Prévia do material em texto
TEXTOS FUNDAMENTAIS DA LITERATURA UNIVERSAL Luara Pinto Minuzzi As fl ores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identi� car as características do simbolismo. Relacionar as características do simbolismo com a obra de Charles Baudelaire, em especial, com o livro As � ores do mal. Analisar poemas e trechos de poemas de As � ores do mal. Introdução Você sabe o que é um flâneur? O significado do termo flâneur é cami- nhante, observador, errante. O flâneur é aquele sujeito que anda pelas ruas de uma cidade sem um objetivo preciso, sem pressa, sem horário para chegar a algum lugar. Ele anda apenas pelo prazer de andar e observar todos os elementos das ruas. Essa foi uma figura muito importante na França do século XIX, e foi a partir do poeta Charles Baudelaire que os estudiosos começaram a se interessar por esse tema e por esse tipo de sujeito e a estudá-los. Neste capítulo, você vai descobrir quem foi Charles Baudelaire e por que ele é considerado um flâneur. Vai analisar alguns dos seus poemas do livro As flores do mal e identificar, nesses textos, características do simbolismo, movimento estético do qual Baudelaire foi precursor. A estética simbolista no século XIX Charles Baudelaire foi um poeta francês que nasceu em 1821 e morreu em 1867 (Figura 1). As suas obras marcaram não apenas a sua geração (um livro seu, As fl ores do mal, é considerado marco do Simbolismo), mas também inúmeras Textos fundamentais_U3C8.indd 136 28/08/2017 17:08:22 gerações posteriores. Para entender os seus poemas e como eles se encaixam no contexto da época, vamos, primeiro, analisar algumas das características e dos acontecimentos de relevo desse momento histórico. O século XIX foi marcado por uma grande evolução técnica e científica. Na metade do século, ocorreu a Segunda Revolução Industrial na Inglaterra, França e Estados Unidos. Ela veio para potencializar a evolução ocorrida durante a primeira Revolução Industrial, com o desenvolvimento de várias indústrias, como a química, a elétrica, a de petróleo e a de aço. O papel das máquinas nas indústrias e no processo de fabricação de bens era cada vez maior. Produção em massa, rapidez, corrida pelo lucro — todas essas são expressões que podem caracterizar essa época. Por outro lado, a exploração dos trabalhadores operários também chegou a níveis absurdos. A concentração das riquezas nas mãos de poucos foi potencializada. Enquanto isso, muitos e muitos viviam com quase nada. Além disso, no campo da filosofia, havia uma corrente chamada de Posi- tivismo, que colocava a razão, a ciência e a lógica como as únicas formas de se chegar ao conhecimento. Augusto Comte foi um dos seus mais famosos representantes, e os positivistas acreditavam que o avanço da humanidade era possível exclusivamente a partir do avanço da ciência e da técnica. Você pode imaginar que a religião, os sonhos, a arte e a imaginação acabavam ficando bastante de lado e não eram considerados importantes na vida das pessoas. Já no campo das artes, eram o Realismo e o Naturalismo as escolas que predominavam. Esses dois movimentos estão intimamente relacionados com o Positivismo. Portanto, os realistas e os naturalistas acreditavam que a realidade era algo objetivo e, dessa forma, procuravam retratá-la, nos seus livros e pinturas, por exemplo, da forma mais fiel possível. A razão era muito valorizada, e esses artistas tendiam a não se deixar levar pelos sentimentos e emoções na hora de criar arte. Você deve imaginar que todo esse racionalismo em demasia começou, uma hora, a cansar e a sufocar. É claro que a ciência é importante, assim como a evolução das técnicas da indústria e o trabalho duro para ganhar dinheiro. Mas será que só isso basta? E os sentimentos? E a subjetividade de cada um? 137As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Textos fundamentais_U3C8.indd 137 28/08/2017 17:08:22 É nesse contexto que surge o Simbolismo, com a publicação de As flores do mal, de Baudelaire, como já vimos. Esses artistas retomam alguns dos ideais românticos, mas, é claro, criam algo novo, uma nova estética. A subjetividade, a ênfase nos sentimentos e na imaginação e o individualismo são algumas das marcas em comum entre os movimentos do Romantismo e do Simbolismo. Além de Baudelaire, destacaram-se muitos outros: os também franceses Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé; o português Camilo Pessanha; os brasileiros Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimarães. Já na pintura, é possível citar os franceses Paul Gauguin e Gustave Moreau. Portanto, se é na França que essa estética surge, logo ela se espalha por outros países da Europa e do mundo. Com Baudelaire, surge a figura do flâneur: o flâneur é um indivíduo que caminha pela cidade. Porém, ele não caminha para ir de casa para o trabalho ou de casa para um bar encontrar os amigos. Ele caminha simplesmente por caminhar, pelo prazer de observar as cenas e as pessoas da cidade. Ele caminha sem um objetivo, sem um destino, sem pressa e sem hora para chegar. Não só Baudelaire tinha esse costume de vagar e de se perder pelas ruas de Paris, como introduz vários flâneurs nos seus poemas. Depois de Baudelaire, essa passa a ser uma figura bastante comum na capital da França, e só a partir dela você já pode perceber a diferença dos simbolistas para os realistas e os homens de negócio da França pós-Revolução Industrial: em uma sociedade marcada pela necessidade de efetividade, quem tem tempo para caminhar assim, sem um propósito e sem estar fazendo nada de útil ou de prático — sem estar ganhando dinheiro ou contribuindo para a evolução da ciência? As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista138 Textos fundamentais_U3C8.indd 138 28/08/2017 17:08:22 Figura 1. Charles Baudelaire. Fonte: Charles Baudelaire (2017). Apesar de os simbolistas apresentarem a tendência de se oporem aos realistas e aos naturalistas, as divisões entre os diferentes movimentos estéticos não são rígidas. As características que se apontam como sendo de cada estética são aquelas que mais surgem na obra dos seus autores, são as mais comuns e as mais marcantes. Essas divisões nos ajudam a organizar o passado para o compreender melhor. Isso não quer dizer que um poeta simbolista não possa apresentar aqui ou ali uma marca do Realismo, por exemplo. No mundo real, essas divisões são muito mais fluidas. Agora você vai identificar algumas das principais características do mo- vimento Simbolista. Para isso, vamos deter a atenção em alguns quadros e poemas com essa estética. 139As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Textos fundamentais_U3C8.indd 139 28/08/2017 17:08:22 Primeiro, observe o seguinte poema de Arthur Rimbaud: Minha boêmia (Fantasia) Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos; Meu paletó também tornava-se ideal; Sob o céu, Musa, eu fui teu súdito leal, Puxa vida! a sonhar amores destemidos! O meu único par de calças tinha furos. — Pequeno Polegar do sonho ao meu redor Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior. — Os meus astros no céu rangem frêmitos puros. Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho, Nas noites de setembro, onde senti qual vinho O orvalho a rorejar-me a fronte em comoção; Onde, rimando em meio a imensidões fantásticas, Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas E tangia um dos pés junto ao meu coração! (RIMBAUD apud ROCHA, 2009). Você deve notar, primeiro, o que o eu lírico está fazendo na abertura do poema: ele está andando com as mãos nos bolsos. De repente, ele senta no meio do caminho e fica olhando as estrelas — não para descobrir um novo planeta ou para estudar uma constelação, mas simplesmente para apreciar o céu. Aqui, portanto, surge o flâneur, que caminha sem um propósito. Repare, ainda, na forma como o eu lírico se veste: ele só tem umpar de calças cheio de furos e o seu bolso está descosido — mesmo assim, ele considera o seu paletó ideal. Quer dizer, o poeta não está muito preocupado com o plano do material, com a realidade imediata, mas com “sonhar amores destemidos”, espalhar rimas, rimar “em meio a imensidões fantásticas”, e fala em coração, musa e vinho. O poeta vive para espalhar rimas, está preocupado com a arte e com os sentimentos. Por isso, descuida-se completamente das suas roupas e do aspecto prático da vida. Portanto, aqui surgem mais algumas das marcas do Simbolismo: a ênfase nas emoções e no sentimento, no plano do onírico e do fantástico. As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista140 Textos fundamentais_U3C8.indd 140 28/08/2017 17:08:22 Ele ainda está claramente preocupado com ele mesmo e com os seus senti- mentos, e essa é outra marca do Simbolismo: o individualismo e a desconside- ração em relação a temas sociais. Veja, por exemplo, quantas vezes os pronomes “eu”, “meu” ou “meus” são repetidos ao longo do poema de Rimbaud. Se os Realistas e os Naturalistas se preocupavam com os problemas sociais e davam grande importância à denúncia dessas questões nas suas obras, os simbolistas se voltaram mais para o interior do eu, para os sentimentos particulares, não para questões coletivas. O poeta também cita a Musa. Quando ele fala na Musa, ele fala, na verdade, em inspiração e em escrever não seguindo rigorosos esquemas e planejamento, mas se deixando livre para ir para onde a imaginação quiser. Apesar disso, repare que o poema segue uma estrutura rígida — a do soneto. O soneto é composto por dois quartetos e dois tercetos, como o poema de Rimbaud. Ademais, a preocupação com as rimas, com a combinação entre os sons finais de cada verso, também fica evidente: observe que as rimas dos quartetos são entrelaçadas, sendo que o primeiro verso rima com o quarto, e o segundo, com o terceiro. Como no primeiro quarteto: “descosidos” rima com “destemidos” e “ideal” rima com “leal”. Dessa forma, mais uma carac- terística do Simbolismo destaca-se: a preocupação que esses poetas tinham com a forma dos seus textos. Com as rimas, ainda é possível citar outra marca da literatura simbolista: a musicalidade e a aproximação dos poemas com a música. Verlaine, um dos poetas simbolistas, chega, inclusive, a sentenciar em um poema: “A música antes de mais nada...”. Por último, repare no título do poema, “Minha boêmia”. Ao longo do texto, a palavra “vinho” ainda é citada. Muitos dos poetas simbolistas também ficaram conhecidos justamente pelas suas vidas boêmias, pelo desregramento, pelo abuso do álcool e das drogas. Eles, por esse e por outros motivos, também ficaram conhecidos como “poetas decadentistas”. A musicalidade ainda é perceptível nesses versos do poema “Violões que choram”, de Cruz e Souza: [...] Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpias dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. Tudo nas cordas dos violões ecoa E vibra e se contorce no ar, convulso... Tudo na noite, tudo clama e voa Sob a febril agitação de um pulso (CRUZ E SOUZA apud GÂMBERA, 2017). 141As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Textos fundamentais_U3C8.indd 141 28/08/2017 17:08:22 A musicalidade já surge no tema dos versos: o som aveludado das cordas de um violão. Mas, além disso, você reparou na repetição da letra “v”? Na verdade, não é tanto a repetição da letra o que importa, mas a repetição de um som. Leia em voz alta esse trecho do poema e perceba o efeito dessa repetição e a musicalidade obtida a partir dela. Essa repetição de uma consoante é uma figura de linguagem conhecida como aliteração. Também existe a assonância, que é a repetição de sons vocálicos. Esses foram recursos muito utilizados pelos simbolistas. A Figura 2 traz a pintura simbolista “Zeus e Sêmele”, de Gustave Moreau, feita entre 1894 e 1895. Figura 2. “Zeus e Sêmele”, de Gustave Moreau. Fonte: Jupiter and Semele (2007). As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista142 Textos fundamentais_U3C8.indd 142 28/08/2017 17:08:23 Sobre o tema da pintura, repare que as figuras de deuses da mitologia grega são resgatadas. Alguns dos temas simbolistas eram justamente o misticismo, o transcendentalismo e a religiosidade — em clara oposição com o racionalismo e com a ciência do Positivismo, do Realismo e do Naturalismo. Com certeza, Moreau não se inspirou em alguma paisagem ou cena que tenha visto e copiou-a fielmente, o que fica claro pelo tema fantasioso e imaginário — quase como se estivéssemos em um sonho. Os traços do pintor também não são realistas, o que mostra que ele não estava preocupado em passar uma sensação de que estamos olhando uma fotografia, por exemplo. A quantidade de detalhes também é impressionante, e a maioria deles não está no quadro à toa. Preste atenção nas figuras aladas: elas são várias e possuem um simbolismo especial, relacionado com a ascensão, com a ele- vação, com o divino e com o espiritual. Os simbolistas davam muito valor aos símbolos, a esses elementos que possuem um significado não evidente, escondido, misterioso, subentendido — daí o nome dessa estética. Observe atentamente a pintura e tente descobrir outros símbolos escondidos nela. São tantos que é até difícil dar conta de todos. Por último, examine a figura feminina: ela é bela e idealizada, quase mística e transcendental. As mulheres são, muitas vezes, consideradas, pelos simbolistas, seres divinos, que transcendem o plano da matéria. Charles Baudelaire, As flores do mal e a estética simbolista As fl ores do mal, de Charles Baudelaire, é considerado marco não só da poesia simbolista, mas também como o de toda a poesia moderna. A vida do poeta vida é marcada pela desobediência, pela liberdade, por um espírito de rebeldia e pelo pioneirismo. Já na escola, por exemplo, Baudelaire foi expulso por não mostrar um bilhete passado por um colega. Baudelaire é enviado para a Índia por seu padrasto, muito preocupado com a sua vida desregrada. O jovem, contudo, nunca chega ao seu destino e acaba retornando para Paris. Quando atinge a maioridade, ele recebe a herança do seu pai e passa a viver, por alguns anos, entre o álcool e as drogas. Ele tem um relacionamento com Jeanne Duval, uma dançarina haitiana. Os dois gastam a herança de forma desregrada por algum tempo e isso faz com que a sua mãe decida intervir: ela entra na justiça e a fortuna de Baudelaire passa a ser controlada por um notário. 143As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Textos fundamentais_U3C8.indd 143 28/08/2017 17:08:23 Entre a escrita e a vida boêmia passa o escritor, até que ele sofre um desmaio, quando está na Bélgica, e nunca mais se recupera. Com 46 anos, Baudelaire morre de Sífilis sem ter conhecido a fama, que adquiriu apenas postumamente. Apesar de ter morrido relativamente jovem, as obras de Baudelaire revolu- cionaram a literatura. Entre as mais famosas, encontram-se A arte romântica (1852), As flores do mal (1857), Os paraísos artificiais (1860), Pequenos poemas em prosa (1862) e Miudezas (1866). Além de poesia, o autor escreveu uma única novela, La Fanfarlo. Ele também fez várias traduções, e a obra do escritor americano Edgar Allan Poe foi uma das que receberam a sua atenção. Baudelaire ainda produziu ensaios nos quais refletiu sobre o seu próprio fazer literário e sobre os textos literários de outros escritores. O poeta foi acusado na justiça pelo seu livro As flores do mal, publicado em 1857 (Figura 3). Seis poemas que estão nesse volume foram considerados obscenos, e o autor foi acusado de blasfêmia. Após pagar uma multa, Baudelaire precisou reescrevê-los e considerou que as novas versões eram ainda mais belas do que as originais. A revista Le Figaro também atacou fortemente os poemas de Baudelaire. Portanto a recepção da obra, na época, nãofoi nada boa. Figura 3. Primeira edição de As flores do mal, com anotações de Baudelaire. Fonte: Fleurs du mal (2016). As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista144 Textos fundamentais_U3C8.indd 144 28/08/2017 17:08:23 Apesar disso, após a sua morte, o livro As flores do mal passou a ser avaliado como revolucionário. Os poemas dessa obra são divididos em seis grupos ou ciclos: “Tédio e Ideal”, “Quadros Parisienses”, “O vinho”, “As flores do mal”, “Revolta” e “A Morte”. O livro abre com um poema com a indicação “Ao leitor”. Nele, o eu lírico diz: É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção, Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado. Tu conheces, leitor, o monstro delicado — Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão! (BAUDELAIRE, 2012, p. 125). O eu lírico toma o leitor como seu igual e fala sobre o tédio, um sentimento muito importante na arte simbolista. Há, inclusive, um termo que Baudelaire utiliza e que depois é retomado por vários escritores simbolistas: spleen. Esse é um sentimento de melancolia, de tristeza causado pelo tédio e pela falta de estí- mulos e de fatos, pessoas e acontecimentos, que despertem o interesse do poeta. Sobre o spleen, ainda há outro poema interessante de ser lido e analisado: O Albatroz Às vezes, por prazer, os homens da equipagem Pegam um albatroz, imensa ave dos mares, Que acompanha, indolente parceiro de viagem, O navio a singrar por glaucos patamares. Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés, O monarca do azul, canhestro e envergonhado, Deixa pender, qual par de remos junto aos pés, As asas em que fulge um branco imaculado. Antes tão belo, como é feio na desgraça Esse viajante agora flácido e acanhado! Um, com cachimbo, lhe enche o bico de fumaça, Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado! O Poeta se compara ao príncipe da altura Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; Exilado ao chão, em meio à turba obscura, As asas de gigante impedem-no de andar (BAUDELAIRE, 2012, p. 135-136). 145As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Textos fundamentais_U3C8.indd 145 28/08/2017 17:08:23 Você se recorda do que discutimos acerca da importância do símbolo para a estética desses escritores? Pois é, nesse poema, há um importante símbolo: o albatroz. O poeta quer falar sobre o tédio e sobre como ele se sente incapaz de agir no mundo terreno e só sente felicidade quando trabalha com coisas elevadas, como a arte. Para discutir isso, porém, a figura do albatroz é utili- zada. Não é que o poeta se preocupe especialmente com os albatrozes ou com a matança dessas aves e a possibilidade da sua extinção. Não é nada disso: o albatroz é um símbolo do poeta — ele representa, nesse poema, o que o poeta é. Vamos ver como isso funciona: o eu lírico vai discorrendo sobre como o albatroz é um monarca quando está nos céus, é belo e corajoso, enfrenta os vendavais e ri das agruras; porém, quando os marinheiros o capturam e o restringem ao nível do chão, das tábuas do convés, ele fica canhestro e envergonhado, feio e enfermo. Na última estrofe, o poeta explícita: “O Poeta se compara ao príncipe da altura”. Dessa forma, ele revela a correspondência entre o albatroz e o poeta. Tudo o que ele havia falado antes sobre a albatroz pode ser aplicado ao poeta. Quando o poeta está exilado ao chão, ao mun- dano, a problemas relacionados a como pagar o aluguel ou a que profissão exercer para sobreviver, ele não consegue agir. A suas asas de gigante, o seu brilhantismo, a sua vocação para a arte — tudo isso o impede de andar no plano do terreno. O poeta apenas é capaz de agir quando se trata da poesia, da imaginação, dos sentimentos e dos sonhos. Perceba, também, como o poema é todo construído a partir de antíteses: “imensa ave dos mares” em oposição a “canhestro e envergonhado”; “belo” e “feio”; o voo destemido e a caminhada impossibilitada. Outro aspecto a ser notado é a importância das cores — em especial, da cor branca: as asas do albatroz são de um “branco imaculado”. As cores e a cor branca eram bastante importantes na arte simbolista e surgem em vários dos seus textos. Outro famoso poema, “A uma passante”, que integra o ciclo dos “Quadros parisienses”, ainda pode nos dar uma ideia melhor de quem era o flâneur. A uma passante A rua em derredor era um ruído incomum. Longa, magra, de luto e na dor majestosa, Uma mulher passou e com a mão faustosa Erguendo, balançando o festão e o debrum; Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. Eu bebia perdido em minha crispação As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista146 Textos fundamentais_U3C8.indd 146 28/08/2017 17:08:23 No seu olhar, céu que germina o furacão, A doçura que embala e o frenesi que mata. Um relâmpago e após a noite! — Aérea beldade, E cujo olhar me fez renascer de repente, Só te verei um dia e já na eternidade? Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente! Não sabes meu destino, eu não sei aonde vais, Tu que eu teria amado — e o sabias demais! (BAUDELAIRE, 2012, p. 330-333). O eu lírico relata um encontro fugaz com uma mulher que passou na rua. A beleza da moça é descrita em pormenores: ela é longa, magra, nobre e ágil. Ela corresponde ao ideal de beleza do poeta e ganha contornos perfeitos. Mesmo estando de preto e de luto, ela é majestosa. A moça é, inclusive, descrita como “aérea”, o que lhe confere um caráter quase incorpóreo, como se ela pertencesse mais ao plano espiritual do que ao material. Todas essas são características da representação da mulher na literatura e na pintura simbolistas, como discutido anteriormente. O foco, além da bela figura, é o interior do poeta: os seus sentimentos, ao enxergar a mulher, são esmiuçados. O poeta está perdido em crispação e frenesi. Os sentimentos e o subjetivismo, portanto, são destacados nesse poema. Porém, essa aparição e a sensação causada por ela são muito rápidas — assim como surge, já desaparece. O eu lírico renasce com o seu surgimento, mas esse surgimento é comparado com um relâmpago que ilumina a sua vida por alguns segundos, mas logo volta a noite. Essa é uma paixão fugaz. Tudo é muito volátil — como são as coisas para o flâneur, pois ele caminha pela cidade, olha tudo e todos, mas não se envolve com nada. Ele é um observador, então as impressões sensoriais são importantes: as cores, os sons, os cheiros. Porém, tudo isso é muito fugidio. O filósofo alemão Walter Benjamin publicou um livro no qual analisa a obra de Charles Baudelaire: A Paris do Segundo Império em Baudelaire. Um dos poemas trabalhados por ele é justamente “A uma passante”. Ele estuda o choque causado no eu lírico por essa brevíssima e fugidia aparição da bela mulher e desenvolve uma teoria da percepção a partir disso. 147As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Textos fundamentais_U3C8.indd 147 28/08/2017 17:08:24 Vamos ler um último poema, agora relacionado a um tema muito abordado pelos simbolistas: a degradação e a morte. A morte dos artistas Quantas vezes irei sacudir os meus guisos, Tua fronte beijar, morna Criatura? E para o alvo alcançar, de tão mística altura, Quantos dardos da aljava hão de me ser precisos? Em conjuras sutis usaremos os juízos, Para após demolir muita grave armadura, Antes de contemplar a grande Criatura De desejo infernal que paralisa os risos! Há estes que o Ídolo seu não fitaram jamais, Há o maldito escultor que, marcado de ofensa, Só vive a martelar o peito e a fronte imensa. Só esperam — Capitólio, e de sombras fatais! — Venha a Morte e planando à feição de um sol novo, Em seu cérebro arder como um floral renovo (BAUDELAIRE, 2012, p. 417- 419). Aqui, a morte não é temida, é desejada. O culto da morte e a concepção da morte como a única solução possível para os problemas da vida foram constantes da literatura dos poetas simbolistas. Por esse desejo pela morte, esses poetas também são conhecidos como decadentes (conforme já foi visto antes) e comomalditos. Mas por que a morte é desejada e ansiada nesse poema? Pelo título, o leitor já percebe que o texto não vai tratar de qualquer morte, mas da morte dos artistas. Além disso, notamos que o eu lírico está se dirigindo a alguém de quem a fronte ele beija. Esse sujeito com quem o eu lírico fala é uma “morna criatura”, que, provavelmente, é a morte. O eu lírico espera que a morte che- gue para ele a fim de que surja “um sol novo” e “um floral renovo”. Disso, concluímos que a sua existência presente não é muito feliz e satisfatória. A morte é, inclusive, concebida como uma “mística alura”. A morte perde o caráter negativo e negro e torna-se algo positivo. O eu lírico se questiona, então: “E para o alvo alcançar, de tão mística altura/Quantos dardos da aljava As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista148 Textos fundamentais_U3C8.indd 148 28/08/2017 17:08:24 hão de me ser precisos?”. Ele deseja saber, portanto, o que precisa fazer para conhecer o descanso da morte — quantos dardos são necessários para atingir o alvo, o tão sonhado fim. Além da morte, o tema do misticismo também aparece no poema, quando o eu lírico imagina o que vai acontecer depois do seu fim. Ademais, você deve notar que esse poema, assim como os outros citados, são sonetos — portanto, fica evidente a preocupação do poeta com as formas. As rimas ainda conferem a musicalidade, marca do Simbolismo. Esses e todos os outros aspectos da obra de Baudelaire, como o subjetivismo, a decadência, a valorização dos sentimentos, são encontrados nos outros poetas simbolistas. Assim, percebemos a importância de poeta francês na história da literatura simbolista e da literatura universal: Baudelaire foi um precursor e lançou as bases do que viria a se tornar a poesia moderna. 149As flores do mal, de Baudelaire: o prenúncio da estética simbolista Textos fundamentais_U3C8.indd 149 28/08/2017 17:08:24 BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. CHARLES BAUDELAIRE . In: Wikipédia. 2017. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/ wiki/Charles_Baudelaire>. Acesso em: 12 ago. 2017. FLEURS DU MAL. In: Wikipédia. 2016. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:Fleurs_du_mal.jpg>. Acesso em: 12 ago. 2017. GÂMBERA, R. João Cruz e Sousa (1861−1898). 2017. Disponível em: <http://brasilescola. uol.com.br/biografia/joao-cruz-sousa.html>. Acesso em: 12 ago. 2017. JUPITER AND SEMELE. In: Wikipédia. 2007. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/ wiki/Ficheiro:Jupiter_and_Semele_-_Gustave_Moreau.jpg>. Acesso em: 12 ago. 2017. ROCHA, T. M. Rimbaud, o mito permanente. 2009. Disponível em: <http://acervo.revis- tabula.com/posts/ensaios/rimbaud-o-mito-permanente>. Acesso em: 12 ago. 2017.