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307, Goiânia, v. 11, n. 2, p. 307-318, jul./dez. 2008.educ
Joaquim José Neto*
ATIVIDADE EDUCATIVA
E O TRABALHO
DO PENSAR
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O
N
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O
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A
em o presente texto o objetivo de discutir a atividade educativa na
produção e transmissão do conhecimento na educação escolar, na rela-
ção professor/aluno, a partir de uma compreensão da educação na sua tarefa
primordial de construção do conhecimento, considerando o ser humano na
sua capacidade de reflexão e de pensamento. Abordamos, nesta discussão, a
escola como o lugar do trabalho do pensar, do cultivo e do exercício do pensar
como atividade característica do ser humano. Manifestamos também nossa
preocupação com a atividade educativa, desempenhada com certa facilidade
ou comodidade, em que se privilegia a repetição e memorização dos conteú-
dos já formulados, já enunciados, deixando a capacidade de pensar e refletir
numa certa dormência e fadada ao atrofiamento.
Empregamos para esta discussão o pensamento do filósofo Gaston
Bachelard em seu livro A formação do espírito científico: contribui-
ção para uma psicanálise do conhecimento, traduzido por Estela dos
Santos Abreu (Editora Contraponto, 1996), com comentários sobre seu
pensamento de Ternes (2000, 2003) e Bulcão (2002) e três textos de
Libâneo (2001, 2004, 2006) sobre a didática e a aprendizagem do pensar
e do aprender. Para Bachelard (1996, p. 17), tratando da questão em seu
texto obstáculos epistemológicos:
Quando se procuram as condições psicológicas do progres-
so da ciência, logo se chega à convicção de que é em termos
Não haveria criatividade sem a curiosidade que
nos move e nos põe pacientemente impacientes
diante do mundo que não fizemos, acrescentando
a ele algo que fazemos. (Paulo Freire)
T
308 , Goiânia, v. 11, n. 2, p. 307-318, jul./dez. 2008.educ
de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve
ser colocado. E não se trata de colocar obstáculos externos,
como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de
incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano:
é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por
uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos.
Ele está falando de obstáculos que se formam como empecilhos
ao trabalho do pensar, daquelas tendências que experimentamos dentro
de nós para a lentidão ou para o desvio ou recuo diante dos conflitos do
novo que se apresenta e exige, para avançar, que se pense para além da
opinião, superando, ou mesmo destruindo a opinião, o saber velho, já
dado, que comodamente nos acostumamos a transmitir em nossas au-
las, às vezes muito bem preparadas e “dadas”, mas que não avança, não
exercita o pensar, não supera o conhecimento primeiro que, não sendo
base para a mudança permanece no nível da opinião. E,
a opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em
conhecimentos ... não se pode basear nada na opinião: an-
tes de tudo é preciso destruí-la. Ela o primeiro obstáculo a
ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determi-
nados pontos, mantendo como espécie de moral provisória,
um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico pro-
íbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não com-
preendemos, sobre questões que não sabemos formular com
clareza (BACHELARD, 1996, p. 18).
Queremos discutir aqui o papel fundamental da educação na pro-
dução do saber, o que implica na superação do que costumamos fazer
limitando a atividade educativa apenas à comunicação do saber, à co-
municação como primeiro passo há que suceder a superação do comu-
nicado pela produção do novo, e assim exercitar o pensamento naquilo
que lhe é mais próprio, a mudança, o dinamismo. Nossas aulas, mesmo
que muito bem preparadas, se são apenas transmissão do saber e não
despertar da capacidade de pensar o novo, elas se caracterizam, nessa
contribuição de Bachelard como um obstáculo epistemológico. Impõe-
se repensar a educação escolar na sua incumbência de ocupar-se não
tanto da transmissão do saber pronto e acabado, mas do saber no seu
caráter dinâmico, criativo, inventivo, polêmico, a partir do exercício do
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pensamento. Assim é que podemos considerá-la como uma atividade
essencialmente humana na medida em que ajuda a pessoa, aluno ou
professor, a ter, através do encontro consigo mesmo, com os outros e
com o mundo em que se situa, de avançar no que lhe é próprio: o pensar,
pois esse encontro é, por sua natureza, provocativo e dialógico. Daí que
está sempre em jogo o fazer, o produzir um novo saber na medida em
que o eu ou o outro venha a ser contemplado como é, despido do que
sobre ele já foi dito e repetido antes. A superação ou, como diz Bachelard,
destruição do que já foi dito sobre a realidade permite à pessoa humana
pode encontrar-se como ser de pensamento que é e, a partir daí, cami-
nhar com suas próprias virtudes cognitivas rumo ao amadurecimento
que deve consistir no aperfeiçoamento de si mesmo, no pleno desenvol-
vimento de seus poderes, de suas potencialidades como ser pensante.
Nesse sentido, podemos falar da educação como exercício da
criatividade, como impulso para se aprender a viver com autonomia, a
decidir com base em si mesmo, na verdade mais genuína de cada um
como ser que pensa, que cria, que inventa, que reflete e não apenas
repete e apreende o que já foi dito.
O que constatamos, no entanto, em nossas práticas educativas, em
nossas salas de aula, é aquele já consagrado esforço em repetir o que já
foi dito, pensar o que já foi pensado, de tal modo que a educação escolar
se limita em acumular na memória dos alunos o saber já produzido anteri-
ormente no decurso da história e carregado na memória dos mestres.
Segundo Ternes (2000, p. 76), “é pelo pensamento que se pode ter a
experiência da verdade. É ele, em última instância, o lugar da alétheia”.
Assim, é de fundamental importância redescobrir o papel da educação
como um exercitar-se do que é mais genuinamente humano, o pensamen-
to, para que aqueles que dela participam se engajem na libertação da
caverna, - recorrendo à alegoria de Platão –, na saída das sombras das
similitudes, da erudição, da repetição, para a luminosidade da verdade e
para a luta do conhecer. É que, segundo o mesmo professor Ternes (2006,
p.102), em Foucault, a escola, a imprudência do ensinar:
Sabemos o quanto a educação brasileira é tributária de ou-
tras vertentes. Desde meados do século XIX, toma corpo a
idéia de que a escola e, particularmente, a Universidade está
a serviço da sociedade e deve constituir-se no principal es-
paço de inovação tecnológica e de modernização, privilegi-
ando, antes de tudo, a formação de mão-de-obra.
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O exercício do pensar é indispensável para conhecer com exati-
dão o que é a nossa própria realidade e o que são as realidades que nos
rodeiam e que, em grande parte, decidem nosso desenvolvimento pes-
soal. Assim, exercitar o pensar é melhorar nossa qualidade de vida como
seres pensantes. Exercitar o pensamento não pode consistir num fe-
char-se em si mesmo, mas pelo contrário, na medida em que se coloca
em ação a faculdade de pensar, que num primeiro momento é individual,
descobrimos em nós uma vigorosa capacidade ética, porque é no nosso
pensamento que se encontra a gênese de nossas atitudes éticas que nos
fazem seres mais abertos aos outros e à realidade que nos cerca.
O ato de conhecer é luta, luta interna contra as facilidades do
saber já pronto e empacotado que normalmente transmitimos nos pro-
cessos educativos. Não se trata de uma desconsideração do conheci-
mento anterior, mas de assumirmos a capacidade de mudança do nosso
pensamento, mudança para mais, superação do já dado. Seguindo o ra-
ciocínio de Bachelard podemos entender, nesse caso, a superação no
ato de conhecer como uma destruição do conhecimento anterior por um
novo saber que, por sua vez, não poderá se prevalecer ou se impor, pois
o dinamismo do pensamento não o suportará como definitivo, mas impli-
ca uma contínua superação.É nesse sentido, pela propriedade do novo
que o conhecimento anterior é dado como mal estabelecido, e o surgir
do novo implica na sua destruição. Se o saber anterior tende a prevale-
cer se imobiliza o pensamento. O pensamento, no entanto, em seu dina-
mismo de mudança, atua superando o que, no próprio espírito, é obstáculo
à espiritualização e, ainda mais, diz Bachelard, constatando o perigo de
contentarmos com as facilidades e identificarmos o conhecimento com
a opinião, com o espontâneo:
Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preci-
so destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não
basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, man-
tendo, como uma espécie de moral provisória, um conheci-
mento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que
tenhamos uma opinião sobre questões que não compreende-
mos, sobre questões que não sabemos formular com clareza.
Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E,
digam o que disserem, na vida científica os problemas não se
formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do
problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico.
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Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a
uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conheci-
mento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é
construído (BACHELARD, 1996, p. 18).
É que o saber não nasce por encanto ou da simples contempla-
ção, mas com luta e sacrifício, logo, a educação não é algo fácil a ser
procurado, ou empenho que se impõe de fora, por coação, é antes uma
atividade interior, um exercício interior, uma capacidade a ser desenvol-
vida. Nessa perspectiva Bulcão (2002, p. 288) em Bachelard: contri-
buições para uma pedagogia da razão e da imaginação afirma que:
A educação é, assim, processo oscilatório de formação do
sujeito e do objeto, um processo árduo e difícil que exige
consciência e fundamentalmente trabalho, um trabalho pe-
noso de negação do saber que acreditávamos sólido e verda-
deiro e de negação do próprio sujeito, das ilusões e crenças
que tínhamos arraigadas no nosso eu mais profundo. Isso
nos leva a concluir que a educação e a formação implicam
primordialmente a desconstrução e reforma do sujeito que se
refaz, refazendo suas próprias idéias, retificando conceitos
aprendidos anteriormente, fazendo, assim, de seu dinamismo
e de sua inconstância o requisito pedagógico mais importan-
te e mais fundamental.
A educação é um trabalho intelectual que há de romper com a
continuidade justamente porque o pensamento é algo que muda, é es-
sencialmente dinâmico. No entanto, o que vamos assistindo e fazendo
acontecer em nossas escolas, é uma prática educativa imposta de fora
(por lei até), cujo tempo é ocupado com aparente antipatia e estamos
sempre a perguntar o porquê desse desinteresse e desse fardo. Aconte-
ce que a atividade de repetir o já dito e já descoberto para memorizá-lo
pode até ser interessante num primeiro momento, mas pouco a pouco se
torna tediosa porque favorece a dormência do ato de pensar, de criar, de
desconstruir. Se, ao invés, adotarmos uma pedagogia mais exigente, mais
criativa, que favoreça a reflexão, o exercício do pensamento, com cer-
teza vamos encontrar em nós, professores e alunos, de início uma resis-
tência interior, (um obstáculo epistemológico) pela tendência já arraigada
na continuidade, mas o exercício pensante é também realizador; traba-
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lhoso, mas prazeroso pela própria aventura do criar, do inventar, do des-
velar, e poderá tornar-se vigoroso a ponto de superar a resistência e a
preguiça iniciais. Bulcão (2002, p. 284), comentando as contribuições de
Bachelard para a educação, afirma que:
Segundo ele (Bachelard), a idéia de educação traz no seu
bojo conotações oriundas da tradição que compreende o
processo de conhecimento como o ato de repetir e de memori-
zar idéias. Para Bachelard, ao contrário, o ato de conhecer
não se reduz à repetição monótona e constante de verdades
absolutas e imutáveis que, uma vez alcançadas, se solidifi-
cam, ancorando-se no porto seguro da memória. Mostra que
conhecer e se aventurar no reino do novo e do abrupto, é
estabelecer novas verdades, mediante a negação do saber
anterior e retificação de conceitos e idéias que anteriormen-
te pareciam sólidos.
No processo epistemológico o saber anterior, antes considerado
sólido e absoluto, tem ainda um importante papel na instauração do diá-
logo e da troca de argumentos para o aventurar-se no novo. Não preci-
samos, porque nem é possível, partir do zero, pois o que não favorece a
capacidade criativa não é o saber anterior, mas o exercício da repetição
e da memorização que leva à objetivação e absolutização de saberes.
Como comenta Bulcão (2002, p. 286):
Nesse sentido a objetividade alcançada nunca é definitiva,
sendo necessário reconquistá-la constantemente, pois psico-
logicamente a objetividade está sempre em perigo, o que de-
nota que o conhecimento é essencialmente uma atividade
dinâmica de recomeço e de reorganização constante de idéi-
as. [...] Para Bachelard, não há verdade primeira como que-
ria Descartes, mas, apenas erros primeiros que funcionam
como aceleradores da razão, impulsionando-a, num proces-
so dinâmico, para a construção de um novo saber, mais
abrangente e mais verdadeiro que o anterior.
A objetivação, no entanto, é necessária como atividade do sujeito
que, por sua vez, não se contenta com o saber objetivado, mas o tem
como mola propulsora da aprendizagem. Podemos pensar na atividade
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professor-aluno no processo educativo como um trabalho árduo entre
sujeitos que evidenciam o objetivado, mas não param nele e,
dialogicamente, vão contrapondo saberes já prontos, o que caracteriza o
que Bachelard chama de racionalismo docente-discente. Para ele, se-
gundo Bulcão (2002, p. 289),
o racionalismo pressupõe a polêmica, o intercâmbio de idéi-
as e a crítica da cidade científica que, num trabalho conjun-
to de reflexão, conseguem instaurar um conhecimento
verdadeiramente objetivo [...]. A certeza provada esclarece
a verdade que venceu uma polêmica e que pode, por conse-
guinte, impor-se como verdade.
A atividade docente-discente, que caracteriza a escola, valoriza o
ato mesmo de ensinar como sendo também um ato de aprender, de
avançar com alguém (indivíduo ou grupo) pelo caminho do saber dinâ-
mico e nunca pronto. Isso difere profundamente do ato de ensinar como
aquele de transmitir verdades acumuladas na memória do professor ou
nos livros a alunos que cumprem a obrigação de aprender, ou mesmo do
ato de ensinar que consiste apenas na análise das idéias e não nas con-
dições de sua possibilidade. É como diz Marly Bulcão, ainda na mesma
página da citação anterior, um exercício da “intersubjetividade que se
impõe como fundamento da objetividade e tem como modelo, segundo
Bachelard, a escola”. A autora comenta ainda que:
Partindo do princípio de que o racionalismo não se funda-
menta em certezas ou em idéias absolutas que seriam repeti-
das com freqüência, mas constitui atividade constante de
recomeço e de reconstrução do saber, Bachelard chega à
conclusão de que o racionalismo atual é essencialmente um
racionalismo docente-discente, pois é na escola que o ato de
pensar se desenvolve por meio de uma troca ininterrupta de
idéias, na qual um sujeito aparece como aquele que ensina e
um outro tem como papel ser ensinado. ... O que Bachelard
pretendia mostrar é que a “consciência do saber” está dire-
tamente relacionada com o “ato de ensinar”, já que a objeti-
vidade só pode se fundamentar na intersubjetividade. Se o
professor é aquele que faz compreender e o aluno aquele
que só compreende a partir da argumentação do primeiro, o
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racionalismo é a filosofia que expressa o transformar-se das
idéias na dinâmica de pensar, ou melhor, na dinâmica de en-
sinar(BULCÃO, 2002, p. 290).
Aqui estamos compreendendo o racionalismo como aquele
que se manifesta na dialética professor-aluno, é um
racionalismo em formação e, nesse sentido, é bastante dife-
rente do racionalismo clássico, cujo objetivo primordial é
fundamentar a ciência em certezas e evidências primeiras que,
uma vez alcançadas, se impõem como absolutas e definitivas
(Ibid. p. 290). O racionalismo da ciência contemporânea é,
pois, docente-discente, fundamentando-se numa atividade
essencialmente pedagógica, na qual o ato de pensar e o de
reflexão fazem parte da própria dinâmica de formação e edu-
cação. Apesar de a escola constituir, para Bachelard, o mo-
delo mais elevado de vida social, dois aspectos merecem ser
destacados nesta pedagogia da razão: o primeiro diz respei-
to ao caráter de inversão da dialética do mestre e do aluno
que, pelo fato de ser essencialmente dinâmica, pressupõe a
troca constante de posições, fazendo que o professor se tor-
ne, muitas vezes, o aluno e vice-versa. Nesse sentido, segun-
do Bachelard, continuar estudante dever ser o voto secreto
de todo professor (BULCÃO, p. 291).
Destacamos aqui a contribuição de Bachelard em favor de uma edu-
cação em que a dialética mestre e aluno ocupa o centro da atividade do
ensinar-e-aprender, onde os dois avançam juntos. Assim, o avançar no sa-
ber supõe a atividade do sujeito na sua individualidade, mas se direciona ao
diálogo com outro(s) sujeito(s) numa abertura sem limites. Saber é muito
mais que representação e repetição, é criação, é invenção, é criatividade.
Como mostra Bachelard, de início a nova idéia se forma na
solidão de um espírito que, num ato de criação e a partir da
negação das bases do saber anterior, constrói novas teorias.
[...]) No primeiro momento a idéia nova tem origem num espí-
rito solitário para, em seguida ser inserida num processo
discursivo e dialógico que vai corroborar sua coerência
(BULCÃO, 2002, p. 291).
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A compreensão da ação educativa segundo a contribuição de
Gaston Bachelard traz em seu bojo um antídoto contra o obstáculo
espistemológico localizado na atividade docente-discente, em que o pro-
fessor é sempre o mestre, o que tem o saber ancorado na memória e o
transmite ao aluno, tido assim, como o receptor do saber. O obstáculo
aqui diz respeito, em primeiro lugar, à não consideração do dinamismo
do ato de pensar, pois se o professor é o detentor do conhecimento, se
ele o tem e o comunica ao aluno que é o receptor, nesse caso o saber é
um pacote ou algo empacotado, portanto sem seu aspecto dinâmico. Em
segundo lugar, porque, considerado sem seu dinamismo, o saber pensa-
do pode ser ou não acolhido pelo aluno e, em caso positivo, como pacote
ele é guardado na memória como pronto e acabado para quando puder
ser útil no exercício de uma profissão, por exemplo. É fácil perceber
aqui esse modo de ensinar e aprender como um obstáculo epistemológico,
pois na dispensa do diálogo e da polêmica não se dá o exercício do
pensar e os sujeitos embarcam na via mais fácil da repetição, da
memorização do saber que permanece sempre o mesmo (antigo), sem
se engajarem na luta pela criação de um saber mais abrangente e coe-
rente com o anterior.
Como ser pensante que é o homem, aluno ou professor, ele é
tanto mais coerente consigo mesmo quanto mais exercita sua faculdade
peculiar de pensar. O pensar, claro, é trabalhoso, é luta, mas leva à
realização do projeto primordial da existência humana, porque, em ou-
tras palavras, é humanizador. A esse respeito, Bulcão (2002, P. 296) nos
adverte que:
A escola tem como objetivo primordial a verdadeira forma-
ção do homem, deve ser a que substitui o instinto conserva-
dor pelo instinto criador e que, fundamentando-se no diálogo
e na imaginação criadora, faz que o ser humano se eleve
num vôo vertical ascendente, alcançando, assim, a plenitude
do ser. [...] Para Bachelard, a verdadeira escola é aquela
que se estriba no instinto criador e na busca permanente de
ultrapassamento de si mesmo, é a escola que impulsiona o
espírito numa ascensão vertical, com a qual o homem se tor-
na um sur-homme.
A dificuldade que encontramos na educação como uma espécie
de obstáculo espistemológico está no fato de que, como aponta Ternes
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(2006, p. 99) em Foucault, a escola, a imprudência do ensinar, tem-se a
escola não como lugar de trabalho, de luta, de exercício do pensar:
Sabemos o quanto isto é sério. Aqui se vai à escola por mui-
tos outros motivos, inclusive para matar a fome. Trabalhar
nem sempre é a primeira questão, nem a mais fundamental.
Trabalhar o pensamento? Como? Por que? Nossas pedago-
gias privilegiam outras coisas.
E ainda:
As metodologias que aparecem antes do pensamento, as pe-
dagogias da facilidade, sempre combatidas por Bachelard,
encontram sua facilidade justamente neste ponto: ao invés
de recusar o vulgar, buscam incorporá-lo ao que denomi-
nam processo educativo. Não percebem que, com isso estão
reforçando o primeiro obstáculo epistemológico (TERNES,
2008, p. 6).
Com Bachelard há uma separação entre a idéia de saber como
acúmulo de saber, erudição, patrimônio imexível e a idéia do saber como
tarefa e exercício intelectual, de tal modo que o que importa à educação
é antes de tudo a exigência do conhecimento e do ato de conhecer que
é dinâmico e aberto, que comporta a ação de inventar a realidade. É
responsabilidade do saber o inventar. Conhecer é inventar, pois o pensa-
mento tem uma estrutura que muda em cada época, não suporta a con-
tinuidade. Toda a existência humana, principalmente a educação, há que
se ocupar do saber. Se a educação não se ocupa do saber, de que ela vai
se ocupar sem trair sua própria razão de ser? Nela o que está em jogo,
portanto, é a questão da natureza dinâmica do saber, muito mais que
formar hábitos ou formar cidadãos, sua tarefa é a formação intelectual,
o desenvolvimento intelectual. Nossas práticas educativas que não pri-
vilegiam a formação intelectual e o contato com as teorias (idéias) nos
livros podem muito bem serem consideradas como obstáculos
epistemológicos segundo a concepção de Gaston Bachelard.
Trazemos também aqui a contribuição de Professor José Carlos
Libâneo (2006, p. 38) sobre a importância de ajudar os estudantes a
desenvolverem sua capacidade reflexiva, no rigor intelectual e na capa-
cidade de análise crítica das coisas desenvolvendo um pensamento au-
tônomo:
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A qualidade das aprendizagens escolares, hoje, depende,
portanto, da atenção aos processos internos de elaboração
do conhecimento, envolvendo a aprendizagem significativa,
as formas de ajudar o aluno a desenvolver um pensamento
autônomo, crítico, criativo, a ativação de processos mais
complexos de pensamento e desenvolvimento cognitivo em
contextos socioculturais. As competências cognitivas tornam-
se mediadoras do processo de aprender. ... Daí a importân-
cia, hoje, do ensinar a pensar, do ensinar a aprender, e da
necessidade de os professores também aprenderem a se tor-
nar sujeitos pensantes, como condição para poderem orien-
tar a atividade cognitiva do aluno, isto é, orientar os alunos
naquilo que fazem, fazê-los perceber o processo mental que
estão aplicando naquela tarefa, ensiná-los a enfrentar o fra-
casso como passos para o aprender a pensar e a aprender.
É preciso recuperar o hábito de “devorar” livros para se instaurar
em nossas salas de aula o trabalho árduo do diálogo fundado em argu-
mentos vigorosos e abertos. “A verdadeira escola deve ser a que se
fundamenta no instinto criador do homem (BULCÃO, 2002, p. 283). E
o ensino, segundo Libâneo (2001), mais do que promover a acumulação
de conhecimentos, ele cria modos e condições de ajudar os estudantes a
se colocarem ante a realidade para pensá-la e nela atuar.
CONCLUSÃO
O objetivo deste texto foi discutir a importância da escola para a
aprendizagem do pensar pelo empenho no exercício do pensamento, que
Bachelardaborda como o trabalho do pensar, uma vez que a educação
tem um papel decisivo na produção do saber. Pode acontecer, no nosso
modo de ensinar, que nos tornamos hábeis comunicadores de conheci-
mentos, com muita didática, sem estimular nos nossos alunos a capacida-
de de raciocínio e a capacidade reflexiva para que possam. No entanto,
“Cabe à escola investigar como ajudar os alunos a constituírem como
sujeitos pensantes, lidar com os conceitos, argumentar, resolver proble-
mas diante de dilemas da vida prática” (LIBÂNEO, 2004, p. 5). Não se
trata de refutar aquilo que já é sabido e precisa ser transmitido na escola,
mas de ressaltar o papel do saber anterior, do conhecimento transmitido,
como meio, como impulso para a atividade cognitiva. Se o conhecimento
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já dado é comunicado maneira a não exercitar a curiosidade, o raciocínio,
o pensamento no seu dinamismo, esse conhecimento se consolida e se
torna um obstáculo epistemológico no sentido que impede o avançar na
criatividade e capacidade de mudança próprias do pensamento humano.
Enfatizamos, assim, o objetivo primordial da escola, a formação
do ser humano substituindo o instinto conservador pelo instinto criador,
habilitando-o para a busca permanente de ultrapassamento de si mes-
mo. Os professores precisam estar atentos para o seu papel de propici-
ar aos alunos o desenvolvimento das capacidades e habilidades de
pensamento, pois o exercício da faculdade peculiar de pensar é, por
sua natureza, humanizador. Mas para isso é necessário que os professo-
res se empenhem no pensar criativo para conseguirem conduzir os alu-
nos na atividade trabalhosa do pensamento, sabendo que o pensar, claro,
é luta, é trabalho, mas contribui na realização da vocação profunda do
homem como ser pensante. Nossa atividade docente deve, portanto, se
fundamentar no instinto criador de nossos alunos muito mais que na sua
capacidade de memorizar os conhecimentos que transmitimos.
Referências
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise
do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BULCÃO, Marly. Bachelard: contribuições para uma pedagogia da razão e da imaginação.
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LIBÂNEO, José Carlos. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e
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LIBÂNEO, José Carlos. A didática e a aprendizagem do pensar e do aprender: a teoria
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TERNES, José. Foucault, a escola, a imprudência de ensinar. In: KOAAN, Walter Omar;
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TERNES, José. Experiência primeira e valores racionais, 2008, p. 6. Mimeogr.
* Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Católica de Goiás. E-mail: pe.joaquimjose@cultura.com.br