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TEXTOS FUNDAMENTAIS DE POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA Luara Pinto Minuzzi Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer as características principais da obra literária, de acordo com a sua forma, o seu conteúdo e o seu estilo. Diferenciar autor, narrador e eu lírico. Comparar elementos da poesia e da prosa: o assunto ou motivo, e o enredo ou fábula. Introdução Neste capítulo, examinaremos a base dos estudos literários e discu- tiremos noções fundamentais para qualquer análise mais complexa acerca das obras de ficção. Para isso, investigaremos as diferenças entre os textos classificados como literários e os não literários, enfatizando as características essenciais do primeiro grupo textual. Dessa maneira, subjetividade e linguagem pessoal, poética e metafórica, bem como preocupação com a forma são alguns dos elementos que analisaremos mais profundamente. Além disso, algumas distinções importantes serão construídas neste estudo, como os conceitos de escritor, narrador e eu lírico, visto que mui- tas pessoas confundem o narrador, elemento do universo ficcional, com o escritor da obra, ser do mundo concreto. Apesar disso, eles configuram-se como seres diferentes e essa diferenciação é extremamente relevante para o estudo da literatura. Neste momento de estudo, também analisaremos e compararemos os dois estilos literários: a prosa, que corresponde ao texto literário or- ganizado em parágrafos, e a poesia, que compreende o texto literário geralmente esquematizado em versos e estrofes. O que é texto literário? Ao contrário do que afi rma o senso comum, a sociedade contemporânea é a maior leitora em toda a história da humanidade, pois os índices de analfabe- tismo mundial decrescem ano a ano e, logo, um número cada vez maior de indivíduos capazes de comunicar-se por meio da linguagem escrita, isto é, de ler, escrever e interpretar a criação originada por essas ações, forma-se. Atualmente, a escrita permeia a maioria dos nossos espaços comunitários: placas, embalagens, redes sociais e os livros, que tanto estimamos. Obviamente, a lista é infi nita e a produção textual renova-se dia a dia, apresentando novas formas, objetivos e expressões. Nesse contexto, muitos de nós leem com frequência e mantêm contato com textos literários desde muito jovens, até mesmo porque o espaço escolar é dotado do compromisso com a leitura e a formação do leitor. Entretanto, estamos tão acostumados com esse tipo de texto que raramente pensamos sobre o que faz dos seus exemplares literatura e os diferencia dos demais textos, ditos não literários. Afinal, as mesmas palavras que usamos no co- tidiano são as que estão presentes em um romance ou em uma poesia, por exemplo. Então, por que a poesia e o romance são considerados literatura e as conversas entre amigos não o são? O que diferencia um texto literário de um não literário? Essa não é uma questão simples e muitos teóricos já se debruçaram sobre o problema a fim de tentar resolvê-lo. Na obra Teoria da literatura: uma introdução, Terry Eagleton suscita inúmeras definições já dadas à literatura ao longo dos tempos, sempre evidenciando como elas não se aplicam a todos os casos e a todos os tipos de texto. Ao final, ele conclui que a literatura não é uma categoria objetiva: a “literatura não existe da mesma maneira que os insetos” (EAGLETON, 2006, p. 24). No caso dos insetos, há uma definição clara do que são: seres invertebrados com exoesqueleto quitinoso, para valermo-nos da nomenclatura especializada. A partir desse conceito, podemos classificar os seres que encontrarmos como insetos ou não inse- tos. Contudo, o mesmo processo classificatório não serve à literatura, pois a sua definição depende de quem a constrói e dos seus juízos de valor. Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos2 Por exemplo, em uma sociedade machista, a tendência é enquadrar como literatura as obras escritas por homens; em um contexto racista, textos escritos por pessoas negras terão muito menos chances de serem editados, publicados e lidos. Há um caso que pode ajudar bastante a elucidarmos o porquê de a literatura não ser uma categoria objetiva. Franz Kafka, escritor tcheco de língua alemã que viveu entre os séculos XIX e XX, possuía uma relação um tanto quanto problemática com o seu pai. O escritor culpou ao pai e à sua forte figura por deixarem-no sempre à própria margem, de modo a não permitirem que se desenvolvesse completamente e tornasse-se independente. Devido a isso, Kafka decidiu escrever uma carta à figura paterna, cujo objetivo não era escrever literatura, mas um desabafo para, talvez, melhorar a relação entre os dois. Ele nunca entregou a carta ao seu destinatário e, após o seu falecimento, em 1952, ela foi publicada sob o título de Carta ao pai. Depois de publicada, a carta passa a ser considerada um texto literário, embora não tenha sido escrita com esse propósito. Frente a esse caso, você percebe como a fronteira entre o literário e o não literário por vezes é bastante tênue e como um texto não literário pode ser considerado como tal em um momento posterior? Por isso, dizemos que a literatura não existe como existem os insetos, que sempre serão considerados insetos, desde o nascimento até a morte. Apesar de toda essa dificuldade, é possível pensar em algumas caracterís- ticas que diferenciam o texto literário do texto não literário. Essas caracterís- ticas estão organizadas e resumidas no Quadro 1, mas serão desenvolvidas e explicadas ao longo dos próximos parágrafos. Texto literário Texto não literário Conotação Denotação Subjetivo Objetivo Metafórico Literal Linguagem pessoal Linguagem impessoal Preocupação com a forma e a expressão Preocupação com a informação Linguagem poética Representação da realidade Quadro 1. Diferenças entre o texto literário e o não literário 3Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos Em primeiro lugar, é importante apontar que, enquanto a conotação é característica do texto literário, a denotação é própria do texto não literário. Conotação é a linguagem utilizada no seu sentido metafórico, ao passo que a denotação refere a linguagem no seu sentido literal. Vejamos como essas linguagens funcionam em um texto literário produzido pelo escritor português contemporâneo Manuel Jorge Marmelo (TAVARES; MARMELO; ONDJAKI; ASSUNÇÃO, 2016, p. 132): A vaca e o hambúrguer Parece-me, às vezes, que a literatura funciona como as máquinas de picar carne. No início está sempre uma vaca concreta e real. Depois mata-se a vaca, corta-se a vaca e atiram-se os bocados para dentro da máquina trituradora. Do outro lado do aparelho aparecem, ao fim de um bocado, hambúrgueres, almôndegas e carne picada. Mas não tenho a certeza de que a vaca ainda seja capaz de se reconhecer se lhe for permitido contemplar-se, já embalada, nas prateleiras do supermercado. Nesse breve texto, o autor utiliza uma metáfora para refletir sobre o que é literatura: é uma máquina de picar carne. Ele fala sobre a vaca concreta e real e também sobre hambúrgueres, almôndegas e carne picada. Mas o que exatamente ele quis dizer com todos esses elementos? O leitor pode cogitar várias hipóteses. A vaca concreta pode ser a realidade que circunda o escritor e a carne moída pode representar essa realidade após a sua transformação em literatura, que nunca é a cópia do real, pois seria impossível copiar a realidade para as páginas de um livro. Essa realidade necessariamente é transformada pela perspectiva assumida pelo escritor ao observá-la e ao relatá-la. Entretanto, também podemos pensar que a vaca real e concreta é o que está escrito no livro e a carne moída é o texto depois de ser lido e interpretado pelo leitor a partir da sua própria realidade,das suas experiências, dos seus sentimentos no momento da leitura. Uma terceira possibilidade é que a vaca simboliza os sentimentos de quem escreve e a carne moída é justamente esse conjunto de sentimentos tão abstratos transformados em palavras. As possibilidades são inúmeras e é justamente esse o significado da co- notação e da subjetividade do texto literário: o seu sentido nunca está dado, nunca está finalizado. É sempre o leitor que define o que cada texto literário significa para si, compondo assim um panorama de leitores distintos em di- ferentes tempos e lugares lendo o mesmo texto de formas únicas. Além disso, um mesmo leitor em momentos distintos da sua vida pode ler um mesmo texto distintamente, o que não significa que possamos interpretar qualquer coisa Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos4 a partir de um texto. Em A vaca e o hambúrguer, por exemplo, não podemos interpretar que as vacas não deveriam ser mortas para que as pessoas comam carne, pois não é essa a problemática abordada. Todavia, as possibilidades de interpretação ainda assim são muitas. Ainda que a conotação seja característica do texto literário, não significa que a deno- tação não possa aparecer nesse tipo de texto ou que a conotação não possa aparecer no grupo dos não literários. Aqui, estamos falando de predominância, nunca de exclusividade. Isso vale também para todas as outras características apontadas. Ademais, em A vaca e o hambúrguer é perceptível uma grande preocupação não só com as informações transmitidas ao leitor, mas também com a forma sob a qual isso acontece. Um texto literário pode tratar de qualquer tema: amor, morte, saudade, tristeza, desastres, história, famílias etc. O que os diferen- cia dos textos não literários é, na verdade, a maneira como esses temas são contados. Há, portanto, uma preocupação formal do escritor com o seu texto, as palavras elegidas, a sonoridade, o ritmo, a poeticidade. Se compararmos essa definição literária de literatura com uma definição não literária, retirada do Dicionário Priberam (2018, documento on-line), essa característica ficará bastante evidente. Portanto, consideremos o verbete: li·te·ra·tu·ra (latim litteratura,-ae) substantivo feminino 1. Forma de expressão escrita que se considera ter mérito estético ou estilís- tico; arte literária. 2. Conjunto das obras literárias de um país, de uma região ou de determinada época. 3. Disciplina que estuda obras, temas e autores literários. 4. Conjunto de escritores e poetas de uma determinada sociedade. Na lexicografia, a preocupação de quem escreve é conduzir da forma mais direta e objetiva possível a informação consultada pelo leitor. A ter- ceira definição de literatura, por exemplo, não abre espaço para mais de uma interpretação: literatura pode se referir à disciplina que estuda obras, temas e autores literários e a uma das disciplinas que todos os alunos de ensino 5Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos médio devem frequentar nas escolas. Ao contrário, a definição de Marmelo não visa passar uma informação. Se assim fosse, ele não teria adotado tantas metáforas. As metáforas estabelecem comparações entre elementos que não costumam ser comparados e, além disso, essas comparações estão implícitas no texto, de modo que geram ambiguidade. Assim, concluímos que o texto do escritor português é arte e pode até passar informações, porém não é a sua prioridade. Afinal, a sua real intenção é emocionar, incomodar, desestabilizar, provar sentimentos. A sua linguagem é poética e a sua pretensão não é copiar a realidade. Ademais, é perceptível como a linguagem do texto literário é muito mais pessoal que a do texto não literário. No conceito de Marmelo, o autor refere a si próprio, visto que inicia com a sugestão “parece-me”. Ora, o pronome pessoal “me” refere-se ao próprio escritor, portanto o que ele está definindo é o que é a literatura para ele, não para uma coletividade. Já no verbete do dicionário, a intenção é justamente definir o que a literatura significa para a sociedade, ou seja, para uma dada coletividade. Escritor, narrador e eu lírico: quais são as diferenças? Em meados do século XIX, Gustave Flaubert publicou o romance Madame Bovary. Na obra, a protagonista Emma Bovary é uma mulher casada e extre- mamente insatisfeita com o seu casamento com o médico Charles. Em função disso, passa a ter relações extraconjugais e, em determinado momento, ela e o seu amante entram em um fi acre. O narrador descreve, então, os lugares por onde a carruagem viaja para que o leitor acompanhe o término da manhã e o início da morte da tarde. Em nenhum momento é explicitado o que a mulher e o homem fazem dentro do veículo, embora o leitor possa imaginá-lo. Na época, a obra foi escândalo e Flaubert foi judicialmente acusado por imoralidade, sendo inocentado mais tarde. Porém, esse curioso episódio leva-nos a refl etir acerca das distinções entre a fi gura do escritor e a do narrador. O narrador é um ser intradiegético, ou seja, é um elemento que pertence à ficção. É uma entidade criada pelo escritor para contar a história, de forma que nunca pode ser confundido com o próprio escritor. Isso quer dizer que o narrador pode expressar quaisquer opiniões, ainda que sejam inadequadas, preconceituosas ou criminosas. Logo, o escritor jamais pode ser responsabi- lizado pelo que o narrador afirma ou faz na obra de ficção, justamente porque o texto é ficcional e não corresponde à realidade. Essas noções nem sempre Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos6 foram tão claras, motivo pelo qual Flaubert foi criminalizado e julgado como imoral por cenas contadas pelo narrador daquela que é considerada a sua obra prima. Em suma, ainda que o escritor seja o responsável pela criação de determinado narrador, o narrador não corresponde ao escritor, pois é um ser ficcional distinto da figura real e concreta que lhe originou. Outro caso interessante é o da obra Operação Shylock, do escritor americano Philip Roth. O narrador do romance também se chama Philip Roth, escreveu os livros O complexo de Portnoy e Pastoral americana, mora nos Estados Unidos e teve problemas pós-operatórios causados por uma medicação. Assim, o leitor percebe que a biografia do narrador Philip Roth é a mesma do escritor Philip Roth. Então, nesse caso, narrador e escritor confundem-se? Eles fazem parte da mesma entidade? São a mesma pessoa? A resposta a todas essas perguntas é negativa, pois, embora comparti- lhem exatamente o mesmo nome, a biografia e os livros publicados, o autor e o narrador são seres diferentes. O escritor pertence ao mundo concreto e executada ações banais: come, bebe, paga contas, dorme, respira, escreve. Já o narrador é um ser fictício, cuja existência depende totalmente do tempo que durar a narrativa da história. Por isso, se o narrador Philip Roth dissesse que todos os alemães deveriam ser assassinados por causa das atrocidades que o nazismo infringiu aos judeus, o escritor Philip Roth jamais poderia ser responsabilizado e acusado de incitação à violência. Embora o escritor não possa ser responsabilizado pelo que o narrador da obra defende, o conteúdo do texto pode ser criticado se contiver, por exemplo, aspectos racistas, misóginos, classicistas, etc. Dessa forma, não se confunde narrador e escritor, embora o livro em si possa ser julgado. Agora que você já conhece as distinções entre escritor e narrador, podemos avançar em direção ao estudo dos tipos de narrador, sendo dois os principais: o narrador em primeira pessoa e o narrador em terceira pessoa. O narrador em primeira pessoa pode ser o próprio protagonista da história, a contar o que aconteceu consigo, ou uma personagem coadjuvante, que observa e relata ao leitor o que os protagonistas fazem e passam. Para o primeiro tipo, há o célebreexemplo de Dom Casmurro, de Machado de Assis, romance narrado por Bentinho, que, depois de certa idade, decide relatar tudo o que aconteceu 7Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos consigo e com a sua amada, Capitu. Os dois eram casados, mas Bentinho, em determinado ponto da relação, começa a suspeitar que a sua esposa o trai. Após a morte de Escobar, amigo da família, Bentinho vai além e passa a achar que o seu filho, Ezequiel, parecia-se muito com o falecido: Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro (ASSIS, 2018, documento on-line). Com base nesse trecho, atentemos ao fato de que é o próprio Bentinho quem conta sobre as coisas que ele faz, vê e pensa, o que confere um grau ainda maior de subjetividade ao texto, pois contamos somente com a visão de uma das personagens da trama. Conhecemos Capitu, por exemplo, apenas pela perspectiva de Bentinho, cujas emoções estão intimamente ligadas a todas as personagens que aparecem na trama. Ele acredita que a jovem possui “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Entretanto, será que ela realmente é assim ou foi o ciúme que o fez enxergá-la dessa forma? Afinal, Bentinho, o nosso Dom Casmurro, não possui nenhuma evidência que comprove as suas suspeitas, apenas as suas próprias impressões, e Capitu sempre negou qualquer hipótese de traição. Portanto, o aspecto de narrativa em primeira pessoa realizada pela protagonista da obra justifica por que o leitor não deve confiar piamente no que lhe é contado e também não pode alcançar uma certeza sobre o que real- mente aconteceu. Assim, podemos perceber o quanto é importante a escolha do narrador, já que ela pode mudar por completo o caráter da narrativa e os dilemas a serem enfrentados pelo escritor na sua produção artística. Imaginemos que a história de Bentinho fosse narrada em terceira pessoa. Os narradores em terceira pessoa podem ser oniscientes, de modo que sabem de tudo o que acontece com todos os personagens da história, ou apenas com alguns. Esses narradores podem ser intrusos ou não, pois podem não apenas narrar a história, mas também emitir juízos de valor sobre a personalidade das personagens e sobre as suas ações ou podem limitar-se a apenas narrar os acontecimentos. Nesse caso, seria muito difícil que o leitor ficasse em dúvida Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos8 sobre a traição de Capitu, posto que esse narrador é capaz de estar em todos os lugares e adentrar os pensamentos das personagens. Se Machado de Assis tivesse escolhido esse tipo de narrador, a sua história teria sido, portanto, completamente diferente da que conhecemos e consagrou-se possivelmente como o maior clássico da literatura brasileira. Realizada a distinção entre narrador e autor, é imprescindível distin- guirmos a figura do narrador do que chamamos de eu lírico na poesia. Em resumo, o narrador relata os acontecimentos nas narrativas e eu lírico é a voz dos poemas. Novamente, é importante salientarmos que o eu lírico não se confunde com o poeta: o eu lírico é uma entidade criada pelo poeta para falar em textos poéticos, não necessariamente expressando os sentimentos do próprio escritor. O músico Chico Buarque de Holanda, por exemplo, escreveu uma letra, chamada de Olhos nos olhos, na qual o eu lírico é uma mulher, o que se evidencia pelo gênero feminino do adjetivo no seguinte excerto: “Quando você me quiser rever / já vai me encontrar refeita / pode crer”. Assim, o autor reuniu sensibilidade suficiente para se colocar no lugar de um indivíduo muito diferente e, assim, portador de outros dilemas sociais. Chico Buarque foi capaz de tentar imaginar o que essa pessoa sentiria e de transformar em palavras essas sensações. Para melhor ilustrarmos a diferença entre autor e eu lírico, miremos a seguir o poema Autopsicografia, do escritor português Fernando Pessoa (ARQUIVO PESSOA, 2018, documento on-line): Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. 9Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos O eu lírico aborda questionamentos bastante interessantes. Como já dis- cutimos, a literatura é subjetiva e pode ser interpretada de diferentes formas por diferentes pessoas. Aqui, porém, exploraremos uma possibilidade de interpretação, não sendo a única possível. O poema inicia-se com a sentença “O poeta é um fingidor”. Ele finge dores nos seus poemas, que curiosamente são as que ele sente de fato, o que pode indicar que as dores registradas na poesia não necessitam ser idênticas às sentidas pelo poeta. Afinal, o poeta é um fingidor e não possui compromisso com a verdade ou com a narração da realidade. Nos seus poemas, ele pode versar sobre a dor da perda de um filho, por exemplo, ainda que nunca tenha tido um, porque quem está expressando os sentimentos é o eu lírico, não o próprio poeta. Ao mesmo tempo, o fato de o escritor produzir um poema e abordar uma dor que nunca sentiu não significa que nenhum aspecto de alguma dor que ele já sentiu possa misturar-se à dor inventada. Não bastasse a complexidade da primeira estrofe, na segunda aborda-se a questão do leitor, que, ao ler o poema, também sente uma dor. Essa dor, contudo, é diferente das duas primeiras – da dor sentida pelo escritor e da dor fingida no poema e sentida pelo eu lírico –, pois trata-se da dor do próprio leitor, que reconhece esse sentimento no texto. A subjetividade e o caráter metafórico do texto literário permitem que nos reconheçamos nos textos escritos por outras pessoas. Se a distinção entre narrador e autor, bem como entre eu lírico e poeta não é simples, o caso de Fernando Pessoa torna tudo ainda mais complexo. Ele inventou heterônimos, personalidades inventadas pelo próprio escritor com uma biografia e estilo de escrever próprios, dentre os quais Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são os mais importantes. Todavia, foram mais de 70 os heterônimos criados por Pessoa. É curioso o fato de que o leitor atento pode reconhecer os textos de cada um dos heterônimos mesmo sem a indicação da autoria, pois cada um apresenta um estilo muito peculiar. Alberto Caeiro é conhecido como o mais sábio dos três, Ricardo Reis como o poeta da cidade e Álvaro de Campos como o verdadeiro alter ego de Pessoa, cujas poesias são as mais apreciadas entre a maioria dos leitores. Portanto, narrador, escritor e eu lírico nunca se confundem, por mais que, em um primeiro momento, as fronteiras entre eles possam parecer nebulosas. Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos10 Poesia e prosa: quais são os limites entre os estilos? O eu lírico é a voz dos poemas e o narrador é quem relata os acontecimentos dos textos narrativos, isto é, dos textos em prosa. Feita essa discussão, agora nos concentraremos em aprofundar os estudos sobre as distinções entre a prosa e a poesia. Paracomeçar, é necessário discernirmos que prosa é o estilo de texto literário organizado em frases e parágrafos, sendo que os seus exemplares possuem início, desenvolvimento e fim. A prosa não possui versos, estrofes ou metrificação intencional e é conhecida, em geral, como narrativa, um texto que apresenta uma sequência de ações narradas, abrangendo alguns gêneros, como novela, conto, romance e crônica. O conto é uma narrativa curta com um número reduzido de personagens. Já a novela e o romance são narrativas mais extensas, com mais personagens e núcleos narrativos. A crônica, assim como o conto, também é um texto curto, mas que trata de acontecimentos corriqueiros do cotidiano e está muito conectada com o contexto no qual é produzida. Há cinco elementos fundamentais das narrativas: narrador, personagem, enredo, tempo e espaço. O narrador, como já mencionamos, é o ser intradie- gético que narra os acontecimentos das histórias. As personagens são os seres fictícios retratados nas narrativas. O enredo é a sucessão dos acontecimentos das narrativas. O tempo, por sua vez, pode indicar a época na qual a história se passa ou quanto tempo a história dura. O lugar, por fim, é onde a história desenvolve-se. Enredo é diferente de fábula e essa é mais uma distinção bastante importante nos nossos estudos sobre a literatura. Enquanto a fábula é tudo o que foi narrado, o enredo é a forma e a ordem como a narrativa foi construída. A fábula é o que se diz e o enredo é como se diz, como o escritor elabora artisticamente a fábula, que pode ser algo que o escritor vivenciou, como um roubo a uma loja. O enredo é a transformação dessa fábula em literatura, em texto literário. Além disso, o tema do texto literário relaciona-se com a fábula: sobre o que se conta. Já o motivo é a unidade mínima de uma narrativa. 11Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos Enquanto o narrador da história geralmente permanece o mesmo ao longo da narrativa, as personagens podem surgir ou desaparecer dela; o tempo pode mudar em função de uma volta ao passado ou de uma passagem de anos em direção ao futuro; o lugar também pode ser alterado, pois as personagens podem, por exemplo, viajar. Já a poesia se configura como o texto literário organizado em versos e estrofes, podendo apresentar ou não rimas e, quando não as apresenta, dizemos que tem versos livres. Há, ainda, as sílabas métricas, medida do verso da poesia. Nesse estilo, também surge uma preocupação maior com a sonoridade e com a musicalidade se comparado à prosa. Acredita-se, por exemplo, que a Odisseia, de Homero, texto organizado em versos que narra a volta do herói Ulisses para casa depois da Guerra de Troia, era, antes de se apresentar na forma escrita, contado de uma pessoa à outra, oralmente. Por essa razão eram tão importantes a sonoridade e as rimas, uma vez que facilitam a memorização. Sempre que você estiver lendo um poema, procure lê-lo em voz alta, pois isso lhe ajudará a perceber o ritmo e a musicalidade do texto. No poema a seguir, de Vinícius de Moraes (2018, documento on-line), assim como em tantos outros do músico e poeta carioca, a sonoridade é um elemento em intenso destaque: Soneto da fidelidade De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos12 Cada verso de um poema corresponde a uma linha. “De tudo ao meu amor serei atento”, portanto, corresponde a um verso. As estrofes são um conjunto de versos. Nesse poema, há, então, quatro estrofes: duas estrofes de quatro versos cada e duas estrofes de três versos cada. Essa estrutura poética, com um número específico de estrofes e versos, chama-se soneto, como o próprio título do poema de Vinícius de Moraes já indica. Ademais, percebemos a presença de rimas. Nas estrofes de quatro versos, o primeiro verso rima com o quarto e o segundo rima com o terceiro; nas estrofes de três versos, as rimas ocorrem diferentemente, pois o primeiro verso da primeira estrofe rima com o último verso da segunda estrofe, o segundo verso da primeira estrofe rima com o primeiro da segunda estrofe e o último da primeira estrofe rima com o segundo da segunda estrofe. Já à contagem das sílabas métricas denomina-se escansão. As sílabas métricas não necessariamente correspondem às sílabas gramaticais, embora isso às vezes aconteça. Para escandir um poema, contamos as sílabas até a última sílaba tônica do verso. Vamos ver como isso ocorre nos primeiros quatro versos do poema de Vinícius de Moraes, comparando as sílabas poéticas ou métricas com as sílabas gramaticais: De/ tu/do ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/to/ 10 sílabas poéticas De/ tu/do/ ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/to/ 12 sílabas gramaticais An/tes,/ e/ com/ tal/ ze/lo, e/ sem/pre, e/ tan/to 10 sílabas poéticas An/tes,/ e/ com/ tal/ ze/lo,/ e/ sem/pre,/ e/ tan/to 13 sílabas gramaticais Que/ mes/mo em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to/ 10 sílabas poéticas Que/ mes/mo/ em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to/ 12 sílabas gramaticais De/le/ se en/can/te/ mais/ meu/ pen/sa/men/to./ 10 sílabas poéticas De/le/ se /en/can/te/ mais/ meu/ pen/sa/men/to./ 12 sílabas gramaticais Perceba que duas ou mais vogais podem se juntar em uma única sílaba poética, mesmo que elas sejam morfemas de vocábulos distintos. Isso ocorre porque a separação das sílabas poéticas considera a sonoridade do verso e, muitas vezes, ao ler vogais umas ao lado das outras, juntamo-las todas em uma mesma sílaba poética, sem intervalos entre palavras distintas. Ao contrário das narrativas, o único elemento obrigatório na poesia é o eu lírico, a voz do poema. Nem sempre podemos delimitar tempo, espaço, enredo 13Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos e personagens para um poema. Muitas vezes, poesias tratam de sentimentos bastante abstratos e universais, sendo quase impossível situá-los ou definir um enredo para elas. Comparada à poesia, a prosa é muito mais concreta, pois apresenta ações que se desenvolvem em um dado tempo e espaço. No caso do poema de Vinícius de Moraes, é impossível, por exemplo, delimitar um espaço. A relação do eu lírico com o amor pode ter como lugar o Rio de Janeiro, Tóquio ou Londres. É impossível definir. Prosa e poesia são estilos diferentes, o que não impede que traços da mu- sicalidade da poesia apareçam na prosa ou que traços de narração apareçam na poesia. Para compreendermos como isso ocorre, realizemos a leitura do poema de Manuel Bandeira (2018, documento on-line) a seguir: Poema tirado de uma notícia de jornal João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número. Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. Nesse poema, há traços prosaicos de narratividade próprios da prosa. Isso não faz, contudo, desse texto uma prosa. Ele segue sendo poesia, pois se apresenta em versos e conta com um considerável grau de subjetividade e lirismo, característicos do gênero lírico. Dessa forma, é importante que você perceba que, apesar de podermos estabelecer uma fronteira entre prosa e poesia, essa fronteira por vezes é bastante tênue. Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos14 15Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais,formas, conteúdos e estilos AMADO, J. A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água. Rio de Janeiro: Record, 2000. ARQUIVO PESSOA. Fernando Pessoa: autopsicografia. 2018. Disponível em: <http:// arquivopessoa.net/textos/4234>. Acesso em: 23 jul. 2018. ASSIS, M. Dom Casmurro. 2008. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/ua000194.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2018. BANDEIRA, M. Poema tirado de uma notícia de jornal. Disponível em: <http://anto- niocicero.blogspot.com/2009/04/manuel-bandeira-poema-tirado-de-uma.html>. Acesso em: 23 jul. 2018. DIAS, G. Canção do exílio. In: DIAS, G. Primeiros Cantos, 1947. Disponível em: <http:// www.horizonte.unam.mx/brasil/gdias.html>. Acesso em: 23 jul. 2018. EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. EVARISTO, C. 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