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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL KICKBOXERS Esportes de Combate e Identidade Masculina. Édison Luis Gastaldo Porto Alegre, novembro de 1995. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL KICKBOXERS Esportes de Combate e Identidade Masculina. Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós- graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Édison Luis Gastaldo Orientação: Profª Drª Ondina Fachel Leal Porto Alegre, novembro de 1995. Sumário Resumo/Abstract 5 Introdução 7 Capítulo 1. As Artes Marciais 19 1.1 A Arte da Guerra 19 1.2 Artes Marciais e Esportes de Combate 25 1.3 Artes Marciais e Indústria Cultural 28 1.4 A Organização das Artes Marciais no Campo Esportivo 35 Capítulo 2. O Full-Contact 46 2.1 Generalidades 46 2.2 Universo de Pesquisa: Os Praticantes de Full-Contact 47 2.3 A Prática Esportiva em Grupos Sociais Diferenciados 53 2.3.1 Dois Casos 55 2.4 O Lado de Dentro das Academias 59 2.4.1 O Espaço: 61 2.4.2 Uma Aula: 66 2.4.3 Uma Tarde de Lutas 74 a. O Evento 74 b. O Público 78 c. Os Lutadores 85 d. Um Combate 86 Capítulo 3. Identidade Masculina e Competitividade 92 3.1 Sobre a Noção de Gênero 92 3.2 A Construção Social da Identidade Masculina 94 3.2.1 Aspectos Sociais da Masculinidade em Diversas Culturas 97 3.2.2 A Masculinidade e seu Reverso 99 3.3 A Identidade Masculina no Ambiente das Academias 100 3.4 A Competitividade: Jogo e Hierarquização da Masculinidade 111 3.4.1 O Ethos Masculino e a Competitividade 111 3.4.2 O Jogo 117 3.4.3 A Hierarquização da Masculinidade 119 3.5 Uma Semântica da Virilidade 127 3.5.1 Sobre os Valores "Força" e "Técnica" 135 3.6 Ringues e Rinhas, Galos e Goleiras: a masculinidade posta à prova 139 Capítulo 4. Homens de Ferro: a Construção do Corpo 150 4.1 O Uso e a Percepção Social do Corpo 150 4.2 A Utilização do Corpo para a Luta 153 4.3 O Desprezo à Dor 158 4.4 A Aceitação das Regras 163 Conclusão 166 Referências Bibliográficas 171 Índice Remissivo 180 Anexo: Glossário de Termos Usuais no Full-Contact 183 Resumo Esta pesquisa etnográfica trata da prática de um esporte de combate, o "full-contact", em academias na cidade de Porto Alegre, sob o viés da construção social da identidade masculina. Como este esporte é praticado quase que exclusivamente por homens, este trabalho busca compreender como se articulam os diversos elementos constituintes da identidade masculina no ambiente destas academias. Abstract This etnographical research approaches the practice of a sportive fight, the "full-contact", in the city of Porto Alegre, under the perspective of the social construction of male identity. As this sport is practiced almost exclusively by men, this work wishes to understand how do the shaping elements of this male identity articulate within the environment where this sport is practiced. Lutar e vencer em todos os combates não é a glória suprema; a glória suprema consiste em vencer o inimigo sem lutar. Sun Tzu (c. 500 a.C.) Introdução Esta dissertação consiste em um estudo acerca da construção social da identidade masculina entre jovens praticantes de um esporte de combate, o full-contact, tomando como universo de pesquisa os freqüentadores das academias onde se aprende e pratica este esporte, na cidade de Porto Alegre. Este trabalho pretende contribuir para os estudos sobre a construção da identidade de gênero, apresentando os praticantes de full-contact (em sua absoluta maioria homens jovens, entre 15 e 25 anos) e o uso social que eles fazem do espaço no interior das academias, produzindo significados e compartilhando determinadas atitudes, valores, gestos e expressões constituidoras de uma identidade de gênero, no caso o masculino. Nestas academias, como veremos, se valorizam aspectos como a "valentia", a força física, a "garra" e uma noção de corporalidade baseada no domínio sobre o corpo através do aprendizado da técnica de combate, bem como o desprezo à dor decorrente da prática do combate e dos treinos. Em um plano mais simbólico, na interação entre os membros do grupo pesquisado se desvaloriza a conduta "homossexual" e se lança publicamente esta pecha à guiza de desafio, sendo a conduta esperada pelo grupo a pronta reação do "ofendido". Como veremos, estes valores e atitudes não são apenas esperadas de um praticante de full-contact, mas correspondem de modo geral a uma espécie de "estereótipo" da atitude masculina em nossa sociedade, conforme demonstram os trabalhos de Leal (1992c), Jardim (1991) e Leczneiski (1995), entre outros. O fato de ser praticado quase que exclusivamente por homens (em dois anos de trabalho de campo, só foi registrado um caso de mulher praticando este esporte) e envolver um estreito contato físico entre os 8 praticantes (o termo "full-contact" significa literalmente "contato pleno") torna o ambiente das academias um local onde valores associados a esta constituição de uma identidade masculina se tornam particularmente evidentes. O full-contact, além disso, é representativo de uma série de outras técnicas corporais conhecidas sob o nome genérico de "artes marciais". Oriundas em grande parte de antigas tradições orientais, estas técnicas corporais de luta corpo-a-corpo sofreram, em maior ou menor grau, um processo de reinterpretação ao serem adaptadas à nossa sociedade, adotando, muitas vezes, o caráter de práticas esportivas, desviando-se de sua utilização original de técnicas de combate para uso militar. Assim, o tema que este trabalho aborda são estas técnicas corporais conhecidas como "artes marciais", sob o prisma da construção da identidade masculina. As academias onde se ensinam e aprendem estas técnicas são tomadas aqui como um locus privilegiado para o entendimento da construção desta identidade de gênero. O universo das artes marciais, entretanto, é demasiado vasto para ser abarcado em um único trabalho de cunho antropológico, e se o fosse, provavelmente o grau de generalização necessário a uma tarefa desta ordem poria a perder a riqueza das especificidades inerentes a cada estilo de luta. Como colocar em um único trabalho, por exemplo, as complexas relações sociais presentes nas origens da capoeira com a imensa representatividade do judô no cenário esportivo brasileiro? Assim, optei por apenas uma modalidade de luta, que fosse representativa deste universo e cujas especificidades pudessem acrescentar novos dados para o entendimento destas técnicas corporais e sua relação com a construção de uma identidade masculina em nossa sociedade. 9 Neste trabalho, busco construir uma interpretação do que sejam os aspectos constituintes desta identidade masculina perante o grupo pesquisado. Entendendo, como Geertz (1978: 15), que a cultura seja como uma "teia de significados" produzida pelos homens, acrescida da análise sobre esta teia, e a antropologia como uma "ciência interpretativa, à procura do significado", procuro captar os significados produzidos pelo grupo pesquisado, para em um processo interpretativo, analisar estes significados à luz da teoria antropológica. Para atingir este objetivo de compreender e interpretar os significados produzidos por este grupo, foi utilizada a observação participante. Os dois anos emque convivi com o grupo pesquisado, observando, entrevistando os praticantes, conversando ou mesmo participando de alguns treinos de full-contact se inserem neste trabalho como uma parte importante do processo de interpretação destes significados. O olhar posicionado do pesquisador e seu estranhamento frente à situação de campo relativizam e reinterpretam as outras fontes de dados, por vezes confirmando, por vezes contradizendo estas informações, mas sempre conduzindo a um conhecimento mais aprofundado do objeto desta pesquisa. Para viabilizar este objetivo, foram utilizadas diferentes técnicas de pesquisa, como a realização de entrevistas abertas e semi-diretivas com praticantes e professores de várias academias, todas gravadas e transcritas ipsis litteris. Além das entrevistas, também foi realizada uma extensa cobertura fotográfica de treinos, lutas de demonstração e combates oficiais. Estas fotografias foram utilizadas não só como material etnográfico, como uma forma auxiliar na descrição de locais e eventos, mas também foram posteriormente mostradas aos praticantes, sendo seus comentários a respeito anotados, fornecendo novos dados acerca do grupo pesquisado, além de 10 estabelecer uma espécie de troca, que levou a um ganho em sociabilidade e confiança por parte do grupo. Parte destas fotografias encontra-se no corpo deste trabalho. As minhas impressões pessoais eram escritas imediatamente após qualquer ida a uma situação de campo, sob a forma de um diário de campo. Todos estes procedimentos ajudaram a fornecer informações para este trabalho, que serão tratadas como "dados etnográficos". Estes dados, por sua vez, como ressalta Jardim (1991), são também produtores de significados, uma espécie de "metassignificação" acerca da situação de campo, ou seja, uma interpretação da interpretação original. Nos termos de Geertz (1978: 25), apenas o "nativo" teria acesso à interpretação original (afinal, é a sua cultura), a interpretação antropológica via de regra é uma interpretação de segunda ou terceira mão. Não que isso represente um problema muito sério; afinal de contas, ainda segundo Geertz, a necessidade de atenção para um trabalho etnográfico encontra-se basicamente no grau em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre na situação de campo a que ele se refere, de modo a reduzir a perplexidade derivada de "atos não-familiares que surgem de ambientes desconhecidos", o assim chamado estranhamento (Geertz, 1978: 26). Dito de outra forma, trata-se de realizar o trânsito de informações que tornem o exótico em familiar, de modo a reduzir este estranhamento perante um universo de significados do qual não somos originários, a cultura de um outro. Os nomes das pessoas e das academias de full-contact pesquisadas foram trocados, de modo a preservar a privacidade dos informantes. As transcrições de trechos de entrevistas foram realizadas a partir do registro em gravações magnéticas. Eventuais erros de concordância nestes trechos devem- se à intenção de preservar o quanto possível a fluência original da fala dos informantes. As referências bibliográficas utilizadas neste trabalho que não estavam originalmente em português foram traduzidas por mim. Estas 11 traduções estão indicadas com um asterisco (*) na legenda abaixo da citação, e transcritas no original em nota de rodapé. Com a finalidade de tornar o acesso a pontos específicos do texto mais fácil e rápido, ao final foi incluído um índice remissivo contendo os autores citados e palavras-chave consideradas relevantes. Após o índice remissivo, coloquei em anexo um glossário de termos usuais do full-contact, de modo a familiarizar o leitor neófito neste vocabulário. Via de regra, os termos que indicam nomes de golpes ou especificidades da prática do full- contact estão italizados, assim como palavras em língua estrangeira. Uma abordagem mais geral acerca das técnicas corporais chamadas de "artes marciais" é traçada no primeiro capítulo, com um breve histórico destas práticas, em especial as de origem oriental. É feita também neste capítulo uma distinção entre dois grupos diversos de modalidades de luta: as "artes marciais" e os "esportes de combate". Ainda neste capítulo, é abordada a relação entre estas práticas de luta e sua apropriação por parte de produtos da indústria cultural, e a influência advinda desta apropriação no imaginário dos praticantes. Finalmente, este primeiro capítulo relaciona algumas informações acerca da organização política destas técnicas de luta na nossa sociedade, sob a forma de modalidades esportivas. Para tanto, é utilizado o conceito de "campo esportivo" de Bourdieu, "campo" onde se inserem e organizam estas práticas na nossa sociedade, segundo uma rígida hierarquização, conforme veremos. No segundo capítulo, é tratado mais especificamente o full-contact. Após abordar alguns aspectos gerais a respeito desta prática esportiva, passo à delimitação do universo de pesquisa. O recorte em que situo o grupo pesquisado é o de "praticantes de full-contact". Esta categorização implica em um corte transversal que engloba pessoas provenientes das mais diversas origens sociais. É evidente que diferenças provenientes deste pertencimento a 12 camadas sociais distintas existirão. Porém, acredito que, isoladas estas diferenças, os indivíduos que se situam sob este recorte teórico possuem em comum uma série de características que transcendem o simples pertencimento a uma determinada camada social, especialmente no que diz respeito à construção da identidade masculina. A discussão acerca desta questão está no tópico "a prática esportiva em grupos sociais diferenciados". Após este tópico, relato dois casos, histórias de vida de praticantes provenientes de grupos sociais distintos, como ilustração da discussão anterior, e em seguida passo à descrição etnográfica de diversos aspectos ligados à prática do full-contact. No tópico intitulado "O lado de dentro das academias", descrevo sob uma abordagem interacionista a organização do espaço em uma academia de full- contact, a didática do combate dentro das academias e, finalizando este capítulo, descrevo a realização de um evento de lutas organizado pela Federação Gaúcha de Full-Contact, abordando aspectos da constituição do espaço, do público, as relações entre os lutadores e, por fim, a realização de um combate. O terceiro capítulo aborda a questão da identidade masculina sob diversos aspectos. Inicialmente, este capítulo trata do tema geral onde se localiza a problemática da identidade masculina, a noção de gênero. Situada esta noção, passo a descrever mais pormenorizadamente aspectos da construção social da identidade masculina. Através da referência a etnografias clássicas dentro da antropologia, busco demonstrar como, nas mais diversas sociedades, a noção de masculinidade, antes de ser biologicamente dada, é uma construção social, constituída de atributos socialmente valorizados que devem ser conquistados pelos meninos em cada cultura para que sejam considerados "homens". Um destes aspectos, ressaltado por diversos autores, é a "negação da feminilidade", que freqüentemente toma a forma de um repúdio 13 à homossexualidade. Como este aspecto é relevante junto ao grupo pesquisado, ser-lhe-á dada maior atenção. Após esta abordagem teórica acerca da masculinidade, veremos como se articulam estes conceitos na interação entre os praticantes no interior das academias, analisando os dados de campo à luz daqueles dados teóricos. A seguir, um aspecto importante da constituição de um ethos masculinoé levado em consideração: a competitividade. Como veremos, nas mais diferentes sociedades existe uma estreita ligação entre o "ser homem" e a participação em jogos e disputas, em geral com outros homens. Após uma revisão bibliográfica sobre este tema, abordo a questão do jogo propriamente dito, segundo a visão de alguns autores que trataram do tema. O nexo entre as noções de jogo e identidade masculina é feito a seguir, no tópico "a hierarquização da masculinidade", onde abordo a prática de jogos e disputas – os esportes, de modo especial – como sendo criadoras de uma hierarquia de poder entre homens, uma espécie de ranking simbólico da masculinidade. Em seguida, analiso os significados de gestos, falas e expressões de uso corrente entre os praticantes de full-contact pesquisados sob a ótica da construção da identidade masculina, estabelecendo uma "semântica da virilidade", nome deste tópico. Finalmente, o último tópico deste capítulo trata da questão da masculinidade posta à prova, estabelecendo relações entre a prática de esportes de combate com outras atividades competitivas eminentemente masculinas, como as rinhas de galo e o futebol, abordando as conclusões de diversos trabalhos antropológicos nesta área em confronto com os dados de campo obtidos neste estudo. O quarto capítulo trata da questão da corporalidade entre os praticantes de full-contact. Como qualquer prática esportiva, o full-contact exige do praticante uma intensa preparação física. No início deste capítulo, discuto alguns conceitos a respeito do uso social da corporalidade, como a 14 noção de "técnica corporal" de Mauss e o conceito de "corpo social" de Douglas. Considero que, embora todo ser humano possua um corpo biologicamente dado, o uso que se faz deste corpo é determinado pela sociedade na qual cada ser humano está inserido. A utilização deste corpo para a prática de lutas não seria exceção. O corpo humano precisa ser ensinado a realizar quaisquer atividades. A prática da luta exige que o praticante molde determinados aspectos de sua constituição corporal para adaptar-se a estas circunstâncias. Além disso, na prática do combate, é freqüente a ocorrência de lesões. No ambiente das academias pesquisadas, desta forma, se valoriza socialmente o desprezo à dor, não apenas como um índice de masculinidade, mas como um sinal de pertencimento àquele grupo. Sem nenhum acordo explícito, os praticantes relatam histórias de contusões, fraturas e hemorragias de modo leve e despreocupado, valorizando as cicatrizes que fazem questão de exibir como "troféus de batalha". A valorização das cicatrizes como "emblemas" da masculinidade também é tratada por Jardim (1991). Um último aspecto a ser tratado neste capítulo refere-se à aceitação incondicional das regras por parte dos praticantes. Embora a relação dos praticantes com os professores seja bastante informal, quando em assuntos acerca da prática do combate, suas palavras são atendidas sem hesitação. O professor, nestas circunstâncias, é tratado, como em muitas artes marciais orientais, como um mestre, detentor absoluto de um saber do qual o aluno deseja compartilhar. Suas palavras e ordens são, neste sentido, indiscutíveis. Sobre a subjetividade inerente ao fazer antropológico, posso dizer que ao longo da realização de meu trabalho de campo etnográfico fui recebido pelo grupo pesquisado de modos os mais diversos. De todos os graus de estudada indiferença até uma implicante desconfiança a priori ("quê que tu quer por aqui com essa câmara?"). Afinal de contas, um pesquisador 15 observando, anotando e fotografando tudo o que ocorre em um evento de lutas não passa despercebido ao público presente. Fui várias vezes interpelado por perguntas de treinadores, lutadores e torcedores. O mote das perguntas era invariavelmente a minha câmara fotográfica a tiracolo, que todos associavam com fotojornalismo. Ao tirar fotos, freqüentemente alguém perguntava: "Vai sair na Zero Hora?" ou "Tu tá vendendo essas fotos?" Ao explicar que o que eu fazia era reunir material para uma dissertação de mestrado em antropologia, várias cabeças ao redor se viravam para ver do que se tratava. Posteriormente, algumas pessoas já puxavam assunto diretamente nesse tema: "Tu tá fazendo mestrado em antropologia? Qual é a tua tese?" Ao explicar que a tese versava sobre aspectos da masculinidade entre lutadores de full-contact, me perguntaram: "E isso aí [apontando o ringue, onde ocorria uma luta], qual é o teu parecer, aprova ou desaprova?" Tentei me esquivar com uma resposta dúbia: "Não aprovo nem desaprovo, eu só observo, anoto e depois escrevo a respeito". Um professor de boxe que estava sentado do meu lado, ao saber que eu estava escrevendo uma dissertação, mostrou que para ele aquilo não era novidade: "Eu sei como é que é isso, lá na minha academia já foi um estágiário do Jornalismo e um mestrando da Educação Física, fazendo a mesma coisa que tu tá fazendo, anotando tudo e tirando foto". Enfim, na interação que se estabalece entre pesquisador e pesquisados, temos, como pesquisadores, um papel social relativamente delimitado a que temos que nos ater. Um fator que me ajudou bastante a conquistar a confiança das pessoas do grupo pesquisado foi o fato de eu também ser praticante de uma técnica de combate, no caso, a arte marcial chamada "Kung fu estilo Shaolin do Norte". Vi várias vezes o rumo de entrevistas que prometiam ser desanimadoras, dada a desconfiança do entrevistado com a presença de um 16 antropólogo – manifesta nas respostas monossilábicas – mudar de modo surpreendente, assim que eu contava en passant que também era praticante de artes marciais. Após uma ou duas perguntas do entrevistado: "qual estilo?" "quem é o professor?", o semblante deste desanuviava-se, as frases tornavam- se mais longas e confidentes, e o tratamento geral a mim dispensado passava a ser o mesmo dado a um "colega de outra academia": de uma certa maneira, "um deles". Com o tempo, aprendi a colocar esta informação a meu respeito, que descobri ser importante para conquistar a confiança dos praticantes, logo no começo da conversa, para auferir rapidamente dos benefícios etnográficos desta identificação. Enfim, vicissitudes inerentes ao ofício de etnólogo, essa mania de "xereta profissional", que chega na situação de campo a qualquer hora, senta, puxa um bloquinho, uma caneta, um gravador, uma câmara fotográfica e sai fotografando e fazendo perguntas insólitas para todo mundo. É evidente que o reconhecimento do grupo pelo meu trabalho é gratificante: quase no final de meu trabalho de campo, fui convidado por um professor para fazer a entrega oficial dos prêmios de um torneio de full-contact; em outra ocasião, fui apresentado pelo presidente da Federação a um dos diretores: "este aqui é o antropólogo amigo nosso, que está escrevendo um livro sobre full-contact". No final das contas, compensa. Gostaria de deixar registrados aqui, ao final desta introdução, uma série de agradecimentos a pessoas cuja ajuda foi de fundamental importância para que a realização deste trabalho fosse possível. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha orientadora, professora Ondina Fachel Leal, não só pela lucidez de suas indicações teóricas em antropologia como pela paciência, cuidado e tempo que dedica a cada um 17 de seus orientandos, mesmo envolta no seu mar agitado de compromissos cotidianos. Agradeço particularmente a meus colegas de seminário de tese e amigos leais Luiz Eduardo Robinson Achutti, Maria de Nazaré Agra Hassen e Maria Cristina Duarte Ribeiro, pelo inestimável auxílioteórico-prático e pela cumplicidade nos meandros do mundo acadêmico. Meu agradecimento sincero também às minhas colegas de turma Liliane Stanisçuaski Guterres e Maria Letícia Mazzuchi Ferreira pelo apoio e interlocução qualificada. Meus agradecimentos também a toda a equipe do Laboratório de Antropologia Visual, cuja disponibilidade permitiu que fosse realizada a gravação em vídeo de diversos combates, de grande valia na descrição etnográfica. De toda a equipe do Laboratório, agradeço especialmente à professora Cornélia Eckert, pela leitura minuciosa e comentários valiosos sobre a primeira versão deste trabalho; a Adriane Rodolpho, apoio logístico indispensável na obtenção de equipamento de vídeo e ao bolsista Alfredo Barros, pela operação competente da câmara de vídeo no trabalho de campo. Agradeço também à professora Sônia Maria Haas, da Agência Experimental de Publicidade e Propaganda da Unisinos, pela disponibilidade no uso do equipamento (scanner e computadores) desta Agência na digitalização e editoração das imagens fotográficas incluídas nesta dissertação. No métier do full-contact, agradeço particularmente ao sr. Vinícius Guarilha, presidente da Federação Gaúcha de Full-Contact, e aos professores Aimoré Goulart e Sincinato Rodrigues, pela disponibilidade e colaboração generosa nas informações necessárias a este trabalho, além dos demais professores e praticantes de full-contact, pela paciência e boa-vontade. 18 Agradeço de modo muito especial a meus pais e irmãos, pelo apoio, e principalmente à minha irmã Denise Gastaldo, exemplo de pesquisadora, cuja leitura atenta e comentários precisos sobre a primeira versão deste trabalho foram de enorme valia, além da pesquisa bibliográfica que ela realizou na University of London, com resultados inestimáveis. Agradeço também a minha esposa, Adriana Braga, cujo constante incentivo e carinho cotidiano em muito colaboraram para a finalização deste trabalho. Meu agradecimento também aos amigos Marco Zimmer, pelo apoio bibliográfico sobre dados esportivos; Guilherme Wagner Ribeiro, pelo auxílio na valiosíssima pesquisa bibliográfica na biblioteca da UFMG e João "Nenê" Carneiro, por sua sempre solícita e simpática assessoria nos mais diversos qüiproquós informáticos. Além destas pessoas, gostaria de agradecer de modo especial ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica - CNPq, pela concessão da bolsa de estudos que viabilizou a minha formação de mestrado com dedicação exclusiva, sem a qual eu dificilmente teria conseguido completá-lo. Capítulo 1. As Artes Marciais 1.1 A Arte da Guerra Em termos semânticos, a palavra "arte" no termo "arte marcial" tem o significado de "técnica refinada". A palavra "arte" deriva do latim arte, enquanto que a palavra "técnica" deriva do grego (téchne), traduzido no dicionário Aurélio por "arte", o que dá uma indicação da relação estreita entre os dois termos. A palavra "marcial" deriva do latim martiale, relativo à Marte, deus da guerra, ou seja, bélico, militar, guerreiro. Portanto, uma tradução possível de "arte marcial" seria "técnica militar", ou "técnica guerreira". Em chinês, o termo genérico empregado para designar qualquer estilo de arte marcial é Wu Shu, que significa literalmente "técnica militar", ou "arte da guerra", e, nesse sentido, possui o mesmo significado de "arte marcial" (Chan e Veiga, 1995). Assim, pode ser percebida a estreita ligação das chamadas "artes marciais" com a prática da guerra propriamente dita. Na maioria absoluta das sociedades humanas, a sobrevivência esteve sempre associada, além da obtenção de alimentos, à necessidade de defesa contra ataques inimigos. Assim, no conjunto das sociedades, simples ou complexas, a existência da guerra é um fato praticamente universal (Clastres, 1980b e Gilmore, 1990). Segundo Clastres (1980b), a guerra na sociedade primitiva possui a função de manter a sociedade indivisa, sem estratificação social, de modo a resistir perante um inimigo sempre à espreita. A existência de um "inimigo" torna necessária a obtenção de uma "tecnologia militar", que permita fazer frente aos seus ataques ou, em sociedades particularmente 20 belicosas, atacar os inimigos de modo eficaz. Desenvolveu-se, assim, nessas sociedades, paralelamente aos demais aspectos sociais, uma espécie de "cultura militar", com desenvolvimento técnico e tecnológico próprios para esta "arte guerreira". Assim, muitas armas de caça foram aproveitadas na guerra, como a lança e o arco e flecha, e outras foram criadas e desenvolvidas especialmente para a guerra, como a borduna, o tacape e o escudo. O uso de cada uma destas armas exige o aprendizado de uma técnica corporal adequada para otimizar o desempenho do guerreiro no seu manejo.1 Estas técnicas tradicionais de combate com cada tipo de arma e, por vezes, técnicas de combate desarmado estão na origem das técnicas corporais hoje em dia chamadas de "artes marciais". Paralelamente a estas técnicas militares, é bastante freqüente em muitas sociedades a existência de lutas "esportivas", com finalidade ritual ou de entretenimento (Clastres, 1980. Neste sentido, ver também Gilmore, 1990). Ballery (1954) descreve várias modalidades de lutas tradicionais ("folclóricas", segundo este autor) em países como a Turquia, Islândia, Suíça, Rússia, Senegal, Ilhas Canárias, Filipinas e Marrocos, entre outros (Ballery, 1954: 67-84). Em geral, essas lutas são realizadas corpo-a- corpo e desarmadas, tendo como objetivo imobilizar o oponente ou deitar-lhe as costas no chão, como na modalidade olímpica chamada "luta greco- romana". Um exemplo desta relação entre as práticas militares e jogos rituais foram os jogos olímpicos realizados na Grécia antiga, durante doze séculos, de 776 a.C a 393 d.C. As provas disputadas nos jogos olímpicos eram variações esportivas de técnicas militares, como o arremesso do dardo, o arremesso do disco e o "pancrácio" – luta em que eram válidos todos os tipos de golpes. Mesmo provas de corrida, como a célebre maratona, estão 1 O conceito e a discussão sobre "técnica corporal" encontram-se no capítulo 4 desta dissertação. Ver também Mauss (1974). 21 associadas a proezas militares (Durantez, 1987).2 Assim como as técnicas militares estão na origem das atuais artes marciais, estas lutas disputadas entre "adversários" (e não "inimigos"), com regras determinando os golpes válidos estão na origem dos atuais esportes de combate, e os próprios jogos olímpicos da Grécia antiga serviram de modelo na idealização por Pierre de Coubertin dos chamados "jogos olímpicos da era moderna", gênese do esporte como o conhecemos hoje. Comumente, o termo "arte marcial" refere-se às artes marciais orientais, embora, como foi visto, no sentido em que emprego este termo, existam "artes marciais" em quase todas as sociedades. As artes marciais orientais são oriundas da China, onde existem estilos de wu shu praticados há vários séculos. O templo budista de Shao Lin, no norte da China, local de origem de um dos mais famosos estilos de arte marcial chinesa, o estilo "Shaolin do Norte", recentemente comemorou 1500 anos de sua fundação. Durante séculos, a cultura chinesa dominou as nações circunvizinhas, como a Coréia, o Japão e os países do sudeste asiático, influenciando profundamente a filosofia, a medicina, a culinária, o comércio e vários outros aspectos da cultura destes países, entre eles as técnicas militares. Assim, modalidades de artes marciais orientais atualmente praticadas, como o karatê,o taekwondo e outras, possuem um tronco comum ligando-as ao wu shu chinês(Chan e Veiga, 1995).3 2 A origem da Maratona é atribuída a um soldado grego que correu os 42 Km que separavam a planície de Maratona, local de uma batalha, até Atenas, onde, após dar a notícia da vitória grega sobre os persas, caiu morto de exaustão. 3 A maioria das informações acerca da história das artes marciais foram obtidas em Virgílio, 1986 e Chan e Veiga, 1995. Informações complementares sobre este tema, especialmente sobre as artes marciais chinesas, foram obtidas através de entrevistas com o professor Ruben Vieira, professor de artes marciais e presidente da Federação Gaúcha de Kung Fu, que prepara um livro sobre o assunto. Informações adicionais, em especial sobre a história do full-contact, foram obtidas em entrevistas com o professor Aimoré Goulart, professor de full-contact. 22 Muitas destas técnicas tradicionais de combate, que tomavam como paradigma da tecnologia militar a lâmina de aço usada nas chamadas "armas brancas", como espadas, lanças e punhais, tornaram-se obsoletas para utilização militar com o advento da arma de fogo. Muitas armas e a técnica necessária para usá-las desapareceram ou tornaram-se conhecidas de pouquíssimas pessoas, suplantadas pelo impacto e poder de alcance das armas de fogo. Várias dessas armas e técnicas, entretanto, sobreviveram até nossos dias sob a forma de jogo, através de um processo de "esportivização" no qual, submetendo a sua prática a regras, tornaram-se modalidades esportivas. Proni (1994) denomina a este processo "esportivização das artes marciais". Assim, hoje em dia existem competições de arco e flecha, de esgrima, de arremesso de dardo, bem como de várias outras "artes marciais", mesmo que nenhuma destas técnicas guerreiras seja hoje usada com finalidade militar. Segundo Proni (1994), a expansão das artes marciais orientais no ocidente se deu mais acentuadamente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, com o aumento da emigração asiática para os Estados Unidos. No início dos anos 50, tornou-se moda praticar "boxe chinês" (nome genérico dado então a todas as artes marciais de origem oriental) entre os astros de Hollywood (Hyams, 1992). Muggiati (1984) aventa algumas hipóteses para este crescente interesse por aspectos da cultura oriental na sociedade norte- americana do pós-guerra, como o contato dos soldados americanos com a cultura japonesa durante a ocupação do Japão ou como uma reação decorrente do sentimento de insatisfação com os valores judaico-cristãos vigentes naquela sociedade (Muggiati, 1984: 106). Com a crescente valorização deste "orientalismo" na sociedade americana, diversas manifestações culturais oriundas do extremo oriente passaram a ser vistas como algo extremamente positivo, na medida em que representavam parte da reação à cultura ocidental 23 tradicional, no movimento que se chamou de "contracultura" (Pereira, 1983). Expoentes das artes naquele país, como Jack Kerouak, Allen Ginsberg, George Harrison e outros aderiram a religiões e seitas indianas e chinesas, como o Hare Krishna, o Zen-budismo e a "meditação transcendental" do guru Maharishi. A adesão a estas religiões orientais naquele momento representava uma alternativa às religiões judaico-cristãs ocidentais. Estas religiões incluíam nos seus ensinamentos uma nova maneira de lidar com a mente, o espírito e o corpo. Na esteira desta valorização de aspectos da cultura oriental, várias outras manifestações culturais do oriente foram se difundindo, entre elas as artes marciais. Com o tempo, as artes marciais foram se popularizando nos Estados Unidos e, de lá, estas técnicas acabaram sendo difundidas para o resto do mundo ocidental, inclusive por meio de produtos da indústria cultural, tema que será tratado adiante. Na adaptação destas técnicas tradicionais de combate corpo-a-corpo de origem oriental para a sociedade ocidental, o lugar destinado às artes marciais acabou sendo o de prática esportiva. No anos seguintes, muitas modalidades tradicionais se "esportivizaram", estabelecendo-se campeonatos, rankings e federações nacionais de cada modalidade. Em 1964, o judô foi admitido provisoriamente como modalidade esportiva olímpica, nos jogos olímpicos de Tóquio. Em 1972, nas Olimpíadas de Munique, ele foi incorporado definitivamente aos jogos (Virgílio, 1986). Assim, o jodô tornou- se a primeira "arte marcial" de origem oriental (transformada em "esporte de combate") a fazer parte das Olímpíadas da Era Moderna. Atualmente outras artes marciais "esportivizadas", como o taekwondo e o karatê, estão se candidatando a serem modalidades olímpicas, o que deve ocorrer nos próximos anos. No final dos anos 60, nos Estados Unidos, alguns praticantes de diferentes modalidades de arte marcial, como o taekwondo e o karatê, 24 começaram a testar uma nova modalidade de luta com uma regra tal que permitisse o confronto entre lutadores de estilos diferentes. Esta tentativa de fazer um estilo que unisse as particularidades dos demais acabou criando um novo estilo, com suas próprias particularidades, o full-contact. No início, o full-contact era praticado de modo bastante parecido com o karatê, as lutas eram realizadas em um tablado e não num ringue e as luvas eram mais leves, de modalidades de "semi-contact", como alguns estilos de karatê. O próprio nome da nova modalidade indica o vínculo com o karatê na sua origem: "karatê full-contact". Aos poucos, o full-contact foi se autonomizando em relação ao karatê. Após as primeiras lutas, que se assemelhavam a um combate de karatê com luvas de semi-contact, as regras foram se modificando, e em poucos anos acabaram tomando a forma atual. A divisão dos lutadores por categorias de peso, o uso de luvas idênticas às de boxe e a realização dos combates dentro de um ringue aproximaram o full-contact da prática do boxe, com a diferença dos golpes de perna, totalmente derivados do taekwondo e do karatê. Hoje em dia existem diversas associações mundiais que regulam a prática do full-contact, com pequenas diferenças técnicas nas regras de cada uma delas, como a obrigatoriedade ou não de chutar o adversário determinado número de vezes por round, a validade ou não de chutes abaixo da linha da cintura, etc. Dentre estas entidades, a associação mundial que tem maior representatividade no Brasil é a ISKA (International Sports Karate Association), considerada pelos praticantes entrevistados a mais importante, e onde estão os melhores lutadores. Em outra associação, a WAKO (World Association of Kickboxing Organizations), de grande representatividade na Europa, o campeão mundial é um lutador brasileiro, Paulo Zorello, motivo pelo qual esta entidade vem crescendo em representatividade no país. 25 O full-contact chegou no Brasil através do lutador paulista Sérgio Batarelli, no início dos anos 80. Batarelli criou algumas das especificidades que este esporte tem no país, como a hierarquização dos praticantes por meio de faixas coloridas, a exemplo do karatê, e uma sistemática de avaliação dos praticantes com crescente grau de dificuldade de uma faixa para a outra, o chamado "Batarelli System". Este sistema inclui um teste para aquisição da faixa-preta, chamado por alguns praticantes de "Homem de Ferro", em que o candidato deve lutar durante dez rounds contra três adversários que se revezam. O "Batarelli System" não é unanimemente aplicado, e, na prática, apenas uma linha de alunos diretos deste lutador aplicam seu método.4 Estes e outros aspectos mais específicos da prática do full-contact serão pormenorizados mais adiante. A maioria dos professores pesquisados neste estudocomeçou a praticar luta em outras modalidades (em geral o karatê, taekwondo ou o boxe) que não o full-contact, e aplicam em suas academias o seu próprio método, de acordo com a sua experiência pessoal, com visível influência da modalidade da qual cada um é "originário". 1.2 Artes Marciais e Esportes de Combate O termo "arte marcial" em geral refere-se a uma técnica de luta tradicional que visa oferecer ao praticante meios de ataque e defesa contra um adversário em uma situação de confronto. É senso comum entre os praticantes destas técnicas de luta que o termo "arte marcial" se aplica somente às técnicas de luta de origem oriental, que seriam elevadas à categoria de "arte" por trazerem em seus ensinamentos uma "filosofia" que esportes como o boxe, por 4 As especificidades envolvendo este teste e seu significado simbólico para os praticantes serão assuntos tratados mais adiante nesta dissertação. 26 exemplo, não teriam. Discordo desta justificativa. A origem de cada técnica de luta está impregnada dos valores da cultura onde esta técnica foi gerada. Por exemplo, no Japão, a partir do século XVI, houve uma crescente influência do zen-budismo nas mais diversas instâncias da vida social, incluindo, naturalmente, as técnicas de combate (Hyams, 1992). A influência do zen- budismo, entretanto, não se limitou à arte marcial; a ótica zen vê "caminhos" para o aprimoramento do indivíduo em qualquer atividade que este realize, desde que o faça com a correta disposição mental, como o ikebana ("arranjo floral"), ou o origami ("dobraduras de papel"), por exemplo. Da mesma forma, um esporte criado e desenvolvido no ocidente, como o boxe, por exemplo, está repleto de valores e características da cultura que o gerou, a própria lógica interna da prática esportiva, que implica na busca de superação do adversário dentro das limitações impostas pela regra, é fruto da moderna sociedade industrial (Bourdieu, 1983). O boxe, neste sentido, também tem a sua "filosofia"... Além disso, mesmo as artes marciais orientais não incluem no corpo de ensinamentos aplicados nas academias nenhuma noção de "filosofia", mas pura e simplesmente o aprendizado de técnicas corporais de ataque e defesa. As artes marciais podem, neste sentido, eventualmente ser um "caminho" para o desenvolvimento espiritual do indivíduo, mas esta escolha deve partir do próprio indivíduo. No sentido zen da palavra "caminho", este também pode ser encontrado na poesia, na jardinagem ou, como sugere Robert Pirsig (1984), na "arte da manutenção de motocicletas". A diferença entre uma "arte marcial" e um "esporte de combate" reside na destinação original do desenvolvimento de cada estilo de luta. Como foi visto, uma arte marcial tem na sua origem a intenção de treinamento militar, ou seja, seu local de aplicação é numa situação de guerra, onde se estabelecem confrontos de vida ou morte. Quando a maior parte destas 27 técnicas foi criada, no extremo oriente, não existiam armas de fogo, e a maioria dos combates era corpo-a-corpo. A destreza de um guerreiro no manejo de armas brancas e, quando desarmado, de seu próprio corpo transformado em arma, garantia-lhe a sobrevivência em um combate. Assim, nos ensinamentos de uma arte marcial incluem-se o controle e fratura de articulações, golpes dirigidos a pontos vitais (técnica chamada de atemi, em japonês) ou estrangulamentos, técnicas que visam eliminar o perigo representado pelo adversário da forma que for necessária, mesmo que ao custo da vida do oponente (Virgílio, 1986). Em um confronto em que seja necessário o uso de técnicas marciais, o lutador mata o oponente para não ser morto por ele. Neste sentido, Rapoport, referindo-se à relação estabelecida com o adversário na modalidade de conflito do tipo luta, afirma que ...em uma luta o adversário é um estorvo. Precisa ser eliminado, desaparecer ou perder seu tamanho e importância. O objetivo de uma luta é subjugar ou fazer desaparecer o adversário. (Rapoport, 1980: 14) Já o "esporte de combate", como o próprio nome indica, é uma modalidade esportiva, em que o objetivo é derrotar o oponente atingindo o seu corpo com determinados golpes permitidos por regras estritas. A finalidade de um esporte de combate, desde sua origem, sempre foi lúdica, esportiva, como o boxe, por exemplo. As lutas de boxe começaram na Inglaterra, em meados do século passado, como entretenimento em feiras livres, tendo suas regras sido sistematizadas por Lord Queensberry, por volta de 1860 (Gonçalves et al., s/d). Assim como ocorre nas rinhas de galo, o público apostava em um dos lutadores, que, usando apenas golpes com os punhos (sem luvas nem ataduras, naquela época), devia derrotar o seu oponente. Mesmo hoje em dia, as lutas de boxe profissionais são em geral associadas a apostas em dinheiro, como nas 28 corridas de cavalos e nas rinhas de galo. As regras do boxe permitem apenas socos, e o objetivo de uma luta de boxe sempre foi esportivo. A representatividade do full-contact no universo das técnicas de combate, pode-se sugerir, provém do fato de ele, sendo um esporte de combate de origem extremamente recente, criado há menos de trinta anos, ter sofrido profunda influência de estilos de luta os mais diversos, orientais e ocidentais, como o boxe inglês, o taekwondo coreano e o karatê japonês. Estas diferentes influências tornam este esporte uma espécie de "forma híbrida" de artes marciais orientais e esportes de combate ocidentais. O estudo mais aprofundado das particularidades do full-contact, assim, acaba se referindo a outras artes marciais. Estas referências a outros estilos, sempre presentes, tornam o full-contact bastante representativo do universo das técnicas de luta. 1.3 Artes Marciais e Indústria Cultural O conceito de "indústria cultural" foi usado pela primeira vez em 1947, por Horkheimer e Adorno, com o fim de distinguir os então incipientes produtos dessa indústria de bens culturais do termo "cultura de massa", já que os produtos da indústria cultural não são, como poderia parecer, oriundos espontaneamente da própria "massa", como se fossem uma forma contemporânea de "arte popular" (Adorno, 1978). Pelo contrário, a relação da indústria cultural com a massa é a de adaptar os seus produtos ao consumo desta. Como veremos a seguir, em muitos casos, os produtos industriais culturais acabam por refletir, no seu próprio conteúdo, aspectos de um determinado momento sócio-político. Esta espécie de "referência" não ocorre para determinar a conduta da massa no sentido do consumo desses produtos, mas como um efeito paralelo decorrente da interação entre produtores e consumidores destes bens culturais. 29 A indústria cultural se define pela produção centralizada e distribuição massificada de "produtos culturais", como filmes de cinema ou programas de televisão – que no início dos anos 60, ainda de modo incipiente, já anunciavam estas características descritas por Adorno. Para Adorno, o termo "indústria" não deve ser tomado literalmente, já que permanecem instâncias de produção individual no processo de produção, por exemplo, de um filme. Segundo este autor, o termo "indústria" se aplica especialmente à "estandardização da própria coisa", como no caso de filmes produzidos segundo os padrões de um gênero específico, como o western ou, como veremos, os chamados "filmes de ação", que seguem uma espécie de "receita" em seu roteiro. (Adorno, 1978: 289) Como vimos anteriormente, o advento da contracultura, nos anos 50 e 60, trouxe à cena cultural norte-americana a valorização de uma série de aspectos da cultura do extremooriente, num movimento cultural que se chamou de "orientalismo". Vinculado em princípio ao movimento beat, a valorização de aspectos da cultura oriental tornou-se na década seguinte um – mais um – lucrativo empreendimento para a indústria cultural dos Estados Unidos. Toda uma geração de jovens sedentos por incenso, Kama Sutra, cítaras e meditação transcendental manifestou seu interesse pela cultura oriental, entre outras coisas, consumindo livros de Lobsang Rampa, Banghwan Rajneesh e discos de Ravi Shankar, por exemplo (Muggiati, 1984). Parte deste mesmo movimento foi o súbito sucesso no cinema dos filmes de arte marcial de Bruce Lee, que veio a popularizar ainda mais as artes marciais orientais junto ao grande público. Em alguns episódios do seriado de televisão "Batman", produzidos em meados dos anos 60, Lee aparece como "Kato", o fiel ajudante do "Besouro Verde", outro herói mascarado. Tendo seus primeiros filmes produzidos em Hong Kong, Bruce Lee atingiu o estrelato com o filme "Operação Dragão". $$$ 30 Foto 1: Pôster de Bruce Lee, Academia Central Após o sucesso deste filme, no final dos anos 60, os chamados "filmes de arte marcial" vieram a tornar-se um ramo da indústria cinematográfica, em geral associados a produções de segunda linha, mas que já fizeram surgir alguns ídolos do cinema, como o ator belga Jean-Claude Van Damme, o já citado "dragão" Bruce Lee ou Chuck Norris, ex-heptacampeão americano de karatê. No início dos anos 70, o seriado de televisão "Kung Fu", com David Carradine no papel principal, levou para os lares do mundo inteiro a informação de que "kung fu" era uma luta praticada por sábios monges chineses, ajudando, desta forma, a popularizar as artes marciais orientais no ocidente. Neste seriado, um monge Shao Lin foragido da China por ter vingado a morte injusta de seu mestre vem para a América em meados do século XIX, nos tempos do western. Com este argumento, "Kane" (o nome do monge) vagueia pelo deserto do velho-oeste americano, agindo sempre com serenidade e paciência "orientais". Em todos os episódios, a serenidade e a paciência de Kane são postas à prova por cowboys prevalecidos que pretendem abusar do humilde chinês ou de outros desfavorecidos, de quem Kane sempre toma partido. Neste momento, entra em ação o "kung fu" que dá o nome à série: Kane (inaugurando na televisão o efeito de slow motion) derrota com as mãos desarmadas vários adversários ao mesmo tempo, com golpes certeiros de sua arte marcial. Em cada episódio, Kane também recorre à memória (sob a forma de flash backs) para se lembrar de algum sábio conselho de seu mestre – um velhinho cego que o chamava pelo apelido de "gafanhoto" – no templo de Shao Lin. O argumento desta série parece ilustrar simbolicamente o que ocorreu no imaginário norte-americano com o momento em que se desenvolve este "orientalismo". O símbolo masculino por excelência da cultura norte- americana, o cowboy, até então sempre retratado com atributos positivos, passa 31 a ser visto neste seriado como um brutamontes covarde e truculento. De "mocinho", passa a "bandido", exatamente o que estava acontecendo com a imagem pública dos soldados americanos entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã. Em enormes manifestações de protesto, jovens americanos queimavam publicamente suas cartas de convocação e carregavam cartazes de Ho Chi Min, líder do Vietnã do Norte, considerando o povo vietnamita como o verdadeiro "herói" desta guerra, ao sustentar-se com mínimos recursos contra o poderoso exército americano, prevalecido como os cowboys-vilões de Kane (Pereira, 1983). O oriental, neste seriado, era visto como um homem bom (afinal de contas, ele era o "mocinho"), dotado de vários adjetivos positivos, e possuidor de uma arma que não se comprava em nenhuma loja: o poder sobre o próprio corpo, utilizado como arma pelo conhecimento de uma arte marcial. Os produtores da indústria cultural souberam muito bem captar o momento em que essas mudanças de mentalidade estavam se passando e traduzi-las em linguagem televisiva. O enorme sucesso da série, em princípio nos Estados Unidos e – por conta dos canais de distribuição dos produtos da indústria cultural – em vários outros países, manifesta o quão adequada era a metáfora naquele momento. Na esteira destes produtos da indústria cultural, como uma espécie de "efeito colateral", houve uma grande popularização das artes marciais, em especial do kung fu, arte marcial praticada por "Kane" e por Bruce Lee. Uma música bastante famosa no início dos anos 70 chamava-se – não sem motivo – "Everybody is Kung Fu Fighting". Nas academias de full-contact é bastante freqüente verem-se pendurados à parede pôsteres de Bruce Lee ou Van Damme, denotando a influência destes filmes no imaginário dos praticantes. Vários praticantes declararam ter tido o seu primeiro contato com as artes marciais através de 32 programas de televisão ou em filmes no cinema, como pode ser visto no seguinte depoimento, onde um praticante justifica a sua escolha, na adolescência, pela prática das artes marciais: "Eu sempre gostei de luta. Desde pequeno, eu sempre vi filmes, Bruce Lee, David Carradine, só que eu procurei o kung fu, no caso o Shao Lin do Norte, que era o que tinha na época [em 1979], por causa do que ele ensina, não me interessa só aprender a lutar, eu quero mais, eu gosto da história..." (Lúcio, 30 anos, porteiro) Notável neste caso é a influência exercida pela indústria cultural no sentido do praticante escolher não apenas uma arte marcial, mas a mesma arte praticada pelos dois atores citados pelo praticante, o kung fu chinês. No caso do full-contact, ocorre hoje em dia um fenômeno parecido com o que sucedeu ao kung fu no início dos anos 70. A extraordinária visibilidade patrocinada pela sua presença em diversos produtos da indústria cultural tornou o full-contact extremamente popular. O full-contact é uma das modalidades do chamado kickboxing, termo genérico que define as modalidades de luta esportiva que utilizem mãos enluvadas e golpes com as pernas. A partir de filmes de artes marciais como "O Grande Dragão Branco", com Jean Claude Van Damme, ele próprio praticante de kickboxing, esta modalidade adquiriu grande visibilidade. Outros filmes do gênero reforçam esta visibilidade, com títulos como "O Rei dos Kickboxers", "American Kickboxer" ou mesmo "Full-Contact: Contato Mortal", que, apenas por curiosidade, nada tem a ver com o esporte, é só um título. Em "O Grande Dragão Branco", o personagem representado por Van Damme realiza um movimento inverso ao de "Kane" em "Kung Fu". Se neste seriado o herói era um chinês que sobrevivia em um meio socialmente adverso, o velho-oeste americano, contando apenas com o seu auto-controle e o conhecimento de artes marciais, no filme de Van Damme o protagonista é um 33 militar americano que, tendo aprendido os segredos das artes marciais com um mestre oriental, vai ao extremo oriente participar de um torneio de artes marciais. $$$ Foto 2: Pôster de Van Damme, Academia Central O torneio, ilegal, chama-se Kumite e nele se inscrevem lutadores de todos os estilos, em lutas que duram enquanto um dos lutadores não desistir ou desmaiar. A luta final do torneio (e do filme) é contra um chinês corpulento que usa de todas as vilanias para vencer, como atacar um lutador caído (não por acaso, um wrestler americano, amigo de Van Damme) ou jogar areia nos olhos do "mocinho" na luta final.5 A lógica maniqueísta do filme de uma certa forma "vinga" os cowboys-vilões de "Kung Fu". Desta feita, o grande "bandido" é um imenso chinês quesó vence porque usa de meios ilícitos (ao contrário de "Kane" e Bruce Lee, ambos de pequena estatura, habilíssimos no combate, e sempre éticos perante o adversário). O "mocinho", além de ser militar, americano, branco e de olhos verdes, vai até o mais fundo porão do extremo oriente competir com lutadores de todo o mundo e de todos os estilos, ou seja, perfaz o caminho de "Kane" ao contrário, invadindo o próprio "berço" das artes marciais para mostrar que aprendeu muito bem sua lição. Ao final, consagrado pela vitória – inevitável –, Van Damme recebe de todos os orientais que presidem o torneio o título de "O Grande Dragão Branco". Cabe lembrar que "Dragão" era o apelido de Bruce Lee, que acabou tornando este ser imaginário em uma espécie de "animal totêmico" das artes marciais. 6 5 "Wrestling" é a denominação americana para uma modalidade de luta-livre, conhecida no Brasil como "catch" ou "telecatch". Wrestler é o praticante de wrestling. 6 O apelido de "Dragão" deriva de uma antiga denominação das virtudes necessárias a um mestre de kung fu. São os chamados "cinco animais do kung fu", cada um deles representando uma virtude: tigre, a força; leopardo, a velocidade; serpente, a agilidade; grou, a flexibilidade e, finalmente, o Utilizando-se do "título" de Bruce Lee, já falecido, acrescido dos adjetivos "grande" e "branco", Van Damme adquire para si o trono simbólico de "maior lutador do mundo" – do mundo do cinema, evidentemente –, vago desde a morte de Lee. Não basta mais ser apenas um "dragão": há que ser "grande" e, principalmente, "branco". Assim, ao contrário de outras artes marciais menos conhecidas, como o kempô ou o hapkidô, o full-contact possui uma "visibilidade" social derivada dessa influência da indústria cultural, tornando-o "conhecido" e consumido mesmo por pessoas de fora do métier das artes marciais. Esta influência da indústria cultural produziu um grande aumento no número de praticantes deste esporte em relação a outras artes marciais estabelecidas há bem mais tempo. Além disso, se ao número dos praticantes de artes marciais e esportes de combate for somado o dos consumidores de produtos da indústria cultural que se referem a combates corpo-a-corpo, como a transmissão de combates pela televisão, os filmes de ação ou os videogames de luta, fica clara a representatividade que estas práticas e consumos têm no imaginário de nossa sociedade. A propósito dos videogames que simulam situações de combate, é notável a freqüência com que, entre os lutadores disponíveis de serem manipulados pelo jogador, aparecem referências a Van Damme e a Bruce Lee. Nestes videogames, quase sempre existe um lutador cuja característica é a abertura lateral das pernas de 180°, referência a Van Damme. Em uma cena de "O Grande Dragão Branco" que o tornou famoso no mundo das artes marciais, Van Damme treina para uma luta com os calcanhares apoiados em duas cadeiras, as pernas diametralmente opostas. Da mesma forma, outro personagem freqüente nos videogames é um chinês franzino de calças pretas e dragão, que representa o poder espiritual do mestre de artes marciais. 35 sem camisa que associa seus ataques fulminantes a gritos estridentes, referências claras a Bruce Lee. Em um jogo chamado Pit Fighter, um dos lutadores, que na abertura do jogo aparece treinando um kati de kung fu e associa gritos estridentes ao seu ataque, chama-se – não por coincidência – "Kato", exatamente o mesmo nome do personagem de Bruce Lee no seriado "Batman".7 Em outro jogo, chamado Mortal Kombat, um dos lutadores chama- se "Johnny Cage", que é apresentado como um famoso astro do cinema americano, praticante de kickboxing, que apresenta no seu repertório de golpes uma súbita abertura das pernas a 180° que lhe permite golpear o baixo-ventre do adversário. Se esta associação do full-contact com o conteúdo dos filmes referidos e com jogos de videogame por um lado promove a popularização do full-contact, por outro traz consigo uma série de preconceitos em relação a este esporte, ao apresentá-lo como uma competição sangrenta onde todos os meios são lícitos na busca da vitória, os lutadores transformados em gladiadores sanguinários, como no enredo dos filmes ou dos videogames. O full-contact, na verdade, é apenas um esporte de combate como tantos outros, repleto de regras proibindo golpes perigosos e com o corpo do lutador coberto de equipamentos de proteção. Desmitificar esta imagem pública com que o senso- comum cerca as artes marciais em geral e em especial o full-contact me parece importante, e também é um dos objetivos deste trabalho. 1.4 A Organização das Artes Marciais no Campo Esportivo Neste trabalho será utilizado o conceito de "campo", nos termos tratados por Bourdieu (1989). Um "campo" pode ser inicialmente definido 7 Kati – kata, em japonês – é uma série de movimentos predeterminados que simulam os golpes característicos de cada estilo de arte marcial. 36 como um "universo relativamente autônomo de relações específicas" (Bourdieu, 1989: 65-66). Posto nestes termos, o conceito é vago, dada a imensa multiplicidade de "campos" distintos, como o campo da alta costura, o campo científico, o campo econômico e o campo do poder, por exemplo. Apesar dessa diversidade, existem propriedades em comum, a ponto de Bourdieu sugerir uma "Lei Geral dos Campos" (Bourdieu, 1983a: 89). Nos termos deste autor, um campo é basicamente um terreno de luta "entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada, e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência" (Bourdieu, 1983a: 89). Assim, a estrutura de um campo é dada pela relação de força entre os agentes ou instituições em conflito pela distribuição do capital específico deste campo. Por exemplo, o "campo da religião" é o espaço social onde se trava uma luta entre as igrejas e crenças tradicionais, já estabelecidas, e o avanço de novas seitas e cultos, estes ansiosos por conquistar o maior número de "fiéis", e aquelas, temerosas de perder os fiéis já conquistados. O exemplo é evidentemente simplificado, mas posto nestes termos, o "capital específico" do campo são os fiéis, que garantirão a sobrevivência, a manutenção ou a ascensão de um corpo de crenças dentro desse campo das práticas religiosas, que tem como "produto" os chamados por Bourdieu "bens de salvação" (Bourdieu, 1992). Uma característica decorrente deste conflito é a oposição entre as duas posições citadas, que assume a forma de conflito entre "ortodoxia" versus "heresia". Os que mantêm a posição dominante (freqüentemente monopolizando a posse do capital específico) tendem a estratégias de conservação, ao passo que os que possuem menos capital e querem estabelecer-se no campo recorrem a estratégias de subversão, de modo a minar o poder dos dominantes. 37 Essa luta por uma parcela mais significativa do capital específico do campo, entretanto, não é uma guerra de extermínio. Na verdade, se formos utilizar a classificação de Rapoport (1980), nem se trata de luta, mas de jogo. Nos termos deste autor, ...o jogo parte não de um desacordo, mas de um acordo, isto é, o acordo entre os oponentes de lutar por objetivos incompatíveis dentro de certas regras. (Rapoport, 1980: 2) Assim, apesar do interesse conflitante dos agentes envolvidos, há um acordo tácito entre eles, e um interesse em comum pela preservação do campo. Mesmo as estratégias de subversão ocorrem dentro de limites estritos, sob pena de exclusão. Afinal, a subversão levada a seu extremo levaria à dissolução do campo, fato que não é do interesse de nenhumdos agentes envolvidos. Referindo-se ao "jogo" como função cultural, Huizinga relata fato semelhante. A transgressão da regra leva, segundo ele, à expulsão do transgressor ou, se tal não ocorrer, ao fim do jogo (Huizinga, 1971: 14). A analogia do campo como um terreno de jogo é enfatizada por Bourdieu, que considera, dado o investimento em tempo e esforço para a entrada no campo, (ou seja, no jogo) "praticamente impensável a destruição pura e simples do jogo" (Bourdieu, 1983a: 137). Colocada a questão nestes termos, o universo das práticas e consumos esportivos pode ser considerado como um "campo esportivo". Bourdieu considera o esporte moderno como um sistema de agentes e instituições que começou a funcionar como um "campo de concorrência". Se esse sistema funciona como um campo, dada a autonomia que o caracteriza, não se pode simplesmente associar em relação direta os fenômenos esportivos num dado momento e as condições econômicas e sociais das sociedades correspondentes. A respeito desta relativa autonomia que caracteriza o "campo esportivo", Bourdieu afirma: 38 A história do esporte é uma história relativamente autônoma que, mesmo estando articulada com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica. (Bourdieu, 1983a: 137) O "campo esportivo" ao longo de seu processo de constituição tornou-se palco de lutas as mais diversas, pelo monopólio da legitimidade de representar determinado esporte e seus praticantes, pela legitimidade da "prática amadora" (mais fiel aos ideais da elite) contra a "profissionalização" (mais próxima da realidade das classes populares), o "esporte-prática" contra o "esporte-espetáculo", e mesmo dentro de um mesmo esporte, as lutas por hegemonia de determinadas "escolas" ou "estilos". Essas lutas todas opõem entre si não apenas atletas, treinadores e dirigentes, mas também médicos, nutricionistas, fabricantes de artigos esportivos, designers e estilistas de moda, publicitários e profissionais de imprensa.8 Para Bourdieu, essas lutas pela legitimidade dentro do campo esportivo são reflexo "do estado das relações de força entre as frações das classes dominantes e entre as classes sociais no campo das lutas pela definição do corpo legítimo e dos usos legítimos do corpo" (Bourdieu, 1983a: 142). No "campo esportivo", como em todos os outros campos, existe uma luta entre diferentes setores da sociedade pela legitimidade dos espaços conquistados naquele campo. Como um exemplo, pode ser vista a difícil relação estabelecida entre a realização dos jogos olímpicos da era moderna e a prática esportiva profissional, apenas recentemente permitida naqueles jogos. Durante quase um século – ou seja, durante praticamente toda a história dos jogos olímpicos modernos – só podiam competir nos jogos olímpicos (que representavam um ideal de "espírito esportivo" caracterizado pela distância de vantagens materiais auferidas por meio do esporte) atletas ditos "amadores". Esta categoria se opõe à categoria 8 Ver também, neste sentido, Cristan, 1994. 39 "profissional", ou seja, "amadores" são aqueles que praticam o esporte "por amor" e não "por profissão". A disputa acerca destas duas categorias revela um conflito entre duas posições sociais distintas: de um lado os membros das chamadas "elites", que podem praticar esportes de modo "amador", devido à disponibilidade de recursos financeiros; de outro, os esportistas oriundos das camadas populares, que para disporem de tempo para treinar, precisam receber pagamento pelas horas de treinamento, ou seja, tornam-se "profissionais". Há poucos anos, esta posição foi revista, e hoje participam dos jogos olímpicos todos os atletas que obtiverem um determinado índice técnico específico para cada modalidade, independente do pagamento ou não dos "serviços" do atleta. A relação conflituosa no campo esportivo derivada de diferenças de origem social, entretanto, persiste. As diferentes práticas e consumos de produtos esportivos em nossa sociedade – bem como os demais tipos de consumo – se dão de modo diferenciado de acordo com o pertencimento de cada agente a determinados grupos sociais.9 Não somente as possibilidades de acesso ao consumo desses bens são menores para as pessoas provenientes das camadas populares como o próprio tempo necessário para a prática esportiva em si é aproveitado de modo diferente. As alternativas de lazer disponíveis – entre as quais se inclui o esporte – também são diferentes para pessoas de camadas diferenciadas. Mesmo no caso da prática de um esporte como atividade de lazer, cada grupo social apresenta uma tendência a escolher determinada modalidade esportiva, de acordo com a natureza das motivações envolvidas a respeito. A própria natureza "gratuita" e "descompromissada" da prática esportiva representa um reflexo das circunstâncias sociais que deram origem ao esporte moderno. 9 Ver, neste sentido, Bourdieu (1983a), e Boltanski (1979). 40 O esporte, como o conhecemos hoje, surgiu em fins do século passado, apesar de serem referidos jogos e competições entre os mais diversos povos desde a mais remota antigüidade. De acordo com Bourdieu (1983a), uma possível "história social do esporte" deveria ressaltar o surgimento da competição esportiva associado aos liceus e escolas destinados aos filhos das classes dominantes da Inglaterra e França em fins do século passado. Através de uma releitura de jogos populares, retirou-se desses jogos todo o elemento de interesse material imediato (inclusive suas ligações com festas e tradições populares), tornando-os um fim em si mesmos, uma atividade irredutível a qualquer outra categoria. Estava criado o "esporte amador", e não é por coincidência que Pierre de Coubertin, o criador dos modernos jogos olímpicos era um barão de nobreza antiga. Essa inclinação pela atividade desinteressada e sem finalidade específica é "uma dimensão fundamental do ethos das 'elites' que sempre se vangloriaram de desinteresse e se definem pela distância eletiva (...) em relação aos interesses materiais." (Bourdieu, 1983a: 139) Esse "berço nobre" no qual nasceu o esporte deixou sua marca ao longo do processo de autonomização do campo esportivo, na forma de uma "filosofia política do esporte" (Bourdieu, 1983a: 140). Esta filosofia política é uma dimensão da filosofia aristocrática baseada no desinteresse por razões materiais e pela busca tenaz da vitória, desde que jamais se desobedeça às regras. É o assim chamado fair play (sempre invocado na época das Olimpíadas e Copas do Mundo) que, na perspectiva de Bourdieu, representa uma forma de forjar o caráter e desenvolver as virtudes viris dos futuros líderes, conforme os preceitos daquelas instituições de ensino. Além disso, a prática esportiva era também recomendada pelos educadores de então como uma maneira saudável de ocupar, vigiar e, principalmente, canalizar a agressividade latente naqueles grupos de adolescentes sob seus cuidados. Essa função de mobilização, 41 ocupação e controle exercida pelo esporte foi rapidamente apropriada por todos quantos tinham sob sua influência grande número de pessoas. Desta forma, surgiram associações esportivas vinculadas inicialmente a sindicatos, partidos e igrejas que, adquirindo autonomia, transportaram para o campo esportivo rivalidades políticas dos mais diferentes níveis (Bourdieu, 1983a). Nessa transposição da prática esportiva do meio social das elites dominantes para as camadas populareshouve uma profunda reinterpretação dos significados dessas práticas, segundo os critérios das camadas populares. Um dos principais efeitos dessa transposição foi a profissionalização do esporte, fato que contraria frontalmente o chamado "espírito esportivo" conforme preconizado por Coubertin. No confronto estabelecido entre esporte amador e esporte profissional, aquele sendo possuidor de uma "pureza" de princípios que este, por envolver uma soma em dinheiro, não possuiria, muitos esportistas foram discriminados por serem "profissionais". Fato notável a esse respeito foi o episódio ocorrido na Olimpíada de Estocolmo, em 1912, quando um atleta americano, Jim Thorpe, um índio algonquim do Oklahoma, tornou-se o primeiro campeão olímpico do decatlo e pentatlo. Após os jogos, teve as suas medalhas cassadas pelo Comitê Olímpico de então por ter, supostamente, recebido no passado quinze dólares por semana para jogar beisebol, o que faria dele um "profissional" (Maranhão, 1980). Esta obrigatoriedade da desvinculação ao interesse financeiro durou até há bem pouco tempo no Comitê Olímpico Internacional, que não aceitava atletas "profissionais" nos jogos olímpicos. Para profissionais ou amadores, as quadras de esporte, pistas, campos ou ringues são locais privilegiados para a realização de confrontos competitivos em nossa sociedade. Às diferentes práticas esportivas correspondem diferentes praticantes. Vários autores referem-se a uma relação 42 estatisticamente comprovável entre as diferentes modalidades esportivas e a origem social de seus praticantes, como Benach (1987), Bourdieu (1983a), Kregel (1987) e Boltanski (1979). Assim, entre pessoas provenientes das classes populares, a utilização do próprio corpo como instrumento de trabalho revelaria uma tendência a escolher esportes que demandem um grande investimento de esforço físico, "por vezes, mesmo dor e sofrimento", tais como os esportes de combate (Bourdieu, 1983a). Já nas camadas médias, a motivação para praticar uma determinada modalidade esportiva adviria de benefícios na manutenção da saúde e da forma física do indivíduo. Nestes grupos, a prática de esportes arriscados, como o full-contact (onde o risco de sair ferido ou nocauteado é sempre uma possibilidade real), limita-se a uma espécie de "licença" concedida aos membros mais jovens e impetuosos destes grupos, por um período limitado. Em geral, estas práticas são abandonadas muito cedo (Bourdieu, 1983a). Para as pessoas provenientes das classes populares, entretanto, a prática do esporte com finalidade profissional representa uma alternativa bastante viável de ascensão social, talvez uma das únicas (Bourdieu, 1983a e Magnane, 1969). Assim, as artes marciais encontram-se, junto com os esportes de combate, ligadas a uma realidade maior, o "campo das práticas e consumos esportivos". Para cada estilo de luta existem produtos especializados, desde o uniforme da academia onde se treina até acessórios importados, como armas orientais, no caso do kung fu e kendô, ou equipamentos de proteção, como botas e caneleiras, para full-contact e outros estilos de kickboxing. No mercado de bens e serviços, os "serviços" são prestados por todas as academias, locais onde se transmitem os conhecimentos acerca de cada modalidade de luta, com um corpo técnico autorizado a ministrá-los, a partir de um alvará emitido pela federação que regulamenta cada modalidade. Nas 43 últimas décadas, muitas artes marciais tradicionais foram transformadas em modalidades esportivas, com a incorporação de regras para competições, estabelecimento de rankings, filiação a entidades internacionais de luta esportiva e organização nacional em federações e confederações, como é o caso do judô, karatê, jiu jitsu e muitas outras modalidades. As diversas modalidades de luta encontram-se todas organizadas em federações e confederações, ligadas em última instância ao poder público, através do Ministério da Educação e Cultura.10 A organização política de uma modalidade de luta esportiva ou arte marcial segue uma hierarquia que vai da academia ao MEC. O Ministério da Educação e Cultura regulamenta a prática do esporte no Brasil através do Conselho Nacional de Desportos (CND). A este órgão estão ligadas todas as confederações esportivas nacionais. Uma confederação é formada a partir da adesão de no mínimo dez federações estaduais de uma mesma modalidade. No caso dos esportes de combate, a maioria deles está vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo, que possui um departamento para cada modalidade. Modalidades que estejam organizadas no país inteiro, entretanto, podem se autonomizar e fundar a sua própria confederação, como é o caso da Confederação Brasileira de Judô, hoje desvinculada da Confederação Brasileira de Pugilismo. A nível estadual, a organização política das práticas esportivas é similar. As modalidades de luta mais freqüentes possuem, em cada Estado, uma federação que regulamenta sua prática, cabendo a ela emitir alvarás autorizando determinados praticantes a lecionar, referendar testes para passagens de degraus hierárquicos para os praticantes, organizar competições e estabelecer os rankings amador e profissional daquela modalidade. Em princípio, uma modalidade nova no 10 As informações acerca da organização política das modalidades esportivas foram obtidas através de entrevistas com o sr. Vinícius Guarilha, ex-presidente da Federação Gaúcha de Pugilismo e atual presidente da Federação Gaúcha de Full-Contact. 44 "campo esportivo", em se tratando de um esporte de combate, terá sua prática e ensino normatizada, no Rio Grande do Sul, pela Federação Riograndense de Pugilismo, como é o caso do hapkidô, capoeira e kendô, onde cada um destes esportes está organizado como um departamento daquela federação. À medida em que uma modalidade vai crescendo de importância dentro do campo esportivo, pelo aumento expressivo do número de seus praticantes, aumenta também o número de instrutores a ela associados, e esse processo em geral leva a modalidade a buscar autonomia, através de uma federação própria. Após um ano organizada como um departamento da federação, os clubes filiados podem pedir a desvinculação desta, através da publicação de um edital de desvinculação, marcando a eleição da primeira diretoria, de um conselho fiscal e de um tribunal de justiça esportiva próprios. Cada clube filiado há mais de um ano tem direito a voto, e o estatuto da nova federação deve ser aprovado pelo CND. Foi o caso do full-contact no Rio Grande do Sul, que inicialmente era ligado à Federação Gaúcha de Pugilismo. Os instrutores mais antigos fizeram seus testes para faixa-preta em São Paulo, através da Federação Paulista de Full-Contact, e depois tiveram seu resultado referendado pela Federação Gaúcha de Pugilismo. Com o súbito sucesso desta modalidade desde o final dos anos 80, em 30 de dezembro de 1991 foi criada a Federação Gaúcha de Full-Contact, que, com sete clubes fundadores, hoje conta cerca de 35 faixas-pretas (praticantes autorizados a lecionar) e aproximadamente 2000 praticantes registrados em todo o Estado (Dados da Federação Gaúcha de Full- Contact). Em nível internacional, o full-contact, a exemplo do boxe, encontra- se organizado por associações mundiais, como a ISKA, a WAKO e a FFKA. Cada uma destas entidades disputa com as outras a supremacia dentro do "campo esportivo", filiando o maior número de países e organizando rankings 45 e competições mundiais. As regras de cada uma destas associações são ligeiramente diferentes,