Prévia do material em texto
Geografia do Brasil Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profa. Dra. Vivian Fiori Revisão Textual: Profa. Esp. Vera Lídia de Sá Cicarone 5 • Introdução • O desenvolvimento desigual e combinado Como na unidade anterior, a leitura do texto teórico e o desenvolvimento das atividades são fundamentais para o acompanhamento do conteúdo a ser desenvolvido. Para que os exemplos e discussões teóricas fiquem mais claros, é necessário ler os textos complementares e assistir aos vídeos sugeridos, que auxiliam na compreensão dos conceitos básicos que serão desenvolvidos sobre os processos e transformações mais recentes no território brasileiro Nesta unidade, é essencial perceber que os processos produtivos no Brasil, devido ao processo de acumulação flexível, passam por transformações, mas, ao mesmo tempo, ainda há atividades mais tradicionais no território brasileiro. Além disso, é preciso também entender que o território brasileiro tem regiões onde se concentram mais densidade técnica, densidade populacional e atividades produtivas do que outras, formando diferentes arranjos espaciais Caro(a) aluno(a), espero que tenha tido um ótimo aproveitamento dos estudos até aqui e que continue se empenhando na construção do conhecimento na disciplina de Geografia do Brasil. Esta unidade trará temas relativos aos processos recentes de produção e às transformações no território brasileiro a partir do final do século XX. Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX 6 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX Contextualização As modernizações no território brasileiro vêm ocorrendo principalmente a partir do final do século XIX, com eventos e períodos mais marcantes após 1950-60, conforme já foi exposto anteriormente. No entanto, após a década de 1990, novos processos desenvolveram-se no mundo, cada vez mais globalizado do ponto de vista econômico, e envolveram também o território brasileiro. Transformações cada vez mais intensas nos sistemas produtivos vão opor as formas de produção que se denominam modernas às tradicionais. Esse é o caso emblemático da agricultura camponesa, familiar, em relação à agricultura moderna. Como diz o geógrafo Vicente Eudes Alves: No que diz respeito ao espaço agrícola, as formas não homogêneas impostas pelo processo de modernização contemporânea se assemelham às do urbano, ou seja, evidenciam-se dois conjuntos de áreas com formas características distintas de reprodução: o da agricultura moderna e o da agricultura camponesa. O primeiro, de posse dos instrumentais de alta tecnologia avança sobre o da produção agrícola dos camponeses que ainda se valem de antigas estruturas agrárias para garantir os seus meios de vida, imprimindo nele um outro tempo, baseado no ritmo da natureza e com apoio de técnicas menos aperfeiçoadas. Esses grupos ainda permanecem instalados nos vales úmidos, no entanto suas terras estão cada vez mais isoladas diante da investida dos agricultores capitalistas, que, na tentativa de homogeneização, valem-se da coerção (ALVES, 2006, p. 82). Além disso, os sistemas produtivos denominados modernos estão cada vez mais integrados pelos sistemas de produção, circulação e consumo. Contudo, é fundamental considerar que o mundo também é formado de existências camponesas, de agricultura familiar e de subsistência, com outras formas que são importantes para a produção de alimentos, por exemplo. Assim, vamos entender um pouco mais sobre estes processos mais recentes de transformações no território brasileiro e desses novos processos de divisão territorial do trabalho nos quais a flexibilidade na produção é a palavra-chave. 7 Introdução O território brasileiro, a partir da década de 1990, passou a ser influenciado pela intensificação do neoliberalismo na política brasileira. Tal evento provocou uma reorganização produtiva com a mudança da estrutura de acumulação fordista para o que autores chamam de acumulação flexível (HARVEY, 2005). Um dos principais símbolos da acumulação flexível é a flexibilização da localização industrial, na qual partes da indústria localizam-se em vários lugares. Essa flexibilização da distribuição produtiva promoveu a redistribuição de grande parte da atividade de produção industrial no território nacional. Isso, no entanto, não alterou o perfil de centralidade do capital na chamada Região Concentrada, a qual, dentro da lógica “dos espaços que mandam e espaços que obedecem” (SANTOS; SILVEIRA, 2001), manteve seu perfil de comando sobre unidades cada vez mais dispersas. No período anterior do processo de produção industrial, da acumulação fordista, havia a figura da linha de montagem (fig. 1) dentro de uma unidade fabril, com unidades produtoras e fornecedoras de insumos numa escala local. Fig. 1. Charge sobre Fordismo Fonte - gocomics.com/frankandernest Na estrutura da acumulação flexível, a escala da produção se amplifica, com a integração produtiva de determinadas cadeias alcançando vastas porções do território. Com isso, desenvolve-se uma competição, entre regiões produtivas, por investimentos, ocasionando o que se convencionou chamar de “guerra fiscal”. Esta vem acompanhada, também, da chamada “guerra de lugares” (SANTOS, 2006), levando a uma nova distribuição espacial dos empreendimentos, o que também demanda a criação de novas infraestruturas e sistemas logísticos. No território brasileiro, as regiões Sul e Sudeste formam o que Milton Santos e Maria Laura Silveira (2001) chamam de “Região Concentrada”, na qual há uma maior concentração dos sistemas de objetos e ações, ou seja, de infraestrutura física, meios de transportes, comunicação em rede, além de grande concentração de pessoas e de instituições de pesquisa, sedes de empresas, formando uma economia de aglomeração. Numa escala, dentro dessa Região Concentrada, há uma concentração espacial ainda maior numa área ocupada pelas Regiões Metropolitanas de São Paulo, Campinas, Baixada Santista, Vale do Paraíba-Litoral Norte e Sorocaba, as quais formam um grande polo de produção e consumo de mercadorias, além de, no caso da cidade de São Paulo, funcionar como centro de gestão do território brasileiro para as grandes corporações empresariais (LENCIONI, 2003). 8 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX O que é neoliberalismo? O neoliberalismo torna-se ideologia dominante numa época em que os EUA detêm a hegemonia exclusiva no planeta. É uma ideologia que procura responder à crise do estado nacional ocasionada de interligação crescente das economias das nações industrializadas por meio do comércio e das novas tecnologias. Enquanto o liberalismo clássico, da época da burguesia nascente, propôs os direitos do homem e do cidadão, entre os quais, o direito à educação, o neoliberalismo enfatiza mais os direitos do consumidor do que as liberdades públicas e democráticas e contesta a participação do estado no amparo aos direitos sociais. Representa uma regressão do campo social e político e corresponde a um mundo em que o senso social e a solidariedade atravessam uma grande crise. É uma ideologia neoconservadora social e politicamente. Por isso, afina-se facilmente na sociedade administrada dos chamados países avançados, em que o cidadão foi reduzido a mero consumidor, e cresce no Brasil e em outros países da América Latina, vinculando-se à cultura política predominantemente conservadora. O neoliberalismo parte do pressuposto de que a economia internacional é autorregulável, capaz de vencer as crises e, progressivamente, distribuir benefícios pela aldeia global, sem a necessidade de intervenção do Estado. Enquanto o liberalismo tinha por base o indivíduo, o neoliberalismo estána base das atividades do FMI, do Banco Mundial, dos grandes conglomerados e das corporações internacionais. A liberdade que postula é a liberdade econômica das grandes organizações, desprovida do conteúdo político democrático proposto pelo liberalismo clássico. (Texto literal extraído de Sonia Alem Marrach, Neoliberalismo e educação. Disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/eso/neoeducacao1.html). Acesso 20/05/2014. A introdução das políticas neoliberais promoveu, portanto, um processo de reestruturação do território, especialmente quando pensada comparativamente ao processo anterior de industrialização, ocorrido a partir de 1950-60, com a introdução de políticas de substituição de importações. Nesse outro período, o principal objetivo era dotar o território de uma estrutura produtiva voltada à industrialização do país e à modernização do território por meio da promoção da autossuficiência do Brasil na produção de bens industriais, com uma política vinculada à formação de um mercado interno. Agora, com a acumulação flexível, o objetivo principal é promover a modernização das estruturas produtivas de modo a tornar o país mais “competitivo” em escala global, aproveitando- se das vantagens locacionais de cada subespaço produtivo, de modo a inserir o Brasil na lógica produtiva prevalente no período da globalização industrial. A estratégia política neoliberal, que preconizava a abertura da economia nacional à concorrência global, demandou também a privatização de empresas estatais, que constituíam a base de boa parte da produção durante o período anterior, quando existia a visão de que era necessário resguardar o interesse nacional por meio da reserva de mercado em alguns setores. http://www.cefetsp.br/edu/eso/neoeducacao1.html 9 Assim, grandes conglomerados empresariais estatais foram privatizados, como foi o caso da Companhia Vale do Rio Doce (mineração); Eletrobrás (produtora e distribuidora de energia); Companhia Siderúrgica Nacional; Ferrovias Paulista S. A. (FEPASA); Banco do Estado de São Paulo (BANESPA), entre outros. Portanto, a transição do modelo de acumulação fordista para a chamada acumulação flexível do capital (HARVEY, 2001) ocasionou uma crise no território, que produziu uma nova divisão territorial do trabalho, com dispersão geográfica da produção, resultando numa hierarquia de escalas locais, regionais e globais (HARVEY, 2007). A visão de Harvey corrobora a teoria de Milton Santos (2001) de que os diversos usos do território ocasionam uma diferenciação entre espaços que mandam e espaços que obedecem, estabelecendo uma relação de centralidade de um ou mais pontos no território com outros, além de um movimento, o qual pode ser representado pela aceleração nos processos de tomada de decisão que influenciam amplos e variados espaços. Trocando Ideias A acumulação flexível, segundo David Harvey, é: “[...] marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento dos serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional” (HARVEY, 1992, p.140). A figura 2, abaixo, ilustra a centralidade das cidades, com relação ao seu entorno e sua hinterlândia (área de influência de uma dada cidade). Figura 2. Centros de Gestão do Território, por nível de centralidade, 2013 Fonte - IBGE. 2013 10 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX Verifica-se que há uma forte centralidade de três metrópoles principais: São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. A classificação é adotada pelo IBGE segundo os critérios de intensidade de relacionamento entre as cidades, o efeito polarizador que exercem e a dimensão de influência de cada centro, relacionando fatores como gestão de empresas, de serviços privados e públicos (saúde, educação, sistema financeiro, instituições públicas etc.). Verificamos que, na Região Sudeste, há uma imensa concentração de cidades de porte médio que atuam como centralidades numa escala local/regional. O mesmo ocorre na Região Sul. Seguindo em direção à Região Nordeste, a malha urbana reduz significativamente, estando concentrada, principalmente junto ao litoral, em grandes metrópoles, como Recife, Salvador e Fortaleza, apresentando também capitais de médio porte, como João Pessoa, Maceió, Natal, São Luís, Aracaju, Teresina, além de cidades interioranas que detêm certa centralidade, como Feira de Santana, Imperatriz, Caruaru, Vitória da Conquista, Campina Grande, Petrolina e Juazeiro. A tabela 1, que segue, também é bastante elucidativa sobre esse processo de concentração espacial, pois verificamos que, das sedes de grandes empresas, há uma imensa concentração em São Paulo, com 365 sedes, seguida pela cidade do Rio de Janeiro, com 116. Além disso, nota-se que algumas cidades de médio porte, como Caxias do Sul (RS), Ribeirão Preto (SP) e Joinville (SC) detêm mais sedes empresariais do que uma metrópole de grande peso regional como Belém (PA). Tabela 1: Distribuição das Sedes de Grandes Empresas do Brasil Local da sede Empresas Local da sede Empresas São Paulo 365 Ribeirão Preto 11 Rio de Janeiro 116 Joinville 10 Porto Alegre 50 Goiânia 10 Belo Horizonte 46 Sorocaba 9 Curitiba 40 Londrina 9 Salvador 32 Belém 8 Campinas 30 Florianópolis 8 Manaus 27 Cuiabá 8 Brasília 25 Natal 7 Vitória 21 Uberlândia 7 Recife 14 Volta Redonda 5 Fortaleza 13 Barra Mansa 5 Caxias do Sul 13 Jundiaí 5 Fonte: Valor Econômico, 2005, apud IBGE, 2007. Esses aspectos ilustram como a modernização do território ocorreu de forma bastante desigual, produzindo uma concentração de grande capital, infraestrutura e fluxos nas regiões Sul e Sudeste – a Região Concentrada - diminuindo à medida que analisamos os espaços produtivos mais antigos, como o Nordeste e a Amazônia, que representam espaços periféricos na produção do espaço brasileiro. 11 Quanto ao Centro-Oeste, podemos afirmar que a região é, atualmente, uma grande frente de expansão da Região Concentrada. As malhas ferroviárias e rodoviárias vêm se expandindo, acompanhando o grande crescimento da produção agrícola regional, principalmente de cereais como soja e milho além de outros produtos como carne e algodão, que têm alto valor no mercado internacional. O transporte dessas mercadorias até os portos de exportação esbarra numa outra peculiaridade presente no processo de formação do território brasileiro e que também intervém na relação de desigualdade entre as regiões. Entre os países de grande dimensão territorial e de grande população, talvez apenas a China apresente similar concentração das atividades industriais e da população tão próxima à costa. Além disso, a matriz de transportes brasileira encontra-se hiperconcentrada no modal rodoviário (aproximadamente 70%), o que é bastante díspar do que ocorre em outros países de dimensões continentais semelhantes. Analisando-se as características de custo/benefício dos diversos modais de transporte, veremos que essa distorção no caso brasileiro é muito mais grave. Num país com grandes distâncias a serem cobertas pelo transporte de carga, a opção rodoviária representa a pior opção do ponto de vista econômico, especialmente no caso de cargas de menor valor agregado, como minério e grãos. Quadro 1: Relação custo-benefício dos sistemas de transporte Modal de transporte Relação distância versus custo Rodovia Até 400 km Ferrovia De 400 a 1500 km Hidrovia / Navegação Costeira Acima de 1500 km Fonte: Login Logística, 2013. O quadro 1 mostra que o transporte rodoviário é especialmente interessante para curtas distâncias (de até 400 km), já que o custo unitário de carregamento de cargas por rodovia é alto. Assim sendo, ele torna-se tão mais interessantequanto maior for o valor agregado da carga transportada. A capacidade de transporte das ferrovias e a segurança são fatores que tornam sistema de transporte recomendável para médias distâncias e também para transporte de volumes maiores de carga, como grãos, granéis líquidos e minérios. Já os sistemas de transporte aquaviário, como as hidrovias interiores e a navegação costeira ou de cabotagem, são interessantes para transporte de vários tipos de carga, em volumes consideravelmente maiores, numa relação na qual quanto maior o volume de carga, menor será o custo unitário do transporte. Mesmo com todas as políticas de interiorização do desenvolvimento, iniciadas no governo Vargas, aprofundadas no governo JK e durante o regime militar, permaneceu ainda uma enorme concentração de população junto à costa, senão no litoral, em cidades distantes não mais que 100 km desta. 12 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX Nas unidades 1 e 2, vimos que a economia colonial estava baseada no chamado “arquipélago econômico”, com estruturas produtivas voltadas ao mercado externo, formando áreas que não mantinham grande coesão econômica entre si. Esse aspecto da nossa formação territorial permanece, ou seja, há uma integração incompleta do território brasileiro, especialmente por redes técnicas, que continua influenciando fortemente a dinâmica de transportes no país. Apesar de toda a política de interiorização do desenvolvimento, não houve propriamente uma transferência de população das grandes aglomerações urbanas situadas ao longo da ou próximas à costa brasileira (fig. 3). Fig. 3. Densidade Demográfica do Brasil Fonte - IBGE, 2010. Elaborado por Marco Antônio Gomes, 2012. Podemos ver, no mapa apresentado acima (fig. 3), a localização das maiores concentrações populacionais, especialmente na Região Concentrada (especialmente em São Paulo) e também no leste da região Nordeste. Adentrando o território para oeste, há concentrações menores na região entre Goiânia e Brasília. Já na região amazônica, as concentrações se dão em torno de Belém, na costa; e em Manaus, que, sozinha, concentra mais da metade da população do estado do Amazonas. No caso do Amazonas, quase todos os municípios têm menos de 100 mil habitantes, exceto Parintins (102.033 habitantes) e Manaus, que possui 1.802.014 (CENSO, IBGE, 2010). 13 Observe, no mapa a seguir (fig 4), que a distribuição espacial da indústria é bastante similar à distribuição da população, excetuando-se alguns pontos dispersos correspondentes a áreas de baixa densidade, principalmente no Centro-Oeste. Fig. 4 . Distribuição Espacial da Indústria. Fonte - IBGE, 2009. Disponível em atlasescolar.ibge.gov.br/ A expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste – e, na atualidade, principalmente deslocando-se para a Amazônia – ocorrida, sobretudo, a partir dos anos 1960 do século XX, levou a um crescimento demográfico dessas regiões focado, principalmente, em atividades relacionadas à agricultura e setores correlatos – tratores, máquinas, defensivos agrícolas, agroindústria. Isso explica os pontos representando empresas industriais existentes em regiões de baixa densidade demográfica. Apesar disso, essas regiões de novas frentes de expansão permanecem submetidas economicamente a interesses corporativos, cujos centros de decisão encontram-se, ainda, principalmente na Região Concentrada. Essa transição, em si, não representa novidade. Conforme Milton Santos diz (2001, p. 290) “[...] o território é objeto de divisões de trabalho superpostas”, além do que, segundo ele, cada empresa ou atividade também pode ter sua própria divisão de trabalho, com escalas que podem ir do local ao global. As indústrias, antes presentes em espaços muito próximos no território, geralmente em “parques industriais”, cujo melhor exemplo talvez seja o parque automobilístico do ABC Paulista, estão agora espalhadas pelo território. 14 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX Suas cadeias de suprimento são abastecidas por matérias-primas e componentes oriundos de vários locais, tanto dentro quanto fora do território nacional, demandando ainda mais estruturas para promover a circulação, num contexto de intensa busca por maior rentabilidade do capital investido. Assim, o uso do território torna-se estratégico para as empresas, dado que as vantagens comparativas e competitivas permitem o fenômeno da multilocalização, em que plantas fabris são supridas facilmente pelas cadeias logísticas, demandando um eficiente sistema de circulação para seu suporte, conforme explicam Milton Santos e Maria Laura Silveira: À medida que o território brasileiro se torna fluido, as atividades econômicas modernas se difundem e uma cooperação entre as empresas se impõe, produzindo-se topologias de empresas de geometria variável, que cobrem vastas porções do território, unindo pontos distantes sob uma mesma lógica particularista (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 291). Além disso, cada setor de atividade busca a porção do território mais atraente para seu tipo de atividade. Como exemplo podemos citar o deslocamento de grande parte das indústrias têxteis e calçadistas do Sudeste para o Nordeste, em busca de custos menores de mão de obra, para competir adequadamente com os produtos asiáticos. É necessário, ainda, entender o território por meio das relações de complementaridade que existem em relação às cadeias produtivas instaladas nas diversas regiões. Quando tratamos da agricultura moderna no Centro-Oeste, devemos entender que sua existência decorre, principalmente, da necessidade de suprir grandes regiões consumidoras, como o Sul e Sudeste, e também de exportação. Por outro lado, para que essa agricultura exista, há uma enorme necessidade de equipamentos agrícolas, como tratores e colheitadeiras, e também de mão de obra especializada, como engenheiros agrícolas, agrônomos, veterinários etc. Essa mão de obra e esses equipamentos serão demandados de regiões onde haja uma cadeia produtiva instalada bem como universidades e centros formadores, que estão mais concentrados no Sul e Sudeste. Para evidenciar bem essa inter-relação, há o exemplo da produção de insumos (equipamentos, produtos químicos etc.). Mesmo as novas áreas de fronteira agrícola, no norte de Mato Grosso e Tocantins, por exemplo, demandam grandes quantidades de insumos provenientes de áreas do interior de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. As centralidades são determinadas, portanto, não somente pelo que ocorre no entorno imediato de uma cidade, mas por sua capacidade de estabelecer relações de complementaridade produtiva, ainda que com regiões longínquas. Essa relação também pode ser observada ao identificarmos, no mapa abaixo (fig. 5), as atividades predominantes em cada região. As frentes de expansão da agricultura e da criação de gado, presentes no Centro-Oeste brasileiro, estão conectadas com centralidades agroindustriais, presentes no interior paulista (Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Bauru, Presidente Prudente), no norte do Paraná (Londrina, Maringá e Cascavel) e no Rio Grande do Sul, além de centros na própria região, como Campo Grande, Goiânia, Dourados e Cuiabá. 15 Fig 5. Brasil: Atividades Econômicas Predominantes Fonte - PNOT, 2006. Adaptado por Vivian Fiori, 2014. Atualmente há um movimento de expansão das fronteiras agrícolas também em direção a áreas de cerrado na Região Nordeste, como o oeste da Bahia e sul do Piauí e do Maranhão. Cidades como Barreiras (BA), Balsas (MA) e Uruçuí (PI) estão também conectadas a essas redes relacionadas ao moderno agronegócio brasileiro. Além disso, existem também áreas de fruticultura irrigada em Mossoró (RN), que produzem principalmente melões, e nas regiões de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), que além de frutas produzem também vinho. O Agronegócio. O Agronegócioé um termo empregado para designar um conjunto de atividades relacionadas à produção agropecuária e que envolve outros setores relativos à sua cadeia produtiva, como fornecimento de insumos agrícolas, colheitadeiras, fertilizantes, além da industrialização e transporte. Envolve, ainda, uma cadeia relacionada à pesquisa e desenvolvimento formada por empresas privadas, multinacionais e também governamentais – caso da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). Assim sendo, as redes de relações empresariais bem como a infraestrutura material – as redes de transporte e telecomunicações – estabelecem como se darão os fluxos no que concerne às redes de relações existentes no território. A existência de uma melhor ou pior infraestrutura pode ser determinante do modo como se darão os fluxos e como ocorrerá essa relação de complementaridade inter-regional. 16 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX O chamado setor terciário moderno, ligado à prestação de serviços que envolvem consultoria, pesquisa, planejamento das atividades especializadas, desenvolveu-se e promove novas tendências no território, como o desenvolvimento de redes técnicas ligadas às telecomunicações e à logística. Esse setor está bastante concentrado nas metrópoles, sobretudo no Estado de São Paulo. Em alguns momentos, há o embate entre as demandas desses setores modernos da economia e o que podemos chamar de setores tradicionais. Assim, o agronegócio, por exemplo, promove mudanças no território que não contemplam as demandas da agricultura familiar, realizada em pequena escala e voltada para o abastecimento local. Além disso, a modernização da produção não é acompanhada, necessariamente, de uma ação imediata de modernização das redes de transporte, por exemplo. Podemos exemplificar com o caso da soja do Centro-oeste, a qual, para ser exportada para os mercados asiático, europeu e norte-americano, viaja em caminhões por milhares de quilômetros até os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR), devido à falta de ferrovias e portos equipados adequadamente para que se pudesse fazer esse escoamento pelos portos fluviais da Amazônia, geograficamente muito mais próximos. As decisões locacionais das empresas são baseadas em condições técnicas do território que lhes permitam um maior benefício pelo menor custo possível. Desse modo, os investimentos são direcionados para áreas com melhores condições técnicas para cada tipo de atividade produtiva, interferindo na infraestrutura do país ao promover uma determinada prática espacial. Segundo Roberto Lobato Corrêa, a despeito do fato de a gestão do território estar subordinada às gestões econômica, política e social, as formas de criação, organização e controle do território constituem o que podemos chamar de práticas espaciais. Essas práticas são relacionadas, ainda, com processos de concentração e dispersão de atividades no território, especialmente quando atores que adquirem certa influência se tornam hegemônicos e acabam por influenciar as mesmas gestões: econômica, política e social (CORRÊA, 1992). Desse modo, grupos econômicos relacionados à produção de soja no Centro-Oeste, por exemplo, podem exercer práticas espaciais que influenciam as decisões de investimento em rodovias, armazenamento de grãos, financiamento bancário etc. Logo, esses grupos têm mais poder em conjunto e atuam de diferente forma quando comparados ao pequeno agricultor familiar. O papel exercido por grandes corporações influencia, assim, as condições de acumulação e reprodução do capital, estabelecendo diferenciações no uso e controle de vastas porções do território. Em âmbito nacional, cria-se uma segregação entre espaços modernos, luminosos, dotados de melhor infraestrutura, que propiciam maiores possibilidades de ganhos de produtividade, e espaços opacos, menos dinâmicos, com menor intensidade técnica (insumos, meios de transporte etc.). Podemos usar, como exemplo, o setor portuário. Os portos localizados em áreas de menor dinamismo econômico ou que não disponham de um aparato técnico de ponta, como pátios de contêineres, transtêineres ou terminais refrigerados, tendem a ficar em segundo plano quando contrapostos àqueles melhor equipados e que sirvam a regiões de produção ou de consumo mais intensos. 17 Portanto, a modernização do território amplia a seletividade espacial, sempre privilegiando áreas mais facilmente permeáveis a inovações técnicas. O grande crescimento da utilização de contêineres é um exemplo. Os locais que se adaptaram a seu uso conseguem otimizar o processo de produção e circulação, permitindo ganhos na escala da circulação. Assim sendo, aqueles portos e terminais de transporte que não estão adaptados ao contêiner tendem a tornarem-se obsoletos no contexto das práticas modernas de transporte de mercadorias. O desenvolvimento desigual e combinado A teoria sobre desenvolvimento desigual e combinado, primordialmente elaborada por Leon Trotsky e amplamente difundida pela escola crítica de Geografia, permite tecer considerações sobre o motivo pelo qual as inovações se encontram desigualmente distribuídas no território. De acordo com o geógrafo Neil Smith, o desenvolvimento desigual “[...] é a manifestação concreta da produção do espaço sob o capitalismo” (SMITH, 1988, p. 139), promovendo amplas diferenciações nos territórios, já que a lógica da acumulação capitalista é propensa à desigualdade. Assim, a divisão territorial do trabalho age de forma funcional ao capital, o que torna mais complexas as relações naquelas regiões em que os estágios de acumulação estão mais desenvolvidos. Segundo Milton Santos, em seu livro Espaço e método, as transformações ocorrem também em função da qualidade que os lugares adquirem para recebê-las: O fato de que a cada momento nem todos os lugares são capazes de receber todas as modernizações explica por que: 1) certos espaços não são objeto de todas as modernizações; 2) existem demoras, defasagens, no aparecimento desta ou daquela variável moderna ou modernizante; e isto ocorre em diferentes escalas (SANTOS, 1985, p. 48). Assim sendo, explicam-se tanto as diferenças regionais internas dos países quanto as contradições e também as relações com os fenômenos modernizantes entre os diferentes países. As modernizações criam hierarquias funcionais entre os objetos técnicos dentro do território, especializando a produção e criando polos internos, e isso também se verifica no nível interno do território brasileiro. As mudanças criam lugares privilegiados e outros obsoletos no que se refere à realização da acumulação capitalista, com base em vários fatores que podem referenciar tal escolha. São desde fatores meramente físicos, como a localização numa planície - o que permite criar áreas retroportuárias vastas o bastante para acumular contêineres - até fatores estruturais, como a existência de ligações rodoviárias e ferroviárias, capacidade de conexão com mercados consumidores regionais etc. 18 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX Então, nesta atual divisão territorial do trabalho, há diferentes características que coexistem no Brasil, seja da agricultura moderna versus a tradicional (familiar), ou das atividades do terciário moderno, entre outras. Desse modo, apreende-se que o território brasileiro é funcionalizado de acordo com os interesses dos mais diversos atores – sociais, econômicos e políticos – os quais podem agir de forma conflituosa, quando seus interesses se contrapõem, ou de forma sinérgica, promovendo alterações significativas nas estruturas produtivas, nas redes de comunicação e de circulação, interferindo, assim, na configuração do território brasileiro. 19 Material Complementar Leitura de artigos, relatórios e teses disponíveis na internet: ALVES, Vicente Eudes Lemos. Mobilização e modernização nos cerradospiauienses: formação territorial no império do agronegócio. Tese (Doutorado), São Paulo, FFLCH, Programa de Geografia Humana USP, 2006. DINIZ, Clélio Campolina. Dinâmica regional e ordenamento do território brasileiro: desafios e oportunidades. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 2013. Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20471.pdf. Acesso em 10/05/2014. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. (IBGE). Gestão do território 2014: redes e fluxos do território. 2014. IBGE, Coordenação de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 2014. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/apps/redes_e_fluxos/2014/. Acesso em 15/05/2014. VIEIRA, Guilherme B. B. As estratégias adotadas pelas companhias marítimas e a identificação de hub ports. (www.guiadelogistica.com.br). Disponível em: http://www.guialog.com.br/ARTIGO278.htm http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%2520471.pdf http://www.ibge.gov.br/apps/redes_e_fluxos/2014/ www.guiadelogistica.com.br http://www.guialog.com.br/ARTIGO278.htm 20 Unidade: Processos recentes de produção e transformações no território brasileiro a partir do final do século XX Referências BOTELHO, Adriano. Do fordismo à produção flexível: o espaço da indústria num contexto de mudanças das estratégias de acumulação do capital. São Paulo: Ed. Annablume, 2014. CORRÊA, Roberto Lobato. Corporação, práticas espaciais e gestão do território. In: Anuário do Instituto de Geociências, v. 15, 1992. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: http://ppegeo. igc.usp.br/scielo.php?pid=S0101-97591992000100006&script=sci_arttext. Acessado em 19/05/2014. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional: Publifolha, 2000. GOMES, Marco Antonio. O uso do território pela navegação de cabotagem brasileira por contêiner no contexto da circulação global de mercadorias. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2013. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Atlas Nacional do Brasil Milton Santos. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. ______. Região de Influência das Cidades. Rio de Janeiro, Publicação, 2007. Disponível em: http:// www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/regic.shtm?c=6. Acesso em 10/05/2014. ______. Gestão do território 2014: redes e fluxos do território. 2014. IBGE, Coordenação de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 2014. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/apps/redes_e_fluxos/2014/. Acesso em 15/05/2014. MARRACH, Sonia Alem. Neoliberalismo e Educação. Disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/eso/ neoeducacao1.html. Acessado em 19/05/2014. MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias geográficas: espaço, cultura e política no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005a. ______. Território e história no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005b SANTOS, Milton & SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001. SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo: Nobel, 1985. ______. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como método. In: Boletim Paulista de Geografia, nº 54. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977. SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção do espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. Site: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/agronegocio-atividade-alavanca-exportacoes-do-brasil.htm http://www.ibge.gov.br/apps/redes_e_fluxos/2014/ http://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/agronegocio-atividade-alavanca-exportacoes-do-brasil.htm 21 Anotações www.cruzeirodosulvirtual.com.br Campus Liberdade Rua Galvão Bueno, 868 CEP 01506-000 São Paulo SP Brasil Tel: (55 11) 3385-3000 http://www.cruzeirodosulvirtual.com.br