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Criminologia – Bruno Shimizu 17 Aula 01 Bibliografia: Sérgio Salomão Shecaria. Definição: Ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social. Von Liszt: A ciência penal é tripartida, não se resume ao direito penal. O campo do conhecimento das ciências penais se dividiria entre: criminologia, direito penal e política criminal. Qual a diferença entre eles? O que define um campo de conhecimento é o seu objeto e o seu método. • Objeto da criminologia: crime, infrator, vítima e controle social. • Objeto do direito penal: crime, infrator, vítima (ex. art. 59, CP) e controle social (cominação de penas). • Objeto da política criminal: crime, infrator, vítima e controle social. Logo, o direito penal, a criminologia e a política criminal não se diferenciam pelo objeto do estudo. Essas áreas do conhecimento se diferenciam pelo método: • Método do direito: Dedutivo. Há uma lei geral que se aplica ao caso. A realidade social é enxergada através da lei. • Método da criminologia: Empírico e indutivo, pois o contato com o objeto é imediato. As leis gerais da criminologia (postulados, a partir da observação da realidade) vêm em momento posterior à análise da realidade. • Método da política criminal: não tem método próprio. É estratégia de ação política orientada pelo saber criminológico (no mundo ideal), com o objetivo de alterar a realidade (evitar o crime, reduzir a violência institucional que decorre dos discursos sobre o crime, etc.). Obs. A política criminal não se resume ao poder legislativo. O poder legislativo exerce política criminal, mas não de forma exclusiva. O poder executivo também faz política criminal: ele pode e deve criar políticas públicas com impacto em estatísticas de criminalidade, na prevenção de crimes. Ex. iluminação pública em áreas com muitos assaltos e assistência a egressos. Da mesma forma, o judiciário: quando o judiciário nega a aplicação da lei, por exemplo, está fazendo política criminal (ruim). Ex. prisão cautelar quando seria cabível cautelar diversa da prisão preventiva (encarceramento em massa da pobreza). Objeto da criminologia: 1. Do crime: Para o direito penal, o crime é fato típico, antijurídico e culpável. Para a criminologia, esse conceito é insuficiente. Como ela não parte de dogmas, cada autor pode trazer um conceito diferente sobre o que seja o crime. Shecaria: nem todo o ato que o legislador faz virar crime pode ser entendido como crime em sentido criminológico. A criminologia serviria como uma barreira para demonstrar ao legislador o que pode ou o que não pode ser criminalizado, atendendo o princípio da ultima ratio / fragmentariedade. Criminologia – Bruno Shimizu 17 Segundo ele, para que algo seja considerado crime no sentido criminológico, devem estar presentes quatro elementos: a) Incidência aflitiva: o comportamento que se quer criminalizar causa alguma espécie de sofrimento a outra pessoa? Ex. lei 4888, que proíbe a utilização da expressão “couro sintético”. Isso não causa qualquer sofrimento a alguém. b) Incidência massiva: não basta que o comportamento tenha acontecido uma vez na história. O fato tem que se repetir para ser criminalizado. Ex. lei 7643/87, que proíbe a molestação de cetáceo, inspirada por um acontecimento isolado. c) Persistência espaço-temporal: é necessário que a conduta se repita ao longo do tempo e não só em uma determinada região, mas em todo o território. Ex. lei geral da copa, que traz tipos penais que protegem o “bem jurídico” FIFA, como vender produtos não autorizados pela FIFA, não respeitar as zonas de exclusão, etc. A lei tem vigência até 31.12.2014. Não existe, portanto, persistência espaço- temporal. Ela é inconstitucional, até mesmo pela violação da isonomia pela lei temporária (pessoas que praticam o comportamento no dia 31.12.2014 e no dia 01.01.2015 são tratadas de forma distinta). d) Inequívoco consenso quanto à efetividade da intervenção: para que um comportamento seja considerado crime, tem que gozar de consenso social no sentido de que a intervenção penal é relevante e desejada naquele caso. Ex. consumo de álcool. Preenche todos os três primeiros requisitos, mas não pode ser criminalizado porque inexiste o inequívoco consenso acerca da necessidade de criminalização. Quanto ao tráfico de drogas, existe um inequívoco consenso quanto à necessidade de criminalização? A criminalização não coíbe o tráfico ou o uso de drogas, e isso é bastante claro. A proibição das drogas traz efeitos deletérios e o mais apontado é de que a política proibicionista impede a efetivação de políticas de redução de danos, que funcionam em outros países. Ex. Alemanha e pessoas que possuem vício em heroína. Existe acompanhamento para que essas pessoas larguem progressivamente o uso da droga, com acompanhamento médico. Da mesma forma, afasta o usuário dos serviços de saúde, porque ela teria que confessar a conduta criminosa. Além disso, o tráfico de drogas é estimulado pela política proibicionista. Do ponto de vista criminológico, o uso de drogas talvez não devesse ser criminalizado. Obs. Aborto. A análise perpassa pelo ponto de vista da prevenção ou da proteção ao bem jurídico. Uma mulher com gravidez indesejada dificilmente deixa de fazer o aborto pela criminalização, em especial pelas classes mais altas. As mulheres mais pobres, por outro lado, recorrem a métodos que colocam suas próprias vidas em risco. O direito penal, quando traz o tipo penal do aborto, sua intenção, ao menos declarada, não é a proteção da sociedade patriarcal, mas do bem jurídico da vida. No entanto, a realidade nos mostra que a criminalização do aborto coloca em risco justamente o bem jurídico que pretende proteger. No Brasil, a cada 3 dias morre uma mulher por conta de aborto clandestino. No Uruguai, com a descriminalização, a estatística foi reduzida a zero. Será que existe um inequívoco consenso quanto à necessidade de intervenção? 2. Do criminoso: Concepções criminológicas: Algumas escolas tratam o criminoso como um ente biológico, que nasce criminoso. Ex. Lombroso. Criminologia – Bruno Shimizu 17 a pobreza é a causa dos O risco de se considerar o criminoso Fala-se também em ente sociológico (fatores sociais, como a pobreza, seriam a causa da criminalidade). Isso não é propriamente correto. A causa da criminalidade é a legislação penal; comportamentos que foram criminalizados pela legislação penal. Em regra, os crimes influenciados pela pobreza são aqueles que causam efetivamente o encarceramento. como ente sociológico é a criminalização da pobreza. Como ente jurídico, criminoso é aquele que pratica o que a lei definiu como crime. Teoria da rotulação social. A partir dessa teoria, chegamos a alguns autores críticos que dizem que o criminoso é ente político. Como ente político, levamos em consideração que o direito penal exerce funções ocultas de manutenção da dominação social, de legitimação das classes dominantes. Ex. criminalização dos movimentos sociais. É possível falar, ainda, da atuação na cracolândia. O Governo de SP se utilizou do discurso oficial de combate ao tráfico. No entanto, é óbvio que o grande traficante, aquele que efetivamente lucra, não está na cracolândia. A defensoria realizou um comparativo entre o número de presos e a quantidade de droga apreendida nos anos de 2012 e 2013. Nos dois anos, a quantidade de droga apreendida foi basicamente a mesma, mas o número de presos foi consideravelmente maior em 2013, o que demonstra a prisão em massa de usuários, por ordem da secretaria de segurança pública. Existia um viés político por trás disso, como a “higienização” da área da cracolândia, para empreendimentos imobiliários.A privatização dos presídios levou a um acréscimo muito grande do encarceramento em massa da pobreza. A ideia é sucatear o sistema público e transformar os presídios privados em uma janela de visibilidade com o objetivo de obter lucro. Como se ganha dinheiro com isso? Com o trabalho do preso, por exemplo. É comum que eles trabalhem para empresas multinacionais, costurando bolas, por exemplo. Recebem R$ 0,50 por hora trabalhada e demoram cerca de duas horas para costurar uma bola. Não há dúvidas de que se trata de trabalho escravo. A lógica do lucro, em tese, seria incompatível com o sistema punitivo. O resultado disso é o aumento da quantidade de presos, para continuar recebendo repasses e obtendo lucro. É uma lógica perversa que tende a estimular cada vez mais o encarceramento. O crime se torna algo lucrativo. 3. Da vítima: A vitimologia seria um campo de estudo da criminologia. Há quem fale que é ciência à parte. Surge em 1947 com o livro “Um horizonte novo na ciência biopsicossocial: a vitimologia”, de Benjamin Mendelsohn. Surge historicamente com a preocupação com o “holocausto” (a nomenclatura não é apropriada, porque nega o extermínio). A vitimologia critica o afastamento da figura da vítima do processo de aplicação do direito penal, quando da proibição da autotutela. O conflito é subtraído da vítima. O objetivo é afastar a vingança privada, mas não dá qualquer reparação à vítima. Isso é ruim na medida em que nosso sistema penal é puramente punitivo; a reparação do dano é uma ideia muito distante do nosso direito penal. Pesquisas de vitimização: A cifra negra é a diferença entre os crimes efetivamente ocorridos e os comunicados às autoridades. É um grande desafio para as pesquisas criminológicas (estatística/geográfica). Criminologia – Bruno Shimizu 17 A pesquisa de vitimização tem como objetivo contornar esse problema criado pela cifra negra. O cruzamento das informações leva ao descobrimento da cifra negra. Se o número de vítimas é maior que o número de crimes cometidos, chegamos aos dados da cifra. Vitimização primária, secundária e terciária: Lei 11.340/06: em termos vitimológicos, a lei retira ou dá voz à vítima? Uma mulher vítima de violência doméstica não pode retirar sua representação sem ser assistida por um advogado no âmbito de uma audiência (com promotor e juiz). Em vez de empoderar a mulher vítima de violência, a lei Maria da Penha acaba infantilizando-a. 4. Do controle social: Não se resume à repressão penal (prisão e polícia). Essas são formas desastrosas de controle social. O controle social pode ser formal ou informal. • Formal: proveniente da fonte estatal. Ex. políticas públicas, multa de trânsito. • Informal: proveniente de fonte não estatal. Ex. religião, costumes. Nascimento da Criminologia: Não existe consenso na doutrina sobre quando foi o nascimento da criminologia. Figueiredo Dias e Costa Andrade sustentam que teria sido com a publicação do livro do Beccaria (Dos Delitos e das Penas). A maioria da doutrina, no entanto, diz que que o livro é sobre filosofia, e não sobre criminologia. Shecaria e LFG: não existe um momento de nascimento especifico. É um apanhado de teorias concebidas na segunda metade do século XIX e até mesmo antes disso. A maioria dos autores veem na publicação do “O homem delinquente” o momento de nascimento da criminologia, pois foi quando Lombroso tentou compilar todas essas teorias. Obs. Escola Positiva / Positivismo Criminológico / Antropologia Criminal / Escola Positiva Italiana: Passou por três fases: ANTROPOLÓGICA (Lombroso), SOCIOLÓGICA (Ferri) e JURÍDICA (Garófalo). FASE ANTROPOLÓGICA A escola foi inaugurada por Lombroso: observação médica dos sujeitos encarcerados. As ideias principais são: • Atavismo (salto geracional de uma característica primitiva): Para Lombroso, a criminalidade é característica intrínseca do indivíduo; o criminoso é biologicamente diferente do indivíduo normal. Os caracteres criminais são herdados por atavismo (é a pré-ciência da genética). O atavismo seria o salto geracional de uma característica de um determinado antecessor. O criminoso teria herdado de algum antecessor longínquo o caractere primitivo criminoso. • Primária: a pessoa passa pelo processo de vitimização primária quando sofre a conduta típica (inclusive danos psicológicos e emocionais). • Secundária: é o sofrimento causado à vítima que decorre do próprio sistema punitivo; do contato com o sistema de justiça criminal. • Terciária: é a vitimização pelo entorno social; a estigmatização por ter sido vítima de um crime. Criminologia – Bruno Shimizu 17 • Craniometria e fisionomia: Segundo Lombroso, o primitivismo apareceria em características físicas; por isso, o método de pesquisa parte da craniometria e da fisionomia. Da mesma forma, a antropometria (medição das formas do corpo). A partir das medições, seria possível dizer se a pessoa é ou não criminosa. • Frenologia: É o estudo da forma do cérebro. • Criminoso nato • Degenerescência: O criminoso é alguém degenerado. Dentro da escala genealógica, ele se degenerou. A degenerescência se aplica também ao longo da vida do criminoso: ao longo da vida, o criminoso se degenerou. Para Lombroso, temos 3 causas para o crime (tríptico lombrosiano): • Regressão atávica; • Taras degenerativas (criminoso que vai enlouquecendo ao longo da vida); • Fatores externos (apenas como desencadeantes): a ocasião faz o furto, o criminoso nasce feito. Os outros dois grandes autores da Escola Positiva são o Enrico Ferri e o Raffaele Garófalo. FASE SOCIOLÓGICA Enrico Ferri (sociologia criminale) entendia que a responsabilidade moral deveria ser substituída pela responsabilidade social. A razão de punir seria a defesa social. A marca dessa fase é o determinismo social; a criminalidade como consequência direta da pobreza. Elabora uma classificação quíntupla dos criminosos: ➢ Natos ➢ Loucos (alienados) ➢ Ocasionais: têm moralidade apenas um pouco abaixo da do cidadão comum. ➢ Por hábito adquirido: é aquele que poderia ser normal (não herdou tantas características primitivas pelo atavismo), mas acaba, pelo meio, sendo voltado à prática de crimes. ➢ Passionais: pode ser qualquer um. Promoveu estudos de criminologia teórica e criminologia aplicada: a) Criminologia teórica: MULTIFATORIAL. Negava o livre arbítrio da escola clássica, explicando o crime como determinado por uma série de fatores criminógenos, os quais, combinados entre si, propiciam uma classificação dos delinquentes. Uma novidade em seu pensamento era a inserção de fatores exógenos (ligados ao meio físico e social) como explicação do comportamento criminal. Classificou os criminosos em “tipos de autor”: natos, alienados, habituais, de ocasião e passionais. b) A criminologia aplicada de FERRI era fundada na ideia de periculosidade, prevendo “medidas de defesa social” correspondentes a cada tipo de autor. Fala em substitutivos penais (medidas alternativas à prisão) e na necessidade de se individualizar a aplicação de todas as medidas. IMPORTÂNCIA: Ferri influenciou a formulação do sistema “duplo binário” no Codice Rocco (Itália, 1930), que previa a cumulação de penas e medidas de segurança; sistema este adotado pelo Código Penal brasileiro de 1940 até a Reforma da Parte Geral em 1984. Influenciou, ainda, na formulação de diversos procedimentos típicos da execução penal, tais como a “classificação”, o “exame” e a lógica da periculosidade perpassando todo o sistema de justiça. FASE JURÍDICA Criminologia – Bruno Shimizu 17 Garófalo: cunhou o termo da temibilidade, que seria a probabilidade de uma pessoa cometer um crime. Para ele, o criminoso nunca seria normal (se aproxima mais de Lombroso). Para Ferri, por outro lado, ninguém seria totalmente normal, daí a possibilidade de qualquerum cometer crime passional (certa mitigação do pensamento de Lombroso). O grau de temibilidade de Garófalo deu origem ao nosso grau de periculosidade. Fundamental em sua teoria foi o conceito de delito natural, o qual seria a “violação dos sentimentos médios de piedade e probidade”, estas como ‘substrato moral’ a justificarem a repressão às condutas desviadas, relativos à repugnância por ações cruéis, ao respeito pelo outro, e assim por diante. Fortemente influenciado por C. Darwin e H. Spencer, indica uma concepção evolucionista de senso moral, o qual seria transmitido hereditariamente, associando as noções de raça e civilização. Pensamento fortemente racista e ligado ao colonialismo. [Apostila CEI]. Representa uma evolução da ideia de Lombroso: o senso moral é transmitido hereditariamente. O crime é um reflexo do senso moral defeituoso. No Brasil, tivemos o Raimundo Nina Rodrigues, como seguidor do Lombroso. “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”. Para ele, não fazia sentido ter um só sistema jurídico no Brasil, diante da existência de diversas raças. A mestiçagem seria a causa da criminalidade. Os mestiços poderiam ser de três classes: superiores, comuns e degenerados (que seria o criminoso de Lombroso). Assim, deveriam existir três códigos penais distintos. “Coletivizou” o conceito originariamente individual de “criminoso nato”, associando a herança criminógena de Lombroso à mestiçagem do povo brasileiro. Crítica: O estudo da escola positiva não é propriamente do criminoso, mas do preso. Não existe um grupo de controle de pessoas criminosas que não foram presas, o que se mostra sua maior falha metodológica. Os presos sempre foram os pobres ou imigrantes, e como conclusão dos estudos, seriam os pobres e os imigrantes aqueles teoricamente propensos à prática de crimes. A Escola Positiva surge, portanto, como forma de legitimação da escravidão, da punição, do Estado, do poder e da violência das classes historicamente marginalizadas. Aula 02 (Continuação) Do ponto de vista metodológico, a grande falha que se aponta é que o estudo recai sobre o prisioneiro, e não sobre o criminoso. Não existe um grupo de controle (criminosos que não foram presos). Opositor contemporâneo do Lombroso: Gabriel Tarde. Para ele, assim como qualquer ato, o ato criminoso é um ato aprendido. O criminoso não nasce assim, mas aprende a delinquir, pelo seu convívio social. Ele não aponta a seletividade do direito penal nem a ausência do grupo de controle, mas diz que o que Lombroso identifica como fenótipo é, na verdade, o que o criminoso aprendeu ao longo da vida. Trabalha com a categoria do tipo profissional criminoso. ESCOLAS DO CONSENSO: Shecaria: o nascimento da criminologia marca um período que não seria científico, mas semicientífico do estudo da criminologia. Não seria possível reconhecer a escola positiva como uma escola científica. A partir de agora vamos analisar as escolas que foram efetivamente científicas. Criminologia – Bruno Shimizu 17 As escolas do consenso são aquelas de viés mais conservador: partem do princípio de que o crime representa um desvio social. O ato criminoso é ato desviado das regras da sociedade, que são criadas de forma autopoiética (criadas a partir das próprias relações de convivência e sociabilidade dentro de uma determinada comunidade – a sociedade cria as regras; e o crime se determina pelo desvio em relação a essas regras). São escolas mais conservadoras porque tendem a legitimar o status quo; dão legitimidades às regras. É o que se chama de funcionalismo, na sociologia. É a ideia de que o direito é um sistema fechado, que se cria a partir das próprias relações sociais. As escolas do conflito, por outro lado, partem da visão sociológica do marxismo. Para Marx, as regras não são criadas pela própria comunidade. A pergunta fundamental é: Por que as pessoas cometem crimes? (Paradigma etiológico – causas do crime) As escolas do conflito têm pergunta fundamental distinta: Por que determinadas classes de pessoas são selecionadas pelo sistema penal em detrimento de outras? Por que os lugares de onde vêm as pessoas que cometem crimes são sempre os mesmos? (Paradigma da Reação Social) As escolas do conflito tiram o foco do criminoso e o focam nas agências de controle. Obs. É importante notar que as escolas criminológicas não podem ser colocadas em uma linha do tempo com períodos determinados. Elas, na verdade, se sobrepõem. Como exemplo, é possível encontrar livros, ainda hoje, com claras inspirações lombrosianas. A. Escola de Chicago / Ecológica ou Arquitetura Criminal: Esses postulados criminológicos nasceram em Chicago. O foco das pesquisas está na conformação das cidades (ecológica / arquitetura criminal). Os autores estudam, principalmente, a forma como as cidades se organizam e a influência dessa (des)organização na incidência maior ou menor de crimes. Chicago teve um crescimento populacional imenso em um pequeno espaço de tempo, por conta do fluxo de imigrações. O crescimento se deu de maneira absolutamente desordenada, com o surgimento de diversos guetos (enclaves de proteção: de negros, de holandeses, etc.), que não se comunicam entre si. Entre 1920 e 1933, vários estados dos EUA começam a editar as leis secas, sendo que a de Chicago é uma das mais rígidas, com proibição a bares, prostituição, álcool, jogo, entre outros. Todo esse mercado ilegal acaba sendo explorado pelos guetos, que não têm qualquer ligação com a ética protestante americana das elites brancas locais. Resultado: surgimento das máfias e de uma criminalidade bastante difundida. Os professores da universidade de Chicago resolvem pesquisar o motivo de a criminalidade ser tão elevada. Dividiram a cidade em 4 zonas concêntricas. Chegaram à conclusão de que a grande concentração criminal estava na zona mais central. O número de crimes por habitante era consideravelmente menor nas periferias, que acabam funcionando como zona de exclusão da elite detentora dos meios de produção. Nas zonas mais centrais estavam os operários (imigrantes empobrecidos que acabaram se organizando nos guetos). As elites foram expulsas do centro. Esse tipo de conformação social desorganizada faz com que existam locais abandonados no centro da cidade; os espaços organizados estavam nas zonas periféricas. Em termos sociológicos, as causas da criminalidade para esses pesquisadores seriam basicamente duas: Criminologia – Bruno Shimizu 17 A política criminal para combater essas causas perpassa pela criação de centros de convivência na cidade, de espaços de lazer, pela mistura de imóveis residenciais e comerciais dentro do mesmo bairro, iluminação pública, distribuição das pessoas pelo espaço, etc. Quanto à perda das raízes, os pesquisadores da Escola de Chicago resgatam, por exemplo, a ideia do escotismo, com o objetivo de trazer as pessoas do ambiente urbano para o ambiente rural, para que sua cultura seja valorizada. Da mesma forma, falam na valorização do blues nas igrejas (música gospel), entre outras maneiras de valorização da cultura dos imigrantes. Problemas: Não deixa de ter o viés conservador das escolas do consenso. Inicialmente, a cifra negra faz com que a criminalidade compreendida pela escola de Chicago seja apenas aquela comunicada às instâncias de poder. Os crimes também acontecem na zona 4 (periférica), mas permanecem na cifra negra. Assim, o que se entende por crime na escola de Chicago são os crimes cometidos pelas camadas pobres da sociedade, fazendo com que se torne uma escola estigmatizante: o crime é relacionado diretamente à pobreza. Além disso, a ideia de desorganização social é muito contestável: organização social seria a forma de conformação urbana desejada pelas elites brancas. Não necessariamente a organização dentro de um cortiço é ruim; trata-se apenas de uma formade organização própria daquelas camadas da população, com a criação de regras próprias, que se aplicam àquele espaço de convivência. É visão preconceituosa, etnocêntrica, do que se entende por organização social. Essa ideia pode ser aplicada na sociedade de hoje: a comunidade destinatária de políticas públicas de habitação deve ser ouvida no que diz respeito às suas necessidades. A forma de sociabilidade, de organização, deve ser aquela desejada pelo destinatário da política de habitação, e não a desejada pelos realizadores dessa política. Obs. Documentário LEVA. Youtube. Ocupação Mauá. B. Teoria da Associação Diferencial (aprendizagem): Edwin Sutherland (1883 – 1950). Tem muita influência da Escola de Chicago, mas tece críticas contundentes a ela, na medida em que deixa de explicar a criminalidade do colarinho branco. Parte dos postulados da Escola de Chicago para tentar explicar o crime como uma realidade total, independentemente de ser praticado por ricos ou por pobres. Sutherland contrapunha o crime do colarinho branco e o crime do macacão azul (operários). Sua outra influência é o Gabriel Tarde (o criminoso aprende a ser criminoso – leis da imitação e atos aprendidos). Contexto histórico: 1929 e quebra da bolsa de NY. A partir de 1929, houve uma grande reformulação na política econômica dos EUA (Walfare State – New Deal): as políticas econômicas poderiam ser cíclicas ou anticíclicas (essas últimas ficam a cargo do Estado, que deveria interferir ativamente na economia, para evitar a ocorrência da crise). A intervenção do Estado na economia dá origem à criminalidade econômica: trustes, carteis, sonegação fiscal, fraudes, evasão de divisas. Com a intervenção, o direito penal passa a ter que se preocupar com o que acontece na economia; esse passa a ser um dos papéis do Estado. • A perda das raízes pela migração; e • A desorganização urbana e social. Criminologia – Bruno Shimizu 17 Sutherland resgata a ideia de que toda conduta é uma conduta aprendida. A convivência em uma determinada comunidade ensina padrões de conduta às pessoas. Quanto maiores as associações, maior vai ser o fluxo de aprendizagem. Ex. igreja, família, escola. A associação diferencial vai ser aquela em que as definições favoráveis à violação da norma superem as definições desfavoráveis à violação da norma. Existem associações diferenciais tanto nas classes baixas como nas classes altas. Pontos principais: 1. O comportamento criminal é um comportamento aprendido; 2. É aprendido mediante a interação com outras pessoas em um processo comunicativo; 3. A maior carga de aprendizagem se dá nas relações sociais mais próximas; 4. O aprendizado inclui a técnica do delito, além da própria justificação e motivações do ato; 5. Surge o delinquente quando as definições favoráveis à violação da norma superam as desfavoráveis. Obs. Justificação do ato: é a justificativa que o indivíduo dá para os próprios atos criminosos, o que também é aprendido nas associações diferencias. Crítica: não estuda as formas de punição e seleção dos sujeitos criminalizados, bem como a violência do sistema penal. Continua sendo estigmatizante dizer o que é ou não uma associação diferencial. Por que não é possível chamar de facção criminosa qualquer grupo onde se constata a prática de crime, como por exemplo a Igreja? Por que essa alcunha só é dada a organizações como o PCC, composta de pobres carcerizados? C. Teoria da Anomia: Os principais representantes são o Durkheim e o Robert Merton. Émile Durkheim (fundador da sociologia) cunhou o termo anomia para designar uma situação de falta de objetivos sociais e ausência de normas. Enfraquecimento da consciência coletiva. Para Durkheim, o que faz uma sociedade ser uma sociedade é a existência de uma consciência coletiva: conjunto de valores, de formas de agir e pensar que conformam o funcionamento de uma determinada sociedade. Essas formas de agir e pensar são processos comuns a todas as pessoas da sociedade. Em termos individuais, o crime é um desvio do conteúdo da consciência coletiva; são fatos que se distanciam da consciência coletiva. Em termos sociais, no entanto, o crime não é patológico em si. Ele diz que nas sociedades primitivas, a solidariedade seria mecânica (todo mundo faz tudo igual); nas sociedades mais complexas, a solidariedade seria orgânica: cada um faz uma coisa, cada um faz parte de um grupo distinto da sociedade (médicos, professores, garçons, etc.). Esses grupos interagem entre si da mesma forma que os órgãos do nosso corpo interagem entre eles. O crime não seria um mau funcionamento da solidariedade orgânica; ele é normal. O problema existe quando a taxa de crimes dentro da sociedade é grande o suficiente a ponto de colocar em risco a consciência coletiva. A anomia não se dá pela prática de um crime ou outro, mas quando elas começam a ser desconfirmadas: a sociedade passa a ser um aglomerado de pessoas. O crime individual teria duas funcionalidades: Criminologia – Bruno Shimizu 17 Ex. a homossexualidade era considerada conduta criminosa, e passou a ser considerada uma manifestação normal da sexualidade saudável. Era um crime que ocorria muito, mas não destoava tanto da consciência coletiva. Com a repetição, é possível que a conduta seja abarcada pela consciência coletiva. Por outro lado, se o crime destoa muito da consciência coletiva, ele acaba causando um recrudescimento da consciência coletiva. Dependendo do fato e da distância que ele esteja da consciência coletiva, ele pode dar plasticidade à consciência coletiva ou provocar seu recrudescimento. Robert Merton: a anomia se dá quando os modos não conformistas de adaptação à sociedade superarem os modos conformistas. Cria uma tipologia dos modos de adaptação à sociedade a partir de dois conceitos: • Metas culturais: são as metas da sociedade capitalista, patriarcal. • Meios institucionais / institucionalizados: posse de um aparato econômico, educacional e familiar que proporcione isso. Modo conformista de adaptação à sociedade: a pessoa absorveu as metas culturais e possui os meios institucionalizados (considerados legítimos). Modos não conformistas: Retraimento: algumas pessoas não absorvem as metas culturais e não possuem os meios institucionais. Essas são as pessoas que não possuem os meios, mas também não têm interesse nas metas culturais. São as pessoas em situação de retraimento. Ex. pessoas em situação de rua, loucos. Ritualismo: Algumas pessoas não possuem as metas culturais, mas possuem os meios institucionais. São os burocratas, que acabam se satisfazendo sem alcançar as metas culturais. Inovação: Algumas pessoas, por outro lado, possuem as metas culturais, mas não têm os meios para chegar a essas metas. Esses seriam os criminosos, que tentam atingir as metas culturais sem possuir os meios institucionalizados. Crítica: Isso não explica problemas como os crimes de colarinho branco. Rebelião: Há um outro modo não conformista em que as pessoas têm parcialmente as metas culturais e parcialmente os meios institucionalizados. Trata basicamente dos movimentos revolucionários e da contracultura. A pessoa entende as metas culturais, mas ao mesmo tempo não concorda com essas metas e pretende a mudança da sociedade. * Anomia: a situação de anomia é verificada quando os modos não conformistas (retraimento, ritualismo, inovação e rebelião) superam o modo conformista. Crítica: quando se fala em metas culturais, estamos diante de metas impostas pelas classes superiores às classes mais baixas. Merton (i) não contesta as bases culturais, bem como (ii) não considera as distorções dos mecanismos penais de controle (violência institucionalizada), além de (iii) não contemplar os crimes de colarinho branco. Além disso, tem afinidade teórica com a visão funcionalista da sociedade (aquela que funcionacomo um todo, orgânico ou mecânico, sem foco no conflito). • Dar dinamicidade/plasticidade à consciência coletiva, alterando seus padrões (ex. homossexualidade); ou • Recrudescer a consciência coletiva. Criminologia – Bruno Shimizu 17 D. Teoria das subculturas delinquentes: Albert Cohen. Essa teoria tem os olhos voltados para as gangues de jovens norte-americanos. É a criminalidade subcultural. Resgata algumas ideias de Merton, trazendo o foco para o caráter falsamente meritocrático da sociedade capitalista. Trabalha na ideia de que a sociedade norte-americana é branca, anglo-saxônica e protestante (WASP). Os donos da sociedade são os membros da sociedade WASP, que representa a minoria da sociedade norte- americana. Existem grupos grandes de pessoas fora desse padrão aceito, e que têm oportunidades sociais extremamente reduzidas. Isso conflita com a ideologia de meritocracia do capitalismo (se você se esforçar, você consegue vencer na vida). Os jovens dos grupos excluídos recebem a ideia de que não conseguem vencer na vida porque são fracassados, mas isso não corresponde à realidade; ele não consegue vencer porque não recebeu as condições para isso. Essa ideia de que a culpa do fracasso é exclusivamente do fracassado cria uma dor psíquica muito grande ao excluído. Cohen: a formação de gangues vem como uma defesa psíquica (“formação reativa”) contra o sofrimento da dor do fracasso. Esses adolescentes submetidos à situação de exclusão encontram outros jovens que passaram pelo mesmo processo, para que se convençam, juntos, de que não valorizam aquelas metas que um dia almejaram alcançar (“nem queria mesmo”). As subculturas aderem aos valores da classe média pelo polo negativo. Ex. pequenos furtos, pichação, vandalismo: significam uma tentativa de se convencer da ausência do valor da propriedade. Quando o adolescente pratica um pequeno furto, isso não significa que ele deseja aquele bem, mas que ele está tentando se convencer de que ele não valoriza a propriedade, que ele não possui. Nessas subculturas, aquele que se porta de maneira mais inadequada tem maior visibilidade. Não se confunde com a contracultura (rebelião de Robert Merton), que nega a cultura posta. A subcultura, por outro lado, reproduz os valores pelo seu polo negativo. A delinquência subcultural tem três principais características: (i) O prazer perverso, inclusive inconsciente. (ii) O não utilitarismo: ela não se presta a fins materiais, mas a uma satisfação psíquica. (iii) Negatividade: adesão aos valores culturais, pelo seu polo negativo (se a criança rica tem a propriedade, a criança pobre vai negar a propriedade; se a criança rica tem o quarto arrumado, a criança pobre vai pichar). Obs. Documentário “Pixo”. ESCOLAS DO CONFLITO: Obs. Sociologia Marxista: Marx entendia que a análise da sociedade poderia ser feita a partir de uma divisão das relações econômicas sociais entre uma superestrutura e uma infraestrutura. Na infraestrutura estariam todas as relações de troca e produção. A circulação de riquezas está aqui. O modo de produção capitalista funciona a partir de duas classes: os proprietários dos meios de produção e os possuidores da força de trabalho. Dentro de uma sociedade industrial, é essencial que se tenham os meios de produção, que propiciam uma competitividade muito maior que a simples força de trabalho. A relação Criminologia – Bruno Shimizu 17 entre os proprietários e os possuidores da força de trabalho ocorre da seguinte forma: o operário vende sua força de trabalho para o capitalista, que o remunera mediante o pagamento de um salário. O salário deve ser dosado no sentido de ser a menor remuneração possível para a otimização da produção do capitalista. Trata-se, na verdade, de uma apropriação da força de trabalho, porque o salário é menor que o valor da força. A diferença entre a força de trabalho e o salário é a mais-valia. Corresponde ao valor da força de trabalho que está sendo apropriada pelo proprietário dos meios de produção. É a partir desse enriquecimento pela mais-valia que o capitalista reforça a sua dominação. A dominação dos capitalistas sobre a massa explorada se mantém por meio da superestrutura: cristalizações / institucionalizações da ideologia. A ideologia, para Marx, é uma falsa percepção da realidade. É importante que a massa explorada não tenha a visão real de como funcionam esses mecanismos de apropriação de riqueza. Os membros da massa explorada não podem achar que são pobres porque estão sendo explorados, mas que se continuarem sendo explorados, um dia serão proprietários dos meios de produção. Esse tipo de alienação se dá pela superestrutura (discursos que se fazem sobre a economia). Marx fala em uma cortina de fumaça, que cria falsas percepções da realidade para a classe expropriada. A ideologia tem algumas formas de cristalização / institucionalização. Dentre elas, a filosofia, a religião e o direito. O objetivo do direito – sobretudo o direito penal –, para ele, é manter as bases do capitalismo, manter a estrutura da dominação. Dentro dessa visão, é difícil que continuemos a estudar o criminoso. Parece que não faz sentido estudar o porquê de aquela pessoa ter cometido um crime, quando a própria definição do que é crime é arbitrária: o que o direito penal quer é manter as formas de transmissão do patrimônio. Ex. crime de furto é punido mais gravemente do que o crime de dano. O que o CP protege não é o patrimônio, mas a sua forma de transmissão. O dano inutiliza o bem; o objeto furtado pode ser recuperado. Aquele que causa dano não quer o bem para si; ele nega as bases do capitalismo. Da mesma forma, não parece fazer sentido que o crime de redução à condição análoga a escravo seja punido de forma bem mais branda que o crime de extorsão mediante sequestro (hediondo). O primeiro é praticado por ricos contra pobres, além de servir ao capitalismo (!); o segundo é praticado pelo pobre contra o rico. Por que o sistema penal escolheu punir esses crimes dessa forma? Aulas 03 e 04 - Continuação - As escolas do consenso partem do princípio de uma matriz sociológica funcionalista (as normas surgem na sociedade por autopoiese – o que define estudar uma sociedade é estudar o seu funcionamento, e não necessariamente as relações de poder existentes nela). As regras surgem quase que naturalmente, a partir da convivência entre aquelas pessoas. É uma abordagem mais conservadora, porque não enxerga o conflito existente entre os estratos da sociedade (luta de classe, segundo as teorias marxistas). As escolas do consenso trazem como pergunta fundamental da criminologia: por que as pessoas cometem crimes? As escolas do conflito alteram a pergunta para: Por que determinados atos e pessoas são criminalizados? Criminologia – Bruno Shimizu 17 Trata-se da mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social. As escolas do consenso não questionam o poder posto. Quando se parte de um enfoque menos conservador, essa pergunta deixa de fazer sentido, porque o foco passa ao aparelho repressor do Estado. Não é mais papel do criminólogo tentar descobrir por que pessoas infringem determinadas normas. O que se deve perguntar é: por que as instâncias de controle escolhem criminalizar determinados atos e determinadas pessoas em detrimento de outras? Os criminólogos do conflito não se preocupam com o criminoso individualmente considerado, mas com as estruturas de poder e com os modos de seleção e punição. Diz-se que as escolas do conflito questionam a existência de uma realidade ontológica no delito (realidade das coisas, da existência do conflito), passando a entender o delito como uma entidade originalmente jurídica. Do ponto de vista ontológico, o que faz com que condutas completamente diferentes (matar uma pessoa, cortar uma arvora,roubar um objeto, por exemplo) sejam alvo do mesmo tratamento pelo Estado? São condutas que têm origem distinta, praticadas por pessoas distintas, em contextos distintos. O que faz com que o tratamento seja igual é a mera opção do legislador, que optou por defini-las como crimes, atribuindo a elas a mesma reposta (penalização, principalmente a imposição de uma pena de prisão). Os autores da escola do conflito não tratam o crime como uma realidade do plano das coisas, mas como uma escolha que o legislador faz para levar determinadas parcelas da população ao cárcere. Essa conclusão parte da teoria da reação social (ao lado da teoria marxista, a segunda grande fundamentação teórica das escolas do conflito). Contexto histórico: Final dos anos 50, início dos anos 60. Guerra do Vietnam. Movimento beatnik e hippie. Timothy Leary populariza o LSD (questiona-se a criminalização das drogas). Pacifismo. Feminismo. Martin Luther King e Malcolm X – Panteras Negras. América Latina – resistência às ditaduras. Enfim, é a percepção mais clara de que o poder posto muitas vezes não é algo que se coloca como o melhor para uma sociedade. A contracultura começa a questionar o poder posto, e se começa a ter um novo olhar sobre o ato desviante. Também na sociologia, se começa a questionar de forma mais incisiva os critérios para dizer que ato é desviante e que ato não é desviante. O que há de conteúdo político nessa rotulação que faz determinado ato ser considerado desviante? Labelling Approach (abordagem do etiquetamento, enfoque do etiquetamento, interacionismo simbólico ou teoria da rotulação social, da reação social): Esse enfoque surge, na sociologia, a partir da publicação do livro “Outsiders (studies in the sociology of deviance)” – Howard S. Becker (1963). Criminologia – Bruno Shimizu 17 não é o fato de um ato ser mais lesivo socialmente o que faz com que ele seja sofre consequências muito visíveis do ponto de vista social Desenvolve a tese de que nenhum ato é essencialmente desviante; o desvio é criado por um rótulo imposto pelos “gestores morais” – classes dominantes culturalmente, elites políticas e Estado. Como sua análise partiu de grupos de jazz e usuários de maconha, a conclusão a que chegou é que, a partir do momento em que se tem uma classe dominante, que ouve música clássica e considera aqueles que escutam jazz diferentes, a criminalização recairá sobre os comportamentos dessa segunda classe, que serão considerados desviantes. A análise passa a recair sobre os fatores políticos e ideológicos envolvidos no processo de criminalização. No nosso CP/40, por exemplo, temos a criminalização do dano, mas não da demissão em massa. A conclusão a que se chega é que considerado criminoso. Uma pedrada em uma janela ou o furto de um celular não são atos mais lesivos do que a demissão em massa em uma grande empresa. No entanto, o que se criminaliza são os dois primeiros comportamentos. A questão é que quem pratica a demissão em massa é o detentor dos meios de produção, e não o detentor da força de trabalho. Quando existe a criminalização, previsão em lei, o que se constata é a baixa efetividade. Não se é preso por conta de crimes econômicos, em regra. Até o julgamento do mensalão, não havia ninguém encarcerado no Brasil por esse tipo de crime. São elementos políticos, que devem ser analisados a partir da mudança do enfoque da criminologia dos “bad actors” para os “powerful reactors”. Outros autores: Kai T. Erikson; Edwin Lemert; Edwin Schur; Erving Goffman (“Manicômios, Prisões e Conventos” e “Estigma”). Conceitos oriundos do enfoque do etiquetamento: - Profecia autorrealizável: o estigma molda a pessoa a partir da identidade social virtual. A partir do momento em que uma pessoa é rotulada como desviante, há uma alteração identitária nela própria; ela . O que se entende é que, dentro desses esquemas de relações sociais, a partir do momento em que uma pessoa é rotulada como desviante, isso faz com que ela passe por uma modificação importante na sua própria identidade, fazendo com que ela se afaste da sociedade. A pessoa tende a se comportar de acordo com o rótulo que é colocado sobre ela. A deterioração da identidade é um dos efeitos sofridos pelo rótulo. Isso é muito comum com pessoas com problemas mentais que são internadas em manicômios; a internação faz com que o quadro se agrave, com que a pessoa passe a comportar de acordo com a expectativa social de loucura que se coloca sobre elas. É muito comum, por exemplo, que pessoas internadas comecem a se portar como loucas quando chegam pessoas de fora. Obs. Ver documentário “Casa dos Mortos”. No âmbito criminológico, esses conceitos coincidem com a ideia de institucionalização ou prisionização (Donald Clemmer). É o efeito da prisão sobre a identidade da pessoa. Nos presídios, por exemplo, os próprios presos se chamam de “ladrão”; é a INTERAÇÃO COM O RÓTULO. Por isso, um dos nomes que se dá ao etiquetamento é “interacionismo simbólico”; é a interação da pessoa com o símbolo que se coloca nela a partir do exterior. Criminologia – Bruno Shimizu 17 - Mergulho no papel desviado: tem a ver com a ideia da profecia autorrealizável. A pessoa rotulada acaba mergulhando no papel desviado. Modelo explicativo de “carreira criminal” a partir do etiquetamento social (Edwin Schur): A ideia de carreira criminal também é muito encontrada no labelling approach: a criminalidade acaba sendo vista como uma carreira, no sentido de que existe uma sucessão de eventos que fazem com que determinada pessoa se torne criminosa (não como aquele que praticou o ato, mas aquele que foi assim rotulado / selecionado pelo poder punitivo): 1. Delinquência primária: pessoa é acusada ou pratica ato que foi classificado como desviante pelas instâncias de poder / gestores morais. 2. Resposta ritualizada, que provoca estigmatização. 3. Distanciamento social e redução de oportunidades. 4. Surgimento de uma subcultura delinquente com reflexos na autoimagem. 5. Estigma decorrente da institucionalização. 6. Delinquência secundária (comportamento de acordo com a profecia, retornando ao início da carreira criminal). Erving Goffman: “Estigma (nota sobre a manipulação da identidade deteriorada”: trabalha com os conceitos de identidade social real e identidade social virtual. IDENTIDADE SOCIAL REAL é como a pessoa efetivamente se coloca dentro das suas interações sociais. IDENTIDADE SOCIAL VIRTUAL é a identidade que se atribui a uma pessoa pelo seu entorno social. Ainda que não sejam coincidentes, normalmente as pessoas não estigmatizadas de maneira proeminente são vistas da maneira como se apresentam. Em relação às pessoas estigmatizadas, existe uma diferença muito grande entre a identidade social real e a identidade social virtual, porque não importa como essa pessoa se comporta nas suas relações sociais; a visão do entorno social sobre essa pessoa não vai se alterar. Os estigmas podem ser visíveis (pessoas com deficiência) ou menos visíveis (homossexualidade, antecedente criminal), mais administráveis pelas pessoas, que tentam escondê-los. “Manicômios, Prisões e Conventos”: estuda as instituições totais (aquelas instituições nas quais o indivíduo interno pratica todos os seus atos da vida social). A ideia da institucionalização reforça o estigma. Desenvolve a tese de que o principal efeito da instituição total sobre o indivíduo é a “mortificação do Eu”; o despojamento da pessoa de todas as suas características pessoas – da sua identidade social real – e a assunção de uma identidade conformada pela própria instituição. Nessas instituições, a pessoa não tem direito sequer ao chamamento nominal (Obs. A LEP garante o chamamento nominal, mas isso não é respeitado), o corte de cabelo é igual (ex. na fundação casa, raspa-se o cabelo detodos os meninos), os horários são iguais para todos. O manicômio não promove a cura. Goffman faz uma analogia com uma oficina de carros; essa lógica é colocada nas instituições totais de maneira falsa. O que se fala é que a internação vai promover a cura e depois a pessoa volta. No entanto, essa cura nunca vai ocorrer; a pessoa não vai sair dali, muito menos curada. Sabe-se que a ressocialização/cura não vai ocorrer. É a visão alienante de que o desvio (como realidade ontológica) seria curado; na verdade, o estigma só vai ser aprofundado nessas instituições. Criminologia – Bruno Shimizu 17 Essas ideias possibilitam o surgimento das teorias críticas, que têm duas grandes vertentes. O conceito de criminologia crítica é controverso dentre os autores criminólogos. Há quem diga que é qualquer criminologia das escolas do conflito, quem diga que seriam apenas aquelas de vertente marxista, ou só as derivadas do labelling approach, etc. A criminologia crítica nasce na Inglaterra, a partir de dois livros: Ian Taylos, Paul Walton e Jock Young – “A nova criminologia” (1973) e “Criminologia Crítica” (1975). Esses autores enxergam no direito penal uma forma de manutenção da exploração de uma classe sobre a outra; trazem a abordagem marxista à criminologia. Antecedente: Já havia quem fizesse essa abordagem de esquerda na criminologia, a exemplo de George Rush e Otto Von Kichheimer (“Punição e Estrutura Social” – 1939): Desenvolveram a ideia de que os sistemas punitivos não têm relação direta com a criminalidade de uma sociedade, mas com o sistema de produção, econômico; o sistema penal se adequa à lógica do mercado. Dizem que em todos os períodos históricos de excedente de mão de obra, o sistema penal é mais cruel, com o objetivo de reduzir essa mão de obra. A partir do momento em que a mão de obra começa a ficar mais escassa, isso é acompanhado de um direito penal mais “””humanista””” (ex. peste negra). A função do direito penal e do encarceramento seria a criação de exército de reserva; a pessoa que é presa e depois é solta, sofre uma perda de oportunidades muito grande. O egresso não vai ser contratado por ninguém, mas desempenha papel de exército de reserva. São pessoas que não têm condição de serem absorvidas pelo mercado, mas ainda assim atuam como exército de reserva. [Exército de reserva (teoria marxista): contingente de pessoas que garantem o baixo valor do salário, ou seja, a apropriação máxima da mais valia. O que abaixa o salário das pessoas empregadas é a existência de muitos desempregados]. Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young (1975): propõem a revisão dos fatos criminalizados, para a descaracterização do direito penal como forma de manutenção da exploração das classes proletárias. Dizem que o direito não é uma ciência, mas uma ideologia; e o crime deveria ser entendido, desde uma ótica de esquerda, como os atos de exploração. É uma proposta radical, mas não abolicionista; entendem que o direito penal deveria ser tomado pela classe proletária, para que fosse colocado como instrumento de redução das desigualdades sociais, no sentido da defesa dos direitos humanos em sentido socialista (aqueles que decorrem dos valores matrizes da igualdade e segurança social). É o que se convencionou chamar de “neorrealismo de esquerda”: a solução para o crime consiste na transformação revolucionária e na eliminação da exploração do homem pelo homem. Proposta: criminalização dos atos que proliferam a exploração (colarinho branco, crimes econômicos e ambientais) e minimalização da repressão penal sobre as classes exploradas. Tentam mudar a definição do crime. O crime teria uma conotação burguesa (aquilo que está na norma) e o objetivo seria partir para uma definição proletária do crime, que seriam aqueles atos que reforçam a exploração de classe, que violam os direitos humanos em sentido socialista. Haveria a criação de uma nova criminalidade e a diminuição da velha criminalidade de massa (furto, roubo e pequenos traficantes). O direito penal deveria punir os atos de exploração, e não as classes proletárias. Criminologia – Bruno Shimizu 17 É o que se convencionou chamar de criminologia crítica em sentido mais estrito: é o neorrealismo de esquerda. No Brasil, Juarez Cirino (1975) escreveu o livro “A Criminologia Radical”. Vertentes abolicionistas: Entendem a proposta de criminalização de novos atos como uma proposta incoerente. Segundo os abolicionistas, o neorrealismo de esquerda seria um projeto fadado ao fracasso. Thomas Matinsen: A política do abolicionismo (1974). O direito é instância de manutenção da exploração e nunca vai ser usado como forma de redução das desigualdades sociais. De fato, a proposta de tomada do direito penal pelas classes proletárias não é explicada pelos neorrealistas de esquerda; não se fala como isso ocorreria. O próprio Cirino, quando trata do conceito proletário de crime (qualquer ato que viole os direitos humanos em sentido socialista, assim entendidos aqueles que tratam de igualdade e segurança social) e do conceito burguês de crime (tudo que está previsto na lei), diz que para que se puna um ato que viole direitos humanos em sentido estrito, formalidades (como, por exemplo, a ausência de inscrição legal de um determinado tipo) não poderiam ser vistas como obstáculos à punição. O que ele diz, basicamente, é que a taxatividade não seria um princípio dentro desse direito penal da criminologia radical. É o que surgiu no direito penal soviético, extremamente autoritário. Essa proposta, então, se mostra historicamente como uma proposta que não dá certo (o direito penal nunca foi usado como instrumento de redução das desigualdades sociais), como também abre espaço para a hipertrofia do sistema penal, bem como a investidas autoritárias. Essa é a crítica dos abolicionistas: A REVOLUÇÃO NÃO PODE SER FEITA POR MEIO DO DIREITO PENAL. Louk Hulsman e Jacqueline Bernat de Celis (1982): “Penas Perdidas”. Não fazem remissão expressa ao marxismo, mas ao enfoque da rotulação social. Eles dizem que o que entendemos como crime são situações- problema que não podem ser tratadas como se fossem fruto de um mesmo conflito. O que se está dizendo é que o direito penal se presta não à solução de conflitos, mas a categorizar situações problemáticas como crime. A partir daí, temos o sequestro do conflito pelo Estado e isso encerra o processo gerado a partir dele, mas não resolve a situação-problema. O direito penal transforma o conflito em processo e resolve o processo, deixando o conflito em aberto e fechando os olhos para ele. Em um trecho do livro, ele diz: “Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça”. Isso vai mais ou menos ao encontro das propostas de justiça restaurativa. Propõe que a lógica punitiva/retributiva (pena como resposta) seja substituída pela lógica de restauração, seja a restituição de eventual dano material, seja a restauração das relações sociais rompidas (mais difícil e mais importante). Dentro dessa lógica, não existe uma necessidade de punição que não por um inconsciente do entorno social; satisfaz um desejo de vingança (desejado pela sociedade), mas não é útil, na medida em que não traz restauração; não entrega o que promete. Ele promete a resolução dos conflitos, mas na verdade sequestra o conflito das vítimas e impede a resolução de outra maneira. Nils Christie (1966): Surge como abolicionista, mas hoje se considera minimalista. Analisa do ponto de vista da teoria marxista o ganho econômico que advém da exploração do crime no imaginário popular; é a ideia de Criminologia – Bruno Shimizu 17 isomorfismopenal segurança privada, de privatização, de exploração da mão de obra do preso. Estuda de que forma o criminoso se coloca como um ativo do ponto de vista econômico; como uma circunstância de quanto mais crime existe, mais lucro há para determinados setores. Não propõe a tomada do direito penal pelas classes proletárias, mas a abolição do sistema penal. Foucault: é um pensamento extremamente complexo, e uma das grandes bases do que se pensa hoje sobre criminologia. Ele não é expressamente abolicionista, mas seu pensamento se aproxima muito mais do pensamento abolicionista. Ele critica a lógica marxista que reduz os conflitos sociais à economia; diz que o poder tem uma autonomia que não se pode resumir à economia. Até o século XVII, a prisão não era uma pena autônoma, mas uma custódia, que durava até o momento do julgamento, com a efetiva aplicação de pena. A pena se dava por meio do suplício. No “vigiar e punir”, ele começa descrevendo uma pena aplicada no século XVII. Depois, relata o dia a dia de uma prisão da virada do século XIX para o século XX. O tratamento do crime, em menos de 200 anos, muda radicalmente: a prisão passa de instrumento de custódia para grande instrumento do controle do crime. Ele chama de independentemente do crime praticado. : a pena é uma só, Foucault constata que nesses 200 anos houve, dentro da lógica social, uma transformação da economia do poder (que não tem a ver com a economia monetária do Marx, mas com uma forma de se estudar o poder). No antigo regime, na época dos suplícios, havia uma dimensão negativa do poder, de destruição do corpo do outro. A simbologia era que, de um lado, havia o rei, que tinha direito a tudo, inclusive ao corpo dos seus súditos e, de outro lado, o réu não tinha poder nem em relação ao seu próprio corpo. É um poder vertical que destrói o corpo do outro. A prisão funciona a partir de uma lógica com dimensão positiva: o poder não destrói o corpo do indivíduo, mas constrói, molda o corpo do indivíduo. O corpo do indivíduo é produto do poder, e a prisão é um dispositivo disciplinar nesse sentido. A lógica punitiva parte do poder disciplinar: dinâmica positiva de transformação do corpo do outro. Na prisão, instituição disciplinar por excelência, verificam-se táticas para o bom adestramento; a pessoa que entra na prisão é adestrada, e isso provoca alterações no corpo e na identidade da pessoa. São três as táticas: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. Vigilância hierárquica: o fato de se sentir em constante vigilância altera substancialmente a identidade da pessoa e o seu próprio corpo, na medida em que ela vai se adestrando por conta do olhar do outro. A prisão inverte a lógica do espetáculo: em vez de um público assistindo o ator, há um possível ator assistindo o público. Foucault critica o modelo do Panóptico: aquele modelo de prisão em que se vê tudo; a pessoa se sente vigiada 100% do tempo. Segundo a lógica utilitarista, isso garantiria o bom comportamento nas prisões. A ideia de destruir o corpo do indivíduo se transforma para conformar o corpo do indivíduo, por meio de uma “ortopedia social”. Sanção normalizadora: o castigo não se dá na forma de simples punição, mas na repetição pela via do exercício. Isso acontece nas escolas, que também são dispositivos do poder disciplinar: o aluno está 100% do tempo vigiado pelo professor e, se ele erra, ele repete o exercício até acertar. É a repetição do comportamento esperado. Se, a partir da vigilância hierárquica, se constata o desvio, a sanção será a repetição até a exaustão. Nas academias militares, desmonta-se e monta-se o fuzil de forma repetitiva, por exemplo. Criminologia – Bruno Shimizu 17 Exame: esmiúça-se a intimidade daquela pessoa, a partir de um outro saber que faz com que se possa ver naquela pessoa coisas que o leigo não pode ver. É o caso do exame criminológico. Ele não tem a menor explicação científica, mas é uma forma de conhecer o indivíduo para além da sua intimidade; uma forma de saber coisas que as pessoas em geral não sabem. Ex. no exame criminológico, pergunta-se se o preso tinha enurese noturna durante a infância. São dados aleatórios, mas que invadem a intimidade do indivíduo e pretendem dizer algo sobre ele. Para Foucault, a prisão não transforma o preso no estereótipo do cidadão de bem, mas é uma fábrica que transforma infratores em delinquentes (do ponto de vista social). O modo de agir é conformado de uma forma tão gravosa, que a pessoa se comporta de acordo com o estereótipo do delinquente; o preso se comporta cada vez mais como preso. Ex. falar “senhor” ao final das frases, responder “ciente”, etc. O delinquente é útil e dócil; a prisão dociliza a pessoa, transformando a infração em delinquência (o delinquente não vai contra a estrutura do poder). Foucault fala em “genealogia do poder”. Segundo ele, o poder é passível de análise que não a econômica. Ele não identifica a ideia de poder com a ideia de Estado (o poder emana do povo e o Estado é aquele que tem o monopólio legítimo da violência). Foucault desvincula a ideia de poder da ideia de Estado; ele estuda as franjas do poder: prisão, escola, família, manicômio, fábrica. São instituições que ficam nas margens do poder e não têm relação direta com o Estado. A análise fiel do poder não depende dos discursos produzidos pelo Estado (discurso humanizador), mas das práticas de poder e dos discursos que se constroem nos dispositivos que ficam à margem do poder. O direito não é o que vai garantir as malhas de poder. Fala em contra direito: o carcerário não é o jurídico. O modo como o direito se aplica na prática, nas relações de poder, é um modo completamente diferente do que os discursos que os aplicadores do direito têm sobre o direito. Estudar a instituição da prisão não é estudar o direito penitenciário, mas o que sustenta a existência da prisão. Isso está numa região sombria, extraoficial. A ideia é que estudando o direito, ninguém conhece a prisão. Foucalt foge daquela ideia de que o poder se exerce em uma estrutura piramidal (de cima para baixo). Para ele, o poder é muito mais complexo do que isso: se exerce como uma malha. Ex. o mesmo pai de família que exerce o controle sobre a sexualidade da mulher é o oprimido dentro da fábrica. Isso significa que o poder não é algo que se detém, mas algo que se exerce. Ele também foi conformado para se tornar um sujeito útil e dócil e um funcionário padrão. Isso mostra que a ideia da luta de classes é alienante, na medida em que não permite explicar as relações de opressão que existem para fora da fábrica. O poder se exerce de forma autônoma. Além disso, ele não se exerce sozinho, mas na forma do binômio saber-poder. A produção de discursos produz verdades, e o objetivo da resistência é produzir contra verdades. Novas tendências da Criminologia: É o que se tem pensado ultimamente, sobretudo a partir dos anos 2000. ➢ Do ponto de vista da direita: São pesquisas, em geral, norte-americanas, que surgiram a partir da psicologia social. São legitimadoras da hipertrofia do direito penal, na punição de pequenas infrações para que as grandes não ocorram. Neorrealismo de direita, law and order, “broken windows”. Criminologia – Bruno Shimizu 17 Todo e qualquer delito deveria ser punido, porque evitaria que grandes delitos ocorressem. Janelas quebradas: a pesquisa é interessante, mas foi transportada de forma bizarra para a política criminal. Isso não funcionou na prática; não houve redução de criminalidade, mas o aumento estrondoso da população prisional. A ideia de punir as pequenas infrações, aliada à seletividade do sistema penal, fez com que houvesse encarceramento em massa da pobreza e das classes marginalizadas. Existe uma clientela preferencial do direito penal; e foram essas pessoas as criminalizadas.Obs. A Suprema Corte condenou ano passado a Califórnia a reduzir sua população carcerária. Crítica: Zaffaroni (em busca das penas perdidas): todo mundo comete crime; toda a população pode ser punida várias vezes. Se a lei fosse aplicada da maneira como ela se propõe, todos nós deveríamos estar presos. Se toda a população deveria estar presa, isso significa que o direito penal não foi bem construído. Além disso, abre margem para que as forças policiais (primeiro filtro da seletividade penal) possam escolher quem vai estar preso e quem não vai; é uma escolha política. Todo preso é um preso político, porque houve uma escolha para manter aquela pessoa presa. Os atos mais lesivos à sociedade acabam não sendo punidos. Isso fica muito claro no cotejo entre a redução à condição análoga à de escravo e a extorsão mediante sequestro. Desde a produção da lei até o policiamento ostensivo, tudo isso passa por filtros de seletividade, que não se encontram no direito, mas no contradireito. Se fosse pelo direito, estaríamos todos presos. Por esse motivo, os crimes patrimoniais são aqueles que mais provocam o encarceramento. O que se tem que descobrir/investigar é por que a pessoa foi selecionada; e não por que cometeu crime. Se todas as pequenas infrações fossem de fato punidas, toda a sociedade estaria encarcerada. Fica claro, portanto, que essas políticas de direita não abandonam a seletividade. Direito penal do Inimigo: Jakobs. Eliminação física de determinadas classes de pessoas – considerados inimigos, que rompem o pacto social. Quem são esses inimigos? São aqueles que já se enquadram no perfil da clientela preferencial do direito penal. ➢ Do ponto de vista da esquerda David Garland: Cultura do Controle (2001). Loïc Wacquant: Prisões da Miséria (1999). Relacionam o encarceramento em massa com a política neoliberal (desmonte do Estado de bem-estar social). A partir da implementação das políticas neoliberais, o movimento abstencionista do Estado cria uma situação de miséria. Na Inglaterra, por exemplo, havia pouquíssimas pessoas em situação de rua antes do neoliberalismo de Margareth Tatcher. As pessoas que dependem dos serviços públicos e da assistência social acabam indo para a miséria. O gueto – para onde são empurradas as pessoas que compõem a clientela preferencial do sistema penal – passa a não ser mais suficiente para garantir a contenção social dessas classes. A partir do momento em que acaba o controle pelo oferecimento do mínimo existencial (o que não deixa de ser uma forma de controle social), o controle passa a ser feito pelo fortalecimento do estado penal. Criminologia – Bruno Shimizu 17 Para esses dois criminólogos, a função da prisão é varrer para baixo do tapete essas pessoas miseráveis. Fala-se no Estado como um centauro; cabeça liberal e corpo de cavalo. Essa relação existente entre o sistema penal e a economia, no sentido de ser o direito penal um fator de contenção das demandas sociais, faz com que todas as ideologias RE (ressocialização, reintegração, etc), que viam alguma função na pena, sejam abandonadas. A função do direito penal atualmente é a função incapacitação: inoquização do indivíduo indesejado. A ideia do direito penal é afastar aquelas pessoas tidas como excedentes, do ponto de vista populacional. Se antes pensávamos que as prisões serviam para manipular o exército de mão de obra de reserva, agora os indivíduos sequer são vistos como pessoas, mas como um objeto indesejado, que deve ser varrido (política higienista). Criam-se bolsões de miséria para retirar da sociedade aquilo que não é desejado. Isso fica muito claro no RDD, que sequer finge trazer algum bem para o sentenciado, que não tem qualquer direito (nem ao menos declarado). Zygmunt Bauman: o criminoso é o “consumidor falho”, que não interessa à sociedade de consumo. Deve ser retirado das vistas da sociedade pós-moderna, porque é a constatação do fracasso da própria sociedade de consumo. Isso fica muito claro quando se resume a cidadania ao direito do consumidor, por exemplo. A ideia é que a cidadania se afere pelo consumo. Essa lógica se coloca inclusive na esfera política; as eleições se dão como um produto de marketing. Aquele que não se adequa deve ser retirado das vistas da sociedade. --x-- - Criminologia Clínica: “estudo do fenômeno criminal por meio do exame da personalidade do culpado” (Benigno Di Tullio). É o estudo individual sobre a pessoa no curso da execução da pena. É possível fazer a seguinte analogia: o estudo das escolas sociológicas – o que vimos até agora – é o estudo da floresta, ao passo em que o estudo da criminologia clínica seria o estudo da árvore. É vista principalmente como um saber médico-psicológico, mas não necessariamente. A ideia do saber médico-psicológico é ideia conservadora em relação à criminologia clínica. É possível identificar 3 modelos de criminologia clínica (Alvino Augusto de Sá): 1º: Médico-psicológico: Trata o delito como uma doença; desvio individual. A intervenção no indivíduo se daria a partir de um diagnóstico e o respectivo “tratamento penitenciário”. Essa vertente vê o crime como desvio psíquico, identitário, e trabalha com a classificação dos criminosos em categorias. Considera o crime como uma realidade ontológica. Obs. Psicopatia. É um diagnóstico psiquiátrico que se faz a partir da análise do comportamento do indivíduo; não é um conceito neurológico. Não existe um diagnóstico clínico de observação empírica de desfuncionalidades orgânicas que levem à psicopatia. Não é discurso fisiológico. Esse diagnóstico hoje está na classificação internacional de doenças (CID-10) e no manual médico diagnóstico (DSM-4), que são as duas classificações importantes de doenças. É o transtorno de personalidade antissocial (TPA). O DSM-4 traz alguns roteiros para o diagnóstico da psicopatia, com requisitos altamente subjetivos. Não existe uma base biológica. O que se faz é transformar em patologia alguns conflitos sociais. Não há consenso na psicologia sobre a existência desse transtorno. O problema é que esse discurso legitima qualquer coisa, Criminologia – Bruno Shimizu 17 inclusive a construção de unidades suplementares de saúde, para onde vão adolescentes problemáticos (Champinha). O que ocorre é a manipulação ideológica do conceito de psicopatia, o que legitima qualquer tipo de tratamento diferenciado. O exame criminológico é fruto da vertente médico-psicológica da criminologia clínica. Parte de um paradigma causal de motivação criminal (etiológico), como se o crime tivesse uma causa. Existem dois tipos: - Art. 34, do CP e Art. 8º, da LEP. Exame de entrada. É sempre obrigatório no regime fechado, o que se estende ao semiaberto. É o exame para fazer a classificação da pessoa, com o objetivo de elaborar o plano individualizado. Esse exame nunca foi feito, mas continua vigente na lei. - Art. 112, LEP: previa o exame criminológico de progressão. Foi alterado pela lei 10.792/2003. Como o exame de entrada nunca foi feito, o exame de saída não tinha parâmetro de cotejamento. Sempre foi utilizado como forma de atrasar a soltura do indivíduo. Em 2003, foi retirada da LEP essa previsão. Hoje, a única previsão legal é a do exame de entrada. A alteração legal não agradou o MP e o Judiciário. A partir daí, foi editada a SV n. 26. SV n. 26: Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. S. 439, STJ: Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada. Como o exame criminológiconão tem embasamento científico, devemos sempre dizer que a motivação da decisão que determina o exame é inidônea. Resolução 12/2011, do Conselho Federal de Psicologia: entende que o exame criminológico é charlatanismo. Revogou a resolução 9/2012, que proibia expressamente o exame criminológico, cedendo à pressão do MP. A resolução 12 não fala expressamente em exame criminológico, mas é o que ela descreve. Art. 4º, §1º, da Resolução 12: Na perícia psicológica realizada no contexto da execução penal ficam vedadas a elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinquente. O exame é realizado com base em um tripé: (i) diagnóstico criminológico; (ii) prognóstico de reincidência; (iii) tratamento penitenciário. O exame analisa a personalidade do delinquente a partir do delito, e não o delito a partir da personalidade do delinquente. Na sistemática da LEP, o exame deveria ser feito no COC (centro de observação criminológica – um dos estabelecimentos penais previstos pela LEP). Como siso não existe, em geral, quem faz o exame é a própria equipe da unidade prisional. O psicólogo que deveria dar suporte ao preso e a sua família – que teria que respeitar o sigilo profissional – é quem faz o exame. Isso cria uma desconfiança do preso em relação à equipe técnica e impede a prestação de assistência psíquica eficaz. Obs. Augusto Thompson: o crime tem duas causas – a legislação penal e a repressão penal. Criminologia – Bruno Shimizu 17 2º: Psicossocial: Abandona o paradigma causal, mas não completamente. Esse novo modelo, chamado moderno, parte de um paradigma multifatorial de motivação criminal; ele não teria uma causa, mas vários fatores. Surge a substituição do tratamento penitenciário pela ideia da ressocialização. A ressocialização significa a absorção por parte da pessoa presa dos valores da classe média. A ética do trabalho é um valor feito contra aquela pessoa, mas ressocializar significa docilizar alguém de classe economicamente inferior para aceitar os valores impostos. 3º: Modelo Crítico: A criminologia clínica, a partir do advento das teorias da rotulação social, sofre um impacto muito grande, porque se o crime não tem uma realidade ontológica, mas definitorial, não faz sentido que se tenha um profissional para descobrir a causa do crime a partir da análise da pessoa. A causa do crime está no fato de ele e sua conduta terem sido rotulados como criminosos pelos gestores da moral. Zafaroni: sugere uma saída para a criminologia clínica; é o que chama de clínica da vulnerabilidade. O crime não tem realidade corpórea, mas a prisão tem. Ela formaliza uma exclusão e marginalização social que já existia antes. A pessoa é selecionada pelo sistema penal porque, de alguma forma, ela é vulnerável àquele sistema penal (vulnerabilidade psíquica, social). Ela se enquadra no perfil de clientela preferencial do direito penal. A partir daí, Zafaroni propõe que a criminologia sirva como auxilio à pessoa presa, para tentar reduzir o quadro de vulnerabilidade que fez com que ela fosse selecionada pelo sistema penal, e que é aprofundado pela experiência prisional. O objetivo é minorar os efeitos deletérios da pena, a partir do empoderamento da pessoa. Baratta: a reintegração social tem como alvo a sociedade como um todo. O preso faz parte da sociedade; é uma forma de sociabilidade dentro da sociedade. Não se deve enxergar o preso como fora da sociedade; ele também é a sociedade. A reintegração social é algo que não se conforma com a pena, e tenta minorar seus efeitos, sem abandonar a luta política para que a pena não exista mais. A coculpabilidade e a culpabilidade por vulnerabilidade são duas ideias do Zafaroni. Coculpabilidade: Parcela da culpa pelo ato lesivo é da própria sociedade. O cenário externo favorece a prática do delito. Toda a criminalidade de massa encontra na coculpabilidade uma tese de defesa, seja para atenuar ou para isentar de pena o indivíduo. O juiz deve analisar o quanto do ato é responsabilidade da pessoa e o quanto é do entorno social. Culpabilidade por vulnerabilidade: Aquele que se enquadra no estereotipo do delinquente é mais facilmente capturado; aquele que não se enquadra tem que praticar um ato mais grosseiro para que seja capturado. Para alguém que não é vulnerável, a prisão só ocorre quando a culpabilidade é muito grande. Para os vulneráveis, qualquer culpabilidade já gera a prisão. O homem branco de classe médio tem que agir ostensivamente para ser preso; o homem negro, jovem e pobre tem uma maior propensão de ser aprisionado. Zafaroni propõe a ideia de que a culpabilidade por vulnerabilidade seja utilizada como atenuante, para corrigir essa injustiça. Aulas 05 e 06 Polícia Militar e Repressão: A própria existência de uma polícia militar é uma contradição. Em todos os lugares do mundo, existe a percepção de que a polícia é uma coisa, as forças armadas, outra. Criminologia – Bruno Shimizu 17 Policiar é um termo que vem de Polis (civilizar). O termo “civil" vem de civitas, e também se refere ao que está dentro da Polis. Militar é o oposto de civil; militar é aquele que combate na guerra. No Império Romano, as organizações militares – que defendiam a cidade contra os povos ditos bárbaros – eram sediadas fora dos limites da Polis. Essas organizações não podiam entrar na Polis sem a autorização da cidade. Simultaneamente, existia uma força de segurança interna, com a função de garantir alguma paz social. No Brasil, o primeiro modelo de uma polícia militar foi criado em 1809, um ano após a vinda da família real. Por um decreto real, foi criada a divisão militar da guarda real da polícia. Qual o motivo dessa criação? É criado esse aparto de segurança que fica no interior da cidade, mas com táticas para combater o inimigo externo. A cidade do Rio, no início do Séc. XIX, tinha população composta por 50% de escravos e negros alforriados. Eram os inimigos externos; o estado assumiu para si a função de capitania do mato. Quem desmantelava as comunidades quilombolas eram os capitães do mato, funcionários dos senhores de escravo. Quando chegamos em um contexto em que metade da população é composta por negros, a função é absorvida pelo próprio Estado. Os negros não eram considerados cidadãos – inimigos externos, portanto – mas estavam dentro dos muros da Polis, diferentemente dos bárbaros. Até hoje isso continua ocorrendo. O Brasil é um dos países com a maior letalidade pela polícia – se não a maior. Por isso, fala-se que existe sim pena de morte; o que não há é o devido processo legal. Obs. Rota 66 (Caco Barcelos): a PM, entre 1970 e 1992, teria matado cerca de 8000 pessoas. Dentro desse corte, a maioria é composta pelos vulneráveis ao sistema de repressão penal. Crimes de maio/2006: ataques do PCC. Depois desses ataques, houve uma ofensiva muito grande por parte de grupos de extermínio da polícia militar, em especial na capital paulista e na baixada santista. O CRM/SP calculou que houve 493 mortes por arma de fogo no ESP entre 12 e 20 de maio de 2006. De todas essas mortes, há denúncia de participação de policiais em pelo menos 388 casos. 5 anos depois, a Universidade de Harvard e a ONG justiça global publicaram um relatório chamado São Paulo sob Achaque (“São Paulo Sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006”), que identificou a participação de grupos de extermínio da PM nos inquéritos de mais de 100 casos. Todos os 388 casos foram arquivados a pedido do MP, com anuência do poder judiciário. Além disso, houve uma postura institucional do MP em relação a essas mortes: ofício de elogio pela atuação da polícia, subscrito por cerca de 20 promotores atuantes na Barra Funda na área criminal. O modus operandi dos ataques foi o mesmo: passava um carro