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DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE PROFESSOR (A): COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 2 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 SUMÁRIO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO EM DEFICIÊNCIA AUDITIVA E SURDEZ: CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................4 A EDUCAÇÃO DE PESSOAS SURDAS E O AEE..................................... .......7 O APARELHO AUDITIVO E A AUDIÇÃO................................................15 DO PATOLÓGICO AO CULTURAL NA SURDEZ: PARA ALÉM DE UM E DE OUTRO OU PARA UMA REFLEXÃO CRÍTICA DOS PARADIGMAS.........20 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 20 "A PALAVRA 'CADEIRANTE' EU NÃO CONSIGO ASSIMILAR, MAS 'SURDO' EU ESTOU MAIS ACOSTUMADO" ............................................... 21 "O PROFESSOR ESTÁ MUITO PRESO AOS PADRÕES CULTURAIS DOS OUVINTES" .................................................................................................. 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 40 O PONTO DE VISTA DE PAIS E PROFESSORES A RESPEITO DAS INTERAÇÕES LINGUÍSTICAS DE CRIANÇAS SURDAS........................46 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 46 MÉTODO ...................................................................................................... 53 RESULTADOS E DISCUSSÃO .................................................................... 55 CONCLUSÕES ............................................................................................. 61 ESTUDO DE PLANEJAMENTO E DESIGN DE UM MÓDULO INSTRUCIONAL SOBRE O SISTEMA RESPIRATÓRIO: O ENSINO DE CIÊNCIAS PARA SURDOS...............................................................................................66 SOBRE A EDUCAÇÃO DE SURDOS ........................................................... 66 SOBRE A OPÇÃO METODOLÓGICA .......................................................... 70 RESULTADOS E DISCUSSÕES .................................................................. 72 CONCLUSÕES ............................................................................................. 81 file://///192.168.0.4/Materiais/PÓS%20GRADUAÇÃO%20INE/MATERIAL%20NOVO%20INE/47.%20LIBRAS%20PARA%20PROFESSORES%20E%20INTÉRPRETES%20-%20INE/MATÉRIAS/DEFICIÊNCIA%20AUDITIVA,%20SURDEZ%20E%20AEE.docx%23_Toc410662698 file://///192.168.0.4/Materiais/PÓS%20GRADUAÇÃO%20INE/MATERIAL%20NOVO%20INE/47.%20LIBRAS%20PARA%20PROFESSORES%20E%20INTÉRPRETES%20-%20INE/MATÉRIAS/DEFICIÊNCIA%20AUDITIVA,%20SURDEZ%20E%20AEE.docx%23_Toc410662698 file://///192.168.0.4/Materiais/PÓS%20GRADUAÇÃO%20INE/MATERIAL%20NOVO%20INE/47.%20LIBRAS%20PARA%20PROFESSORES%20E%20INTÉRPRETES%20-%20INE/MATÉRIAS/DEFICIÊNCIA%20AUDITIVA,%20SURDEZ%20E%20AEE.docx%23_Toc410662699 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SURDAS .............................................................................. 91 DIRETRIZES DA WCAG 2.0 (2008) E A SURDEZ ....................................... 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 94 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................97 REFERÊNCIAS BÁSICAS ............................................................................ 97 REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES ......................................................... 98 ANEXOS..............................................................................................108 file://///192.168.0.4/Materiais/PÓS%20GRADUAÇÃO%20INE/MATERIAL%20NOVO%20INE/47.%20LIBRAS%20PARA%20PROFESSORES%20E%20INTÉRPRETES%20-%20INE/MATÉRIAS/DEFICIÊNCIA%20AUDITIVA,%20SURDEZ%20E%20AEE.docx%23_Toc410662716 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A deficiência auditiva acontece quando alguma das estruturas da orelha apresenta uma alteração, ocasionando uma diminuição da capacidade de perceber o som. Geralmente, o deficiente auditivo se comunica pela fala e apresenta uma perda auditiva de grau leve ou moderado. A surdez também é ocasionada por alguma alteração nas estruturas da orelha, ocasionando uma incapacidade em perceber o som. Geralmente o surdo se comunica por meio da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e apresenta uma perda auditiva de grau severo ou profundo. A deficiência auditiva e a surdez apresentam características bem diferentes, porém ambas ocasionam uma limitação para o desenvolvimento do indivíduo. Consideramos que a audição é fundamental para a aquisição da linguagem falada e sua deficiência pode ocasionar muita dificuldade nas relações sociais, psicológicas e na interação. A audição desempenha um papel principal e decisivo no desenvolvimento e na manutenção da comunicação por meio da linguagem falada, além de funcionar como um mecanismo de defesa e alerta contra o perigo que funciona 24 horas por dia, pois nossos ouvidos não descansam nem quando dormimos. As pessoas com surdez são extremamente visuais, o que favorece o domínio de uma linguagem visual-espacial. Também é importante considerar as pessoas que apresentam resíduo auditivo e que, portanto, carecem de estímulos dessa natureza (FIOCRUZ, 2009). A Deficiência auditiva é considerada como a diferença existente entre o desempenho do indivíduo e a habilidade normal para a detecção sonora de acordo com padrões estabelecidos pela American National Standards Institute (ANSI – 1989). INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 5 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Considera-se, em geral, que a audição normal corresponde à habilidade para detecção de sons até 20 dB N.A (decibéis, nível de audição) (FIOCRUZ, 2009). Além dos limites e possibilidades das pessoas com surdez, estas ainda tem que conviver com o problema do preconceito! Segundo Damázio (2007), as pessoas com surdez enfrentam inúmeros entraves para participar da educação escolar, decorrentes da perda da audição e da forma como se estruturam as propostas educacionais das escolas. Muitos alunos com surdez podem ser prejudicados pela falta de estímulos adequados ao seu potencial cognitivo, sócio afetivo, linguístico e político-cultural e ter perdas consideráveis no desenvolvimento da aprendizagem, portanto, a inclusão do aluno com surdez deve acontecer desde a educação infantil até a educação superior, garantindo-lhe, desde cedo, utilizar os recursos de que necessita para superar as barreiras no processo educacional e usufruir seus direitos escolares, exercendo sua cidadania, de acordo com os princípios constitucionais do nosso país. Segundo Alvez; Ferreira e Damázio (2010), a construção de um caminho pedagógico para o Atendimento Educacional Especializado – AEE – para pessoas com surdez, numa perspectiva inclusiva, com base em princípios decorrentes dos novos paradigmas, tem encontrado dificuldades para se efetivar, em virtude de problemas relacionados a decisões político-filosóficas, pedagógicas, metodológicas e de gestão e planejamento da escola brasileira. Elas esclarecem que o ato educativo relativo ao contexto da escola para o aluno com surdez, no que diz respeito ao cotidiano pedagógico, precisa ser redirecionado, construindo novas e infinitas possibilidades que levem este aluno a uma aprendizagem contextualizada e significativa, valorizando seu potencial e desenvolvendo suas habilidades cognitivas, linguísticas e sócio afetivas. Não há dúvidas que o AEE, como um lócus epistemológico da educação inclusiva, constitui-se numa proposta voltada aos alunos com surdez que visa a preparar para a individualidade e a coletividade, provocando um processo dialógico, de superação da imanência e a busca de mudanças INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 6 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 sociais, culturais e filosóficas. Uma ruptura de fronteiras para as infinitas possibilidades humanas. Pois bem, nosso ponto de partida, vistotratarmos do AEE para deficiência auditiva, será a audição, o aparelho auditivo, o diagnóstico e classificação da deficiência auditiva. Na sequência, falaremos um pouco sobre as pessoas com problemas auditivos, a sua educação e a participação da família nesse processo. Uma vez que o objetivo da apostila é justamente aprofundar no Atendimento Educacional Especializado (AEE), este será definido e abordaremos o AEE para pessoas com surdez, AEE em LIBRAS e para o ensino da Língua Portuguesa, além de falarmos das salas de recursos e do papel do intérprete/tradutor. Para tanto, iniciaremos nosso estudo, analisando as mais recentes publicações cientificas, sobre o tema, transcrevendo, integralmente, diversos artigos publicados pelas mais renomadas revistas cientificas do país. Ao final do módulo, além da lista de referências básicas, encontram-se outras que foram ora utilizadas, ora somente consultadas, mas que, de todo modo, podem servir para sanar lacunas que por ventura venham a surgir ao longo dos estudos. INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 7 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 A EDUCAÇÃO DE PESSOAS SURDAS E O AEE Segundo pesquisa de Costa e Soares (2010), para obter uma aprendizagem escolar, é preciso primeiramente relacionar-se com o outro, integrar-se ao convívio social. Então, cabe ao professor fazer essa relação de integração do aluno surdo com os demais colegas de turma para que haja um bom relacionamento entre ambos. O papel da família é fundamental no processo de inclusão, pois é de suma importância que ela prepare o seu filho para conviver fora do seio familiar e faça o acompanhamento no desempenho do ensino/aprendizagem. Quanto ao professor, seu papel é fundamental numa sala de aula principalmente se esta incluir alunos com necessidades especiais, pois precisa ter toda uma preparação psicológica e de formação para lidar com esse público trabalhando a interação e a inclusão no ambiente escolar. Existem duas principais filosofias educacionais em relação aos surdos, que são refletidas no comportamento da sociedade para com os mesmos: 1. ORALlSMO, que defende o aprendizado apenas da língua oral; 2. BILlNGUISMO, que defende o aprendizado da língua oral e da língua de sinais, reconhecendo o surdo na sua diferença e especificidade (FERREIRA BRITO, 1993). Na prática do oralismo, o objetivo é aproximar o surdo na forma máxima possível do modelo ouvinte, por meio da aprendizagem da língua, sendo esta analisada como instrumento de integração social e de aprendizado global e da comunicação. Sua proposta incide sobre a “recuperação” da pessoa surda, denominada de deficiente auditivo; seguindo critérios clínicos. Já na análise do bilinguismo, a língua é considerada um meio para o desenvolvimento do ser em seu todo, capaz de propiciar a comunicação das pessoas surdas com os ouvintes, bem como com seus pares, além de desempenhar também o papel de suporte do desenvolvimento cognitivo. Segundo Bernardino (2000, p. 29), o bilinguismo considera que a língua oral não preenche todas essas funções, sendo imprescindível o aprendizado de uma língua visual sinalizada desde tenra idade, possibilitando INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 8 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 ao surdo o preenchimento das funções linguísticas que a língua oral não preenche. Assim, as línguas de sinais são tanto o objetivo quanto o facilitador do aprendizado em geral, assim como do aprendizado da língua oral. Essas línguas, diversas das línguas orais, têm estrutura própria e são codificadoras de uma “visão de mundo” específica, sendo constituídas de uma gramática própria, apresentando especificidades em todos os níveis (fonológico, sintático, semântico e pragmático), apesar de parecerem utilizar princípios gerais, nas estruturas subjacentes, semelhantes aos das línguas orais. Sabe-se que, para os surdos, a sua língua primária, de caráter natural, é a língua de sinais, e a segunda, em nosso País, a língua portuguesa. Porém, segundo Skliar (1997, p.153), estatísticas internacionais apontam que somente 4% ou 5% das crianças surdas são filhas de pais também surdos, tendo, então, um acesso natural a esse bilinguismo pelo contato com a língua de sinais, sendo esse acesso efetuado por meio das interações comunicativas com os seus pais surdos, mesmo estando inseridos em uma comunidade majoritária que é ouvinte. A maioria das crianças surdas, portanto – de 95% a 96% –, não tem a mesma possibilidade que as que são filhas de surdos. Elas crescem e se desenvolvem dentro de uma família formada em sua totalidade por ouvintes, que geralmente desconhecem ou rejeitam o uso da língua de sinais. Precisamos entender que há uma diferença entre língua e linguagem! Lyons (1987 apud QUADROS, 2006) define linguagem como sendo um sistema de comunicação natural ou artificial, humano ou não. Nesta perspectiva, é qualquer forma utilizada com algum tipo de intenção comunicativa incluindo a própria língua. Tratada em uma ordem meramente linguística, pode-se compreender a língua como um sistema linguístico de infinitas frases de forma altamente criativa. Em uma perspectiva de ordem social, a língua é compreendida como parte constitutiva da identidade individual e social dos seres humanos (BAGNO, 2003, p.16-17). Nesta perspectiva, somos a língua que falamos e não somente usuários da mesma. INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 9 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Para tanto, faz-se necessário percorrer uma análise do contexto histórico pelo qual se processou a língua. Isto significa dizer que é necessário considerá-la como uma atividade social, como “um trabalho empreendido conjuntamente pelos falantes toda vez que se põem a interagir” fazendo com que a interpretação da língua seja uma atividade humana, uma interação social (BAGNO, 2003, p.19). Nesta visão linguística interacionista, alicerçado em um resgate histórico, temos hoje, juridicamente, o conceito da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, como, a forma de comunicação e expressão, com o sistema linguístico de natureza visual-motora, e estrutura gramatical própria que constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002). De acordo com Felipe (2005), os sinais surgem da combinação dos seguintes parâmetros: a) configuração das mãos – são formas das mãos, que podem ser da datilologia (alfabeto manual) ou outras formas feitas pela mão predominante, ou pelas duas mãos do emissor ou sinalizador, b) ponto de articulação – local em que se faz o sinal, podendo tocar alguma parte do corpo ou estar em um espaço neutro; c) movimento – os sinais podem ter um movimento ou não; d) orientação/direção – os sinais têm uma direção com relação aos parâmetros acima; e) expressão facial e/ou corporal – as expressões faciais ou corporais são de grande importância para o entendimento real do sinal, sendo que a entonação em Língua de Sinais é feita pela expressão facial. Há ainda a observação do uso pelas pessoas surdas em suas interações. Quadros (2006, p. 21) define-os como sinais que utilizam um INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 10 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 conjunto específico de configurações de mãos para representar objetos incorporando ações. Tais classificadores são gerais e independem dos sinais que identificam tais objetos. É um recurso bastante produtivo que faz parte das línguas de sinais. Sacks (1998) afirma que as línguas de sinais são completas em si mesmas: possuem sintaxe, gramática e semântica própria, têm, porém,um caráter diferente do de qualquer língua falada ou escrita. Segundo o autor, não é possível transliterar uma língua falada para língua de sinais palavra por palavra ou frase por frase, isto porque as suas estruturas são essencialmente diferentes. Registros históricos do surgimento da Língua de Sinais no mundo não trazem ainda, oficialmente, dados concretos. Sabe-se da existência de um registro iconográfico do ano de 1579, com a representação de um alfabeto digital, em uma gravura em madeira extraída da obra de “Cosmas Rosselius” em Veneza. Segundo historiadores, o uso do alfabeto manual durante as aulas por pessoas surdas se deu no século XVII, na Espanha. Os monges também faziam uso desse tipo de comunicação nos mosteiros, por causa do voto do silêncio, e passaram a ensinar o alfabeto dos surdos. Em seguida, na França, Abade L’Epée, ao fundar uma classe para pessoas surdas, criou uma linguagem de gestos denominada “A LINGUAGEM DE SINAIS METÓDICOS”. Foi o sucessor de Abade L’Epée, Abade Sicard, quem escreveu o primeiro dicionário em sinais. Há um outro registro histórico importante: o alfabeto que se encontra no livro do “L'Abbé Deschamps” do século XVII (INES, 2005). Para o desenvolvimento da língua de sinais em terras brasileiras, o educador mais importante foi L’Epée, porque foi de seu instituto na França que veio para o Brasil o Padre Huet, professor surdo, que, a convite de Dom Pedro II, trouxe este “método combinado': criado por L’Epée, para trabalhar com os surdos brasileiros. Assim, em 1857, foi fundada a primeira escola para surdos no Brasil, o Instituto dos Surdos-Mudos, hoje, Instituto Nacional da Educação de Surdos (INES), na cidade do Rio de Janeiro. Foi a partir deste instituto que surgiu da INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 11 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 “mistura” da Língua de Sinais Francesa, trazida pelo Padre Huet, com a língua de sinais brasileira antiga, já usada pelos surdos das várias regiões do Brasil, a Língua Brasileira de Sinais (FELlPE, 2005). O registro mais remoto brasileiro da Língua Brasileira de Sinais é do ano de 1875, produzido pelo aluno do Instituto (INES), Flausino José da Gama, intitulado “lconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos”, estando seu original na Biblioteca Nacional e uma cópia na Biblioteca do INES (INES, 2005). Segundo Felipe (2005), com o passar dos anos, outras escolas somente para crianças surdas foram surgindo. Em 1923, foi fundado o Instituto Santa Terezinha, escola particular, em São Paulo, somente para meninas. Em 1954, outra iniciativa privada, com verba de outros países, foi fundada a Escola Concórdia, em Porto Alegre. Em 1957, foi fundada a Escola de Surdos de Vitória do Espírito Santo. Atualmente, há muitas escolas municipais, como, por exemplo, a Escola Rompendo o Silêncio, em Rezende no Rio de Janeiro, a Escola Municipal Ann Sullivan, em São Caetano do Sul e a Escola Hellen Keller, em Caxias do Sul, uma escola somente para surdos que vem implementando uma proposta bilíngue para a educação dos surdos, ou seja: a aquisição da LIBRAS e aprendizado, com metodologia apropriada, da língua portuguesa e da língua de sinais brasileira. Percebe-se a luta dos surdos para terem escolas específicas para a Comunidade Surda, porque acreditam que através de um ensino que atenda eficazmente suas necessidades linguísticas e culturais, eles poderão se integrar e estar em condições de igualdade com os ouvintes, o que refletirá, por exemplo, na conquista de cargos públicos. Assim, uma política educacional que leve em conta a realidade e tradição dos surdos no Brasil poderá reverter o atual quadro de insatisfação, em relação à qualidade da educação para surdos, que prevalece nas comunidades surdas (FELlPE, 2005). Na prática, a educação bilíngue é vivenciada de maneiras diferentes pelas escolas. Há aquelas chamadas especiais, que possuem professores especializados em ensinar em LIBRAS e que são exclusivas para alunos surdos. Há aquelas chamadas regulares, ou comuns, que mesclam surdos e ouvintes nas salas, ou que montam salas exclusivas para surdos, mas dentro INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 12 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 do mesmo ambiente escolar. Nessas instituições de ensino, a presença de intérpretes, das salas de recursos ou de monitores especializados auxilia o estudante surdo na rotina escolar. Segundo Bernardino (2000), o indivíduo surdo possui certas características que fazem dele uma pessoa diferente, especial, que, embora viva no mesmo ambiente que os ouvintes, não parece pertencer ao mundo destes. Isso porque a língua natural dos surdos, a de sinais, na maioria das vezes não é aceita pelos seus familiares, pelos professores, pelos psicólogos e outros profissionais que lidam com eles e, muitas vezes, nem por eles próprios. Essa língua é tida como uma vilã, que impede a aprendizagem da língua oral, cujo uso propicia ao surdo a oportunidade de se tornar “igual” aos ouvintes. É importante ressaltar neste resgate histórico que, assim como o Cristianismo, há mais de dois mil anos, trouxe o desenvolvimento do entendimento a respeito da necessidade de implementar na sociedade princípios que garantam a dignidade humana e os direitos das minorias, o trabalho assistencial, de caráter religioso e social, realizado de forma pioneira e contínua, a partir da década de 70, em Campinas, e notadamente pelas igrejas batistas brasileiras da Convenção Batista Brasileira, trouxe a atenção dos órgãos públicos e da sociedade civil em geral para com os surdos e seus direitos intrínsecos de comunicação, por meio de sua língua natural, notadamente no âmbito de discussões de políticas públicas educacionais tidas como especiais. Para além do pioneirismo, Silva (2006, p. 49) afirma que a experiência batista se destaca também por uma série de outras razões. Segundo o autor, Foi, sobretudo, essa experiência que fez da atividade missionária com surdos, sinônimo de interpretação e liderança de Ministério. Por conta disso, embora o objetivo fundamental do trabalho missionário seja “converter” surdos para o cristianismo, indiretamente, essa instituição se tornou uma grande formadora de intérpretes em diferentes regiões do Brasil (...) As experiências INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 13 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 protestantes com surdos citadas são formadas por excelência de um modelo de intérprete que parece ter se desdobrado para esfera secular. Com a captação desses “missionários batistas” aptos na tradução/interpretação da Língua Brasileira de Sinais pelo mercado de trabalho, foi possível a luta, juntamente com a Comunidade Surda, por políticas linguísticas, dentre outras, da Língua Brasileira de Sinais, o que ocorreu com a promulgação da Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, reconhecendo a LIBRAS como meio legal de comunicação dos surdos, bem como obrigou o ensino da mesma nos cursos de Educação Especial, Fonoaudiologia e de Magistério como parte dos Parâmetros Curriculares Nacionais. O Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, regulamentou a Lei nº 10.436/2002, determinando a realização do Exame Nacional de Certificação de Proficiência em LIBRAS e o Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Tradução e Interpretação da LIBRAS/Língua Portuguesa, denominado PROLlBRAS, que teve sua primeira edição promovida por meio de um projeto realizado pela Universidade Federal de Santa Catarina em parceira com o MEC no ano de 2006, aprovando 1.349 profissionais em tradução/interpretação da LIBRAS em todo o Brasil, sendo considerados, portanto, qualificados para exercerem a atividade dentro da sala de aula nos diferentes níveis de ensino. Entretanto, o reconhecimentooficialmente da Língua Brasileira de Sinais como meio de comunicação objetiva e de uso corrente das comunidades surdas, ocorreu muitos anos antes em vários Estados do Brasil. Vale saber... a) Em Minas Gerais, pela Lei Estadual nº10.379, de 10/01/1991. b) Em Alagoas, por meio da Lei Estadual nº 6.060, de 15/0911998. c) No Ceará, com a Lei Estadual nº 13.100, de 12/01/2001. d) No Distrito Federal, pela Lei nº 2.532, de 02/03/2000. e) No Espírito Santo, pela Lei nº 5.198/1999. f) Em Goiás, pela Lei Estadual nº 12.081, de 30/08/1993. g) No Mato Grosso, pela Lei Estadual nº 7.831, de 13/12/2002. h) No Mato Grosso do Sul, pela Lei nº 1.693, de 12/09/1996. INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 14 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 i) Em Pernambuco, pela Lei Estadual nº 11.686, de 18/10/1999. j) Em Santa Catarina, pela Lei Estadual nº11.869, de 6/09/2001. k) No Paraná, por intermédio da Lei nº12.095, de 11/03/1998. Com a aprovação e a regulamentação de várias legislações, tanto em nível estadual como nacional, demonstrou-se o início da quebra de vários tabus, crenças e mitos que circundavam o uso da Língua de Sinais pela Comunidade Surda e pelos ouvintes envolvidos, sejam os profissionais da interpretação/tradução, os missionários, os amigos e os familiares. O uso de uma língua visual-sinalizada, de forma alguma, diminui uma pessoa, inferiorizando-a diante das pessoas que usam a língua oral-auditiva. Seu uso não é empecilho para a aprendizagem da outra. Assim, o uso dessa língua, entendida como uma atividade social e “não apenas como uma ferramenta que devemos usar para obter resultados” (BAGNO, 2003, p. 20), faz-nos defendê-la não apenas como uma ferramenta para a aprendizagem, mas também como o resultado para que tal objetivo se concretize. O fim da resistência, a quebra de preconceitos em relação à Língua Brasileira de Sinais, possibilita aos surdos ter uma vida normal, saudável, caracterizada pelo desenvolvimento intelectual completo, porém, adequado, em que, nem de longe, foram esquecidas suas necessidades e diferenciações linguísticas (NOVAES, 2010). INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 15 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 O APARELHO AUDITIVO E A AUDIÇÃO É por meio da audição que conseguimos identificar e reconhecer os diferentes sons do ambiente, além de podermos nos comunicar com nossos semelhantes. A orelha é uma obra de arte de engenharia que consiste em três partes: orelha externa, orelha média e orelha interna (HONORA; FRIZANCO, 2008). A orelha externa é composta de duas estruturas: a orelha, também conhecida como ouvido, ou pavilhão auricular, que é uma estrutura externa semelhante a um funil, feita de cartilagem e pele que tem a função de captar as ondas sonoras e as desviar para dentro do conduto auditivo externo, que é o corredor que encaminha, amplificando, a onda sonora ate o tímpano, o qual vibra como se fosse o couro de um tambor. No conduto auditivo externo, temos a presença de pelos e de certas glândulas que produzem cera para proteger a orelha; portanto, a limpeza exagerada desse local pode causar danos e até lesões sérias na audição. Vale lembrar também que, quando o tímpano, ou a membrana timpânica, é perfurada, podemos ter perda de audição e até ser submetidos a uma cirurgia de enxerto para a sua reconstrução. Na face interna do tímpano, está a orelha média, que é uma câmara cheia de ar com três pequenos ossos (os menores do corpo humano), os quais INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 16 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 estão conectados entre si. São eles: martelo, bigorna e estribo. Os ossos recebem esses nomes pela semelhança que têm com esses objetos. Os ossículos unem o tímpano à janela oval, uma abertura no revestimento ósseo da cóclea. Ainda na orelha média, está localizada a tuba auditiva que é a nossa ligação entre o ouvido, o nariz e a garganta. É o que nos dá a sensação de sentir o gosto de alguns remédios quando os pingamos no nariz. Em razão de termos essa tuba auditiva que liga nossa garganta à orelha média, pode-se acumular pus nessa região, devido às infecções de ouvido (otites), por uso indevido de mamadeiras e amamentação dada para o bebê enquanto ele está deitado. Por este motivo, também podem ocorrer lesões no tímpano devido ao seu rompimento para a saída desse líquido. Muitas crianças em idade escolar apresentam esse problema, o que pode diminuir sua atenção auditiva e consequentemente causar deficiência auditiva. A cóclea é a estrutura do ouvido pela qual ouvimos. Ela é do tamanho de uma ervilha e é nela que estão localizados os receptores auditivos. Quando as ondas sonoras fazem o tímpano vibrar, essas vibrações são transmitidas para os ossículos que, por sua vez, produzem uma ação semelhante à de uma alavanca, transmitindo e amplificando as vibrações para a membrana que reveste a janela oval da cóclea. A cóclea, que tem esse nome porque parece um caracol, é uma estrutura oca e os compartimentos desse espaço são preenchidos por líquido, onde há uma membrana fina denominada membrana basilar, na qual estão inseridas as células ciliadas (cílios), que são nossos receptores auditivos. O processo funciona da seguinte forma: o som entra pela orelha externa, passa pelo conduto auditivo externo, onde é amplificado e faz com que a membrana timpânica vibre. A membrana timpânica vibra e faz com que os ossículos (martelo, bigorna e estribo) também vibrem como numa alavanca. Os ossículos amplificam e transmitem as vibrações para a janela oval posicionada na entrada da cóclea. Na cóclea, as células ciliadas se movimentam e transformam os sons recebidos em impulsos elétricos que caminham até o cérebro pelo nervo auditivo. No cérebro, estes impulsos elétricos são codificados e “entendidos” pela pessoa. Enfim: uma estrutura bem complexa! INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 17 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Temos em média 15 mil células ciliadas em nossa orelha interna. A boa notícia é que elas são muito numerosas e a péssima notícia é que elas não nascem mais, não se regeneram. Como bem explicam Honora e Frizanco (2008), toda vez que formos a um show de heavy metal e, ao chegarmos em casa, escutarmos nosso ouvido apitar, significa que algumas de nossas células ciliadas estão morrendo. O som tem três dimensões físicas: frequência, amplitude e complexidade, como demonstra a tabela abaixo. Embora o som seja transmitido a uma velocidade de cerca de 330 metros por segundo, as ondas sonoras variam no que se refere à taxa de vibração, conhecida como frequência. Mais precisamente, a frequência se refere ao número de ciclos de uma onda, completados em um determinado período. As frequências das ondas sonoras são medidas em unidade de ciclos por segundo, denominada hertz (Hz). Um hertz é um ciclo por segundo, 50 hertz são 50 ciclos por segundo, e assim por diante. Os sons que percebemos como graves têm frequências baixas (poucos ciclos por segundo) e os que percebemos como agudos têm frequências elevadas (muitos ciclos por segundo). Podemos perceber os sons apenas dentro de um intervalo limitado de frequência. Para os humanos, esse intervalo se estende de aproximadamente 20 hertz a 20.000 hertz. Como os humanos, muitos animais produzem algum tipo de som para se comunicar, o que significa que devem possuir sistemas auditivos designados para interpretar os sons típicos de sua espécie. Os INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 18 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 intervalos das frequências sonoras que as diferentes espécies usam variam muito. Na figuraabaixo, podemos observar essas diferenças. As rãs ouvem apenas uma faixa muito estreita de frequências, enquanto as baleias e os golfinhos ouvem uma faixa mais ampla. Embora nos humanos a faixa de audição seja bastante extensa, com um pico de cerca de 2.000 hertz, não somos capazes de perceber muitos dos sons que outros animais podem produzir e ouvir. Além da frequência, a amplitude pode causar uma diferença no tom percebido. A amplitude é o termo que se refere à magnitude da mudança na densidade de moléculas de ar. O aumento na compressão de moléculas de ar eleva a quantidade de energia em uma onda sonora, o que faz o volume do som parecer mais alto – mais amplificado. A amplitude do som geralmente é medida em decibéis (dB), medida que descreve a potência de um som em relação à intensidade de referência padronizada. Sons superiores a aproximadamente 70 decibéis são percebidos como altos, enquanto os inferiores a 20 decibéis são considerados baixos. Os sons da fala normal estão em cerca de 40 decibéis. A união dessas duas propriedades do som estão ilustradas no gráfico abaixo: INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 19 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Temos também o sistema vestibular que nos informa sobre nossa localização em relação à gravidade, sobre a aceleração e a desaceleração de nossos movimentos e sobre as alterações na direção do movimento. Também nos permitem ignorar a influência desestabilizadora que nossos movimentos poderiam exercer sobre nós. Por exemplo, quando estamos em pé em um ônibus, até mesmo os movimentos leves do veículo poderiam fazer com que perdêssemos o equilíbrio, mas não o fazem. Do mesmo modo, ao fazermos movimentos, evitamos um tombo com facilidade, apesar de deslocarmos o peso do corpo constantemente. Nosso sistema vestibular nos possibilita evitar o tombo. INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 20 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 DO PATOLÓGICO AO CULTURAL NA SURDEZ: para além de um e de outro ou para uma reflexão crítica dos paradigmas Audrei Gesser1 Este artigo2 tem como objetivo fazer uma discussão relacionada a dois paradigmas ideológicos na educação dos surdos, a saber, o patológico e o cultural. Para abordar esta questão, aponto a importância de discutir conceitos- termos como deficiente-auditivo, surdo-mudo, e mudo com o intuito de desconstruir as conotações negativas que esses nomes implicam na representação social e na identidade cultural dos indivíduos surdos. Além disso, será mostrado como tais visões estão presentes nos ambientes sociais, especialmente na interação de sala de aula entre professores surdos e alunos ouvintes. Os registros são gerados e analisados através de perspectivas etnográficas em contextos de ensino de Língua Brasileira de Sinais. Para a transcrição do mesmo, mantivemos a formatação original, com notas no final do texto. INTRODUÇÃO Neste artigo, problematizo - a partir de alguns apontamentos que venho fazendo em pesquisas de cunho etnográfico (ERICKSON, 1986, 1992) desenvolvidas em contextos de ensino de LIBRAS para ouvintes1 - a questão das concepções e paradigmas ideológicos na educação dos surdos. Inicio tecendo uma reflexão sobre o conflito trazido pelas designações deficiente- auditivo, surdo-mudo, e mudo e o processo de desconstrução dessas representações observados na interação de sala de aula nas falas de alguns 1 Doutora em Linguística Aplicada/Educação Bilíngue pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 2 Publicado pela revista: Trabalhos em Linguística Aplicada. Versão Impressa. ISSN 0103-1813. Trab. Linguist. Apl. Vol.47 No.1 Campinas Jan./Jun. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0103- 18132008000100013. Disponível em: <http://www.scientificcircle.com/pt/751/patologico-cultural-surdez-alem-outro-reflexao-critica/>. Acesso em: 18 Jul. 2013. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132008000100013&lng=pt&nrm=iso#nt01 INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 21 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 professores surdos e seus alunos ouvintes2, com o objetivo de mostrar como foram postas em cena nas narrativas que contaram, ao longo dos tempos, a história dos surdos. Para tal articulação, retomo, retrospectivamente, como foi o meu primeiro contato com a surdez, mostrando como essa questão conceitual ainda ocupa um espaço muito significativo nos espaços sociais, e, especificamente, nas salas de aula de LIBRAS para ouvintes (GESSER, 1999, 2006). A discussão aponta a importância de nos desvencilharmos de preconceitos cristalizados, de certa forma arraigados, no modo como nomeamos o outro (LANE, 1992; SKLIAR, 1997). Em seguida, questiono - a partir da integração de alguns elementos conceituais dos Estudos Culturais de Hall (2033a/b/c), Pós-Coloniais de Bhabha (1992, 2000, 2003) e do historiador e sociólogo De Certeau (1994, 1995, 1996) - as noções de identidade e cultura pensados no contexto da surdez, com o objetivo de se criar um espaço de ruptura com os discursos essencialistas, puristas e totalitários. Assim, nesse texto estarei apresentando as vozes, os discursos construídos na interação face a face entre surdos e ouvintes. Acredito que as falas e relatos que seguem servem também para olharmos para as nossas próprias posturas e práticas discursivas frente à surdez. "A PALAVRA 'CADEIRANTE' EU NÃO CONSIGO ASSIMILAR, MAS 'SURDO' EU ESTOU MAIS ACOSTUMADO" Em uma oportunidade para discutir questões relacionadas ao surdo com uma profissional da Faculdade de Educação na Universidade Federal de Santa Catarina, em 1997, senti na pele minha dificuldade em lidar com a surdez. Só depois dessa conversa e através do processo de familiarização e estranhamento (ERICKSON, 1986), é que pude perceber a postura preconceituosa, paternalista e romantizada que eu tinha do surdo. Essa percepção ficou evidente, quando comecei a refletir sobre a minha interação com essa professora. Recordo-me de todas as vezes em que ela me interrompia para que eu me referisse ao surdo como surdo, e não http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132008000100013&lng=pt&nrm=iso#nt02 INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 22 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 como deficiente-auditivo,surdo-mudo, ou mudo. De fato, em função de meu desconhecimento de tudo o que reverberava nesses nomes, não percebi, naquele momento, a carga semântica negativa que conotavam. Então, vez por outra me referia, aos surdos como "deficientes auditivos" e, em um dado momento da nossa conversa, a professora, irritadíssima e em um tom muito alterado, falou: "Surdo! Surdo! Você deve chamá-los de surdos! Se você pretende fazer pesquisa sobre estes indivíduos, por favor, eles são surdos e não deficientes!". O que ficou latente para mim durante nossa interação foi a profunda agressividade e incômodo dela; isso me levou a monitorar a minha fala e a tomar muito cuidado para chamá-los sempre de surdos. O fato é que, na minha visão inicial, a palavra surdo conotava mais preconceito e parecia que não era um uso sequer politicamente correto. Não tinha ideia, também, por outro lado, da carga semântica que os termos deficiente-auditivo, surdo-mudo, e mudo conotavam, constantemente observados em muitas falas de pessoas leigas na discussão e/ou de especialistas dentro de uma posição que toma a surdez como uma patologia. Nas minhas idas e vindas a alguns contextos escolares, e com o aprofundamento em leituras da área, somadas a inúmeras conversas com pessoas pertencentes às comunidades surdas entendi a atitude daquela professora. O que elaestava fazendo era rejeitar um discurso ideológico dominante construído nos moldes do oralismo, que localiza o surdo em dimensões clínicas e terapêuticas da "cura", da "reeducação" e da "normalização". Ao utilizar o termo surdo, a professora estava tentando me mostrar um outro discurso sobre a surdez: o discurso pautado em paradigmas da diversidade linguística e cultural. Tive a oportunidade de desfazer o meu mal-entendido, pois a imagem que lhe atribui foi a de alguém que não estava gostando de compartilhar comigo suas informações sobre a surdez. Essa experiência fez-me compreender como estava presa à ideologia dominante ouvinte e como nela se inscrevia em meu discurso. A minha ignorância sobre a realidade surda gerou em mim uma atitude vinculada aos estereótipos e aos imaginários sociais que constituem o poder e o saber clínico (SKLIAR, 1997; LANE 1992). A representação que fazia do surdo estava ancorada na visão do déficit, na falta da audição, portanto. Tive que me permitir INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 23 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 certo tempo para desconstruir essa visão da deficiência que estava concretamente amarrada ao termo que utilizava para nomear os surdos e reconhecer a dimensão política da surdez que o uso do termo surdo, apropriadamente, conota. Padden & Humphries (1988: 44) apontam que, a deficiência é uma marca que historicamente não tem pertencido aos surdos. Esta marca sugere auto- representações políticas e objetivos não familiares para o grupo. Quando os surdos discutem sua surdez, eles usam termos profundamente relacionados com a sua língua, seu passado, e sua comunidade. [tradução minha]. A questão da terminologia ficou esclarecida para mim. Todavia, voltava a revivê-la na interação com outros tantos ouvintes que estavam se relacionando pela primeira vez ou mesmo que já se relacionavam com o mundo da surdez. Era, então, inevitável relembrar o episódio descrito acima. Percebi que, em todos os cursos de LIBRAS de que participei3, por exemplo, havia por parte dos professores surdos um tempo, nas aulas, dedicado a explorar e esclarecer as conotações que o termo deficiente auditivo e seus derivados populares carregam. A vinheta narrativa4 abaixo descreve a ação do professor surdo a quem estarei me referindo pelo nome de Leo5: Excerto 1 Em sua segunda aula de LIBRAS, o professor Leo traz uma transparência e pede a uma aluna ouvinte que leia em voz alta. O título da transparência é "postura frente a surdez". Em seguida escreve no quadro as palavras deficiente auditivo, surdo-mudo e surdo, e nos pergunta se sabemos a diferença. Enquanto algumas alunas demonstram saber, há outras que ficam na dúvida. Então ele aponta que surdo-mudo nunca deve ser usado porque o surdo tem aparelho fonador e se for treinado ele fala com voz, mas que o termo é errado porque faz as pessoas http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132008000100013&lng=pt&nrm=iso#nt03 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132008000100013&lng=pt&nrm=iso#nt04 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132008000100013&lng=pt&nrm=iso#nt05 INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 24 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 pensarem que o surdo não tem língua. O termo deficiente auditivo ou D.A. não devem ser utilizados porque também são preconceituosos, e finaliza dizendo que o termo correto é surdo. Embora todas pareçam concordar com a exposição, uma das alunas fala em voz alta para o grupo: "mas esta diferença a gente aprende aqui no curso e com o surdo né? Porque no curso de pedagogia que eu fiz sempre chamamos de deficiente..." A mesma aula de apresentação desses termos é feita também por uma outra professora surda em seu curso Módulo 1 do qual também participei como aluna-pesquisadora. Essa professora (vou chamá-la de Ana) todavia, faz uma discussão mais fervorosa sobre o assunto conforme pode ser observado na transcrição que segue abaixo. Utilizando-se da LIBRAS e da fala em português simultaneamente, ela aponta a diferença para as alunas ouvintes e conclui enfaticamente: Excerto 2 Ana: {B Esta história de dizer que surdo não fala que é mudo está errado (...)sou contra o termo surdo-mudo e deficiente auditivo porque tem preconceito(pausa) Vocês sabem quem inventou o termo deficiente auditivo? (pausa) Os médicos! } ((todas as alunas começam a rir porque sabem que tem duas alunas estudantes de medicina na aula, e uma delas fica vermelha)) Ana: {B Porque estão rindo? A::::: elas estudam medicina! ((apontando para as alunas)) tudo bem lá no passado se usava estes termos. Os médicos achavam os surdos uns coitados, por isso é importante falar sobre isso (pausa) eu não to aqui só para vocês aprenderem a LIBRAS eu to aqui também para explicar como é a vida do surdo, da cultura, da nossa identidade } ((as alunas observam a professora escrever no quadro: normal = ouvinte, e em seguida ela faz a seguinte pergunta a todas)) INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 25 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Ana: {B e o surdo? é anormal? to dizendo isso porque em geral os ouvintes quando se referem aos seus filhos ouvintes que tem algum probleminha de audição os médicos dizem "não se preocupe mamãe, seu filho é normal, ele não é surdo! } Podemos perceber a importância de tais termos para a vida dos surdos. Neste último exemplo, a professora surda traça um paralelo, a partir da sua própria vivência, entre as concepções de anormalidade e normalidade, e esta última é apresentada como um atributo exclusivo daqueles que ouvem. Ana procura sinalizar em sua fala a perspectiva da diversidade, da visibilização da língua, da identidade do surdo como indivíduo pertencente a um grupo cultural, buscando apagar e/ou desconstruir a representação, a visão e a identidade da deficiência. E um dos caminhos encontrados pelos professores tanto por Ana como por Leo é deixar claro como tais termos inferiorizam e discriminam os surdos de uma forma geral, e como são rejeitados por eles próprios e também dentro da comunidade surda. Foi possível observar nas interações de ensino da LIBRAS que havia, por parte dos alunos ouvintes, tanto um estranhamento como uma maior familiarização com essas denominações. De qualquer modo, o importante é apontar aqui esse movimento que sai do discurso da deficiência para o discurso do reconhecimento político da surdez como diferença, e como essa conscientização pode proporcionar mudanças na forma como nos relacionamos como outro. Em uma das entrevistas, perguntei a um grupo de quatro ouvintes (três alunas e um aluno) como eles viam a língua de sinais e os indivíduos surdos. Um dos alunos do grupo diz o seguinte na entrevista em áudio: Excerto 3 INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 26 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Jonas: Eu vejo que em todas as deficiências é paternalismo puro sabe? E com o surdo não é diferente porque nas escolas, na sociedade TODOS acham que o surdo vive uma deficiência e:: que eles são incapazes (...) eu sei que é difícil lidar com o surdo com naturalidade no começo porque eu::: EU MESmo né:: <na minha família eu tenho um surdo> e tinha ME-do de me aproximar dele porque achava ele ANORMAL (1.5) hoje eu entendo a língua de sinais <e não só esta questão> (.) então quando você vê um surdo que é PROFESSOR como o nosso aqui dando aulas da sua língua e falando para os alunos ouvintes que os surdos não escutam mas que isso não significa que são deficientes mentais ou retardados <como a maioria vê sabe?> você::: você consegue encarar de uma outra forma (.) eu vejo isto assim que:: que isto contribui deuma forma que a gente pode ir tirando o preconceito (.) diminuir pelo menos esse efeito negativo que tem na vida deles né? Outro dia chegou na secretaria um deficiente físico <um cadeirante como eles chamam> a palavra 'cadeirante' eu não consigo assimilar ainda, mas 'SURDO' estou mais acostumado (.) e::: até entendo o porquê (...) assim::: se você chama o surdo de deficiente ou de mudinho né? Tem mais preconceito e quando eu comecei a conviver mais com os surdos e quando comecei a entendê-los na sua comunicação eu: eu percebi que eles querem que chamem eles de SURDOS sabe? Uns ficam até NERVOSOS se você os chama de deficiente auditivo (1.5) e se isso acontece é: é porque se sentem discriminados (.) isto é o efeito lá: da oralização que queria ver o surdo fala:: ndo (.) <mas também têm outros que não tão nem ai> (.) eu vejo assim que eles TÊM SIM uma perda auditiva e::: isso não dá para negar (.) o problema é que::: <como em uma aula que a gente teve aqui com o nosso professor> ele disse que os surdos mesmos preferem ser chamados de surdo (.) por uma CULTURA (.) que se trata de uma DI-FE-REN-ÇA e não de deficiência propriamente (...) Jonas demonstra em sua fala sensibilidade e conhecimento sobre a carga semântica que se tem utilizado nas narrativas sobre a surdez. Também aponta o seu próprio movimento na relação entre duas nomenclaturas INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 27 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 antagônicas: o deficiente construído nas ondas do movimento oralista e o surdo construído em oposição ao primeiro, pautado no discurso da diversidade linguística e cultural. A construção da identidade deficiente (e todos os seus derivados pejorativos) está ainda muito presente na vida dos surdos e, junto com ela, uma série de práticas encapsuladas no projeto clínico hegemônico. Isto ocorre porque a surdez é tanto uma construção cultural como um fenômeno físico. A forma dessa construção cultural é, sem dúvida, uma expressão de valores culturais mais amplos, significados através de uma ordem superposta anterior a ordem majoritária ouvinte que busca "normalizar a anormalidade" (FOUCAULT, 2001). Por outro lado, é importante salientar, no que nos diz De Certeau (1994, 1996), que há também uma ressignificação dessa ordem superposta os oprimidos e excluídos, afirma ele, não são repositórios e/ou "consumidores" passivos nessa relação; ao contrário, para o autor, consumir é produzir. Há no consumo um aspecto criativo, uma vez que os indivíduos utilizam táticas e apropriam-se fazem reempregos de imposições, de forma a sobreviverem culturalmente. Vejamos o que dizem os ouvintes, num outro momento da nossa conversa, gravada em áudio: Excerto 4 Angela: Sabe uma coisa que eu fico irritada? Assim né:: até entendo eles (.) mas outro dia vi um aluno surdo NOSSO aluno ((estabelecendo contato visual com os outros professores entrevistados)) (.) ele estava na rua se fazendo de coitadinho (.) <sabe aqueles pacotinhos de caneta que as pessoas vendem por aí?> assim com uma notinha dizendo que são "deficientes auditivos"((faz um gesto entre aspas quando diz esta palavra)) então (.) ele tava tirando vantagem da sua surdez para ganhar dinheiro (1.5) SAbe eu sei que é DIFÍCIL para eles mas mas veja bem a visão de alguns pais <não todos porque a mãe lá::> da:: da Gabi <ela é bem esclarecida com a questão da cultura surda>= INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 28 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Audrei: =mas a escola, os professores apoiam ela? Apoiam essa mãe que é mais esclarecida com a questão?= Angela: =bem ((risos)) é difícil né: Audrei porque:: porque é também um susto para quem nunca lidou ou viu um surdo antes (.) a gente tá despreparado mesmo inclusive as escolas (1.5) mas veja bem EU eu estou procurando uma forma de me informar também e::: <e tem professoras que não estão nem ai> assim como alguns pais também (.) a visão de alguns pais QUAL é a visão? ele é SURDO não serve para NADA ele não vai poder trabalhar é uma pessoa INÚTIL (...) porém o filho surdo eu posso aposentá-lo (...) é um beneficio (...) eu posso ganhar uma casa popular (...) então NESTE CASO o meu filho é DEFICIENTE (...) acho que a questão é do necessitar do quando eu posso necessitar do meu filho surdo (...) caso contrário eu nem toco que tenho um filho surdo (...) o paternalismo entra aí (.) então se o filho não tem pilha ((referindo-se ao aparelho auditivo)) a rede municipal que resolva isto (...) Jonas: (...) <ou pode haver o extremo oposto> (.) pra tentar superar a vergonha que alguns sentem de ter filho surdo é tentar tornar ele melhor do que o ouvinte (1.5) e eu acho também que a GENTE MESMO só enxerga os surdos na deficiência (.) precisamos ver estas pessoas de uma outra forma (.) se não mudamos nossa postura os próprios surdos vão continuar se considerando deficientes também (.) porque como você disse antes né:: há benefícios com isso e eles usam isso (.) assim se a gente olhar bem me parece natural isto estar acontecendo (.) eu até compreendo= Angela: =é TEM OS DOIS LADOS ou o lado do coitado ou o lado de super (...) no nosso meio fica bem claro o paternalismo (...) uns também acabam deixando o filho surdo de lado (...) questão da indiferença (...) muitos pais dizem "se ele não for na fono não vai falar português e se for não fala do mesmo jeito (.) então pra que que vou perder o meu tempo?" (...) ((Angela reportando as vozes de alguns pais de seus alunos)) INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 29 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 No excerto acima, Angela, uma das alunas do curso e também professora de surdos no ensino fundamental, demonstra em sua fala os usos que alguns surdos e alguns familiares fazem da surdez, quando diz que "os surdos estão vendendo pacotinhos de caneta dizendo que são deficientes auditivos... tirando vantagem da surdez para ganhar dinheiro", "meu filho surdo eu posso aposentá-lo", "posso ganhar uma casa popular", "se o filho não tem pilha do aparelho auditivo a rede municipal que resolva". Apesar de sua fala mostrar indignação, devemos considerar que, infelizmente, a visibilidade que os indivíduos surdos têm é uma visibilidade pautada na deficiência. O que não é de estranhar, considerando que o discurso da diferença articulado na sociedade majoritária sobre ouvintes e surdos é ainda tipicamente construído com base na perda auditiva, na falta de algo, na ausência; uma narrativa fortemente construída do ponto de vista da patologia e, portanto, legitimada e aceita nessa mesma perspectiva. Nesse contexto, faz sentido, para as pessoas (surdos e familiares) que convivem com essa realidade, transitar ora no discurso da deficiência ora no discurso da diferença ("posso ganhar uma casa... neste caso meu filho é deficiente... a questão do necessitar do meu filho surdo... caso contrário eu nem toco que tenho um filho surdo"), pois pode ser uma forma de sobrevivência, ou, usando a expressão de De Certeau (op.cit.), como uma "tática", em busca de uma visibilidade social e cultural. Claro que a fala reportada acima pela aluna-professora alfabetizadora (Ângela) sobre o comportamento dos pais ouvintes que ela tem tido contato pode realmente conter um fundo essencialmente interesseiro e alheio à perspectiva do engajamento político sobre a surdez. Da mesma forma, há indivíduos com algum grau de perda auditiva que se veem como deficientes e não se identificam com uma cultura surda optam pela oralização6 e veem nos recursos da medicina uma grande possibilidade de recuperação da audição: seja por implantes cirúrgicos e/ou pelo uso de aparelhos auditivos. Então, o que muitos surdos e ouvintes envolvidos nessa discussão podem se perguntaré: quando teremos uma transformação social e um olhar e atitudes diferenciados, mais justos e sem tantos preconceitos na nossa sociedade? http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132008000100013&lng=pt&nrm=iso#nt06 INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 30 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 As transformações e/ou mudanças na sociedade, em se tratando de minorias, não são radicais. Há níveis de explicitação de preconceitos; e os preconceitos podem estar velados até mesmo na narrativa da diferença. Destaco a discussão em Mclaren (2000), quando argumenta que a palavra diversidade ou o discurso da diferença podem estar sendo utilizados para encobrir uma ideologia de assimilação que está na base do discurso do "multiculturalismo conservador e corporativo", e, no caso da surdez, não é a pregação dessa narrativa que garantirá uma atitude de respeito às minorias linguísticas. Assim, é importante termos em mente as palavras de Skliar, ao prefaciar Botelho (1998:10). Diz ele: Reconhecer a diferença não significa uma aceitação formal nem uma autorização para que os surdos sejam diferentes. A definição da surdez sob a perspectiva da diferença supõe, no mínimo, estabelecer quatro dimensões inter-relacionadas: a dimensão política, a dimensão ontológica visual, a presença de múltiplas identidades surdas e a [não] localização da surdez nos discursos sobre a deficiência. Infelizmente, os surdos têm sido narrados e definidos exclusivamente a partir da realidade física da falta de audição e, portanto, aos olhos da sociedade majoritária ouvinte tem sido vistos exclusivamente a partir desse fato. O efeito disto é que os surdos e as línguas de que fazem uso (LIBRAS e português escrito/oral) tornam-se telas com espaços em branco para a projeção do preconceito cultural e do discurso da "normalização". Os termos deficiente auditivo, surdo-mudo, e mudo não são exemplos isolados de demonstração de preconceito somente, mas são indicadores de um mundo mais amplo de redes de significados que estabelecem convenções para descrever relações entre condições, valores e identidades. Além disso, dentro desse mundo de significados há alinhamentos distintos e desiguais entre uns e INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 31 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 outros, já que, no caso da minoria surda, os discursos da medicalização e da normalização têm prevalecido sócio historicamente. Outra questão a destacar é que a maioria dos cursos universitários que preparam profissionais para atuar com a surdez têm insistentemente localizado tais indivíduos na narrativa da deficiência, promovendo concepções geralmente simplificadas, construídas a partir de traços negativos como, por exemplo, a falta de língua (gem). De acordo com Skliar (1997:33), "os surdos estão forçados a existir na Educação Especial". Ora, o rótulo "especial" não desloca as minorias surdas para a visão étnica de surdez; ao contrário, esse rótulo mascara o preconceito de forma muito melindrosa. Ainda conforme o mesmo autor, o rótulo especial conota essencialmente o discurso do desvio da normalidade, porque acaba entrincheirando indivíduos surdos e todos os ditos deficientes em um mesmo bloco de localização, ou seja: ...em uma continuidade, que, na verdade, é descontínua, isto é, grupos de indivíduos juntos, mas também separados entre eles, e separados de outros sujeitos. ... Neste sentido, não haveria nada em comum, por exemplo, entre um surdo e um deficiente mental, que separe esse surdo ou esse deficiente mental de um menino de rua, de um indígena ou de um trabalhador rural. (SKLIAR, 1997: 33). Ao ser inquirida sobre a profissão e o curso em que havia se formado, Lucy (uma das alunas ouvintes de um dos cursos iniciantes da professora Ana) respondeu-me: "Sou professora formada em pedagogia com especialização em Educação Especial. Atendo indivíduos com necessidades especiais os deficientes auditivos, visuais, mentais e físicos...". Pode-se observar em sua resposta a forma como os cursos de pedagogia localizam tais indivíduos: indivíduos diferentes tratados como iguais nas suas necessidades. No prefácio a Botelho (1998:11), Skliar enfatiza que a desvinculação da Educação Especial e o deslocamento da educação dos surdos para outros discursos possibilitam INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 32 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 uma transformação mais apropriada no contexto ideológico, teórico e discursivo: a surdez pode não ser, epistemologicamente, uma deficiência, mas está sendo permanentemente localizada como tal. Assim, a ruptura entre educação de surdos e educação especial é uma maneira de des-patologizar a surdez, de levar a surdez para outros discursos, vinculados com outras linhas de estudo em educação. Por fim, concordo com Skliar (op. cit.) quando afirma que é por meio desse deslocamento das oposições conceituais da Educação Especial para uma Educação para Surdos e também das nomeações deficiente auditivo (e todos os seus sinônimos) para surdo, ou seja, através de mudanças nas representações e narrações sobre o surdo e a surdez que poderemos melhor enxergar os múltiplos e diversos recortes identitários dos surdos e contribuir para que se possa sair do discurso da deficiência para o da diferença; afinal, aponta-nos Skliar (1997: 33), "a construção das identidades não depende da maior ou menor limitação biológica, e sim de complexas relações linguísticas, históricas, sociais e culturais". Acrescentaria nesta discussão a ideia apontada por Carvalho (2003: 61) no sentido de nos desvincularmos da educação especial a partir de uma "visão substantiva" para começarmos "a construir o especial na educação, numa visão adjetiva". "O PROFESSOR ESTÁ MUITO PRESO AOS PADRÕES CULTURAIS DOS OUVINTES" Excerto 5 Durante o intervalo do curso do professor Leo, algumas alunas ouvintes formam um grupo e começam a falar sobre as aulas, a língua de sinais e as dificuldades que têm para se expressarem com fluência. Uma delas diz que o curso lhe oferece uma oportunidade para ter mais contato INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 33 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 com o surdo e aprender um pouco mais sobre a cultura surda. Outra aluna que estava passando, ao ouvir o comentário dela diz: "o que você já aprendeu da cultura surda?". Sem hesitar, a aluna respondeu: "muitas coisas, que eles têm uma identidade surda e não aquela coisa da deficiência, pois têm uma língua própria e se expressam através dela. O principal para nós é saber que os surdos têm uma língua própria, a língua de sinais". O que aprendemos até aqui sobre cultura surda? Lane et all (1996: 67) apontam que a língua de sinais exerce três papéis fundamentais na comunidade surda: "é um símbolo de identidade social, um meio de interação social, e um repositório de conhecimento cultural". Ao responder à pergunta da colega sobre o que ela havia aprendido da cultura surda, há uma sugestão de que a língua de sinais marca a identidade cultural do surdo ("eles têm uma identidade surda e não aquela coisa da deficiência, pois têm uma língua própria"). Não há dúvidas de que na comunidade surda a língua de sinais (LS) confere ao surdo uma libertação dos moldes e visões até então exclusivamente patológicos, pois desvia a concepção da surdez como deficiência, vinculada a lacunas na cognição e pensamento, para uma concepção da diferença linguística e cultural. A LS é, portanto, um símbolo importante de identidade cultural; o que não significa dizer, por outro lado, que o surdo também não construa outras culturas e identidades na língua portuguesa, por exemplo. O problema estáem que o português de que o surdo faz uso (escrito e oral este último no caso de surdos oralizados) é também estigmatizado, uma vez que não atinge as expectativas impostas e desejadas por uma maioria de ouvintes. Para discorrer sobre essa questão, valho-me do estudo de Silva (2005: 139), que discute a escrita do surdo mostrando que, nela, uma outra relação é estabelecida e que outros aspectos estão sendo privilegiados. Esses aspectos são, por sua vez, incompatíveis com os esperados pela sociedade ouvinte letrada. Assim, pode- se dizer que o surdo se re-apropria, re-emprega a escrita de outra forma, como um "português surdo"7, e, ao marcar "sua própria história com essa língua e http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132008000100013&lng=pt&nrm=iso#nt07 INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 34 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 com essa maneira de escrever", o surdo imprime nela marcas de sua identidade, ou seja, outra relação é estabelecida. Essa questão de fronteiras aparece também entre outras culturas e línguas minoritárias e, nesse contexto, importa destacar também a pesquisa de Maher (1996, p. 29) sobre os conflitos na demarcação das identidades indígenas, apontando o aspecto fragmentado, multifacetado, móvel e fluído da identidade: o outro com o qual interagimos não é sempre o mesmo, o tempo todo, em todas as situações sociais. ...a identidade não é um fenômeno unitário que contenha em si qualquer essência definitória, mas é uma construção feita em múltiplas direções, direções estas muitas vezes contraditórias. A autora conclui que o "ser índio" é uma construção que se dá no discurso e, no caso dos índios, essa construção identitária também ocorre na língua portuguesa (nas palavras da autora, no "português índio"), pois é no discurso que se torna possível dar o sentido do "ser índio" [ênfase da autora]. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o surdo constroem identidades tanto na língua portuguesa como na língua de sinais. De modo geral, os indivíduos, veem cultura e identidade como uma entidade em bloco, fechada, acabada e estática. Entre grupos minoritários, por exemplo, é comum ouvir um discurso de oposição às culturas majoritárias cravado na homogeneidade cultural de seu grupo. Assim, passa-se a ideia de que todo o surdo é igual, tem a mesma cultura e identidade surda. Trata-se de um surdo idealizado, do qual se ignoram gênero, nacionalidade, idade, orientações étnicas, sexuais e religiosas como características que também compõem "as culturas" de um indivíduo. Que na comunidade surda esse posicionamento essencialista tem em vista a afirmação, valorização e reconhecimento cultural não restam dúvidas, uma vez que é a coesão, a "uniformidade" que dá ao grupo visibilidade, ou seja, serve para que o grupo se autoconstitua como tal graças à essa aceitação dessa visão por parte de quem INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 35 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 os exclui. Mas, o que se entende por cultura surda? Quadros (2002, p. 10) define a cultura surda, como a identidade cultural de um grupo de surdos que se define enquanto grupo diferente de outros grupos. Essa cultura é multifacetada, mas apresenta características que são específicas, ela é visual, ela traduz-se de forma visual. As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes. Não quero negar a existência de características composta por valores, comportamentos, atitudes e práticas sociais distintas das culturas ouvintes. Todavia, o perigo está em transformar as diversidades em homogeneidades culturais, ou seja, ter uma visão dividida e singular entre "cultura ouvinte" (dominadora) e "cultura surda" (dominada), fazendo com que a identificação do segundo grupo seja marcada apenas na surdez e na língua de sinais independente da raça, classe ou gênero, por exemplo. Afinal, o que se pode afirmar em termos culturais e identitários a respeito do multiculturalismo na surdez? Como tem sido abordada a questão da diversidade dentro do grupo surdo, ou seja, os entremeios em que se amontoam, por exemplo, as mulheres surdas, negros surdos, índios surdos, surdos de áreas rurais, surdos homossexuais, surdos cegos, surdos com deficiências mentais, surdos cadeirantes, ouvintes filhos de pais surdos, e os surdos com diferentes graus de surdez? A esses indivíduos Lane et all (1996) têm se referido como "minorias duplas" e, a meu ver, têm sido mais apagados, invisibilizados e discriminados na nossa sociedade: ou seja, ser surdo cego é diferente de ser surdo vidende, ser surdo branco é diferente de ser surdo negro, ser surdo não oralizado é diferente de ser surdo oralizado... Essa discussão sobre diversidade cultural surda é também importante, levando em conta que é muito recorrente ouvir que o surdo de lares ouvintes não compartilha de cultura surda alguma com seus familiares, e, portanto, tem que buscar "essa cultura" (como se ela fosse uma só, pronta e acabada!) no INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 36 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 convívio com outros surdos (algo similar ao que se diz sobre a cultura dos homossexuais, que se reúnem em guetos para afirmar sua cultura). Ou seja, na maioria das discussões, enfatiza-se um surdo visto como um "estrangeiro em sua própria casa" (BAYTON, 1996; LALE et all, 1996). É muito complexa e intrigante essa afirmação, mas devemos ser cautelosos e críticos para não (re)produzirmos discursos que se fechem na perspectiva de guetização ou em fundamentalismos, negando-se a coexistência natural e contraditória das formas mescladas e híbridas entre as culturas surdas e ouvintes. Propondo uma analogia com o trabalho de Hall (2003a), podemos nos perguntar: que surdo é esse, afinal, na cultura surda? O pensamento de Hall (2003a/b/c) está voltado para as convicções democráticas, e seus estudos enfatizam a questão do gênero, sexualidade e raça. Uma forma de pensar a cultura está em sua reflexão sobre a diáspora. Hall (2003a) enfatiza que o aspecto diaspórico na constituição da cultura dos caribenhos na África, por exemplo, funciona como uma forma de sobrevivência e de subversão, e defende a hibridização ou "impureza" cultural como uma maneira de o "novo entrar no mundo". Ao falar de impureza, o autor afirma que tal característica é a condição necessária para a modernização: Numa gama inteira de formas culturais, há uma poderosa dinâmica sincrética que se apropria criticamente de elementos dos códigos mestres das culturas dominantes e os "criouliza", desarticulando certos signos e rearticulando de outra forma seu significado simbólico. (HALL, 2003ª, p. 34). E não nega, em sua teorização, que essas formações sincréticas surgem em uma relação de desigualdade, e estarão sempre determinadas pelas relações de poder, "sobretudo as relações de dependência e subordinação sustentadas pelo próprio colonialismo" (p. 34). São essas características diaspóricas, apontadas pelo autor, que nos permitem sustentar uma analogia com a(s) cultura(s) surda(s). E o que torna esta reflexão importante e plausível não é uma origem geográfica que possa ser compartilhada entre os surdos, mas a condição exclusiva de serem "o único grupo linguístico a ter uma comunidade em cada país do mundo" (LADD, 2003, p. 218). [tradução minha]. INE EAD – INSTITUTO NACIONAL DE ENSINO DEFICIÊNCIA AUDITIVA, SURDEZ E AEE 37 WWW.INEEAD.COM.BR – (31) 3272-9521 Hall (op. cit.) afirma que as condições diaspóricas, portanto, fazem com que as pessoas sejam "obrigadas a adotar posições de identificação deslocadas, múltiplas e hifenizadas" (p. 76), e uma forma de caracterizar as culturas de comunidades minoritárias, cada vez mais mistas