso está errado! Mas eu vi que 43 INGLÊS NA SALA DE AULA posso contestar também, não preciso me sentir inferior e nem me curvar para a professora de inglês da faculdade. Eu vi isso esse semestre na faculdade. Esse processo que a gente fez de reflexão nesse semestre me fez ver isso, que posso refletir e que posso discutir, que posso argumentar e me fez crescer. Isso me fez crescer muito. Hoje estou me sentindo bem melhor com relação ao inglês, bem segura de mim mesmo. R - É, acho que assisti isso, Júlia, aí, depois da segunda entrevista. J - Me sinto muito mais segura, o pisar em ovos pode até continuar, mas agora eu sei onde é que estou pisando, sabe, sei onde estão os ovos. R - É, e acho que mudou. Eu sinto que isso mudou na documentação filmada e observei na sala, eu vejo que mudou, talvez, como você mesma falou, tenham outras coisas também. Sua vida pessoal está melhor, né? J - É, pode isso ser também (risos). R - Né (risos). J - A segurança vem das coisas que você me fala, o fato de você falar essas coisas pra mim, me fez caminhar melhor, que eu podia dar conta, só que não conseguia enxergar isso, que se eu posso fazer isso assim é assumir a capa do rei e aí tenho de prestar contas da minha realeza. Se diz que é rei, cadê? A responsabilidade fica maior, sabe? Reflexões Finais Júlia mudou. Eu mudei. Júlia vive hoje um outro domínio de ação, uma outra emoção, diferente daquela na qual estava no início de nossa conversação. Acredito que hoje vivemos uma outra maneira de nos colocarmos na relação com os outros. Nesse conversar, nesse dar voltas em conjunto, entrelaçando o emocionar com o conversar (MATURANA, 1998, p.34), concatenando reflexões de autoconsciência em conjunto, nos transformamos sempre de uma maneira inevitável, embora nem sempre perceptível. Maturana e Block (1996) apontam que a reflexão é um ato de emoção no desapego, no qual se sai de uma certeza, de uma condição que nos cega e abre-se a mão para ver o que antes não víamos. O saber e a certeza negam a reflexão, pois não se reflete sobre o que se tem como certo. Na reflexão admitimos que não agimos mais numa certeza, e aí há um deslocamento. 44 INGLÊS NA SALA DE AULA Quando refletimos, vivemos uma mudança na corporalidade e uma mudança na conduta, e aí podemos fazer coisas que antes não podíamos. A história de vida de Júlia e nossas conversações haviam modulado uma nova conduta, assim como as próprias emoções vividas na sala modificaram sua vida pessoal e acadêmica, numa dialogia constante. Nosso conversar, nosso recontar participaram desta dança emocional e racional, especificando e modulando domínios possíveis nas concatenações de reflexões que desenvolvemos em conjunto. Podemos promover espaços de reflexão em conjunto de várias formas. O primeiro passo é conhecer um pouco das trajetórias de aprendizagem entre alunos e professor. Isso pode ser iniciado através da escrita de uma narrativa autobiográfica sobre a história pessoal e escolar do aluno e do professor. O objetivo central é relatar as experiências prévias com a língua inglesa, os prazeres e desprazeres na aprendizagem da língua, assim como descrever crenças e estratégias de aprendizagem. Os alunos e o professor podem compartilhar suas histórias, em pares ou em pequenos grupos. Pode ser feita também uma colagem descritiva, usando desenhos ou figuras que encorajem a reflexão sobre questões como o sentimento predominante nas aulas, a sensação de falar inglês na sala, como é ou como poderia ser a sensação de falar inglês com fluência, as estratégias utilizadas para otimizar a aprendizagem, e, se se pretende ser professor, que imagem pode simbolizar esse papel. A colagem pode ser um artifício produtivo para quem tem dificuldade de discorrer verbalmente sobre seus sentimentos e emoções. Realizada essa atividade, o professor pode entrevistar os alunos para explorar pontos da colagem e da narrativa. O professor pode ainda organizar entrevistas entre os alunos, levando-os a ler as narrativas dos colegas e a montar um questionário para aprofundar a reflexão. Pode-se manter também um diário que relate as emoções vividas na sala ou uma troca de cartas entre os alunos e o professor. É necessário orientá-los para o foco 45 INGLÊS NA SALA DE AULA reflexivo de sua escrita, para que não fiquem apenas no nível descritivo. Conversas em pares ou em grupo sobre emoções envolvidas na aprendizagem também podem ser fomentadas. Os alunos podem gravar as apresentações orais uns dos outros, ou situações de interação oral, e depois refletir sobre as mesmas em sessões de auto-observação reflexiva com o professor ou aluno com aluno. De fato, não há uma receita geral. Antes de entrar na sala como pesquisador e escutar as histórias e experiências de Júlia (e dos outros participantes), não esperava que as ações de nossos alunos pudessem ser balizadas de tal maneira por nossas emoções, nossa auto- observação/consciência e nossas histórias de vida. Foi marcante compreender que falar inglês na sala de aula envolve uma gama de variáveis muito maior que a combinação de gramática e vocabulário na interação comunicativa. Comunicar em inglês na sala envolve questões como as histórias de interações prévias do aluno com a língua e todo o seu entorno de significados pessoais, emocionais, identitários, de atribuição de poder na sala, e as várias faces do medo, como medo do próprio julgamento e dos outros ali presentes, constrangimento relacional, vergonha, autoestima, confiança e insegurança, ansiedade, preocupação e culpa. Atualmente, compreendo de maneira sistêmica que quanto maior a empatia entre professor e aluno melhores são os resultados. Há uma distância entre o mundo do aluno e o do professor na sala de aula. Esses mundos envolvem distintas crenças que podem gerar conflitos pela falta de um co- emocionar mais harmônico e congruente. No entanto, uma maneira de encurtarmos as distâncias é participarmos do mundo deles, de suas conversações, de suas histórias, e convidá-los a participarem das nossas. Precisamos dar vozes a todos na sala de aula, pois é conversando que podemos nos entender melhor, por conhecermos as semelhanças e diferenças entre nossas histórias e emocionares. Como apontei, temos a nossa disposição diversas maneiras de fomentar essa atitude reflexiva na sala: uso de diários, narrativas, autobiografias, discussões em grupo, leituras coletivas de narrativas, filmagem e auto-observação de cenas de sala de aula em que estamos expostos, 46 INGLÊS NA SALA DE AULA colagens, entre outras. Basta estarmos dispostos a entrar nesse emaranhado inter-relacional sistêmico e também admitir, como a própria Júlia apontou no questionário final, que “A reflexão é para todos, mas nem todos são para a reflexão”. Claro,