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Textos Fundamentais de Poesia em LP: Obra Literária

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TEXTOS 
FUNDAMENTAIS DE 
POESIA EM LÍNGUA 
PORTUGUESA 
Luara Pinto Minuzzi
Obra literária: 
características essenciais, 
elementos fundamentais, 
formas, conteúdos e estilos
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
 Reconhecer as características principais da obra literária, de acordo
com a sua forma, o seu conteúdo e o seu estilo.
 Diferenciar autor, narrador e eu lírico.
 Comparar elementos da poesia e da prosa: o assunto ou motivo, e o
enredo ou fábula.
Introdução
Neste capítulo, examinaremos a base dos estudos literários e discu-
tiremos noções fundamentais para qualquer análise mais complexa 
acerca das obras de ficção. Para isso, investigaremos as diferenças entre 
os textos classificados como literários e os não literários, enfatizando 
as características essenciais do primeiro grupo textual. Dessa maneira, 
subjetividade e linguagem pessoal, poética e metafórica, bem como 
preocupação com a forma são alguns dos elementos que analisaremos 
mais profundamente.
Além disso, algumas distinções importantes serão construídas neste 
estudo, como os conceitos de escritor, narrador e eu lírico, visto que mui-
tas pessoas confundem o narrador, elemento do universo ficcional, com o 
escritor da obra, ser do mundo concreto. Apesar disso, eles configuram-se 
como seres diferentes e essa diferenciação é extremamente relevante 
para o estudo da literatura.
Neste momento de estudo, também analisaremos e compararemos 
os dois estilos literários: a prosa, que corresponde ao texto literário or-
ganizado em parágrafos, e a poesia, que compreende o texto literário 
geralmente esquematizado em versos e estrofes.
O que é texto literário? 
Ao contrário do que afi rma o senso comum, a sociedade contemporânea é a 
maior leitora em toda a história da humanidade, pois os índices de analfabe-
tismo mundial decrescem ano a ano e, logo, um número cada vez maior de 
indivíduos capazes de comunicar-se por meio da linguagem escrita, isto é, 
de ler, escrever e interpretar a criação originada por essas ações, forma-se. 
Atualmente, a escrita permeia a maioria dos nossos espaços comunitários: 
placas, embalagens, redes sociais e os livros, que tanto estimamos. Obviamente, 
a lista é infi nita e a produção textual renova-se dia a dia, apresentando novas 
formas, objetivos e expressões.
Nesse contexto, muitos de nós leem com frequência e mantêm contato 
com textos literários desde muito jovens, até mesmo porque o espaço escolar 
é dotado do compromisso com a leitura e a formação do leitor. Entretanto, 
estamos tão acostumados com esse tipo de texto que raramente pensamos 
sobre o que faz dos seus exemplares literatura e os diferencia dos demais 
textos, ditos não literários. Afinal, as mesmas palavras que usamos no co-
tidiano são as que estão presentes em um romance ou em uma poesia, por 
exemplo. Então, por que a poesia e o romance são considerados literatura 
e as conversas entre amigos não o são? O que diferencia um texto literário 
de um não literário?
Essa não é uma questão simples e muitos teóricos já se debruçaram sobre 
o problema a fim de tentar resolvê-lo. Na obra Teoria da literatura: uma 
introdução, Terry Eagleton suscita inúmeras definições já dadas à literatura 
ao longo dos tempos, sempre evidenciando como elas não se aplicam a todos 
os casos e a todos os tipos de texto. Ao final, ele conclui que a literatura 
não é uma categoria objetiva: a “literatura não existe da mesma maneira 
que os insetos” (EAGLETON, 2006, p. 24). No caso dos insetos, há uma 
definição clara do que são: seres invertebrados com exoesqueleto quitinoso, 
para valermo-nos da nomenclatura especializada. A partir desse conceito, 
podemos classificar os seres que encontrarmos como insetos ou não inse-
tos. Contudo, o mesmo processo classificatório não serve à literatura, pois 
a sua definição depende de quem a constrói e dos seus juízos de valor. 
Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos2
Por exemplo, em uma sociedade machista, a tendência é enquadrar como 
literatura as obras escritas por homens; em um contexto racista, textos 
escritos por pessoas negras terão muito menos chances de serem editados, 
publicados e lidos. 
Há um caso que pode ajudar bastante a elucidarmos o porquê de a literatura 
não ser uma categoria objetiva. Franz Kafka, escritor tcheco de língua alemã 
que viveu entre os séculos XIX e XX, possuía uma relação um tanto quanto 
problemática com o seu pai. O escritor culpou ao pai e à sua forte figura por 
deixarem-no sempre à própria margem, de modo a não permitirem que se 
desenvolvesse completamente e tornasse-se independente. Devido a isso, Kafka 
decidiu escrever uma carta à figura paterna, cujo objetivo não era escrever 
literatura, mas um desabafo para, talvez, melhorar a relação entre os dois. 
Ele nunca entregou a carta ao seu destinatário e, após o seu falecimento, em 
1952, ela foi publicada sob o título de Carta ao pai. Depois de publicada, a 
carta passa a ser considerada um texto literário, embora não tenha sido escrita 
com esse propósito. Frente a esse caso, você percebe como a fronteira entre 
o literário e o não literário por vezes é bastante tênue e como um texto não
literário pode ser considerado como tal em um momento posterior? Por isso,
dizemos que a literatura não existe como existem os insetos, que sempre serão
considerados insetos, desde o nascimento até a morte.
Apesar de toda essa dificuldade, é possível pensar em algumas caracterís-
ticas que diferenciam o texto literário do texto não literário. Essas caracterís-
ticas estão organizadas e resumidas no Quadro 1, mas serão desenvolvidas e 
explicadas ao longo dos próximos parágrafos. 
Texto literário Texto não literário
Conotação Denotação
Subjetivo Objetivo
Metafórico Literal
Linguagem pessoal Linguagem impessoal
Preocupação com a forma e a expressão Preocupação com a informação
Linguagem poética Representação da realidade
Quadro 1. Diferenças entre o texto literário e o não literário
3Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos
Em primeiro lugar, é importante apontar que, enquanto a conotação é 
característica do texto literário, a denotação é própria do texto não literário. 
Conotação é a linguagem utilizada no seu sentido metafórico, ao passo que 
a denotação refere a linguagem no seu sentido literal. Vejamos como essas 
linguagens funcionam em um texto literário produzido pelo escritor português 
contemporâneo Manuel Jorge Marmelo (TAVARES; MARMELO; ONDJAKI; 
ASSUNÇÃO, 2016, p. 132):
A vaca e o hambúrguer
Parece-me, às vezes, que a literatura funciona como as máquinas 
de picar carne. No início está sempre uma vaca concreta e real. Depois 
mata-se a vaca, corta-se a vaca e atiram-se os bocados para dentro da 
máquina trituradora. Do outro lado do aparelho aparecem, ao fim de 
um bocado, hambúrgueres, almôndegas e carne picada. Mas não tenho 
a certeza de que a vaca ainda seja capaz de se reconhecer se lhe for 
permitido contemplar-se, já embalada, nas prateleiras do supermercado.
Nesse breve texto, o autor utiliza uma metáfora para refletir sobre o que 
é literatura: é uma máquina de picar carne. Ele fala sobre a vaca concreta e 
real e também sobre hambúrgueres, almôndegas e carne picada. Mas o que 
exatamente ele quis dizer com todos esses elementos? O leitor pode cogitar 
várias hipóteses. A vaca concreta pode ser a realidade que circunda o escritor 
e a carne moída pode representar essa realidade após a sua transformação em 
literatura, que nunca é a cópia do real, pois seria impossível copiar a realidade 
para as páginas de um livro. Essa realidade necessariamente é transformada 
pela perspectiva assumida pelo escritor ao observá-la e ao relatá-la. Entretanto, 
também podemos pensar que a vaca real e concreta é o que está escrito no 
livro e a carne moída é o texto depois de ser lido e interpretado pelo leitor a 
partir da sua própria realidade,das suas experiências, dos seus sentimentos 
no momento da leitura. Uma terceira possibilidade é que a vaca simboliza os 
sentimentos de quem escreve e a carne moída é justamente esse conjunto de 
sentimentos tão abstratos transformados em palavras. 
As possibilidades são inúmeras e é justamente esse o significado da co-
notação e da subjetividade do texto literário: o seu sentido nunca está dado, 
nunca está finalizado. É sempre o leitor que define o que cada texto literário 
significa para si, compondo assim um panorama de leitores distintos em di-
ferentes tempos e lugares lendo o mesmo texto de formas únicas. Além disso, 
um mesmo leitor em momentos distintos da sua vida pode ler um mesmo texto 
distintamente, o que não significa que possamos interpretar qualquer coisa 
Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos4
a partir de um texto. Em A vaca e o hambúrguer, por exemplo, não podemos 
interpretar que as vacas não deveriam ser mortas para que as pessoas comam 
carne, pois não é essa a problemática abordada. Todavia, as possibilidades de 
interpretação ainda assim são muitas. 
Ainda que a conotação seja característica do texto literário, não significa que a deno-
tação não possa aparecer nesse tipo de texto ou que a conotação não possa aparecer 
no grupo dos não literários. Aqui, estamos falando de predominância, nunca de 
exclusividade. Isso vale também para todas as outras características apontadas. 
Ademais, em A vaca e o hambúrguer é perceptível uma grande preocupação 
não só com as informações transmitidas ao leitor, mas também com a forma 
sob a qual isso acontece. Um texto literário pode tratar de qualquer tema: amor, 
morte, saudade, tristeza, desastres, história, famílias etc. O que os diferen-
cia dos textos não literários é, na verdade, a maneira como esses temas são 
contados. Há, portanto, uma preocupação formal do escritor com o seu texto, 
as palavras elegidas, a sonoridade, o ritmo, a poeticidade. Se compararmos 
essa definição literária de literatura com uma definição não literária, retirada 
do Dicionário Priberam (2018, documento on-line), essa característica ficará 
bastante evidente. Portanto, consideremos o verbete:
li·te·ra·tu·ra
(latim litteratura,-ae)
substantivo feminino
1. Forma de expressão escrita que se considera ter mérito estético ou estilís-
tico; arte literária. 
2. Conjunto das obras literárias de um país, de uma região ou de determinada 
época.
3. Disciplina que estuda obras, temas e autores literários.
4. Conjunto de escritores e poetas de uma determinada sociedade.
Na lexicografia, a preocupação de quem escreve é conduzir da forma 
mais direta e objetiva possível a informação consultada pelo leitor. A ter-
ceira definição de literatura, por exemplo, não abre espaço para mais de uma 
interpretação: literatura pode se referir à disciplina que estuda obras, temas 
e autores literários e a uma das disciplinas que todos os alunos de ensino 
5Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos
médio devem frequentar nas escolas. Ao contrário, a definição de Marmelo 
não visa passar uma informação. Se assim fosse, ele não teria adotado tantas 
metáforas. As metáforas estabelecem comparações entre elementos que não 
costumam ser comparados e, além disso, essas comparações estão implícitas 
no texto, de modo que geram ambiguidade. Assim, concluímos que o texto 
do escritor português é arte e pode até passar informações, porém não é a sua 
prioridade. Afinal, a sua real intenção é emocionar, incomodar, desestabilizar, 
provar sentimentos. A sua linguagem é poética e a sua pretensão não é copiar 
a realidade.
Ademais, é perceptível como a linguagem do texto literário é muito mais 
pessoal que a do texto não literário. No conceito de Marmelo, o autor refere 
a si próprio, visto que inicia com a sugestão “parece-me”. Ora, o pronome 
pessoal “me” refere-se ao próprio escritor, portanto o que ele está definindo 
é o que é a literatura para ele, não para uma coletividade. Já no verbete do 
dicionário, a intenção é justamente definir o que a literatura significa para a 
sociedade, ou seja, para uma dada coletividade. 
Escritor, narrador e eu lírico: quais são 
as diferenças?
Em meados do século XIX, Gustave Flaubert publicou o romance Madame 
Bovary. Na obra, a protagonista Emma Bovary é uma mulher casada e extre-
mamente insatisfeita com o seu casamento com o médico Charles. Em função 
disso, passa a ter relações extraconjugais e, em determinado momento, ela e o 
seu amante entram em um fi acre. O narrador descreve, então, os lugares por 
onde a carruagem viaja para que o leitor acompanhe o término da manhã e o 
início da morte da tarde. Em nenhum momento é explicitado o que a mulher e 
o homem fazem dentro do veículo, embora o leitor possa imaginá-lo. Na época, 
a obra foi escândalo e Flaubert foi judicialmente acusado por imoralidade, 
sendo inocentado mais tarde. Porém, esse curioso episódio leva-nos a refl etir 
acerca das distinções entre a fi gura do escritor e a do narrador.
O narrador é um ser intradiegético, ou seja, é um elemento que pertence 
à ficção. É uma entidade criada pelo escritor para contar a história, de forma 
que nunca pode ser confundido com o próprio escritor. Isso quer dizer que o 
narrador pode expressar quaisquer opiniões, ainda que sejam inadequadas, 
preconceituosas ou criminosas. Logo, o escritor jamais pode ser responsabi-
lizado pelo que o narrador afirma ou faz na obra de ficção, justamente porque 
o texto é ficcional e não corresponde à realidade. Essas noções nem sempre 
Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos6
foram tão claras, motivo pelo qual Flaubert foi criminalizado e julgado como 
imoral por cenas contadas pelo narrador daquela que é considerada a sua 
obra prima. Em suma, ainda que o escritor seja o responsável pela criação de 
determinado narrador, o narrador não corresponde ao escritor, pois é um ser 
ficcional distinto da figura real e concreta que lhe originou. 
Outro caso interessante é o da obra Operação Shylock, do escritor americano 
Philip Roth. O narrador do romance também se chama Philip Roth, escreveu 
os livros O complexo de Portnoy e Pastoral americana, mora nos Estados 
Unidos e teve problemas pós-operatórios causados por uma medicação. Assim, 
o leitor percebe que a biografia do narrador Philip Roth é a mesma do escritor 
Philip Roth. Então, nesse caso, narrador e escritor confundem-se? Eles fazem 
parte da mesma entidade? São a mesma pessoa?
A resposta a todas essas perguntas é negativa, pois, embora comparti-
lhem exatamente o mesmo nome, a biografia e os livros publicados, o autor 
e o narrador são seres diferentes. O escritor pertence ao mundo concreto e 
executada ações banais: come, bebe, paga contas, dorme, respira, escreve. 
Já o narrador é um ser fictício, cuja existência depende totalmente do tempo 
que durar a narrativa da história. Por isso, se o narrador Philip Roth dissesse 
que todos os alemães deveriam ser assassinados por causa das atrocidades 
que o nazismo infringiu aos judeus, o escritor Philip Roth jamais poderia ser 
responsabilizado e acusado de incitação à violência.
Embora o escritor não possa ser responsabilizado pelo que o narrador da obra 
defende, o conteúdo do texto pode ser criticado se contiver, por exemplo, aspectos 
racistas, misóginos, classicistas, etc. Dessa forma, não se confunde narrador e escritor, 
embora o livro em si possa ser julgado.
Agora que você já conhece as distinções entre escritor e narrador, podemos 
avançar em direção ao estudo dos tipos de narrador, sendo dois os principais: 
o narrador em primeira pessoa e o narrador em terceira pessoa. O narrador 
em primeira pessoa pode ser o próprio protagonista da história, a contar o 
que aconteceu consigo, ou uma personagem coadjuvante, que observa e relata 
ao leitor o que os protagonistas fazem e passam. Para o primeiro tipo, há o 
célebreexemplo de Dom Casmurro, de Machado de Assis, romance narrado 
por Bentinho, que, depois de certa idade, decide relatar tudo o que aconteceu 
7Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos
consigo e com a sua amada, Capitu. Os dois eram casados, mas Bentinho, 
em determinado ponto da relação, começa a suspeitar que a sua esposa o trai. 
Após a morte de Escobar, amigo da família, Bentinho vai além e passa a achar 
que o seu filho, Ezequiel, parecia-se muito com o falecido:
Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo 
para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete 
de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram 
repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo 
e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a 
mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho 
estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, 
ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos 
da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da 
escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o 
castigo de um dia para outro (ASSIS, 2018, documento on-line).
Com base nesse trecho, atentemos ao fato de que é o próprio Bentinho 
quem conta sobre as coisas que ele faz, vê e pensa, o que confere um grau 
ainda maior de subjetividade ao texto, pois contamos somente com a visão de 
uma das personagens da trama. Conhecemos Capitu, por exemplo, apenas pela 
perspectiva de Bentinho, cujas emoções estão intimamente ligadas a todas as 
personagens que aparecem na trama. Ele acredita que a jovem possui “olhos de 
cigana oblíqua e dissimulada”. Entretanto, será que ela realmente é assim ou 
foi o ciúme que o fez enxergá-la dessa forma? Afinal, Bentinho, o nosso Dom 
Casmurro, não possui nenhuma evidência que comprove as suas suspeitas, 
apenas as suas próprias impressões, e Capitu sempre negou qualquer hipótese 
de traição. Portanto, o aspecto de narrativa em primeira pessoa realizada pela 
protagonista da obra justifica por que o leitor não deve confiar piamente no 
que lhe é contado e também não pode alcançar uma certeza sobre o que real-
mente aconteceu. Assim, podemos perceber o quanto é importante a escolha 
do narrador, já que ela pode mudar por completo o caráter da narrativa e os 
dilemas a serem enfrentados pelo escritor na sua produção artística. 
Imaginemos que a história de Bentinho fosse narrada em terceira pessoa. 
Os narradores em terceira pessoa podem ser oniscientes, de modo que sabem 
de tudo o que acontece com todos os personagens da história, ou apenas com 
alguns. Esses narradores podem ser intrusos ou não, pois podem não apenas 
narrar a história, mas também emitir juízos de valor sobre a personalidade 
das personagens e sobre as suas ações ou podem limitar-se a apenas narrar os 
acontecimentos. Nesse caso, seria muito difícil que o leitor ficasse em dúvida 
Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos8
sobre a traição de Capitu, posto que esse narrador é capaz de estar em todos 
os lugares e adentrar os pensamentos das personagens. Se Machado de Assis 
tivesse escolhido esse tipo de narrador, a sua história teria sido, portanto, 
completamente diferente da que conhecemos e consagrou-se possivelmente 
como o maior clássico da literatura brasileira. 
Realizada a distinção entre narrador e autor, é imprescindível distin-
guirmos a figura do narrador do que chamamos de eu lírico na poesia. Em 
resumo, o narrador relata os acontecimentos nas narrativas e eu lírico é a 
voz dos poemas. Novamente, é importante salientarmos que o eu lírico não 
se confunde com o poeta: o eu lírico é uma entidade criada pelo poeta para 
falar em textos poéticos, não necessariamente expressando os sentimentos 
do próprio escritor.
O músico Chico Buarque de Holanda, por exemplo, escreveu uma letra, 
chamada de Olhos nos olhos, na qual o eu lírico é uma mulher, o que se 
evidencia pelo gênero feminino do adjetivo no seguinte excerto: “Quando 
você me quiser rever / já vai me encontrar refeita / pode crer”. Assim, o autor 
reuniu sensibilidade suficiente para se colocar no lugar de um indivíduo 
muito diferente e, assim, portador de outros dilemas sociais. Chico Buarque 
foi capaz de tentar imaginar o que essa pessoa sentiria e de transformar em 
palavras essas sensações.
Para melhor ilustrarmos a diferença entre autor e eu lírico, miremos a seguir 
o poema Autopsicografia, do escritor português Fernando Pessoa (ARQUIVO 
PESSOA, 2018, documento on-line):
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração. 
9Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos
O eu lírico aborda questionamentos bastante interessantes. Como já dis-
cutimos, a literatura é subjetiva e pode ser interpretada de diferentes formas 
por diferentes pessoas. Aqui, porém, exploraremos uma possibilidade de 
interpretação, não sendo a única possível.
O poema inicia-se com a sentença “O poeta é um fingidor”. Ele finge dores 
nos seus poemas, que curiosamente são as que ele sente de fato, o que pode 
indicar que as dores registradas na poesia não necessitam ser idênticas às 
sentidas pelo poeta. Afinal, o poeta é um fingidor e não possui compromisso 
com a verdade ou com a narração da realidade. Nos seus poemas, ele pode 
versar sobre a dor da perda de um filho, por exemplo, ainda que nunca tenha 
tido um, porque quem está expressando os sentimentos é o eu lírico, não o 
próprio poeta. Ao mesmo tempo, o fato de o escritor produzir um poema e 
abordar uma dor que nunca sentiu não significa que nenhum aspecto de alguma 
dor que ele já sentiu possa misturar-se à dor inventada. 
Não bastasse a complexidade da primeira estrofe, na segunda aborda-se 
a questão do leitor, que, ao ler o poema, também sente uma dor. Essa dor, 
contudo, é diferente das duas primeiras – da dor sentida pelo escritor e da dor 
fingida no poema e sentida pelo eu lírico –, pois trata-se da dor do próprio 
leitor, que reconhece esse sentimento no texto. A subjetividade e o caráter 
metafórico do texto literário permitem que nos reconheçamos nos textos 
escritos por outras pessoas. 
Se a distinção entre narrador e autor, bem como entre eu lírico e poeta não é simples, o 
caso de Fernando Pessoa torna tudo ainda mais complexo. Ele inventou heterônimos, 
personalidades inventadas pelo próprio escritor com uma biografia e estilo de escrever 
próprios, dentre os quais Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são os mais 
importantes. Todavia, foram mais de 70 os heterônimos criados por Pessoa. É curioso 
o fato de que o leitor atento pode reconhecer os textos de cada um dos heterônimos 
mesmo sem a indicação da autoria, pois cada um apresenta um estilo muito peculiar. 
Alberto Caeiro é conhecido como o mais sábio dos três, Ricardo Reis como o poeta 
da cidade e Álvaro de Campos como o verdadeiro alter ego de Pessoa, cujas poesias 
são as mais apreciadas entre a maioria dos leitores.
Portanto, narrador, escritor e eu lírico nunca se confundem, por mais que, 
em um primeiro momento, as fronteiras entre eles possam parecer nebulosas. 
Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos10
Poesia e prosa: quais são os limites 
entre os estilos?
O eu lírico é a voz dos poemas e o narrador é quem relata os acontecimentos 
dos textos narrativos, isto é, dos textos em prosa. Feita essa discussão, agora 
nos concentraremos em aprofundar os estudos sobre as distinções entre a 
prosa e a poesia.
Paracomeçar, é necessário discernirmos que prosa é o estilo de texto 
literário organizado em frases e parágrafos, sendo que os seus exemplares 
possuem início, desenvolvimento e fim. A prosa não possui versos, estrofes 
ou metrificação intencional e é conhecida, em geral, como narrativa, um texto 
que apresenta uma sequência de ações narradas, abrangendo alguns gêneros, 
como novela, conto, romance e crônica.
O conto é uma narrativa curta com um número reduzido de personagens. 
Já a novela e o romance são narrativas mais extensas, com mais personagens 
e núcleos narrativos. A crônica, assim como o conto, também é um texto 
curto, mas que trata de acontecimentos corriqueiros do cotidiano e está muito 
conectada com o contexto no qual é produzida. 
Há cinco elementos fundamentais das narrativas: narrador, personagem, 
enredo, tempo e espaço. O narrador, como já mencionamos, é o ser intradie-
gético que narra os acontecimentos das histórias. As personagens são os seres 
fictícios retratados nas narrativas. O enredo é a sucessão dos acontecimentos 
das narrativas. O tempo, por sua vez, pode indicar a época na qual a história 
se passa ou quanto tempo a história dura. O lugar, por fim, é onde a história 
desenvolve-se. 
Enredo é diferente de fábula e essa é mais uma distinção bastante importante nos 
nossos estudos sobre a literatura. Enquanto a fábula é tudo o que foi narrado, o 
enredo é a forma e a ordem como a narrativa foi construída. A fábula é o que se 
diz e o enredo é como se diz, como o escritor elabora artisticamente a fábula, que 
pode ser algo que o escritor vivenciou, como um roubo a uma loja. O enredo é a 
transformação dessa fábula em literatura, em texto literário. Além disso, o tema 
do texto literário relaciona-se com a fábula: sobre o que se conta. Já o motivo é a 
unidade mínima de uma narrativa. 
11Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos
Enquanto o narrador da história geralmente permanece o mesmo ao longo 
da narrativa, as personagens podem surgir ou desaparecer dela; o tempo pode 
mudar em função de uma volta ao passado ou de uma passagem de anos em 
direção ao futuro; o lugar também pode ser alterado, pois as personagens 
podem, por exemplo, viajar. 
Já a poesia se configura como o texto literário organizado em versos e 
estrofes, podendo apresentar ou não rimas e, quando não as apresenta, dizemos 
que tem versos livres. Há, ainda, as sílabas métricas, medida do verso da 
poesia. Nesse estilo, também surge uma preocupação maior com a sonoridade 
e com a musicalidade se comparado à prosa. Acredita-se, por exemplo, que a 
Odisseia, de Homero, texto organizado em versos que narra a volta do herói 
Ulisses para casa depois da Guerra de Troia, era, antes de se apresentar na 
forma escrita, contado de uma pessoa à outra, oralmente. Por essa razão eram 
tão importantes a sonoridade e as rimas, uma vez que facilitam a memorização. 
Sempre que você estiver lendo um poema, procure lê-lo em voz alta, pois isso 
lhe ajudará a perceber o ritmo e a musicalidade do texto. 
No poema a seguir, de Vinícius de Moraes (2018, documento on-line), 
assim como em tantos outros do músico e poeta carioca, a sonoridade é um 
elemento em intenso destaque:
Soneto da fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos12
Cada verso de um poema corresponde a uma linha. “De tudo ao meu amor 
serei atento”, portanto, corresponde a um verso. As estrofes são um conjunto 
de versos. Nesse poema, há, então, quatro estrofes: duas estrofes de quatro 
versos cada e duas estrofes de três versos cada. Essa estrutura poética, com 
um número específico de estrofes e versos, chama-se soneto, como o próprio 
título do poema de Vinícius de Moraes já indica. 
Ademais, percebemos a presença de rimas. Nas estrofes de quatro versos, 
o primeiro verso rima com o quarto e o segundo rima com o terceiro; nas 
estrofes de três versos, as rimas ocorrem diferentemente, pois o primeiro verso 
da primeira estrofe rima com o último verso da segunda estrofe, o segundo 
verso da primeira estrofe rima com o primeiro da segunda estrofe e o último 
da primeira estrofe rima com o segundo da segunda estrofe. 
Já à contagem das sílabas métricas denomina-se escansão. As sílabas 
métricas não necessariamente correspondem às sílabas gramaticais, embora 
isso às vezes aconteça. Para escandir um poema, contamos as sílabas até a 
última sílaba tônica do verso. Vamos ver como isso ocorre nos primeiros quatro 
versos do poema de Vinícius de Moraes, comparando as sílabas poéticas ou 
métricas com as sílabas gramaticais:
De/ tu/do ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/to/ 10 sílabas poéticas 
De/ tu/do/ ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/to/ 12 sílabas gramaticais
An/tes,/ e/ com/ tal/ ze/lo, e/ sem/pre, e/ tan/to 10 sílabas poéticas
An/tes,/ e/ com/ tal/ ze/lo,/ e/ sem/pre,/ e/ tan/to 13 sílabas gramaticais
Que/ mes/mo em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to/ 10 sílabas poéticas
Que/ mes/mo/ em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to/ 12 sílabas gramaticais
De/le/ se en/can/te/ mais/ meu/ pen/sa/men/to./ 10 sílabas poéticas
De/le/ se /en/can/te/ mais/ meu/ pen/sa/men/to./ 12 sílabas gramaticais
Perceba que duas ou mais vogais podem se juntar em uma única sílaba 
poética, mesmo que elas sejam morfemas de vocábulos distintos. Isso ocorre 
porque a separação das sílabas poéticas considera a sonoridade do verso e, 
muitas vezes, ao ler vogais umas ao lado das outras, juntamo-las todas em 
uma mesma sílaba poética, sem intervalos entre palavras distintas. 
Ao contrário das narrativas, o único elemento obrigatório na poesia é o eu 
lírico, a voz do poema. Nem sempre podemos delimitar tempo, espaço, enredo 
13Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos
e personagens para um poema. Muitas vezes, poesias tratam de sentimentos 
bastante abstratos e universais, sendo quase impossível situá-los ou definir 
um enredo para elas. Comparada à poesia, a prosa é muito mais concreta, 
pois apresenta ações que se desenvolvem em um dado tempo e espaço. No 
caso do poema de Vinícius de Moraes, é impossível, por exemplo, delimitar 
um espaço. A relação do eu lírico com o amor pode ter como lugar o Rio de 
Janeiro, Tóquio ou Londres. É impossível definir. 
Prosa e poesia são estilos diferentes, o que não impede que traços da mu-
sicalidade da poesia apareçam na prosa ou que traços de narração apareçam 
na poesia. Para compreendermos como isso ocorre, realizemos a leitura do 
poema de Manuel Bandeira (2018, documento on-line) a seguir:
Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da 
Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Nesse poema, há traços prosaicos de narratividade próprios da prosa. 
Isso não faz, contudo, desse texto uma prosa. Ele segue sendo poesia, pois 
se apresenta em versos e conta com um considerável grau de subjetividade e 
lirismo, característicos do gênero lírico. Dessa forma, é importante que você 
perceba que, apesar de podermos estabelecer uma fronteira entre prosa e 
poesia, essa fronteira por vezes é bastante tênue. 
Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais, formas, conteúdos e estilos14
15Obra literária: características essenciais, elementos fundamentais,formas, conteúdos e estilos
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Acesso em: 23 jul. 2018.

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