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Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Circulação Interna Linguagem escrita e alfabetização Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 1 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda SUMÁRIO UNIDADE 1: REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM, 4 A linguagem verbal, 4 As crianças e a linguagem verbal, 8 A origem da linguagem verbal, 12 Estrutura e funcionamento da língua, 16 A variação linguística, 20 A linguagem verbal escrita, 23 Breve história do meio de expressão escrita os sistemas de escrita, 26 Os caminhos da escrita alfabética, 31 A escrita e a cultura letrada, 32 Filólogos, gramáticos, lingüistas, 36 UNIDADE 2: ESCRITA E ESCOLA, 42 2.1. A educação linguística, 42 2.2. A situação brasileira, 46 2.3. A mídia impressa e as outras mídias, 47 2.4. Para um projeto pedagógico letrador, 49 2.5. Formação dos professores, 62 UNIDADE 3: A ORTOGRAFIA DO PORTUGUÊS: BREVE HISTÓRICO, 65 3.1. O período medieval, 65 3.2. O renascimento, 65 3.3. A ortografia pseudoetimológica, 67 3.4. O século xx, 71 3.5. O acordo ortográfico de 1990, 72 UNIDADE 4: CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA GRÁFICO DO PORTUGUÊS, 75 4.1. Representação das consoantes - relações biunívocas (100% regulares), 82 4.2. Relações cruzadas previsíveis-regularidades contextuais, 83 4.3. Relações cruzadas parcialmente previsíveis e parcialmente arbitrárias, 88 4.3. Relações cruzadas totalmente arbitrárias, 93 4.4. Representação das vogais e dos ditongos, 93 4.5. Representação das vogais orais, 94 4.6. Representação das vogais nasais, 96 4.7. Representação dos ditongos, 97 4.8. Representação dos ditongos decrescentes, 98 4.9. Representação dos ditongos crescentes, 100 4.10. Representação dos tritongos, 102 4.11. Quadros de síntese, 104 4.12. Nota sobre as letras k,w,y, 108 4.13. Como classificar as três letras especiais?, 109 APÊNDICE, 111 REFERÊNCIAS, 116 ATIVIDADES DE MÚLTIPLA ESCOLHA, 119 Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 2 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda UNIDADE 1 REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM 1.1. A LINGUAGEM VERBAL A linguagem verbal é marca constitutiva e, portanto, característica básica da espécie humana. Humanidade e linguagem verbal estão, assim, numa relação intrínseca de mútua dependência. Outras espécies animais têm também suas linguagens. No entanto, o estudo comparado da linguagem verbal e das linguagens dos outros animais deixa evidente que há diferenças profundas entre elas. E não se trata apenas de diferenças quantitativas, mas qualitativas: as linguagens dos outros animais não se aproximam nem remotamente da linguagem verbal. Não podem sequer ser consideradas como uma versão mais simples desta. Para deixar isso claro, basta lembrar algumas das características da linguagem verbal: a) ela permite a articulação de um número infinito de enunciados (tecnicamente, dizemos que a linguagem verbal faz uso infinito de meios finitos); b) seus signos - seja os da articulação sonora (fonemas, sílabas), seja os da articulação morfossintática (morfemas, palavras, locuções e sentenças) - são discretos, isto é, são decomponíveis e recombináveis ao infinito (tecnicamente, dizemos, então, que a linguagem verbal é dotada de dupla articulação e de recursividade); c) seus signos não estão limitados à situação imediata: a linguagem verbal permite aos seres humanos falar do passado - dá-lhes, portanto, a condição da memória —; permite-lhes falar do futuro e de todo o inexistente; permite-lhes falar do que está na situação de comunicação e do que está dali ausente ou distante; permite-lhes mentir e criar realidades imaginárias; d) seus signos admitem a significação figurada e, em geral, são semanticamente indeterminados, isto é, completam sua significação numa relação com as situações de uso em que ocorrem. Em outras palavras, os signos da linguagem verbal não têm uma significação una e fixa, mas deslizam entre múltiplas possibilidades significativas determinadas a cada nova situação de comunicação. E por essa indeterminação semântica que atendem as demandas expressivas postas pela variabilidade e imprevisibilidade da vida humana. As linguagens dos outros animais, em contrapartida, não apresentam nenhuma dessas características. a) elas têm um número sempre finito de enunciados; b) seus signos são massivos (isto é, não são decomponíveis e recombináveis; são desprovidos, portanto, da dupla articulação e da recursividade; só o todo do enunciado significa); c) seus signos respondem apenas à situação imediata e são semanticamente determinados, ou seja, carregam uma significação única e fixa (são unívocos) - indicam fonte de alimento ou perigos momentâneos, sinalizam domínio territorial ou ativam ritos de acasalamento. Em razão disso é que se diz que enquanto o ser humano substitui a imediação da experiência pela mediação dos signos, os outros animais vivem exclusivamente na imediação da experiência. Algumas vezes lemos na imprensa notícias de que foram descobertas linguagens de alguns animais (pássaros, em especial) com a propriedade da recursividade. No entanto, em nenhuma dessas vezes se demonstrou suficientemente a alegação e, mais importante, nunca se demonstrou que a recursividade, nestes casos, se de fato existente, redunda, efetivamente, em infinitude. São frequentes também notícias de que alguns primatas em situação de laboratório adquiriram, por indução humana, uma linguagem não fônica (utilizando, por exemplo, artefatos com formas e cores diferentes) com a qual produzem alguns enunciados expressivos e adequados à situação experimental. De novo, por mais curiosos que estes eventos possam ser (e interessantes quanto às capacidades cognitivas não humanas), nenhum desses animais vai além de alguns poucos enunciados, ou seja, não alcançam nunca a infinitude da linguagem humana, nem a autonomia expressiva que a criança alcança sem qualquer treino. É preciso, portanto, cautela diante do efetivo sentido dessas pesquisas, nunca perdendo de vista as enormes diferenças quantitativas e qualitativas da linguagem humana frente à linguagem dos outros animais. Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 3 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Além disso, nós humanos somos seres de muitas linguagens. Expressamo-nos também pelos gestos, pelas expressões faciais, pelas posturas corporais, pelas imagens fixas e em movimento, pela música e assim por diante. Estas linguagens aparecem isoladamente (por exemplo, uma música, um quadro, o logotipo de uma empresa, uma mímica) ou em combinação: dançamos ao som de uma música; produzimos combinar todas estas linguagens com a linguagem verbal: musicamos um poema; compomos a letra para uma música; combinamos a fala com gestos e expressões faciais; cantamos (combinando o corpo com a música e a linguagem verbal); fazemos um filme (nele combinamos imagens, música e linguagem verbal); e assim por diante. Usamos essas linguagens, combinadas ou não, tanto em situações práticas do cotidiano, quanto em atividades artísticas. A mímica, por exemplo, está nas nossas brincadeiras e na nossa comunicação face a face (quando não podemos ou não queremos falar, mas precisamos ou queremos passar uma mensagem para alguém próximo de nós); mas é também uma das mais antigas atividades artísticas da humanidade e visível ainda hoje nas nossas ruas e praças ou nos nossos teatros. Combinamos imagens e palavras na publicidade impressa (outdoors, revistas e jornais), mas, com a mesma combinação de linguagens, criamos histórias em quadrinhos. Fazemos publicidade na televisão combinando imagens, música e palavras, e usamos a mesma combinação de linguagens para criar um filme ou um desenhoanimado. Usamos palavras escritas para deixar um bilhete avisando que não viremos jantar, mas também para compor poemas. Utilizamos cores para identificar diferentes estações do metrô e para ordenar o tráfego de veículos nas esquinas, mas também para pintar quadros ou grafitar paredes. Aproveitamos o movimento corporal e a música para apresentar comercialmente uma nova coleção de roupas num shopping, e igualmente para criar coreografias de balé clássico ou moderno ou de break dancing. Quando usamos, então, o termo linguagem, estamos nos referindo a um conjunto bastante complexo de formas de comunicação e significação. Esse complexo conjunto inclui a linguagem verbal, mas também todas as outras linguagens como a música, o desenho, a pintura, a linguagem de sinais dos surdos, a escultura, a dança, os gráficos, os gestos e toda a expressão corporal — é essa pluralidade de linguagens que nos constitui como seres simbólicos e individualiza a nossa espécie. Nós humanos somos, pois, seres de muitas linguagens e vivemos não propriamente numa biosfera, mas numa densa semiosfera. E nela a linguagem verbal tem, por várias razões, um lugar especial. O linguista e filósofo russo Valentin N. Voloshinov (1895- 1936) destaca, dentre as razões que conferem a ela esse lugar especial, as seguintes (1992: 37-40): a ubiquidade da linguagem verbal na vida humana e o fato de toda a realidade da linguagem verbal se dissolver por completo em sua função de ser signo (é, por isso, o meio mais puro e genuíno da comunicação social e dá forma a toda e qualquer manifestação simbólica humana). Além disso, pela possibilidade de ser produzida sem nenhuma intervenção de qualquer instrumento ou material extra- corporal, a linguagem verbal se converteu no material sígnico por excelência da vida da consciência, dando materialidade ao nosso discurso interior. Por fim, Voloshinov destaca o fato de que é com a linguagem verbal que acompanhamos e comentamos todas as formas da criação da consciência social. Ao conjunto dessas formas ele dá o nome de criação ideológica, no sentido específico das formas simbólicas do espírito humano - conforme as definia o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945) — tais como as artes, as ciências, o direito, a filosofia, a religião, etc. Partes destas formas se materializam na linguagem verbal (a literatura, a filosofia e o direito, por exemplo) ou estão com ela combinadas (o canto, o cinema e a religião, por exemplo). No entanto, a compreensão de todas elas não ocorre sem a participação da linguagem verbal e particularmente do discurso interior. Isso, diz Voloshinov (1992: 39), não quer dizer que a' linguagem verbal possa simplesmente substituir qualquer outro signo. Uma obra musical ou uma imagem pictórica não podem traduzir-se adequada e integralmente pela linguagem verbal; nem um ritual religioso pode ser substituído em sua totalidade exclusivamente pela linguagem verbal. Contudo, o processo de compreensão de todas estas manifestações semióticas se apoia na linguagem verbal e se faz acompanhar dela. Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 4 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Embora a linguagem verbal seja ubíqua e, por isso mesmo, nos seja profundamente familiar, nós ainda não conseguimos penetrar filosófica e cientificamente em todos seus segredos e mistérios. Sabemos mais do universo e das manifestações da vida do que sabemos da estrutura e do funcionamento da linguagem verbal. Nesse sentido, a linguagem verbal é um tanto quanto paradoxal: é um fenômeno ao mesmo tempo banal e altamente complexo. Estamos imersos nela e a pomos a funcionar no nosso cotidiano sem sequer nos darmos conta da sua complexidade. Boa parte de seu funcionamento é, aliás, inteiramente não consciente, isto é, falamos sem ter plena consciência de todos os mecanismos envolvidos nessa corriqueira atividade. No entanto, tudo o que diz respeito à linguagem verbal é sempre de grande complexidade: sua organização interna, seu potencial expressivo, sua base neurológica, seu funcionamento social, sua variabilidade, sua história, seu domínio pelas crianças. A complexidade é tanta que, apesar de dois milênios e meio de estudos sistemáticos, ainda são muitos os mistérios que embaraçam nossa compreensão desse fenômeno definidor da nossa espécie. 1.2. AS CRIANÇAS E A LINGUAGEM VERBAL Pouco sabemos, por exemplo, sobre como as crianças passam de não falantes a falantes. O que sabemos é que nenhuma teoria do conhecimento foi até agora capaz de dar conta desse processo. Observar a criança se tornando falante é uma das experiências mais maravilhosas que podemos ter: vamos assistindo o acontecimento, participamos dele como interlocutores, mas não sabemos explicar o que vai acontecendo. Há qualquer coisa aí que ainda nos escapa. Sabemos que se trata de um processo universal, isto é, ele acontece em todas as partes do mundo, com todas as crianças (salvo aquelas afetadas por profundas deficiências mentais ou acentuadas limitações auditivas) mais ou menos na mesma faixa etária (em torno dos dois anos). Mais ainda: é um processo que ocorre de modo espontâneo: não é preciso ensinar a língua da comunidade à criança, basta que ela esteja em contato com seus falantes. E ainda mais surpreendente é que, embora sejam limitados e precários os dados a que a criança tem acesso, ela sai do processo com conhecimento suficiente da estrutura básica da língua de sua comunidade, tornando-se um falante autônomo dessa língua. Isso significa dizer que ela não apenas entende e repete enunciados ouvidos, mas se torna capaz de produzir e entender enunciados novos, ou seja, adquire a propriedade da infinitude que é característica da linguagem verbal. Teorias do conhecimento que se pautam pelo pressuposto da imitação e da repetição não conseguem dar uma explicação minimamente plausível para esse evento. Em outras palavras, é evidente a pobreza dos dados a que a criança é exposta: a quantidade é pequena (ela nunca é exposta à língua toda—já que as expressões de qualquer língua são em número infinito); e a qualidade é relativamente baixa (são enunciados fragmentários, com muitos arranques em falso, lapsos e interrupções). Nada disso, porém, inviabiliza o efetivo domínio da língua da sua comunidade pela criança. Há um claro descompasso entre a quantidade e qualidade dos dados (finitos e precários) e o saber (infinito e suficiente) que resulta desse processo na criança. As características universais do processo têm alimentado a hipótese de que a linguagem verbal está geneticamente inscrita no cérebro humano, ou seja, de que ela é uma propriedade intrínseca da nossa espécie, conforme tem defendido, desde a década de 1950, o linguista estadunidense Noam Chomsky. Essa hipótese não está ainda suficientemente detalhada do ponto de vista material (ou seja, não foram descritos os dispositivos genéticos que se supõe existirem no cérebro). No entanto, nenhuma outra hipótese suficientemente plausível para dar conta do mesmo fenômeno foi até hoje formulada, o que mostra que este fenômeno, embora seja um evento corriqueiro, está longe de ser um evento banal. A hipótese (chamada de inatista ou genética) não afirma que as línguas propriamente ditas estão inscritas geneticamente no cérebro, mas sim a condição de todas as línguas — a chamada Gramática Universal. Esta é entendida como um saber inato que define “língua humana possível”, saber que, combinado com os dados da experiência, orienta cada criança em seu processo de descobrir a estrutura Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 5 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda fonológica e morfossintática da língua de sua comunidade e de se tornar seu falante. Para muitos estudiosos a hipótese de um saber inato, de qualquer tipo que seja, é sempre indesejávelpor naturalizar excessivamente as realidades humanas. Se há ou não saberes inatos, não temos ainda meios empíricos para decidir porque, no fundo, pouco sabemos sobre como o cérebro funciona e, consequentemente, nossas teorias da cognição estão ainda muito longe de recobrir a complexidade do que efetivamente ocorre em nossas atividades cognitivas. De qualquer forma, independentemente de nossas crenças de base (admitir ou não saberes inatos), há, no processo pelo qual a criança vai de não falante a falante, elementos que não temos condições ainda de destrinçar com clareza, em especial o salto qualitativo que inegavelmente ocorre num determinado momento do processo. A criança entende as enunciações na língua de sua comunidade muito antes de começar efetivamente a falar. Sua produção verbal é, de início, constituída de enunciados de um só elemento (“A!” — significando algo como “Quero água!” ou “Olhe, quanta água!” ou “Veja a água!”). Posteriormente, a criança passa a produzir enunciados com dois constituintes (“iiz au-au!” - significando algo como “Veja o nariz do cachorro!” ou “Cadê o nariz do cachorro?”). Chega, então, a uma fase em que produz enunciados de três elementos (“bô iiz au-au”), sempre sem palavras funcionais como artigos e preposições. E, sem que se perceba exatamente o momento e com que procedimentos cognitivos, ela começa, por volta dos dois anos, a produzir enunciados com todos os elementos sintáticos (“quebô o nariz do au-au”, por exemplo). Alguns fenômenos, como as orações relativas, serão incorporados em momentos posteriores do processo. A morfossintaxe básica, porém, já está consolidada nesta faixa etária. Apesar dos muitos estudos longitudinais que têm sido feitos sobre esse processo todo, estamos longe de esclarecer o que efetivamente ocorre. Assim, não temos de assumir obrigatoriamente a hipótese inatista, mas temos de ter clareza de que a questão continua em aberto. O que sabemos com relativa certeza é que a criança não domina a língua apenas por imitação. Se assim fosse, só produziria enunciados já ouvidos. A criança, claramente, não apenas absorve o que ocorre fora dela (a precariedade dos dados não impede seu domínio da língua). Ela se mostra um ser cognoscente ativo. Há, em seu cérebro, uma atividade cognitiva que opera sobre os dados que recebe do exterior. E esta atividade que ainda não fomos capazes de descrever. Podemos apenas observar indícios de que ela está acontecendo. Dentre inúmeros exemplos, pode-se citar os casos em que a criança cria expressões (“Quebrou o pedalou da bicicleta” ou “Perdi o assuou” ou “Tá aluzado” — em vez de “pedal”, “lenço” e “iluminado”); ou quando ela regulariza formas irregulares (“Se o pastel estasse quente, a gente não comia”); ou pluraliza elementos invariáveis (“Quelo esse aquis" — apontando para os livros que ela queria levar) e assim por diante. Observa-se também que a criança, com a mesma facilidade, espontaneidade e qualidade com que apreende sua língua primeira (a língua da casa), apreende outra(s) língua(s) se a sociedade em que ela vive for bilíngue ou multilíngue; ou tiver outra língua hegemônica que não a da casa (crianças filhas de imigrantes, por exemplo; ou cujos pais se deslocaram temporariamente para outro país por razões de estudo ou trabalho). E esta capacidade — até onde já se observou — se mantém ativa até por volta da pré- adolescência. Daí em diante, parece que o cérebro a desliga e o domínio de novas línguas pelos adolescentes e adultos (mesmo imersos numa nova comunidade linguística) já não se dá com a mesma facilidade, espontaneidade e qualidade como ocorre com a criança. Em suma, há mais coisas misteriosas entre o céu e a terra do que acredita nossa vã filosofia. A criança, no processo de se tornar falante, se mostra cognitivamente ativa, lançando mão de recursos cerebrais que ainda não entendemos suficientemente (ela não é apenas um balde vazio que vai sendo enchido de fora para dentro). Obviamente, não podemos descartar a relevância, neste e em todos os demais processos cognitivos, da interação da criança com os adultos e crianças mais velhas. A interação pode não ser inteiramente suficiente para a dinâmica cognitiva (algo também acontece no cérebro da criança), mas é absolutamente necessária, como demonstraram, por exemplo, os estudos do desenvolvimento dos processos psicológicos superiores feitos pelo psicólogo russo Lev Vygotsky (1896-1934). Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 6 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda A interação é constitutiva do nosso eu, da nossa identidade, da nossa vida mental. Já no século xviii, o filósofo alemão Friedrich Jacobi (1743-1819) levantou esse princípio de que sem o Tu não há o Eu, ou seja, é a inter-relação com os outros que nos constitui como pessoas e põe em movimento nossas atividades mentais (cf., para mais detalhes, Faraco, 2005b). No século xx, Valentin Voloshinov vai formular tese bastante semelhante, dando, agora, ênfase ao papel da linguagem verbal, entendida como atividade sociointeracional, nesse complexo processo. Para ele, a consciência adquire forma e existência por meio dos signos verbais que constituem as relações sociais e nelas circulam. Estes signos são o alimento da consciência. Nas palavras dele (tradução nossa): A consciência se constrói e se realiza mediante o material sígnico, criado no processo da comunicação social de um coletivo organizado. A consciência individual se alimenta de signos, cresce com base neles, reflete em si sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a da comunicação ideológica, a da interação sígnica em uma coletividade. (1992: 36) Em outros termos, nossa vida mental adquire sua dinâmica própria internalizando a dinâmica da interação socioverbal da comunidade em que vivemos. Raciocínio parecido foi desenvolvido por Vygotsky no estudo do desenvolvimento da atividade cognitiva humana. Ele mostrou como essa atividade nasce da interação entre os que já dominam um determinado saber e os que estão começando a dominá-lo. A atividade cognitiva é antes intersubjetiva e, uma vez internalizada, se torna intrasubjetiva. Ou seja, a lógica cognitiva social se torna, pela mediação dos outros, lógica cognitiva interiorizada (subjetiva), a dinâmica externa se torna dinâmica interna (2007: 56-8). Ê desse modo que cada pessoa adquire autonomia cognitiva. Os detalhes do processo todo, em especial em relação ao domínio da linguagem verbal pela criança, é que ainda nos escapam. De qualquer forma, são observáveis vários gestos dos adultos que contribuem para instituir as bases da interação com a criança. Estes gestos vão desde os primeiros enunciados dirigidos ao recém- nascido (construindo, desde a primeira hora, o bebê como interlocutor) até as trocas interativas com a criança já mais madura (verdadeiros jogos interacionais de perguntas e respostas e reiterações do dizer da criança), passando pelas interpretações que atribuímos, desde cedo, às ações da criança como o choro, os movimentos corporais e a direção do olhar. Estes gestos todos têm, certamente, papel decisivo na constituição do eu do novo ser e no desencadeamento de seus processos cognitivos. Os psicólogos relatam os inúmeros efeitos negativos da ausência dessa dinâmica interacional nos primeiros anos de vida da criança para o seu desenvolvimento emocional e cognitivo. Nesse sentido, embora não sejamos ainda capazes de dar conta de todos os fatores e processos que participam da cognição humana (em especial do domínio da língua), duas coisas são bastante evidentes: a interação socioverbal tem aí um papel absolutamente necessário (não podemos, portanto, ignorá-la ou secundarizá-la); e, segundo, a criança é um ser cognitivamente ativo (não podemos, portanto, tratá-la como um mero receptáculo passivo do que vem do exterior). 1.3. A ORIGEM DA LINGUAGEM VERBAL Se é ainda misterioso oprocesso pelo qual a criança passa de não falante a falante, é ainda mais misteriosa a origem da linguagem verbal, ou seja, quando e como ela começou a se manifestar na linha evolutiva da espécie humana. Se fizéssemos uma lista dos dez maiores mistérios que nos assombram, certamente a origem da linguagem verbal estaria entre eles em lugar de especial destaque. Saber quando e como a linguagem verbal surgiu mexe fundo com nossa curiosidade. E maior é seu fascínio porque não temos a menor ideia de como as coisas aconteceram. A linguagem verbal é marca forte, constitutiva, distintiva da nossa espécie. Por isso, a discussão de suas origens está intrinsecamente ligada às discussões da origem da própria espécie. Dispomos hoje de uma boa quantidade de fósseis que fornecem evidência material interessante para hipóteses razoáveis sobre os longos e complexos caminhos da evolução das espécies dos quais Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 7 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda emergiu o Homo sapiens. Temos, por exemplo, indícios convincentes de que nossa espécie se originou nas savanas do Leste da África e se espalhou pelo planeta seguindo rotas que a levaram à Europa e à Ásia e desta à América e à Oceania. Essas rotas têm sido estabelecidas em parte pelo estudo do DNA das populações. Com base nesses dados, os paleontólogos têm sugerido que o Homo sapiens surgiu na Terra há aproximadamente 100 mil anos, embora se calcule que o ramo hominídeo dos primatas tenha se separado há 6 ou mais milhões de anos. Igualmente dispomos hoje de um precioso acervo de objetos criados pelos humanos (ferramentas e utensílios domésticos, por exemplo) e de registros pictóricos em rochas que nos permitem sustentar hipóteses plausíveis sobre os caminhos percorridos pela humanidade na construção de sua cultura material e simbólica. Com base nesses dados, os antropólogos costumam registrar um florescimento cultural bastante significativo por volta de 50 mil anos atrás. Para alguns, esse florescimento cultural, inimaginável sem a linguagem verbal, é indício de que ela já estava plenamente estruturada por essa época. Ela teria, então, surgido há mais de 50 mil anos. Confrontando as duas datas (a do surgimento da espécie e a do florescimento da cultura), há pesquisadores que defendem a hipótese de que a linguagem teve um desenvolvimento vagaroso e foi crescendo em complexidade ao longo de milênios. Outros, porém, considerando a relação intrínseca entre a espécie e a linguagem verbal e o prodigioso processo pelo qual um bebê humano se torna falante (fato que claramente não se dá por simples imitação ou por puro aprendizado a partir de um estágio zero, como se o cérebro fosse uma caixa vazia), defendem a hipótese de que a linguagem como a conhecemos surgiu junto com a espécie e está relacionada a uma mutação radical no conglomerado de genes dos hominídeos mais antigos. No momento, não temos nenhuma base para optar entre essas hipóteses. A linguagem verbal é um bem imaterial. Assim, de seu passado nada sobrou. Não temos, por exemplo, o menor indício de como teria sido o estágio semiótico imediatamente anterior à linguagem propriamente humana, isto é, a linguagem anterior à nossa linguagem. Ainda hoje nos espanta a enorme distância que há entre nossa linguagem e os sistemas de signos dos outros animais - como apontamos anteriormente. Mesmo no caso de outros primatas - alguns deles geneticamente muito próximos de nós como os chimpanzés (conforme atestam os recentes estudos comparativos dos genomas) — as diferenças não são apenas de grau (como se a linguagem humana estivesse apenas alguns degraus de complexidade acima desses outros sistemas). Há, de fato, um fosso qualitativo profundo. No passado, algumas pessoas propuseram que a linguagem verbal teria saído dos sistemas de signos dos outros animais (por imitação, por exemplo). No entanto, ninguém foi capaz de apresentar uma formulação plausível de como se deu o salto do muito simples para o muito complexo. E é justamente essa a questão crucial: qualquer hipótese que pretenda tirar a nossa linguagem dos sistemas de signos dos outros animais terá de dar conta do processo que gerou essa diferença qualitativa profunda. Uma outra dificuldade empírica que nos acompanha na discussão da origem da linguagem diz respeito ao fato de que, embora as línguas humanas sejam muito diferentes entre si, não há qualquer diferença substancial entre elas em termos de complexidade gramatical. Isso quer dizer que a menos complexa das sociedades humanas tem já uma língua gramaticalmente tão complexa quanto qualquer outra. Não existe, portanto, nenhuma língua humana que pudesse ser classificada de “primitiva” e que pudesse, portanto, fornecer indícios da história da nossa linguagem, aceitando a hipótese de que ela evoluiu vagarosamente ao longo de milênios. A linguística desenvolveu métodos que permitem reconstruir, com razoável sucesso, a história de uma língua e de famílias de línguas mesmo onde não há documentação escrita (a escrita só surgiu há cinco mil anos na história humana). Embora tenha sido possível fazer, em alguns casos, um recuo de dez mil anos, nenhum desses resultados sugere um estágio gramatical menos complexo que o conhecido hoje. Assim, sem uma mínima base empírica, parece que pouco podemos fazer neste assunto além de elucubrar. Precisamos, porém, ter claro que, se no mundo da ficção podemos afirmar qualquer coisa (a imaginação é livre), no âmbito da discussão científica nossas afirmações têm de ser demonstradas e Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 8 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda sustentadas empiricamente. Não basta apenas afirmar. Modernamente, a questão da origem da linguagem verbal foi formulada no Ocidente apenas no século xviii. Até então, a cultura europeia aceitava como inquestionável a narrativa bíblica das origens, pela qual Deus criou diretamente o ser humano e deu-lhe, por um sopro, a vida. Embora o texto bíblico nada diga sobre isto, supõe-se que com o sopro da vida veio junto a linguagem, já que Deus logo entabulou um diálogo com Adão e lhe atribuiu a tarefa de dar nome aos outros seres vivos (cf. Gênesis, 2: 7-20). Nesse quadro de referências, havia muitas pessoas que acreditavam que a língua adâmica teria sido o hebraico. Com a progressiva secularização do pensamento, decorrente em parte das guerras religiosas e em parte do próprio desenvolvimento das ciências físicas, a narrativa bíblica foi perdendo a sua primazia e os filósofos, em consequência, começaram a se questionar como a humanidade se tornou falante. Dentre várias outras, são célebres as especulações do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ele sugeria, num livro escrito em 1756, que a linguagem tinha se originado da expressão das paixões a partir do momento em que os humanos, antes dispersos, começaram a viver em sociedade. Para ele, foram o amor, o ódio, a piedade, a cólera que fizeram os humanos produzirem suas primeiras falas e, por isso, as primeiras línguas teriam sido cantantes e apaixonadas. No século XIX, a questão se tornou bastante popular e multiplicaram-se “soluções” que poderíamos chamar de ingênuas, para não dizer inverossímeis. Todas elas propunham sempre uma origem muito simples para a linguagem humana e, por nunca considerarem a sua alta complexidade intrínseca, nada diziam sobre o mais importante, isto é, como se deu o grande salto do muito simples para o altamente complexo. E ainda mais: nunca foram capazes de oferecer uma explicação convincente para a origem da grande diversidade de línguas. Por curiosidade, lembremos aqui uma dessas “teorias”. Ela propunha que a linguagem havia surgido dos grunhidos que os humanos emitiam aliados ao esforço para levantar e carregar objetos pesados. Essas“teorias” absurdamente simplificadoras acabaram por levar os pesquisadores mais familiarizados com a complexidade das línguas a excluir o tema “origem da linguagem” da lista de investigações cientificamente aceitáveis. Em 1866, a Sociedade de Linguística de Paris incluiu esta restrição em seus estatutos. E não tratar do tema passou a ser uma espécie de senso comum entre os linguistas. Nas últimas décadas do século xx, porém, essa situação começou a se alterar e em 1996 foi realizada, na Universidade de Edimburgo (Escócia), a i Conferência Internacional sobre a Origem da Linguagem, seguida de outras a cada dois anos. A retomada do tema nas esferas científicas decorre de uma combinação de fatores, em especial dos resultados das pesquisas paleontológicas e dos extraordinários desdobramentos da biologia evolutiva e da genética, além da intensificação dos estudos de psicologia cognitiva, antropologia e linguística. Se todos esses estudos pouco ou nada contribuíram para iluminar minimamente a questão da origem da linguagem humana, muito têm contribuído para melhor formularmos as perguntas que devem ser respondidas, isto é, tornaram mais estritos os limites postos às nossas elucubrações. Mesmo assim, a questão está muito longe de ser resolvida, se é que teremos condições de resolvê-la um dia. 1.4. ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA Se a origem da linguagem é uma área atravessada por grandes mistérios e ainda longe de uma convincente abordagem científica (se é que, como acabamos de dizer, ela será possível um dia, considerando a inexistência absoluta de dados), as coisas não são mais fáceis na abordagem de outras faces da linguagem verbal. Uma observação fria da realidade deixa claro quão difícil é analisar cientificamente qualquer uma das muitas manifestações históricas da linguagem verbal - as diferentes línguas das sociedades humanas. Os linguistas, que são os estudiosos que se dedicam profissionalmente a esta tarefa, sabem disso muito bem porque se deparam continuamente com as inesgotáveis complexidades estruturais e funcionais das línguas. Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 9 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Para se ter uma ideia dessa complexidade, basta lembrar que qualquer língua é uma realidade estrutural infinita, conforme dissemos no início deste capítulo. O número de sons da fala de que se serve uma língua é finito (em torno de três dezenas). O número de suas palavras (ainda que imenso) é finito (calcula-se que uma língua como o português tem algo em torno de meio milhão de palavras). O número de regras com as quais organizamos os enunciados é também finito (embora não tenhamos ainda ideia clara de sua quantidade). Apesar disso tudo, o número de enunciados possíveis numa língua qualquer é infinito, ou seja, a língua é uma organização tal que nos permite fazer uso infinito de meios finitos. Diante desse quadro, poderíamos supor que, sendo finitos os meios estruturais, bastaria que eles fossem descritos para alcançarmos uma apresentação científica completa de uma língua. No entanto, as coisas não são tão simples assim. Primeiro, porque a língua não se esgota em sua estrutura. Para analisá-la adequadamente, temos de considerar também seu funcionamento social. Segundo, porque nenhuma língua é uma estrutura homogênea e uniforme. Qualquer língua se multiplica a tal ponto em inúmeras variedades que muitos chegam a dizer que atrás de um nome — português, por exemplo — se escondem, de fato, muitas “línguas”. Qualquer língua é sempre, portanto, uma realidade plural e heterogênea. Incluem-se nessa pluralidade as variedades geográficas (os chamados dialetos), as variedades sociais (os dialetos dos vários segmentos sociais urbanos e rurais, os jargões profissionais, as gírias, os registros e gêneros próprios de cada atividade humana) e as variedades estilísticas (variedades próprias da fala, variedades próprias da escrita, estilos formais ou informais, familiares ou vulgares). E podemos acrescentar ainda a toda essa gama de variedades as peculiaridades de fala e escrita de cada um dos falantes - afinal, não há dois falantes que falem ou escrevam exatamente do mesmo modo, como resultado do fato de que nenhum ser humano tem uma experiência existencial exatamente igual à de qualquer outro ser humano. Essa dimensão singular da expressão levou o filósofo e linguista alemão Wilhelm von Humboldt (1767-1835) a afirmar que na linguagem a individualização de uma forma geral é tão fantástica que podemos dizer com igual correção que a humanidade como um todo tem uma só língua e que cada ser humano tem uma língua pessoal (1988: 53). Ele resumiu bem essa dupla face da realidade linguística humana. Se a olhamos pelo viés da humanidade como um todo (pelo viés da espécie humana), observamos que, embora as línguas sejam muito diferentes entre si, elas não diferem em seu grau de complexidade - o que significa dizer que as línguas são muito diferentes entre si, mas a linguagem verbal é uma só. Por outro lado, se a olhamos pelo viés de cada indivíduo, observamos que sua expressão linguística tem uma clara dimensão singular. Ou seja, embora cada um de nós se desenvolva numa densa teia de relações sociais, nenhum de nós é absolutamente igual a qualquer outra pessoa. Nesse sentido, mesmo quando dizemos que falamos a mesma língua, não há nenhuma garantia de total intercompreensão. Em outros termos, a ideia de senso comum de que basta falar uma mesma língua para haver entendimento direto entre dois falantes não se sustenta. Frequentemente (e não excepcionalmente) é preciso negociar (“traduzir”) as significações do que dizemos. É bastante evidente, portanto, a imensidão constitutiva de qualquer língua. E essa complexidade toda se amplifica enormemente se considerarmos ainda alguns outros fenômenos corriqueiros do funcionamento social da língua. Lembremos, por exemplo, que, em situação de uso, um enunciado pode sempre significar seu contrário. Assim, digo João é muito honesto, mas, pelo mecanismo da ironia, faço este enunciado significar exatamente seu oposto, isto é, que João é desonesto. Por outro lado, um enunciado pode ter um significado bem diferente daquele que está contido em sua estrutura. Assim, alguém diz Está frio aqui e seu interlocutor identifica nesta expressão um pedido ou uma ordem para que as janelas sejam fechadas (sem que as janelas sequer tenham sido mencionadas!). São dois exemplos banais, mas ilustram bem o caráter fluido e movente da língua em uso. Talvez, como falantes, nem percebamos a frequência com que jogamos com as estruturas da língua, fazendo-as significar para além delas mesmas. A esses dois exemplos poderíamos ainda acrescentar o imenso continente que é o uso figurado da Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 10 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda linguagem. Embora algumas pessoas pensem que a linguagem figurada só ocorre na poesia, nosso dizer cotidiano está repleto de comparações e gestos metafóricos e metonímicos. Diante de todo esse quadro praticamente inesgotável de recursos é que podemos afirmar que uma língua é um universo infinito e em contínuo movimento. Mesmo que conseguíssemos juntar num megadicionário todas as palavras da língua (com os diferentes sentidos de cada uma delas) e conseguíssemos apresentar numa megagramática todos os princípios que regem a construção dos enunciados estruturalmente possíveis na língua (cobrindo toda a gama de suas variedades), ainda assim a língua como tal nos escaparia. E isso porque ela não é uma realidade estática, que possa ser congelada num dicionário e numa gramática. Ela não é um tesouro, uma mera coleção de sons, palavras e enunciados. Ela é, de fato, uma realidade dinâmica, plástica, aberta, em contínuo movimento. E ela tem de ser assim, porque, deoutro modo, ela não serviria para dar forma à miríade de eventos de expressão e interação que ocorrem continuamente no interior da sociedade que a fala (ou, como no caso do português, das sociedades que a falam). A língua é dinâmica, plástica, aberta e em contínuo movimento porque a experiência humana tem essas características. O ilimitado e a dinamicidade da língua têm a ver com o ilimitado e a dinamicidade da vida humana. Assim, no mesmo momento em que estivéssemos terminando nosso megadicionário, novos sentidos estariam sendo agregados às velhas palavras e novas palavras e expressões estariam sendo cria- das ou incorporadas de outras línguas. Mesmo que conhecêssemos integralmente os princípios das alterações semânticas das palavras ou da criação e incorporação de novas palavras, sua manifestação e direção são, de fato, imprevisíveis. Ainda que conhecêssemos todos os princípios de construção dos enunciados da língua em todas as suas variedades, não teríamos como prever as direções do uso figurado ou do jogo com as estruturas que as faz significar para além delas mesmas. Além disso, não podemos perder de vista outro fato importante para apreendermos a complexidade da língua: ela passa continuamente por processos de mudança que vão alterando sua configuração estrutural. Esse movimento histórico alcança — em tempos diversos e em direções não necessariamente coincidentes (e, em geral, imprevisíveis) - todas as variedades constitutivas da língua. De novo, pouco sabemos sobre os fatores que condicionam essas mudanças e como eles agem. No entanto, sabemos que as mudanças nunca destroem a organização das variedades: há um redesenho constante da estrutura, mas nunca ocorre uma desestruturação da língua. Como dizia o antropólogo e linguista alemão-estadunidense Edward Sapir (1884-1939), a língua muda, mas nunca perde sua plenitude estrutural e seu potencial significativo (1969: 33-4). A análise dos processos de mudança sugere que elas parecem emergir, entre outros possíveis fatores, do encontro das variedades ou, ainda, do contato com outras línguas. As diferentes maneiras de se pronunciar ou de se estruturar os enunciados parecem criar um caldo propício à mudança. Os linguistas costumam dizer, por isso, que as mudanças parecem emergir da heterogeneidade, isto é, fenômenos típicos de algumas variedades acabam por ser adotados progressivamente por falantes de outras variedades, resultando em alterações na pronúncia ou na estrutura dos enunciados destas últimas. E esse é um processo contínuo, impossível de ser estancado (cfi, para mais detalhes, Faraco, 2005). Apesar de tudo que apontamos aqui, há quem não perceba a enormidade e a dinâmica da língua e acredite que ela possa ser reduzida a meia dúzia de regrinhas. Mesmo que nos restringíssemos à chamada norma culta, que alguns, infelizmente, tratam como uma camisa de força a ser amarrada nos falantes para limitar ou impedir suas ações de fala ou escrita, veríamos que também ela não escapa da variedade, nem da mudança, nem do movimento contínuo. E uma quimera achar que podemos abarcar a língua em sua totalidade. Quimera maior, porém, é querer domar a língua, estancar sua dinâmica, fixá-la num monumento pétreo. Isso não significa, obviamente, que devamos desistir de estudá-la cientificamente. Quanto mais a compreendermos, mais compreenderemos a nós mesmos, seres de linguagem que somos. Temos, no entanto, de estar cientes de que a língua sempre nos escapa. E nos maravilharmos com isso. Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 11 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Por outro lado, embora a chamada norma culta seja também um “peixe ensaboado”, isso não significa que não devamos nos ocupar dela. Não podemos relevar sua importância sociocultural como uma tentativa de se construir um espaço de relativa unidade por sobre a imensa variedade da língua (em especial para eventos de escrita e para os meios de comunicação de massa). Para que a norma culta cumpra de fato esse seu papel, nós precisamos superar criticamente a cultura do erro que tem sido tradicionalmente associada a ela entre nós, substituindo essa atitude negativa, inquisitorial, condenatória por uma atitude mais condizente seja com suas reais características, seja com sua relevância sociocultural, seja ainda com sua dinâmica. Para isso, é fundamental entendermos bem o fenômeno da variação linguística. 1.5. A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA Não existe língua homogênea. O fato de darmos um nome singular a uma língua (português, chinês, quíchua, suaíli, tapirapé) não deve nos iludir e nos impedir de apreender e apreciar adequa- damente a heterogeneidade constitutiva de qualquer língua. Uma língua é sempre uma realidade plural, isto é, uma língua é um conjunto de incontáveis variedades: inúmeros dialetos geográficos e sociais, variadíssimos estilos, incontáveis registros aliados às mais diversas atividades humanas. Uma língua é, nesse sentido, muitas línguas. Não há, como alguns acreditam, a língua de um lado e as suas variedades de outro. A língua é a própria soma de todas as variedades que, por razões históricas e socioculturais, são reconhecidas como constitutivas da mesma língua. Convivemos cotidiana e corriqueiramente com essa enorme (talvez infinita) diversidade e não nos apercebemos da miríade de fatores que, em múltiplas relações, estão envolvidos na sua contínua produção. Não dispomos de nenhuma teoria capaz de explicar toda essa diversidade. De novo, o banal e o complexo, o corriqueiro e o mistério. As variedades se diferenciam pelo modo como os enunciados são pronunciados, como as sentenças são construídas, como os processos morfológicos se realizam e também pelas palavras que são mais comumente usadas e pelos sentidos agregados a cada uma delas. Sabemos que, muitas vezes, os falantes de diferentes variedades não se entendem de imediato, isto é, a compreensão entre eles não é direta. Apesar disso, eles se dizem falantes da mesma língua e, por isso, acabam por encontrar meios para se entender mais facilmente do que se fossem falantes de línguas diferentes. Isso é possível porque, segundo acreditamos, as variedades, embora diferentes, partilham, lá no fundo, um núcleo gramatical (alguns princípios gerais de organização como, por exemplo, a ordem das palavras na frase e propriedades morfológicas) e um vocabulário básico (por exemplo, o nome dos números, de algumas partes do corpo, das ações do cotidiano e assim por diante). Sabemos ainda pouco sobre o que constitui, de fato, esse núcleo. No entanto, acreditamos que ele exista e julgamos que ele resulte da história, ou seja, as comunidades vão se desdobrando, se estabelecendo em novos espaços, se diferenciando, se misturando e as variedades da língua, acompanhando esses processos, vão saindo umas das outras, vão se afastando e se aproximando, vão se interinfluenciando e se mesclando — conservando, porém, áreas de sobreposição. Dizemos, então, que falamos a mesma língua quando nossas variedades compartilham essas áreas de sobreposição básicas. Ê este núcleo comum que nos permite negociar significações e construir a mútua compreensão, mesmo quando, num primeiro momento, não conseguimos eventualmente nos compreender. Cada uma das variedades constitutivas da língua, por sua vez, é um todo muito bem organizado. Há princípios que regulam a combinação dos sons em sílabas e palavras; há outros que regem os processos morfológicos (a conjugação verbal, a formação de novas palavras, a acomodação de palavras importadas de outras línguas); há os que definem a construção das sentenças. Alguns aspectos dessa organização nós já fomos capazes de descrever; a maior parte, porém, continua sem uma descrição adequada. Apesar de não haver variedade sem organização interna, muitas vezes, por pura ignorância ou preconceito social, há quem ache que algumas variedades não têm “gramática”,são erradas, são Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 12 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda deformações da “verdadeira” língua. Se pararmos para analisar, vamos ver que esses julgamentos alcançam as variedades que são faladas por grupos sociais que têm estado na periferia da vida econômica e, por isso, distantes dos quinhões maiores da riqueza material e imaterial da sociedade. O cerne do problema não está, portanto, na língua, mas na estrutura social profundamente marcada pela desigualdade. Temos aqui um exemplo de como a língua pode ser transformada num elemento de discriminação social. Não é fácil romper com essas atitudes preconceituosas e discriminatórias porque elas estão profundamente enraizadas na nossa cultura. Se tivermos, contudo, clareza de que o problema não está na língua - justamente porque todas as variedades são muito bem organizadas poderemos lutar contra essas atitudes negativas que tanto dano causam na escola, no trabalho e na vida em geral. Mas a língua não é só diversidade. Há também situações que favorecem certas tendências e processos unificadores. No mundo contemporâneo, os meios de comunicação social (a televisão e o rádio, em especial) tornam algumas variedades amplamente audíveis em vastos espaços (o país inteiro, por exemplo). Isso as projeta em meio à diversidade e lhes dá uma certa força unificadora. Elas são até, muitas vezes, percebidas como exemplares nacionais da língua e também como modelos a serem imitados. Nesse sentido, podemos dizer, sem muito erro, que a norma linguística de referência (a norma culta) no Brasil de hoje é constituída pelas variedades privilegiadas pelos meios de comunicação social, ou seja, as variedades mais monitoradas da classe média urbana. Ao mesmo tempo, contudo, essas variedades podem também acirrar a diversidade: os falantes, ao perceberem que falam diferentemente das variedades privilegiadas pelos meios de comunicação social, podem resistir a imitá-las, preferindo, por várias razões, reforçar suas características locais. Em matéria de língua, os falantes vivem, então, no entrecru- zamento das forças diversificadoras com as unificadoras, ou seja, vivem entre os fatores mais locais (que favorecem a diversidade) e os de caráter mais geral (que possibilitam uma certa unidade, um certo chão comum), vivem entre o centrífugo e o centrípeto. E a expressão escrita da linguagem verbal, por suas características peculiares, tende a favorecer as forças mais unificadoras, como discutiremos a seguir. 1.6. A LINGUAGEM VERBAL ESCRITA O meio básico de expressão da linguagem verbal é a ora- lidade, ou seja, a expressão articulada de sons produzidos pelo aparelho fonador. Com o passar do tempo, a humanidade criou um segundo meio de expressão — a escrita. Se comparado ao meio orai (que - supõe-se - tem perto de cem mil anos, como discutimos anteriormente), o meio escrito é recentíssimo: foi desenvolvido apenas há aproximadamente cinco mil anos. Por outro lado, enquanto todos os grupos humanos conheceram no passado e conhecem no presente o meio oral de expressão, apenas alguns grupos desenvolveram o meio escrito no passado e há ainda hoje línguas que não dispõem de expressão escrita. Assim como o meio oral precedeu em milênios o meio escrito na história da humanidade, ele também o precede na história do indivíduo: as crianças passam a falar por volta dos dois anos (e, como dissemos antes, o fazem espontaneamente, isto é, sem necessidade de ensino sistemático); contudo, só começam a se apropriar da escrita por volta dos cinco anos (e, em geral, dependem, para isso, de ensino formal). Há grandes diferenças entre os dois meios de expressão da linguagem verbal (cf., para mais detalhes, Jahandarie, 1999, cap. 8). O meio oral, por exemplo, conta, na composição do processo de significação, com o apoio gestual e facial, e dispõe de uma ampla gama de recursos prosódicos, ou seja, a cadeia falada tem uma linha melódica que lhe é dada pela entoação e pelo jogo da intensidade e duração com que se proferem os segmentos sonoros. Tudo isso falta ao meio escrito. Ele é, de certa forma, um meio parco de expressão. Para compensar estas enormes faltas, criaram-se alguns recursos gráficos (como a pontuação ou a mudança de fonte). Estes, no entanto, por mais indispensáveis e úteis que sejam, não conseguem jamais Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 13 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda alcançar o peso e as nuanças significativas da prosódia ou ainda do apoio gestual e facial que acompanham a fala. Um dos grandes desafios de quem aprende a escrever é, então, adequar sua expressão a este meio parco de recursos. E ser capaz de ir da abundância de recursos da oralidade para a exiguidade de recursos da escrita, desenvolvendo a capacidade de explorar as características do meio escrito para fazê-lo significar adequadamente, de modo a compensar suas lacunas. Outro dado importante a lembrar é o fato de que o meio oral se realiza fundamentalmente na comunicação face a face. O interlocutor, portanto, está presente e isso dá à fala uma dinâmica bastante peculiar: ela pode se apoiar extensamente em informações contextuais. Com isso, pode dispensar um elevado grau de explicitação textual e não precisa ser detalhadamente planejada - vai definindo seu rumo à medida que se processa e em consonância com as reações dos interlocutores. A temática da conversa pode, em razão disso tudo, ser difusa e coesivamente aberta. A comunicação pelo meio escrito, por sua vez, não conta com a presença física do interlocutor. E isso tem profundas implicações para o ato de escrever: é preciso, por exemplo, preencher essa ausência por uma imagem do interlocutor. Escreve-se para alguém ler e é preciso, então, definir quem será o interlocutor — imagem que pode ter como referente um indivíduo bem concreto, como numa carta pessoal, ou uma determinada categoria de indivíduos, como, por exemplo, o público leitor de um jornal. Por outro lado, pelo fato de não ser possível apelar extensamente ao contexto imediato, é preciso que o escrito alcance alto grau de explicitação textual. E, como não se pode contar com a presença física do interlocutor, é preciso prever suas possíveis reações e a elas responder ou adequar o texto antecipadamente. O ato de escrever exige, então, cuidadoso planejamento prévio; sua temática não pode ser difusa, mas deve ser centrada, sequencialmente bem trabalhada e apoiada em recursos coesivos estritamente controlados. Falhas graves em qualquer desses aspectos comprometem a compreensão e, por consequência, a interlocução. Um dos grandes desafios de quem começa a trabalhar com a escrita é, então, aprender a ajustar sua expressão à ausência física do interlocutor e à impossibilidade de contar com as referências contextuais imediatas. No primeiro caso, é preciso tornar a imagem do interlocutor elemento constitutivo do ato de escrever (em outras palavras, quem escreve deve exercer dois papéis — deve ser o autor e, ao mesmo tempo, deve colocar-se na posição de seu provável leitor, monitorando assim o que escreve). No segundo, é preciso controlar a textualização de modo a garantir que a significação se realize mesmo na ausência do apoio contextuai imediato. Apesar das limitações e das exigências estritas que caracterizam o meio escrito, este tem sobre o meio oral a vantagem da permanência. A fala é efêmera e evanescente (os romanos tinham já um dito que resumia bem este caráter fugaz, volátil da fala: verba volant, scripta manent — as palavras (faladas) voam, os escritos permanecem). Já o meio escrito dura enquanto durar seu suporte. Assim é que podemos ler textos antiquíssimos, embora muito pouca coisa tenha sobrado do que foi dito oralmente há poucos instantes. Essa propriedade de permanência do meioescrito é responsável pela importância que ele adquiriu na história humana. Com a escrita, a humanidade pôde transcender os limites do tempo, do espaço, da comunicação face a face e da cultura apenas oral e local. Tornou-se possível também o registro do conhecimento e, com isso, criaram-se as bases para ampliá-lo exponencialmente. Não é à toa, portanto, que se diz ter sido a invenção da escrita a maior realização tecnológica da humanidade. É verdade que o século XX trouxe a possibilidade técnica de se gravar o falado, de estancar seu caráter evanescente. No entanto, a maior parte dos eventos apenas falados continua sem registro, até mesmo por razões de ordem prática: eles são incontáveis e, salvo em casos muito específicos, é absolutamente irrelevante gravá-los. O século xx trouxe também várias possibilidades técnicas de transcender a milenar limitação do meio oral à interação face a face. A comunicação oral adquiriu a possibilidade de ser mediada tecnologicamente por meio do telefone, do rádio, da televisão, do computador. Romperam-se assim os limites do espaço próximo e se amplificou enormemente o alcance do meio oral. Em alguns casos, como o da televisão, por exemplo, o número de destinatários alcançáveis Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 14 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda simultaneamente por uma só fonte enunciativa pode facilmente chegar à cifra de muitos e muitos milhões. Neste último caso, ganha-se incalculavelmente em extensão, mas perde-se a possibilidade da alternância contígua de locutores e da réplica imediata. Isso cria, evidentemente, outras condições para a comunicação oral humana. Amplifica-se, em grandezas quase incalculáveis, o que, de certa forma, já estava presente na comunicação face a face institucionalizada como na escola, na igreja ou no tribunal — lugares em que a fonte da enunciação se dirige a muitos simultaneamente e a eventual alternância de locutores e a possibilidade de réplica costumam ser rigidamente controladas por regras explícitas ou implícitas. Mas, apesar disso, podem ainda eventualmente ocorrer. Essa possibilidade desaparece nos meios de comunicação de massa como a televisão (salvo — por ora pelo menos — em simulacros). O meio escrito, por ser tradicionalmente destinado à comunicação à distância, só admitia a alternância não contígua de locutores e a réplica remota. Isso, de certa forma, continua acontecendo, embora o desenvolvimento da comunicação mediada por computador tenha trazido a possibilidade da sincronia, ou seja, da troca de mensagens escritas on-line, o que acarreta também novas condições para a comunicação pelo meio escrito. Destaque-se, nesse sentido, que o desenvolvimento da internet e sua difusão social (calcula-se hoje que o Brasil conta com 75 milhões de internautas - cf. O Estado de S. Paulo, 10 jan. 2010, p. B12) têm expandido enormemente o uso da escrita em e-mails, blogs, sites e redes sociais. Pode-se afirmar que nunca se escreveu tanto e nunca antes tanta gente se envolveu cotidianamente com a escrita em proporções semelhantes. Essa expansão tem, claro, acarretado mudanças significativas no modo de realizar as práticas sociais de escrita: relativizam-se, em muitos espaços do meio eletrônico, várias das tradições discursivas historicamente constituídas na era do domínio soberano do livro e das outras mídias impressas. Os textos saem quase no ritmo da fala (estão se constituindo outros gêneros e outros padrões de textualidade), predominam as variedades linguísticas pouco monitoradas e até mesmo a forma de grafar as palavras passa por um processo de estenografização (o chamado internetês). Isso tudo, no entanto, não significa que as tradições discursivas historicamente constituídas serão simplesmente abandonadas. Elas continuarão valendo para determinadas situações, influenciarão as novas tradições que estão em construção, assim como receberão influências destas novas tradições. Estamos vivendo, portanto, um tempo pleno de novas experiências interacionais e de consequentes mudanças na expressão verbal, seja na oralidade, seja na escrita. 2 BREVE HISTÓRIA DO MEIO DE EXPRESSÃO ESCRITA 1.7. OS SISTEMAS DE ESCRITA A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal se deu, como dissemos no capítulo anterior, há aproximadamente cinco mil anos na Mesopotâmia. A escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios, é o mais antigo sistema de escrita conhecido até hoje (c£, para mais detalhes, Higounet, 2003). Os estudiosos destacam que o surgimento da escrita acompanhou o surgimento de sociedades humanas mais complexas, com atividades produtivas e comerciais extensivas e com poder estatal estruturado. O aumento da complexidade da vida econômica, social e política trouxe consigo a necessidade do desenvolvimento de sistemas de registros gráficos de contabilidade (estoques de grãos e animais, por exemplo) e administração (decisões governamentais e acordos diplomáticos). A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal respondeu basicamente a esta necessidade. Ao lado dessas dimensões pragmáticas, o desenvolvimento da escrita permitiu também o registro da cultura oral como um todo: poemas, narrativas épicas e religiosas, saberes variados. A escrita é fundamentalmente um desenho e, nesse sentido, dá continuidade à antiga experiência humana com o registro figurativo do mundo que observava (os animais desenhados nas paredes da caverna de Altamira, na Espanha, por exemplo) ou das ações que ai ocorriam (as cenas de caça desenhadas nas paredes da caverna de Lascaux, na França, por exemplo). Progressivamente (e sob determinadas demandas práticas), a humanidade percebeu que podia também desenhar a linguagem verbal, ou seja, transpô-la para uma superfície e fixar seu caráter efêmero e evanescente.. Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 15 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Nesse processo, variou o elemento verbal tomado como referência. Em alguns contextos, criaram- se signos gráficos que representavam palavras (sistemas logográficos). E o caso da escrita inicial dos sumérios (desenvolvida por volta do quarto milênio antes de Cristo), dos egípcios (terceiro milênio antes de Cristo) e dos chineses (segundo milênio antes de Cristo) — a única dessas escritas antigas ainda em uso. Em outros contextos, criaram-se sistemas silábicos em que cada signo representa uma sílaba, como na escrita da língua da ilha de Chipre anterior à ocupação grega (séculos ve iv a.C.), na escrita da corte dos reis persas aquemênidas em Persépolis (séculos vi a iv a.C.) e na escrita japonesa atual (desenvolvida no século iv d.C.). Os signos dos sistemas de base logográfica foram, de início, verdadeiros pictogramas, ou seja, tinham semelhança com o objeto representado. Com o passar do tempo, os pictogramas foram perdendo esse caráter figurativo e se transformaram em logogramas, signos abstratos que passaram a evocar a palavra em si sem a mediação da imagem do objeto, o que garantiu maior amplitude e funcionalidade ao ato de escrever, já que nem todas as palavras fazem referência a objetos visíveis e figuráveis. Por outro lado, os sistemas logográficos, a partir de logogramas representativos de palavras monossilábicas, desenvolveram, com o passar do tempo e por um processo de abstração, signos de caráter puramente silábico, ou seja - como destaca o linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) em seu Curso de linguística geral (1970: 36) — certos logogramas, distanciados de seu valor inicial, terminam por representar unidades composicionais da articulação sonora em si. Para entender o processo de abstração subjacente a essa sutil mas profunda transformação, bastaria imaginar que, se a escrita do português fosse logográfica, haveria um logograma para a palavra pé. Com o tempo,este logograma passaria a ser usado também para representar a sílaba /pé/ em qualquer palavra como, por exemplo, a sílaba inicial de pele, pedra, pérola. Ou seja, o signo, além de sua função logográfica, teria adquirido a propriedade de representar uma sequência sonora silábica. De novo, essa mudança aumentou a funcionalidade do sistema de escrita pela sensível diminuição do estoque de signos necessários: uma escrita silábica precisa de muitíssimo menos signos do que uma escrita logográfica. Por esse processo, os sistemas logográficos se tornaram mistos, com sua base logográfica suplementada por silabários. A partir destas representações silábicas se chegou, posteriormente, à escrita alfabética, cujo elemento verbal de referência não são as palavras ou as sílabas, mas as consoantes e as vogais. Embora as unidades verbais tomadas como referência para a construção da escrita alfabética sejam consoantes e vogais, é preciso deixar claro que essa escrita nunca é fonética no sentido estrito do termo, isto é, as letras não representam diretamente os sons da fala, mas sim as unidades funcionais da língua (chamadas tecnicamente de fonemas), que são abstratas. A escrita alfabética é, assim, uma escrita de base fonológica, ou seja, toma como referência uma representação abstrata da articulação sonora da língua e não propriamente sua pronúncia. Considerando que a pronúncia varia muito entre regiões, grupos sociais, estilos de fala e mesmo na linha do tempo, uma escrita estritamente fonética seria de pouco alcance e baixa funcionalidade. Apesar disso, o senso comum acredita que a escrita alfabética é fonética e são várias as pessoas que, diante das peculiaridades da ortografia do português, propõem mirabolantes reformas pelas quais cada letra passaria a representar um único som da fala e cada som da fala seria representado por uma única letra. Embora estejam propondo com essas reformas radicais uma solução aparentemente racional para as dificuldades da ortografia, tais reformas inviabilizariam a própria escrita da língua por abrirem mão justamente da sua grande qualidade, ou seja, o grau de abstração da pronúncia (cfi, para uma discussão sobre este tema, Lemle, 1981). E esta abstração que garante uma escrita comum e mutuamente compreensível aos falantes das mais diferentes variedades da língua. Dispomos, por exemplo, de uma única forma ortográfica — dente — embora sejam muitas as pronúncias dessa palavra nas diferentes variedades da língua: [de. ti], [dé.tl], [déy.ti], [dé.tji], [détj].1 Os criadores da escrita alfabética tiveram essa fina percepção de que nem toda diferença fônica é Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 16 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda relevante e, consequentemente, as letras poderiam remeter não a sons da fala, mas a unidades sonoras abstratas, isto é, àquelas (e apenas àquelas) que têm efetiva funcionalidade na articulação sonora da língua. Desse modo, anteciparam em milênios, na sua genial criação, as formulações teóricas que vieram a ser construídas somente nos últimos dois séculos — primeiro com o desenvolvimento da fonética, a ciência que tem os sons da fala como objeto; e, posteriormente, com o desenvolvimento da fonologia, a ciência linguística que estuda a organização do sistema sonoro da língua, ou seja, a organização funcional abstrata que preside as emissões concretas da fala. Essa distinção entre fonética e fonologia se faz necessária porque nem todas as diferenças fonéticas têm relevância funcional numa língua. Assim, por exemplo, as duas vogais da palavra casa [ka.zia] são foneticamente diferentes (a primeira é uma vogal aberta e a segunda uma vogal média). No entanto, essa diferença fonética não é funcional em português: sua oposição não serve para distinguir palavras e os falantes, em geral, nem sequer percebem a diferença. Dizemos, então, que as duas vogais em questão [a] e [b] realizam foneticamente uma única unidade fonológica / a /. Os linguistas que criaram a fonologia deram o nome dt fonema a essa unidade fonológica. No caso das duas vogais de casa [ka.ze], temos dois sons da fala que realizam foneticamente o mesmo fonema. E, por isso, podem ser grafadas pela mesma letra justamente porque a escrita alfabética remete à realidade fonológica e não fonética. Posteriormente, os teóricos mostraram que o mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao estudo das letras. Ou seja, há inúmeras formas de desenhar concretamente uma mesma letra (maiúscula ou minúscula, manuscrita ou de fôrma, além das variadas fontes gráficas). Essas diferenças não impedem que reconheçamos todas como realizando a mesma unidade gráfica abstrata a que os teóricos deram o nome de grafema. No fundo, um sistema alfabético, tomando as consoantes e vogais como os elementos linguísticos de referência (e não as palavras ou as sílabas), tem, como princípio de base, uma correlação entre fonemas (unidades sonoras abstratas) e grafemas (unidades gráficas abstratas). O seu domínio pressupõe que o aprendiz - mesmo partindo de sons e letras - alcance operativamente esse nível de abstração, ou seja, saiba se desvincular de uma excessiva dependência da fala e, ao mesmo tempo, saiba reconhecer atrás de diferentes formatos gráficos um único grafema. Nesse processo, a mediação da língua falada é inevitável - afinal, o modo de expressão escrita, embora goze de relativa autonomia, tem o modo oral como ponto de referência. Assim, a tendência do aprendiz é depositar grande confiança nessa relação e apoiar-se nela para seus passos iniciais na apreensão do sistema alfabético. Contudo, o domínio efetivo da escrita alfabética vai exigir um salto de qualidade, ou seja, ascender ao patamar das relações abstratas que a caracterizam. Embora as diferenças entre fonética e fonologia, e entre unidades concretas e unidades abstratas sejam necessárias e de fácil apreensão, o discurso pedagógico sobre a alfabetização costuma confundir som da fala e fonema, além de não levar em conta os níveis de abstração envolvidos na escrita alfabética, no seu domínio e no seu uso. Nada impede, obviamente, que a entrada na lógica da escrita alfabética se faça pela mediação dos sons da fala. Mas será preciso não estabelecer uma correlação absoluta entre fonação e escrita para não falsear os princípios que regem, de fato, a escrita alfabética. Como bem disse Vygotsky (2007: 141): A compreensão da linguagem escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem falada; no entanto, gradualmente essa via é reduzida, abreviada, e a linguagem falada desaparece como elo intermediário. É preciso lembrar ainda que, no caso específico da ortografia da língua portuguesa, além do pressuposto alfabético de base (relações regulares entre fonemas e grafemas), opera-se também com a memória etimológica (como discutiremos mais detalhadamente em capítulos posteriores). Escreve-se, por exemplo, homem com uma letra inicial que não remete a nenhum fonema, mas preserva um elemento gráfico que estava presente em sua ancestral latina. A memória etimológica tem uma função cultural relevante, mas introduz graus de irregularidades e imprevisibilidades a exigir estratégias de aprendizagem específicas, sem a confiança excessiva na Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 17 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda mediação dos sons da fala. Em outras palavras, a entrada na escrita alfabética, seu domínio e seu uso autônomo exigem múltiplas oportunidades de aprendizagem. A metodologia deverá, assim, combinar diferentes estratégias. Se a mediação dos sons pode ser um auxiliar produtivo no caso das relações regulares e previsíveis, ela será, em geral, inútil nos casos de memória etimológica, que exigem uma abordagem integral da palavra (ou seja, uma aproximação pelo todo da palavra e não pelassuas partes). Esta abordagem integral, por sua vez, poderá ser útil como recurso complementar nos casos das relações regulares, oferecendo ao aprendiz caminhos diversos (da parte para o todo e do todo para a parte) para suas ações cognitivas. Outra situação que exemplifica muito bem a relativa distância entre o oral e o escrito é o da segmentação das unidades. Na escrita, escrevemos palavra por palavra, separando cada uma com espaços em branco. O critério de segmentação é basicamente lexical. Já na fala, a segmentação se dá por blocos fonético-fonológicos que reúnem, numa só emissão de voz, várias palavras. O critério de segmentação é basicamente prosódico: a emissão oral segue padrões de ritmo e métrica que nos levam, por exemplo, a juntar o fim de uma palavra com o começo de outra. Não há, portanto, coincidência entre o segmento da fala e o segmento da escrita. Escrevemos as asas azuis das araras, mas dizemos [a.za. za.za.zuys.da.za.ra.ras]. Um dos resultados dessa não coincidência é que os alunos, quando começam a produzir sua escrita, costumam grafar várias palavras juntas. Abaurre e Cagliari (1985) mostraram que essas junções não são aleatórias, mas revelam que o aprendiz está tomando estritamente a cadeia sonora como referência para a escrita. Não está, portanto, “errando”, mas operando com uma hipótese que remete diretamente à cadeia falada. Uma das exigências para o efetivo domínio da escrita é aprender, durante o processo, a superar essa hipótese, desvinculando a escrita da fala. 1.8. OS CAMINHOS DA ESCRITA ALFABÉTICA A progressiva passagem de sistemas logográficos para sistemas silábicos e alfabéticos é também, como já observamos acima, uma progressão de economia de meios não desprezível. Assim, se um sistema logográfico precisa de muitos milhares de signos, um sistema silábico não precisa mais do que um estoque de cinquenta ou sessenta deles e um sistema alfabético funciona perfeitamente com não muito mais do que duas a três dezenas de signos. Essa escala de economia de meios dá, obviamente, grande versatilidade e funcionalidade ao sistema alfabético, além de favorecer um domínio mais rápido da notação escrita. O princípio da escrita alfabética já é visível na escrita uga- rítica. Os escribas de Ugarit, importante centro urbano portuário na costa do Mediterrâneo oriental (onde hoje está o litoral da Síria), adaptaram, por volta do século xv a.C., os signos da escrita cuneiforme dos sumérios para representar não palavras ou sílabas, mas basicamente consoantes. Quase ao mesmo tempo, os fenícios desenvolveram também uma escrita alfabética basicamente consonântica e cujos signos (as letras) serviram de fundamento para o alfabeto hebraico e também para o alfabeto grego e, por meio deste, para o alfabeto latino — o mais amplamente usado no mundo moderno. Os gregos (por volta do ano 1.000 a.C.) adotaram e adaptaram as letras fenícias, acrescentando- lhes símbolos para a notação integral das vogais. Este alfabeto, com 23 letras, serviu de modelo para outros alfabetos europeus (o dos godos e dos eslavos, por exemplo), em especial para o alfabeto latino que começa a ser delineado por volta do século VII ou VI a.C. e alcança seu formato clássico por volta do século I a.C. A diversidade de formas de escrita, observável na história e na atualidade, é exemplo tanto da engenhosidade humana, quanto da vasta riqueza cultural da humanidade. 1.9. A ESCRITA E A CULTURA LETRADA A criação da escrita teve duradouros impactos na cultura humana. Se, de início, o meio escrito Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 18 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda teve funções essencialmente práticas, logo passou a ser usado no registro da poesia, das crenças, da memória coletiva, das leis sociais e do conhecimento em geral. Paralelamente à cultura oral, foi, então, tomando forma a cultura letrada que transformou profundamente a vida humana. A inscrição das leis foi dando a base para a organização de sociedades cada vez mais complexas; a fixação das crenças acabou por estruturar religiões que espalharam suas visões de mundo e preceitos de vida por grandes espaços geográficos; a escrita do imaginário favoreceu a transmigração intercultural de símbolos, valores e arquétipos, resultando numa explosiva espiral criativa; a escrita amplificou enormemente o potencial de memória da humanidade; e, por fim, o registro do conhecimento permitiu o seu crescimento exponencial na medida em que facilitou o desenvolvimento de modos de organização intelectual mais sistemáticos e monitorados e, portanto, de práticas cognitivas mais abstratas e formalizadas que levaram, por exemplo, ao desenvolvimento da matemática, das ciências e das tecnologias. Quando falamos, então, de cultura letrada estamos nos referindo não apenas aos sistemas de transcrição gráfica da linguagem verbal (a escrita não se esgota na notação), mas, fundamentalmente, de uma vasta e complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas socioculturais que a criação destes sistemas tornou possível. Mencionamos anteriormente que o meio de expressão escrita, diferentemente do meio de expressão oral, exige, para seu domínio, atividades de ensino sistemático. Dessa forma, a instituição escolar, em qualquer dos seus formatos históricos, é fruto da criação da escrita e existe milenarmente para dar acesso ao código gráfico e, principalmente, para transmitir a cultura letrada. Podemos dizer, então, que escrita, escola e cultura letrada estão historicamente em relação simbiótica. A prática continuada da escrita foi motivando o desenvolvimento e a consolidação de várias tradições discursivas. Dentre elas, podemos citar, por exemplo, as convenções gráficas corporificadas nos diferentes desenhos dos logogramas, dos silabogramas e das letras, na composição da página, nas direções de sua ocupação - se da direita para a esquerda, como na escrita árabe; ou se da esquerda para a direita, como na escrita latina. Inclui-se também nas tradições discursivas da escrita a formatação dos modos de dizer, materializados estes em diferentes gêneros e tipos de textos e no privilegiamento de determinados elementos lexicais e morfossintáticos da língua considerados adequados para a expressão escrita. Nesse sentido, a própria prática histórica da escrita foi delimitando as variedades da língua passíveis de ocorrerem nela (realidade linguística a que damos hoje o nome de norma culta, escrita). Aprender as práticas escritas exige um mergulhar em todas essas tradições discursivas. Trata-se de uma complexa experiência cognitiva que não começa nem termina com o domínio do alfabeto. A alfabetização é apenas o momento específico de aprendizado do sistema de notações gráficas. E dizemos que não começa nem termina com a alfabetização porque, como mostrou detalhadamente Vygotsky, a criança, em seus primeiros anos de vida e anteriormente ao aprendizado do alfabeto, deve vivenciar todo um conjunto de experiências sim- bólico-cognitivas (conjunto a que ele deu o nome de pré-história da escrita) materializadas principalmente nos jogos e brinquedos infantis e nos rabiscos e desenhos. Segundo Vygotsky os gestos de representação simbólica presentes em cada uma dessas atividades devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento em direção à linguagem escrita. (2007: 140-1) Haverá descontinuidades, saltos, retrocessos e avanços, mas subjacente a todas estas atividades semióticas há um mesmo funcionamento simbólico a caracterizar sua unificação e continuidade: nos jogos e brincadeiras, nos rabiscos e desenhos, e na escrita, há uma realidade simbólica em que determinado objeto representa outro - a vassoura “funcionando” como um cavalo, o desenho de uma árvore no lugar da árvore e, finalmente, as letras representando a linguagem verbal. Por outro lado, a criança