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LINGUAGEM_ESCRITA_E_ALFABETIZAÇÃO_versão_final_DENISE

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Circulação Interna 
 
Linguagem escrita e 
alfabetização 
Textos extraídos Do Livro Linguagem Escrita e Alfabetização de Carlos Alberto Faraco 
 
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SUMÁRIO 
 
UNIDADE 1: REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM, 4 
A linguagem verbal, 4 
 As crianças e a linguagem verbal, 8 
A origem da linguagem verbal, 12 
Estrutura e funcionamento da língua, 16 
A variação linguística, 20 
A linguagem verbal escrita, 23 
Breve história do meio de expressão escrita os sistemas de escrita, 26 
Os caminhos da escrita alfabética, 31 
A escrita e a cultura letrada, 32 
Filólogos, gramáticos, lingüistas, 36 
 
UNIDADE 2: ESCRITA E ESCOLA, 42 
2.1. A educação linguística, 42 
2.2. A situação brasileira, 46 
2.3. A mídia impressa e as outras mídias, 47 
2.4. Para um projeto pedagógico letrador, 49 
2.5. Formação dos professores, 62 
 
UNIDADE 3: A ORTOGRAFIA DO PORTUGUÊS: BREVE HISTÓRICO, 65 
3.1. O período medieval, 65 
3.2. O renascimento, 65 
3.3. A ortografia pseudoetimológica, 67 
3.4. O século xx, 71 
3.5. O acordo ortográfico de 1990, 72 
 
UNIDADE 4: CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA GRÁFICO DO PORTUGUÊS, 75 
4.1. Representação das consoantes - relações biunívocas (100% regulares), 82 
4.2. Relações cruzadas previsíveis-regularidades contextuais, 83 
4.3. Relações cruzadas parcialmente previsíveis e parcialmente arbitrárias, 88 
4.3. Relações cruzadas totalmente arbitrárias, 93 
4.4. Representação das vogais e dos ditongos, 93 
4.5. Representação das vogais orais, 94 
4.6. Representação das vogais nasais, 96 
4.7. Representação dos ditongos, 97 
4.8. Representação dos ditongos decrescentes, 98 
4.9. Representação dos ditongos crescentes, 100 
4.10. Representação dos tritongos, 102 
4.11. Quadros de síntese, 104 
4.12. Nota sobre as letras k,w,y, 108 
4.13. Como classificar as três letras especiais?, 109 
APÊNDICE, 111 
REFERÊNCIAS, 116 
ATIVIDADES DE MÚLTIPLA ESCOLHA, 119 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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UNIDADE 1 
REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM 
 
1.1. A LINGUAGEM VERBAL 
A linguagem verbal é marca constitutiva e, portanto, característica básica da espécie humana. 
Humanidade e linguagem verbal estão, assim, numa relação intrínseca de mútua dependência. 
Outras espécies animais têm também suas linguagens. No entanto, o estudo comparado da 
linguagem verbal e das linguagens dos outros animais deixa evidente que há diferenças profundas entre 
elas. E não se trata apenas de diferenças quantitativas, mas qualitativas: as linguagens dos outros animais 
não se aproximam nem remotamente da linguagem verbal. Não podem sequer ser consideradas como uma 
versão mais simples desta. 
Para deixar isso claro, basta lembrar algumas das características da linguagem verbal: 
a) ela permite a articulação de um número infinito de enunciados (tecnicamente, dizemos que a 
linguagem verbal faz uso infinito de meios finitos); 
b) seus signos - seja os da articulação sonora (fonemas, sílabas), seja os da articulação 
morfossintática (morfemas, palavras, locuções e sentenças) - são discretos, isto é, são decomponíveis e 
recombináveis ao infinito (tecnicamente, dizemos, então, que a linguagem verbal é dotada de dupla 
articulação e de recursividade); 
c) seus signos não estão limitados à situação imediata: a linguagem verbal permite aos seres 
humanos falar do passado - dá-lhes, portanto, a condição da memória —; permite-lhes falar do futuro e 
de todo o inexistente; permite-lhes falar do que está na situação de comunicação e do que está dali 
ausente ou distante; permite-lhes mentir e criar realidades imaginárias; 
d) seus signos admitem a significação figurada e, em geral, são semanticamente indeterminados, isto 
é, completam sua significação numa relação com as situações de uso em que ocorrem. Em outras 
palavras, os signos da linguagem verbal não têm uma significação una e fixa, mas deslizam entre 
múltiplas possibilidades significativas determinadas a cada nova situação de comunicação. E por essa 
indeterminação semântica que atendem as demandas expressivas postas pela variabilidade e 
imprevisibilidade da vida humana. 
As linguagens dos outros animais, em contrapartida, não apresentam nenhuma dessas características. 
a) elas têm um número sempre finito de enunciados; 
b) seus signos são massivos (isto é, não são decomponíveis e recombináveis; são desprovidos, 
portanto, da dupla articulação e da recursividade; só o todo do enunciado significa); 
c) seus signos respondem apenas à situação imediata e são semanticamente determinados, ou seja, 
carregam uma significação única e fixa (são unívocos) - indicam fonte de alimento ou perigos 
momentâneos, sinalizam domínio territorial ou ativam ritos de acasalamento. 
Em razão disso é que se diz que enquanto o ser humano substitui a imediação da experiência pela 
mediação dos signos, os outros animais vivem exclusivamente na imediação da experiência. 
Algumas vezes lemos na imprensa notícias de que foram descobertas linguagens de alguns 
animais (pássaros, em especial) com a propriedade da recursividade. No entanto, em nenhuma dessas 
vezes se demonstrou suficientemente a alegação e, mais importante, nunca se demonstrou que a 
recursividade, nestes casos, se de fato existente, redunda, efetivamente, em infinitude. 
São frequentes também notícias de que alguns primatas em situação de laboratório adquiriram, 
por indução humana, uma linguagem não fônica (utilizando, por exemplo, artefatos com formas e cores 
diferentes) com a qual produzem alguns enunciados expressivos e adequados à situação experimental. 
De novo, por mais curiosos que estes eventos possam ser (e interessantes quanto às capacidades 
cognitivas não humanas), nenhum desses animais vai além de alguns poucos enunciados, ou seja, não 
alcançam nunca a infinitude da linguagem humana, nem a autonomia expressiva que a criança alcança 
sem qualquer treino. 
É preciso, portanto, cautela diante do efetivo sentido dessas pesquisas, nunca perdendo de vista as 
enormes diferenças quantitativas e qualitativas da linguagem humana frente à linguagem dos outros 
animais. 
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Além disso, nós humanos somos seres de muitas linguagens. Expressamo-nos também pelos 
gestos, pelas expressões faciais, pelas posturas corporais, pelas imagens fixas e em movimento, pela 
música e assim por diante. 
Estas linguagens aparecem isoladamente (por exemplo, uma música, um quadro, o logotipo de 
uma empresa, uma mímica) ou em combinação: dançamos ao som de uma música; produzimos combinar 
todas estas linguagens com a linguagem verbal: musicamos um poema; compomos a letra para uma 
música; combinamos a fala com gestos e expressões faciais; cantamos (combinando o corpo com a 
música e a linguagem verbal); fazemos um filme (nele combinamos imagens, música e linguagem 
verbal); e assim por diante. 
Usamos essas linguagens, combinadas ou não, tanto em situações práticas do cotidiano, quanto 
em atividades artísticas. A mímica, por exemplo, está nas nossas brincadeiras e na nossa comunicação 
face a face (quando não podemos ou não queremos falar, mas precisamos ou queremos passar uma 
mensagem para alguém próximo de nós); mas é também uma das mais antigas atividades artísticas da 
humanidade e visível ainda hoje nas nossas ruas e praças ou nos nossos teatros. 
Combinamos imagens e palavras na publicidade impressa (outdoors, revistas e jornais), mas, com 
a mesma combinação de linguagens, criamos histórias em quadrinhos. Fazemos publicidade na televisão 
combinando imagens, música e palavras, e usamos a mesma combinação de linguagens para criar um 
filme ou um desenhoanimado. Usamos palavras escritas para deixar um bilhete avisando que não 
viremos jantar, mas também para compor poemas. Utilizamos cores para identificar diferentes estações do 
metrô e para ordenar o tráfego de veículos nas esquinas, mas também para pintar quadros ou grafitar 
paredes. Aproveitamos o movimento corporal e a música para apresentar comercialmente uma nova 
coleção de roupas num shopping, e igualmente para criar coreografias de balé clássico ou moderno ou de 
break dancing. 
Quando usamos, então, o termo linguagem, estamos nos referindo a um conjunto bastante 
complexo de formas de comunicação e significação. Esse complexo conjunto inclui a linguagem verbal, 
mas também todas as outras linguagens como a música, o desenho, a pintura, a linguagem de sinais dos 
surdos, a escultura, a dança, os gráficos, os gestos e toda a expressão corporal — é essa pluralidade de 
linguagens que nos constitui como seres simbólicos e individualiza a nossa espécie. 
Nós humanos somos, pois, seres de muitas linguagens e vivemos não propriamente numa 
biosfera, mas numa densa semiosfera. E nela a linguagem verbal tem, por várias razões, um lugar 
especial. 
O linguista e filósofo russo Valentin N. Voloshinov (1895- 1936) destaca, dentre as razões que 
conferem a ela esse lugar especial, as seguintes (1992: 37-40): a ubiquidade da linguagem verbal na vida 
humana e o fato de toda a realidade da linguagem verbal se dissolver por completo em sua função de ser 
signo (é, por isso, o meio mais puro e genuíno da comunicação social e dá forma a toda e qualquer 
manifestação simbólica humana). 
Além disso, pela possibilidade de ser produzida sem nenhuma intervenção de qualquer 
instrumento ou material extra- corporal, a linguagem verbal se converteu no material sígnico por 
excelência da vida da consciência, dando materialidade ao nosso discurso interior. 
Por fim, Voloshinov destaca o fato de que é com a linguagem verbal que acompanhamos e 
comentamos todas as formas da criação da consciência social. Ao conjunto dessas formas ele dá o nome 
de criação ideológica, no sentido específico das formas simbólicas do espírito humano - conforme as 
definia o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945) — tais como as artes, as ciências, o direito, a 
filosofia, a religião, etc. 
Partes destas formas se materializam na linguagem verbal (a literatura, a filosofia e o direito, por 
exemplo) ou estão com ela combinadas (o canto, o cinema e a religião, por exemplo). No entanto, a 
compreensão de todas elas não ocorre sem a participação da linguagem verbal e particularmente do 
discurso interior. Isso, diz Voloshinov (1992: 39), não quer dizer que a' linguagem verbal possa 
simplesmente substituir qualquer outro signo. Uma obra musical ou uma imagem pictórica não podem 
traduzir-se adequada e integralmente pela linguagem verbal; nem um ritual religioso pode ser substituído 
em sua totalidade exclusivamente pela linguagem verbal. Contudo, o processo de compreensão de todas 
estas manifestações semióticas se apoia na linguagem verbal e se faz acompanhar dela. 
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Embora a linguagem verbal seja ubíqua e, por isso mesmo, nos seja profundamente familiar, nós 
ainda não conseguimos penetrar filosófica e cientificamente em todos seus segredos e mistérios. Sabemos 
mais do universo e das manifestações da vida do que sabemos da estrutura e do funcionamento da 
linguagem verbal. 
Nesse sentido, a linguagem verbal é um tanto quanto paradoxal: é um fenômeno ao mesmo tempo 
banal e altamente complexo. Estamos imersos nela e a pomos a funcionar no nosso cotidiano sem sequer 
nos darmos conta da sua complexidade. Boa parte de seu funcionamento é, aliás, inteiramente não 
consciente, isto é, falamos sem ter plena consciência de todos os mecanismos envolvidos nessa 
corriqueira atividade. 
No entanto, tudo o que diz respeito à linguagem verbal é sempre de grande complexidade: sua 
organização interna, seu potencial expressivo, sua base neurológica, seu funcionamento social, sua 
variabilidade, sua história, seu domínio pelas crianças. 
A complexidade é tanta que, apesar de dois milênios e meio de estudos sistemáticos, ainda são 
muitos os mistérios que embaraçam nossa compreensão desse fenômeno definidor da nossa espécie. 
 
1.2. AS CRIANÇAS E A LINGUAGEM VERBAL 
Pouco sabemos, por exemplo, sobre como as crianças passam de não falantes a falantes. O que 
sabemos é que nenhuma teoria do conhecimento foi até agora capaz de dar conta desse processo. 
Observar a criança se tornando falante é uma das experiências mais maravilhosas que podemos ter: vamos 
assistindo o acontecimento, participamos dele como interlocutores, mas não sabemos explicar o que vai 
acontecendo. Há qualquer coisa aí que ainda nos escapa. 
Sabemos que se trata de um processo universal, isto é, ele acontece em todas as partes do mundo, 
com todas as crianças (salvo aquelas afetadas por profundas deficiências mentais ou acentuadas 
limitações auditivas) mais ou menos na mesma faixa etária (em torno dos dois anos). 
Mais ainda: é um processo que ocorre de modo espontâneo: não é preciso ensinar a língua da 
comunidade à criança, basta que ela esteja em contato com seus falantes. E ainda mais surpreendente é 
que, embora sejam limitados e precários os dados a que a criança tem acesso, ela sai do processo com 
conhecimento suficiente da estrutura básica da língua de sua comunidade, tornando-se um falante 
autônomo dessa língua. 
Isso significa dizer que ela não apenas entende e repete enunciados ouvidos, mas se torna capaz 
de produzir e entender enunciados novos, ou seja, adquire a propriedade da infinitude que é característica 
da linguagem verbal. Teorias do conhecimento que se pautam pelo pressuposto da imitação e da repetição 
não conseguem dar uma explicação minimamente plausível para esse evento. 
Em outras palavras, é evidente a pobreza dos dados a que a criança é exposta: a quantidade é 
pequena (ela nunca é exposta à língua toda—já que as expressões de qualquer língua são em número 
infinito); e a qualidade é relativamente baixa (são enunciados fragmentários, com muitos arranques em 
falso, lapsos e interrupções). 
Nada disso, porém, inviabiliza o efetivo domínio da língua da sua comunidade pela criança. Há 
um claro descompasso entre a quantidade e qualidade dos dados (finitos e precários) e o saber (infinito e 
suficiente) que resulta desse processo na criança. 
As características universais do processo têm alimentado a hipótese de que a linguagem verbal 
está geneticamente inscrita no cérebro humano, ou seja, de que ela é uma propriedade intrínseca da nossa 
espécie, conforme tem defendido, desde a década de 1950, o linguista estadunidense Noam Chomsky. 
Essa hipótese não está ainda suficientemente detalhada do ponto de vista material (ou seja, não 
foram descritos os dispositivos genéticos que se supõe existirem no cérebro). No entanto, nenhuma outra 
hipótese suficientemente plausível para dar conta do mesmo fenômeno foi até hoje formulada, o que 
mostra que este fenômeno, embora seja um evento corriqueiro, está longe de ser um evento banal. 
A hipótese (chamada de inatista ou genética) não afirma que as línguas propriamente ditas estão 
inscritas geneticamente no cérebro, mas sim a condição de todas as línguas — a chamada Gramática 
Universal. Esta é entendida como um saber inato que define “língua humana possível”, saber que, 
combinado com os dados da experiência, orienta cada criança em seu processo de descobrir a estrutura 
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fonológica e morfossintática da língua de sua comunidade e de se tornar seu falante. 
Para muitos estudiosos a hipótese de um saber inato, de qualquer tipo que seja, é sempre 
indesejávelpor naturalizar excessivamente as realidades humanas. Se há ou não saberes inatos, não temos 
ainda meios empíricos para decidir porque, no fundo, pouco sabemos sobre como o cérebro funciona e, 
consequentemente, nossas teorias da cognição estão ainda muito longe de recobrir a complexidade do que 
efetivamente ocorre em nossas atividades cognitivas. 
De qualquer forma, independentemente de nossas crenças de base (admitir ou não saberes inatos), 
há, no processo pelo qual a criança vai de não falante a falante, elementos que não temos condições ainda 
de destrinçar com clareza, em especial o salto qualitativo que inegavelmente ocorre num determinado 
momento do processo. 
A criança entende as enunciações na língua de sua comunidade muito antes de começar 
efetivamente a falar. Sua produção verbal é, de início, constituída de enunciados de um só elemento (“A!” 
— significando algo como “Quero água!” ou “Olhe, quanta água!” ou “Veja a água!”). Posteriormente, a 
criança passa a produzir enunciados com dois constituintes (“iiz au-au!” - significando algo como “Veja o 
nariz do cachorro!” ou “Cadê o nariz do cachorro?”). 
Chega, então, a uma fase em que produz enunciados de três elementos (“bô iiz au-au”), sempre 
sem palavras funcionais como artigos e preposições. E, sem que se perceba exatamente o momento e com 
que procedimentos cognitivos, ela começa, por volta dos dois anos, a produzir enunciados com todos os 
elementos sintáticos (“quebô o nariz do au-au”, por exemplo). 
Alguns fenômenos, como as orações relativas, serão incorporados em momentos posteriores do 
processo. A morfossintaxe básica, porém, já está consolidada nesta faixa etária. Apesar dos muitos 
estudos longitudinais que têm sido feitos sobre esse processo todo, estamos longe de esclarecer o que 
efetivamente ocorre. Assim, não temos de assumir obrigatoriamente a hipótese inatista, mas temos de ter 
clareza de que a questão continua em aberto. 
O que sabemos com relativa certeza é que a criança não domina a língua apenas por imitação. Se 
assim fosse, só produziria enunciados já ouvidos. A criança, claramente, não apenas absorve o que ocorre 
fora dela (a precariedade dos dados não impede seu domínio da língua). Ela se mostra um ser cognoscente 
ativo. Há, em seu cérebro, uma atividade cognitiva que opera sobre os dados que recebe do exterior. E 
esta atividade que ainda não fomos capazes de descrever. Podemos apenas observar indícios de que ela 
está acontecendo. Dentre inúmeros exemplos, pode-se citar os casos em que a criança cria expressões 
(“Quebrou o pedalou da bicicleta” ou “Perdi o assuou” ou “Tá aluzado” — em vez de “pedal”, “lenço” e 
“iluminado”); ou quando ela regulariza formas irregulares (“Se o pastel estasse quente, a gente não 
comia”); ou pluraliza elementos invariáveis (“Quelo esse aquis" — apontando para os livros que ela 
queria levar) e assim por diante. 
Observa-se também que a criança, com a mesma facilidade, espontaneidade e qualidade com que 
apreende sua língua primeira (a língua da casa), apreende outra(s) língua(s) se a sociedade em que ela 
vive for bilíngue ou multilíngue; ou tiver outra língua hegemônica que não a da casa (crianças filhas de 
imigrantes, por exemplo; ou cujos pais se deslocaram temporariamente para outro país por razões de 
estudo ou trabalho). 
E esta capacidade — até onde já se observou — se mantém ativa até por volta da pré-
adolescência. Daí em diante, parece que o cérebro a desliga e o domínio de novas línguas pelos 
adolescentes e adultos (mesmo imersos numa nova comunidade linguística) já não se dá com a mesma 
facilidade, espontaneidade e qualidade como ocorre com a criança. 
Em suma, há mais coisas misteriosas entre o céu e a terra do que acredita nossa vã filosofia. A 
criança, no processo de se tornar falante, se mostra cognitivamente ativa, lançando mão de recursos 
cerebrais que ainda não entendemos suficientemente (ela não é apenas um balde vazio que vai sendo 
enchido de fora para dentro). 
Obviamente, não podemos descartar a relevância, neste e em todos os demais processos 
cognitivos, da interação da criança com os adultos e crianças mais velhas. A interação pode não ser 
inteiramente suficiente para a dinâmica cognitiva (algo também acontece no cérebro da criança), mas é 
absolutamente necessária, como demonstraram, por exemplo, os estudos do desenvolvimento dos 
processos psicológicos superiores feitos pelo psicólogo russo Lev Vygotsky (1896-1934). 
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A interação é constitutiva do nosso eu, da nossa identidade, da nossa vida mental. Já no século 
xviii, o filósofo alemão Friedrich Jacobi (1743-1819) levantou esse princípio de que sem o Tu não há o 
Eu, ou seja, é a inter-relação com os outros que nos constitui como pessoas e põe em movimento nossas 
atividades mentais (cf., para mais detalhes, Faraco, 2005b). 
No século xx, Valentin Voloshinov vai formular tese bastante semelhante, dando, agora, ênfase 
ao papel da linguagem verbal, entendida como atividade sociointeracional, nesse complexo processo. 
Para ele, a consciência adquire forma e existência por meio dos signos verbais que constituem as 
relações sociais e nelas circulam. Estes signos são o alimento da consciência. Nas palavras dele (tradução 
nossa): 
A consciência se constrói e se realiza mediante o material sígnico, criado no processo da 
comunicação social de um coletivo organizado. A consciência individual se alimenta de signos, 
cresce com base neles, reflete em si sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a da 
comunicação ideológica, a da interação sígnica em uma coletividade. (1992: 36) 
 
Em outros termos, nossa vida mental adquire sua dinâmica própria internalizando a dinâmica da 
interação socioverbal da comunidade em que vivemos. 
Raciocínio parecido foi desenvolvido por Vygotsky no estudo do desenvolvimento da atividade 
cognitiva humana. Ele mostrou como essa atividade nasce da interação entre os que já dominam um 
determinado saber e os que estão começando a dominá-lo. 
A atividade cognitiva é antes intersubjetiva e, uma vez internalizada, se torna intrasubjetiva. Ou 
seja, a lógica cognitiva social se torna, pela mediação dos outros, lógica cognitiva interiorizada 
(subjetiva), a dinâmica externa se torna dinâmica interna (2007: 56-8). Ê desse modo que cada pessoa 
adquire autonomia cognitiva. Os detalhes do processo todo, em especial em relação ao domínio da 
linguagem verbal pela criança, é que ainda nos escapam. 
De qualquer forma, são observáveis vários gestos dos adultos que contribuem para instituir as 
bases da interação com a criança. Estes gestos vão desde os primeiros enunciados dirigidos ao recém-
nascido (construindo, desde a primeira hora, o bebê como interlocutor) até as trocas interativas com a 
criança já mais madura (verdadeiros jogos interacionais de perguntas e respostas e reiterações do dizer da 
criança), passando pelas interpretações que atribuímos, desde cedo, às ações da criança como o choro, os 
movimentos corporais e a direção do olhar. 
Estes gestos todos têm, certamente, papel decisivo na constituição do eu do novo ser e no 
desencadeamento de seus processos cognitivos. Os psicólogos relatam os inúmeros efeitos negativos da 
ausência dessa dinâmica interacional nos primeiros anos de vida da criança para o seu desenvolvimento 
emocional e cognitivo. 
Nesse sentido, embora não sejamos ainda capazes de dar conta de todos os fatores e processos 
que participam da cognição humana (em especial do domínio da língua), duas coisas são bastante 
evidentes: a interação socioverbal tem aí um papel absolutamente necessário (não podemos, portanto, 
ignorá-la ou secundarizá-la); e, segundo, a criança é um ser cognitivamente ativo (não podemos, portanto, 
tratá-la como um mero receptáculo passivo do que vem do exterior). 
 
1.3. A ORIGEM DA LINGUAGEM VERBAL 
Se é ainda misterioso oprocesso pelo qual a criança passa de não falante a falante, é ainda mais 
misteriosa a origem da linguagem verbal, ou seja, quando e como ela começou a se manifestar na linha 
evolutiva da espécie humana. 
Se fizéssemos uma lista dos dez maiores mistérios que nos assombram, certamente a origem da 
linguagem verbal estaria entre eles em lugar de especial destaque. Saber quando e como a linguagem 
verbal surgiu mexe fundo com nossa curiosidade. E maior é seu fascínio porque não temos a menor ideia 
de como as coisas aconteceram. 
A linguagem verbal é marca forte, constitutiva, distintiva da nossa espécie. Por isso, a discussão 
de suas origens está intrinsecamente ligada às discussões da origem da própria espécie. 
Dispomos hoje de uma boa quantidade de fósseis que fornecem evidência material interessante 
para hipóteses razoáveis sobre os longos e complexos caminhos da evolução das espécies dos quais 
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emergiu o Homo sapiens. 
Temos, por exemplo, indícios convincentes de que nossa espécie se originou nas savanas do Leste 
da África e se espalhou pelo planeta seguindo rotas que a levaram à Europa e à Ásia e desta à América e à 
Oceania. Essas rotas têm sido estabelecidas em parte pelo estudo do DNA das populações. 
Com base nesses dados, os paleontólogos têm sugerido que o Homo sapiens surgiu na Terra há 
aproximadamente 100 mil anos, embora se calcule que o ramo hominídeo dos primatas tenha se separado 
há 6 ou mais milhões de anos. 
Igualmente dispomos hoje de um precioso acervo de objetos criados pelos humanos (ferramentas 
e utensílios domésticos, por exemplo) e de registros pictóricos em rochas que nos permitem sustentar 
hipóteses plausíveis sobre os caminhos percorridos pela humanidade na construção de sua cultura 
material e simbólica. 
Com base nesses dados, os antropólogos costumam registrar um florescimento cultural bastante 
significativo por volta de 50 mil anos atrás. Para alguns, esse florescimento cultural, inimaginável sem a 
linguagem verbal, é indício de que ela já estava plenamente estruturada por essa época. Ela teria, então, 
surgido há mais de 50 mil anos. 
Confrontando as duas datas (a do surgimento da espécie e a do florescimento da cultura), há 
pesquisadores que defendem a hipótese de que a linguagem teve um desenvolvimento vagaroso e foi 
crescendo em complexidade ao longo de milênios. 
Outros, porém, considerando a relação intrínseca entre a espécie e a linguagem verbal e o 
prodigioso processo pelo qual um bebê humano se torna falante (fato que claramente não se dá por 
simples imitação ou por puro aprendizado a partir de um estágio zero, como se o cérebro fosse uma caixa 
vazia), defendem a hipótese de que a linguagem como a conhecemos surgiu junto com a espécie e está 
relacionada a uma mutação radical no conglomerado de genes dos hominídeos mais antigos. 
No momento, não temos nenhuma base para optar entre essas hipóteses. A linguagem verbal é um 
bem imaterial. Assim, de seu passado nada sobrou. Não temos, por exemplo, o menor indício de como 
teria sido o estágio semiótico imediatamente anterior à linguagem propriamente humana, isto é, a 
linguagem anterior à nossa linguagem. 
Ainda hoje nos espanta a enorme distância que há entre nossa linguagem e os sistemas de signos 
dos outros animais - como apontamos anteriormente. Mesmo no caso de outros primatas - alguns deles 
geneticamente muito próximos de nós como os chimpanzés (conforme atestam os recentes estudos 
comparativos dos genomas) — as diferenças não são apenas de grau (como se a linguagem humana 
estivesse apenas alguns degraus de complexidade acima desses outros sistemas). Há, de fato, um fosso 
qualitativo profundo. 
No passado, algumas pessoas propuseram que a linguagem verbal teria saído dos sistemas de 
signos dos outros animais (por imitação, por exemplo). No entanto, ninguém foi capaz de apresentar uma 
formulação plausível de como se deu o salto do muito simples para o muito complexo. E é justamente 
essa a questão crucial: qualquer hipótese que pretenda tirar a nossa linguagem dos sistemas de signos dos 
outros animais terá de dar conta do processo que gerou essa diferença qualitativa profunda. 
Uma outra dificuldade empírica que nos acompanha na discussão da origem da linguagem diz 
respeito ao fato de que, embora as línguas humanas sejam muito diferentes entre si, não há qualquer 
diferença substancial entre elas em termos de complexidade gramatical. Isso quer dizer que a menos 
complexa das sociedades humanas tem já uma língua gramaticalmente tão complexa quanto qualquer 
outra. Não existe, portanto, nenhuma língua humana que pudesse ser classificada de “primitiva” e que 
pudesse, portanto, fornecer indícios da história da nossa linguagem, aceitando a hipótese de que ela 
evoluiu vagarosamente ao longo de milênios. 
A linguística desenvolveu métodos que permitem reconstruir, com razoável sucesso, a história de 
uma língua e de famílias de línguas mesmo onde não há documentação escrita (a escrita só surgiu há 
cinco mil anos na história humana). Embora tenha sido possível fazer, em alguns casos, um recuo de dez 
mil anos, nenhum desses resultados sugere um estágio gramatical menos complexo que o conhecido hoje. 
Assim, sem uma mínima base empírica, parece que pouco podemos fazer neste assunto além de 
elucubrar. Precisamos, porém, ter claro que, se no mundo da ficção podemos afirmar qualquer coisa (a 
imaginação é livre), no âmbito da discussão científica nossas afirmações têm de ser demonstradas e 
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sustentadas empiricamente. Não basta apenas afirmar. 
Modernamente, a questão da origem da linguagem verbal foi formulada no Ocidente apenas no 
século xviii. Até então, a cultura europeia aceitava como inquestionável a narrativa bíblica das origens, 
pela qual Deus criou diretamente o ser humano e deu-lhe, por um sopro, a vida. 
Embora o texto bíblico nada diga sobre isto, supõe-se que com o sopro da vida veio junto a 
linguagem, já que Deus logo entabulou um diálogo com Adão e lhe atribuiu a tarefa de dar nome aos 
outros seres vivos (cf. Gênesis, 2: 7-20). Nesse quadro de referências, havia muitas pessoas que 
acreditavam que a língua adâmica teria sido o hebraico. 
Com a progressiva secularização do pensamento, decorrente em parte das guerras religiosas e em 
parte do próprio desenvolvimento das ciências físicas, a narrativa bíblica foi perdendo a sua primazia e os 
filósofos, em consequência, começaram a se questionar como a humanidade se tornou falante. 
Dentre várias outras, são célebres as especulações do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau 
(1712-1778). Ele sugeria, num livro escrito em 1756, que a linguagem tinha se originado da expressão das 
paixões a partir do momento em que os humanos, antes dispersos, começaram a viver em sociedade. Para 
ele, foram o amor, o ódio, a piedade, a cólera que fizeram os humanos produzirem suas primeiras falas e, 
por isso, as primeiras línguas teriam sido cantantes e apaixonadas. 
No século XIX, a questão se tornou bastante popular e multiplicaram-se “soluções” que 
poderíamos chamar de ingênuas, para não dizer inverossímeis. Todas elas propunham sempre uma origem 
muito simples para a linguagem humana e, por nunca considerarem a sua alta complexidade intrínseca, 
nada diziam sobre o mais importante, isto é, como se deu o grande salto do muito simples para o 
altamente complexo. E ainda mais: nunca foram capazes de oferecer uma explicação convincente para a 
origem da grande diversidade de línguas. 
Por curiosidade, lembremos aqui uma dessas “teorias”. Ela propunha que a linguagem havia 
surgido dos grunhidos que os humanos emitiam aliados ao esforço para levantar e carregar objetos 
pesados. 
Essas“teorias” absurdamente simplificadoras acabaram por levar os pesquisadores mais 
familiarizados com a complexidade das línguas a excluir o tema “origem da linguagem” da lista de 
investigações cientificamente aceitáveis. Em 1866, a Sociedade de Linguística de Paris incluiu esta 
restrição em seus estatutos. E não tratar do tema passou a ser uma espécie de senso comum entre os 
linguistas. 
Nas últimas décadas do século xx, porém, essa situação começou a se alterar e em 1996 foi 
realizada, na Universidade de Edimburgo (Escócia), a i Conferência Internacional sobre a Origem da 
Linguagem, seguida de outras a cada dois anos. 
A retomada do tema nas esferas científicas decorre de uma combinação de fatores, em especial 
dos resultados das pesquisas paleontológicas e dos extraordinários desdobramentos da biologia evolutiva 
e da genética, além da intensificação dos estudos de psicologia cognitiva, antropologia e linguística. 
Se todos esses estudos pouco ou nada contribuíram para iluminar minimamente a questão da 
origem da linguagem humana, muito têm contribuído para melhor formularmos as perguntas que devem 
ser respondidas, isto é, tornaram mais estritos os limites postos às nossas elucubrações. Mesmo assim, a 
questão está muito longe de ser resolvida, se é que teremos condições de resolvê-la um dia. 
 
1.4. ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA 
Se a origem da linguagem é uma área atravessada por grandes mistérios e ainda longe de uma 
convincente abordagem científica (se é que, como acabamos de dizer, ela será possível um dia, 
considerando a inexistência absoluta de dados), as coisas não são mais fáceis na abordagem de outras 
faces da linguagem verbal. 
Uma observação fria da realidade deixa claro quão difícil é analisar cientificamente qualquer uma 
das muitas manifestações históricas da linguagem verbal - as diferentes línguas das sociedades humanas. 
Os linguistas, que são os estudiosos que se dedicam profissionalmente a esta tarefa, sabem disso muito 
bem porque se deparam continuamente com as inesgotáveis complexidades estruturais e funcionais das 
línguas. 
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Para se ter uma ideia dessa complexidade, basta lembrar que qualquer língua é uma realidade 
estrutural infinita, conforme dissemos no início deste capítulo. O número de sons da fala de que se serve 
uma língua é finito (em torno de três dezenas). O número de suas palavras (ainda que imenso) é finito 
(calcula-se que uma língua como o português tem algo em torno de meio milhão de palavras). O número 
de regras com as quais organizamos os enunciados é também finito (embora não tenhamos ainda ideia 
clara de sua quantidade). 
Apesar disso tudo, o número de enunciados possíveis numa língua qualquer é infinito, ou seja, a 
língua é uma organização tal que nos permite fazer uso infinito de meios finitos. 
Diante desse quadro, poderíamos supor que, sendo finitos os meios estruturais, bastaria que eles 
fossem descritos para alcançarmos uma apresentação científica completa de uma língua. No entanto, as 
coisas não são tão simples assim. Primeiro, porque a língua não se esgota em sua estrutura. Para analisá-la 
adequadamente, temos de considerar também seu funcionamento social. 
Segundo, porque nenhuma língua é uma estrutura homogênea e uniforme. Qualquer língua se 
multiplica a tal ponto em inúmeras variedades que muitos chegam a dizer que atrás de um nome — 
português, por exemplo — se escondem, de fato, muitas “línguas”. Qualquer língua é sempre, portanto, 
uma realidade plural e heterogênea. 
Incluem-se nessa pluralidade as variedades geográficas (os chamados dialetos), as variedades 
sociais (os dialetos dos vários segmentos sociais urbanos e rurais, os jargões profissionais, as gírias, os 
registros e gêneros próprios de cada atividade humana) e as variedades estilísticas (variedades próprias da 
fala, variedades próprias da escrita, estilos formais ou informais, familiares ou vulgares). 
E podemos acrescentar ainda a toda essa gama de variedades as peculiaridades de fala e escrita de 
cada um dos falantes - afinal, não há dois falantes que falem ou escrevam exatamente do mesmo modo, 
como resultado do fato de que nenhum ser humano tem uma experiência existencial exatamente igual à de 
qualquer outro ser humano. 
Essa dimensão singular da expressão levou o filósofo e linguista alemão Wilhelm von Humboldt 
(1767-1835) a afirmar que na linguagem a individualização de uma forma geral é tão fantástica que 
podemos dizer com igual correção que a humanidade como um todo tem uma só língua e que cada ser 
humano tem uma língua pessoal (1988: 53). 
Ele resumiu bem essa dupla face da realidade linguística humana. Se a olhamos pelo viés da 
humanidade como um todo (pelo viés da espécie humana), observamos que, embora as línguas sejam 
muito diferentes entre si, elas não diferem em seu grau de complexidade - o que significa dizer que as 
línguas são muito diferentes entre si, mas a linguagem verbal é uma só. 
Por outro lado, se a olhamos pelo viés de cada indivíduo, observamos que sua expressão 
linguística tem uma clara dimensão singular. Ou seja, embora cada um de nós se desenvolva numa densa 
teia de relações sociais, nenhum de nós é absolutamente igual a qualquer outra pessoa. 
Nesse sentido, mesmo quando dizemos que falamos a mesma língua, não há nenhuma garantia de 
total intercompreensão. Em outros termos, a ideia de senso comum de que basta falar uma mesma língua 
para haver entendimento direto entre dois falantes não se sustenta. Frequentemente (e não 
excepcionalmente) é preciso negociar (“traduzir”) as significações do que dizemos. 
É bastante evidente, portanto, a imensidão constitutiva de qualquer língua. E essa complexidade 
toda se amplifica enormemente se considerarmos ainda alguns outros fenômenos corriqueiros do 
funcionamento social da língua. 
Lembremos, por exemplo, que, em situação de uso, um enunciado pode sempre significar seu 
contrário. Assim, digo João é muito honesto, mas, pelo mecanismo da ironia, faço este enunciado significar 
exatamente seu oposto, isto é, que João é desonesto. 
Por outro lado, um enunciado pode ter um significado bem diferente daquele que está contido em 
sua estrutura. Assim, alguém diz Está frio aqui e seu interlocutor identifica nesta expressão um pedido ou 
uma ordem para que as janelas sejam fechadas (sem que as janelas sequer tenham sido mencionadas!). 
São dois exemplos banais, mas ilustram bem o caráter fluido e movente da língua em uso. Talvez, 
como falantes, nem percebamos a frequência com que jogamos com as estruturas da língua, fazendo-as 
significar para além delas mesmas. 
A esses dois exemplos poderíamos ainda acrescentar o imenso continente que é o uso figurado da 
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linguagem. Embora algumas pessoas pensem que a linguagem figurada só ocorre na poesia, nosso dizer 
cotidiano está repleto de comparações e gestos metafóricos e metonímicos. 
Diante de todo esse quadro praticamente inesgotável de recursos é que podemos afirmar que uma 
língua é um universo infinito e em contínuo movimento. Mesmo que conseguíssemos juntar num 
megadicionário todas as palavras da língua (com os diferentes sentidos de cada uma delas) e 
conseguíssemos apresentar numa megagramática todos os princípios que regem a construção dos 
enunciados estruturalmente possíveis na língua (cobrindo toda a gama de suas variedades), ainda assim a 
língua como tal nos escaparia. 
E isso porque ela não é uma realidade estática, que possa ser congelada num dicionário e numa 
gramática. Ela não é um tesouro, uma mera coleção de sons, palavras e enunciados. Ela é, de fato, uma 
realidade dinâmica, plástica, aberta, em contínuo movimento. E ela tem de ser assim, porque, deoutro 
modo, ela não serviria para dar forma à miríade de eventos de expressão e interação que ocorrem 
continuamente no interior da sociedade que a fala (ou, como no caso do português, das sociedades que a 
falam). 
A língua é dinâmica, plástica, aberta e em contínuo movimento porque a experiência humana tem 
essas características. O ilimitado e a dinamicidade da língua têm a ver com o ilimitado e a dinamicidade 
da vida humana. 
Assim, no mesmo momento em que estivéssemos terminando nosso megadicionário, novos 
sentidos estariam sendo agregados às velhas palavras e novas palavras e expressões estariam sendo cria-
das ou incorporadas de outras línguas. Mesmo que conhecêssemos integralmente os princípios das 
alterações semânticas das palavras ou da criação e incorporação de novas palavras, sua manifestação e 
direção são, de fato, imprevisíveis. 
Ainda que conhecêssemos todos os princípios de construção dos enunciados da língua em todas 
as suas variedades, não teríamos como prever as direções do uso figurado ou do jogo com as estruturas 
que as faz significar para além delas mesmas. 
Além disso, não podemos perder de vista outro fato importante para apreendermos a 
complexidade da língua: ela passa continuamente por processos de mudança que vão alterando sua 
configuração estrutural. 
Esse movimento histórico alcança — em tempos diversos e em direções não necessariamente 
coincidentes (e, em geral, imprevisíveis) - todas as variedades constitutivas da língua. De novo, pouco 
sabemos sobre os fatores que condicionam essas mudanças e como eles agem. No entanto, sabemos que 
as mudanças nunca destroem a organização das variedades: há um redesenho constante da estrutura, mas 
nunca ocorre uma desestruturação da língua. 
Como dizia o antropólogo e linguista alemão-estadunidense Edward Sapir (1884-1939), a língua 
muda, mas nunca perde sua plenitude estrutural e seu potencial significativo (1969: 33-4). 
A análise dos processos de mudança sugere que elas parecem emergir, entre outros possíveis 
fatores, do encontro das variedades ou, ainda, do contato com outras línguas. As diferentes maneiras de se 
pronunciar ou de se estruturar os enunciados parecem criar um caldo propício à mudança. Os linguistas 
costumam dizer, por isso, que as mudanças parecem emergir da heterogeneidade, isto é, fenômenos 
típicos de algumas variedades acabam por ser adotados progressivamente por falantes de outras 
variedades, resultando em alterações na pronúncia ou na estrutura dos enunciados destas últimas. E esse é 
um processo contínuo, impossível de ser estancado (cfi, para mais detalhes, Faraco, 2005). 
Apesar de tudo que apontamos aqui, há quem não perceba a enormidade e a dinâmica da língua e 
acredite que ela possa ser reduzida a meia dúzia de regrinhas. 
Mesmo que nos restringíssemos à chamada norma culta, que alguns, infelizmente, tratam como 
uma camisa de força a ser amarrada nos falantes para limitar ou impedir suas ações de fala ou escrita, 
veríamos que também ela não escapa da variedade, nem da mudança, nem do movimento contínuo. 
E uma quimera achar que podemos abarcar a língua em sua totalidade. Quimera maior, porém, é 
querer domar a língua, estancar sua dinâmica, fixá-la num monumento pétreo. 
Isso não significa, obviamente, que devamos desistir de estudá-la cientificamente. Quanto mais a 
compreendermos, mais compreenderemos a nós mesmos, seres de linguagem que somos. Temos, no 
entanto, de estar cientes de que a língua sempre nos escapa. E nos maravilharmos com isso. 
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Por outro lado, embora a chamada norma culta seja também um “peixe ensaboado”, isso não 
significa que não devamos nos ocupar dela. Não podemos relevar sua importância sociocultural como 
uma tentativa de se construir um espaço de relativa unidade por sobre a imensa variedade da língua (em 
especial para eventos de escrita e para os meios de comunicação de massa). 
Para que a norma culta cumpra de fato esse seu papel, nós precisamos superar criticamente a 
cultura do erro que tem sido tradicionalmente associada a ela entre nós, substituindo essa atitude negativa, 
inquisitorial, condenatória por uma atitude mais condizente seja com suas reais características, seja com 
sua relevância sociocultural, seja ainda com sua dinâmica. 
Para isso, é fundamental entendermos bem o fenômeno da variação linguística. 
 
1.5. A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA 
Não existe língua homogênea. O fato de darmos um nome singular a uma língua (português, 
chinês, quíchua, suaíli, tapirapé) não deve nos iludir e nos impedir de apreender e apreciar adequa-
damente a heterogeneidade constitutiva de qualquer língua. Uma língua é sempre uma realidade plural, 
isto é, uma língua é um conjunto de incontáveis variedades: inúmeros dialetos geográficos e sociais, 
variadíssimos estilos, incontáveis registros aliados às mais diversas atividades humanas. 
Uma língua é, nesse sentido, muitas línguas. Não há, como alguns acreditam, a língua de um lado 
e as suas variedades de outro. A língua é a própria soma de todas as variedades que, por razões históricas 
e socioculturais, são reconhecidas como constitutivas da mesma língua. 
Convivemos cotidiana e corriqueiramente com essa enorme (talvez infinita) diversidade e não nos 
apercebemos da miríade de fatores que, em múltiplas relações, estão envolvidos na sua contínua 
produção. Não dispomos de nenhuma teoria capaz de explicar toda essa diversidade. De novo, o banal e o 
complexo, o corriqueiro e o mistério. 
As variedades se diferenciam pelo modo como os enunciados são pronunciados, como as 
sentenças são construídas, como os processos morfológicos se realizam e também pelas palavras que são 
mais comumente usadas e pelos sentidos agregados a cada uma delas. 
Sabemos que, muitas vezes, os falantes de diferentes variedades não se entendem de imediato, 
isto é, a compreensão entre eles não é direta. Apesar disso, eles se dizem falantes da mesma língua e, por 
isso, acabam por encontrar meios para se entender mais facilmente do que se fossem falantes de línguas 
diferentes. 
Isso é possível porque, segundo acreditamos, as variedades, embora diferentes, partilham, lá no 
fundo, um núcleo gramatical (alguns princípios gerais de organização como, por exemplo, a ordem das 
palavras na frase e propriedades morfológicas) e um vocabulário básico (por exemplo, o nome dos 
números, de algumas partes do corpo, das ações do cotidiano e assim por diante). 
Sabemos ainda pouco sobre o que constitui, de fato, esse núcleo. No entanto, acreditamos que ele 
exista e julgamos que ele resulte da história, ou seja, as comunidades vão se desdobrando, se 
estabelecendo em novos espaços, se diferenciando, se misturando e as variedades da língua, 
acompanhando esses processos, vão saindo umas das outras, vão se afastando e se aproximando, vão se 
interinfluenciando e se mesclando — conservando, porém, áreas de sobreposição. 
Dizemos, então, que falamos a mesma língua quando nossas variedades compartilham essas áreas 
de sobreposição básicas. Ê este núcleo comum que nos permite negociar significações e construir a mútua 
compreensão, mesmo quando, num primeiro momento, não conseguimos eventualmente nos 
compreender. 
Cada uma das variedades constitutivas da língua, por sua vez, é um todo muito bem organizado. 
Há princípios que regulam a combinação dos sons em sílabas e palavras; há outros que regem os 
processos morfológicos (a conjugação verbal, a formação de novas palavras, a acomodação de palavras 
importadas de outras línguas); há os que definem a construção das sentenças. Alguns aspectos dessa 
organização nós já fomos capazes de descrever; a maior parte, porém, continua sem uma descrição 
adequada. 
Apesar de não haver variedade sem organização interna, muitas vezes, por pura ignorância ou 
preconceito social, há quem ache que algumas variedades não têm “gramática”,são erradas, são 
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deformações da “verdadeira” língua. 
Se pararmos para analisar, vamos ver que esses julgamentos alcançam as variedades que são 
faladas por grupos sociais que têm estado na periferia da vida econômica e, por isso, distantes dos 
quinhões maiores da riqueza material e imaterial da sociedade. O cerne do problema não está, portanto, na 
língua, mas na estrutura social profundamente marcada pela desigualdade. 
Temos aqui um exemplo de como a língua pode ser transformada num elemento de discriminação 
social. Não é fácil romper com essas atitudes preconceituosas e discriminatórias porque elas estão 
profundamente enraizadas na nossa cultura. Se tivermos, contudo, clareza de que o problema não está na 
língua - justamente porque todas as variedades são muito bem organizadas poderemos lutar contra essas 
atitudes negativas que tanto dano causam na escola, no trabalho e na vida em geral. 
Mas a língua não é só diversidade. Há também situações que favorecem certas tendências e 
processos unificadores. No mundo contemporâneo, os meios de comunicação social (a televisão e o rádio, 
em especial) tornam algumas variedades amplamente audíveis em vastos espaços (o país inteiro, por 
exemplo). 
Isso as projeta em meio à diversidade e lhes dá uma certa força unificadora. Elas são até, muitas 
vezes, percebidas como exemplares nacionais da língua e também como modelos a serem imitados. Nesse 
sentido, podemos dizer, sem muito erro, que a norma linguística de referência (a norma culta) no Brasil 
de hoje é constituída pelas variedades privilegiadas pelos meios de comunicação social, ou seja, as 
variedades mais monitoradas da classe média urbana. 
Ao mesmo tempo, contudo, essas variedades podem também acirrar a diversidade: os falantes, ao 
perceberem que falam diferentemente das variedades privilegiadas pelos meios de comunicação social, 
podem resistir a imitá-las, preferindo, por várias razões, reforçar suas características locais. 
Em matéria de língua, os falantes vivem, então, no entrecru- zamento das forças diversificadoras 
com as unificadoras, ou seja, vivem entre os fatores mais locais (que favorecem a diversidade) e os de 
caráter mais geral (que possibilitam uma certa unidade, um certo chão comum), vivem entre o centrífugo 
e o centrípeto. 
E a expressão escrita da linguagem verbal, por suas características peculiares, tende a favorecer as 
forças mais unificadoras, como discutiremos a seguir. 
 
1.6. A LINGUAGEM VERBAL ESCRITA 
O meio básico de expressão da linguagem verbal é a ora- lidade, ou seja, a expressão articulada 
de sons produzidos pelo aparelho fonador. Com o passar do tempo, a humanidade criou um segundo meio 
de expressão — a escrita. Se comparado ao meio orai (que - supõe-se - tem perto de cem mil anos, como 
discutimos anteriormente), o meio escrito é recentíssimo: foi desenvolvido apenas há aproximadamente 
cinco mil anos. 
Por outro lado, enquanto todos os grupos humanos conheceram no passado e conhecem no 
presente o meio oral de expressão, apenas alguns grupos desenvolveram o meio escrito no passado e há 
ainda hoje línguas que não dispõem de expressão escrita. 
Assim como o meio oral precedeu em milênios o meio escrito na história da humanidade, ele 
também o precede na história do indivíduo: as crianças passam a falar por volta dos dois anos (e, como 
dissemos antes, o fazem espontaneamente, isto é, sem necessidade de ensino sistemático); contudo, só 
começam a se apropriar da escrita por volta dos cinco anos (e, em geral, dependem, para isso, de ensino 
formal). 
Há grandes diferenças entre os dois meios de expressão da linguagem verbal (cf., para mais 
detalhes, Jahandarie, 1999, cap. 8). O meio oral, por exemplo, conta, na composição do processo de 
significação, com o apoio gestual e facial, e dispõe de uma ampla gama de recursos prosódicos, ou seja, a 
cadeia falada tem uma linha melódica que lhe é dada pela entoação e pelo jogo da intensidade e duração 
com que se proferem os segmentos sonoros. Tudo isso falta ao meio escrito. Ele é, de certa forma, um 
meio parco de expressão. 
Para compensar estas enormes faltas, criaram-se alguns recursos gráficos (como a pontuação ou a 
mudança de fonte). Estes, no entanto, por mais indispensáveis e úteis que sejam, não conseguem jamais 
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alcançar o peso e as nuanças significativas da prosódia ou ainda do apoio gestual e facial que 
acompanham a fala. 
Um dos grandes desafios de quem aprende a escrever é, então, adequar sua expressão a este meio 
parco de recursos. E ser capaz de ir da abundância de recursos da oralidade para a exiguidade de recursos 
da escrita, desenvolvendo a capacidade de explorar as características do meio escrito para fazê-lo 
significar adequadamente, de modo a compensar suas lacunas. 
Outro dado importante a lembrar é o fato de que o meio oral se realiza fundamentalmente na 
comunicação face a face. O interlocutor, portanto, está presente e isso dá à fala uma dinâmica bastante 
peculiar: ela pode se apoiar extensamente em informações contextuais. Com isso, pode dispensar um 
elevado grau de explicitação textual e não precisa ser detalhadamente planejada - vai definindo seu rumo 
à medida que se processa e em consonância com as reações dos interlocutores. A temática da conversa 
pode, em razão disso tudo, ser difusa e coesivamente aberta. 
A comunicação pelo meio escrito, por sua vez, não conta com a presença física do interlocutor. E 
isso tem profundas implicações para o ato de escrever: é preciso, por exemplo, preencher essa ausência 
por uma imagem do interlocutor. Escreve-se para alguém ler e é preciso, então, definir quem será o 
interlocutor — imagem que pode ter como referente um indivíduo bem concreto, como numa carta 
pessoal, ou uma determinada categoria de indivíduos, como, por exemplo, o público leitor de um jornal. 
Por outro lado, pelo fato de não ser possível apelar extensamente ao contexto imediato, é preciso 
que o escrito alcance alto grau de explicitação textual. E, como não se pode contar com a presença física 
do interlocutor, é preciso prever suas possíveis reações e a elas responder ou adequar o texto 
antecipadamente. 
O ato de escrever exige, então, cuidadoso planejamento prévio; sua temática não pode ser difusa, 
mas deve ser centrada, sequencialmente bem trabalhada e apoiada em recursos coesivos estritamente 
controlados. Falhas graves em qualquer desses aspectos comprometem a compreensão e, por 
consequência, a interlocução. 
Um dos grandes desafios de quem começa a trabalhar com a escrita é, então, aprender a ajustar 
sua expressão à ausência física do interlocutor e à impossibilidade de contar com as referências 
contextuais imediatas. No primeiro caso, é preciso tornar a imagem do interlocutor elemento constitutivo 
do ato de escrever (em outras palavras, quem escreve deve exercer dois papéis — deve ser o autor e, ao 
mesmo tempo, deve colocar-se na posição de seu provável leitor, monitorando assim o que escreve). No 
segundo, é preciso controlar a textualização de modo a garantir que a significação se realize mesmo na 
ausência do apoio contextuai imediato. 
Apesar das limitações e das exigências estritas que caracterizam o meio escrito, este tem sobre o 
meio oral a vantagem da permanência. A fala é efêmera e evanescente (os romanos tinham já um dito que 
resumia bem este caráter fugaz, volátil da fala: verba volant, scripta manent — as palavras (faladas) voam, 
os escritos permanecem). Já o meio escrito dura enquanto durar seu suporte. Assim é que podemos ler 
textos antiquíssimos, embora muito pouca coisa tenha sobrado do que foi dito oralmente há poucos 
instantes. 
Essa propriedade de permanência do meioescrito é responsável pela importância que ele adquiriu 
na história humana. Com a escrita, a humanidade pôde transcender os limites do tempo, do espaço, da 
comunicação face a face e da cultura apenas oral e local. Tornou-se possível também o registro do 
conhecimento e, com isso, criaram-se as bases para ampliá-lo exponencialmente. Não é à toa, portanto, 
que se diz ter sido a invenção da escrita a maior realização tecnológica da humanidade. 
É verdade que o século XX trouxe a possibilidade técnica de se gravar o falado, de estancar seu 
caráter evanescente. No entanto, a maior parte dos eventos apenas falados continua sem registro, até 
mesmo por razões de ordem prática: eles são incontáveis e, salvo em casos muito específicos, é 
absolutamente irrelevante gravá-los. 
O século xx trouxe também várias possibilidades técnicas de transcender a milenar limitação do 
meio oral à interação face a face. A comunicação oral adquiriu a possibilidade de ser mediada 
tecnologicamente por meio do telefone, do rádio, da televisão, do computador. 
Romperam-se assim os limites do espaço próximo e se amplificou enormemente o alcance do 
meio oral. Em alguns casos, como o da televisão, por exemplo, o número de destinatários alcançáveis 
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simultaneamente por uma só fonte enunciativa pode facilmente chegar à cifra de muitos e muitos milhões. 
Neste último caso, ganha-se incalculavelmente em extensão, mas perde-se a possibilidade da 
alternância contígua de locutores e da réplica imediata. Isso cria, evidentemente, outras condições para a 
comunicação oral humana. Amplifica-se, em grandezas quase incalculáveis, o que, de certa forma, já 
estava presente na comunicação face a face institucionalizada como na escola, na igreja ou no tribunal — 
lugares em que a fonte da enunciação se dirige a muitos simultaneamente e a eventual alternância de 
locutores e a possibilidade de réplica costumam ser rigidamente controladas por regras explícitas ou 
implícitas. Mas, apesar disso, podem ainda eventualmente ocorrer. Essa possibilidade desaparece nos 
meios de comunicação de massa como a televisão (salvo — por ora pelo menos — em simulacros). 
O meio escrito, por ser tradicionalmente destinado à comunicação à distância, só admitia a 
alternância não contígua de locutores e a réplica remota. Isso, de certa forma, continua acontecendo, 
embora o desenvolvimento da comunicação mediada por computador tenha trazido a possibilidade da 
sincronia, ou seja, da troca de mensagens escritas on-line, o que acarreta também novas condições para a 
comunicação pelo meio escrito. 
Destaque-se, nesse sentido, que o desenvolvimento da internet e sua difusão social (calcula-se 
hoje que o Brasil conta com 75 milhões de internautas - cf. O Estado de S. Paulo, 10 jan. 2010, p. B12) têm 
expandido enormemente o uso da escrita em e-mails, blogs, sites e redes sociais. Pode-se afirmar que 
nunca se escreveu tanto e nunca antes tanta gente se envolveu cotidianamente com a escrita em 
proporções semelhantes. 
Essa expansão tem, claro, acarretado mudanças significativas no modo de realizar as práticas 
sociais de escrita: relativizam-se, em muitos espaços do meio eletrônico, várias das tradições discursivas 
historicamente constituídas na era do domínio soberano do livro e das outras mídias impressas. Os textos 
saem quase no ritmo da fala (estão se constituindo outros gêneros e outros padrões de textualidade), 
predominam as variedades linguísticas pouco monitoradas e até mesmo a forma de grafar as palavras 
passa por um processo de estenografização (o chamado internetês). 
Isso tudo, no entanto, não significa que as tradições discursivas historicamente constituídas serão 
simplesmente abandonadas. Elas continuarão valendo para determinadas situações, influenciarão as novas 
tradições que estão em construção, assim como receberão influências destas novas tradições. 
Estamos vivendo, portanto, um tempo pleno de novas experiências interacionais e de 
consequentes mudanças na expressão verbal, seja na oralidade, seja na escrita. 
 
2 BREVE HISTÓRIA DO MEIO DE EXPRESSÃO ESCRITA 
1.7. OS SISTEMAS DE ESCRITA 
A criação do meio escrito de expressão da linguagem verbal se deu, como dissemos no capítulo 
anterior, há aproximadamente cinco mil anos na Mesopotâmia. A escrita cuneiforme, inventada pelos 
sumérios, é o mais antigo sistema de escrita conhecido até hoje (c£, para mais detalhes, Higounet, 2003). 
Os estudiosos destacam que o surgimento da escrita acompanhou o surgimento de sociedades humanas 
mais complexas, com atividades produtivas e comerciais extensivas e com poder estatal estruturado. 
O aumento da complexidade da vida econômica, social e política trouxe consigo a necessidade do 
desenvolvimento de sistemas de registros gráficos de contabilidade (estoques de grãos e animais, por 
exemplo) e administração (decisões governamentais e acordos diplomáticos). A criação do meio escrito 
de expressão da linguagem verbal respondeu basicamente a esta necessidade. 
Ao lado dessas dimensões pragmáticas, o desenvolvimento da escrita permitiu também o registro 
da cultura oral como um todo: poemas, narrativas épicas e religiosas, saberes variados. 
A escrita é fundamentalmente um desenho e, nesse sentido, dá continuidade à antiga experiência 
humana com o registro figurativo do mundo que observava (os animais desenhados nas paredes da 
caverna de Altamira, na Espanha, por exemplo) ou das ações que ai ocorriam (as cenas de caça 
desenhadas nas paredes da caverna de Lascaux, na França, por exemplo). 
Progressivamente (e sob determinadas demandas práticas), a humanidade percebeu que podia 
também desenhar a linguagem verbal, ou seja, transpô-la para uma superfície e fixar seu caráter efêmero e 
evanescente.. 
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Nesse processo, variou o elemento verbal tomado como referência. Em alguns contextos, criaram-
se signos gráficos que representavam palavras (sistemas logográficos). E o caso da escrita inicial dos 
sumérios (desenvolvida por volta do quarto milênio antes de Cristo), dos egípcios (terceiro milênio antes 
de Cristo) e dos chineses (segundo milênio antes de Cristo) — a única dessas escritas antigas ainda em 
uso. 
Em outros contextos, criaram-se sistemas silábicos em que cada signo representa uma sílaba, 
como na escrita da língua da ilha de Chipre anterior à ocupação grega (séculos ve iv a.C.), na escrita da 
corte dos reis persas aquemênidas em Persépolis (séculos vi a iv a.C.) e na escrita japonesa atual 
(desenvolvida no século iv d.C.). 
Os signos dos sistemas de base logográfica foram, de início, verdadeiros pictogramas, ou seja, 
tinham semelhança com o objeto representado. Com o passar do tempo, os pictogramas foram perdendo 
esse caráter figurativo e se transformaram em logogramas, signos abstratos que passaram a evocar a 
palavra em si sem a mediação da imagem do objeto, o que garantiu maior amplitude e funcionalidade ao 
ato de escrever, já que nem todas as palavras fazem referência a objetos visíveis e figuráveis. 
Por outro lado, os sistemas logográficos, a partir de logogramas representativos de palavras 
monossilábicas, desenvolveram, com o passar do tempo e por um processo de abstração, signos de caráter 
puramente silábico, ou seja - como destaca o linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) em seu 
Curso de linguística geral (1970: 36) — certos logogramas, distanciados de seu valor inicial, terminam por 
representar unidades composicionais da articulação sonora em si. 
Para entender o processo de abstração subjacente a essa sutil mas profunda transformação, 
bastaria imaginar que, se a escrita do português fosse logográfica, haveria um logograma para a palavra 
pé. Com o tempo,este logograma passaria a ser usado também para representar a sílaba /pé/ em qualquer 
palavra como, por exemplo, a sílaba inicial de pele, pedra, pérola. Ou seja, o signo, além de sua função 
logográfica, teria adquirido a propriedade de representar uma sequência sonora silábica. 
De novo, essa mudança aumentou a funcionalidade do sistema de escrita pela sensível diminuição 
do estoque de signos necessários: uma escrita silábica precisa de muitíssimo menos signos do que uma 
escrita logográfica. 
Por esse processo, os sistemas logográficos se tornaram mistos, com sua base logográfica 
suplementada por silabários. A partir destas representações silábicas se chegou, posteriormente, à escrita 
alfabética, cujo elemento verbal de referência não são as palavras ou as sílabas, mas as consoantes e as 
vogais. 
Embora as unidades verbais tomadas como referência para a construção da escrita alfabética 
sejam consoantes e vogais, é preciso deixar claro que essa escrita nunca é fonética no sentido estrito do 
termo, isto é, as letras não representam diretamente os sons da fala, mas sim as unidades funcionais da 
língua (chamadas tecnicamente de fonemas), que são abstratas. 
A escrita alfabética é, assim, uma escrita de base fonológica, ou seja, toma como referência uma 
representação abstrata da articulação sonora da língua e não propriamente sua pronúncia. 
Considerando que a pronúncia varia muito entre regiões, grupos sociais, estilos de fala e mesmo 
na linha do tempo, uma escrita estritamente fonética seria de pouco alcance e baixa funcionalidade. 
Apesar disso, o senso comum acredita que a escrita alfabética é fonética e são várias as pessoas 
que, diante das peculiaridades da ortografia do português, propõem mirabolantes reformas pelas quais 
cada letra passaria a representar um único som da fala e cada som da fala seria representado por uma 
única letra. 
Embora estejam propondo com essas reformas radicais uma solução aparentemente racional para 
as dificuldades da ortografia, tais reformas inviabilizariam a própria escrita da língua por abrirem mão 
justamente da sua grande qualidade, ou seja, o grau de abstração da pronúncia (cfi, para uma discussão 
sobre este tema, Lemle, 1981). 
E esta abstração que garante uma escrita comum e mutuamente compreensível aos falantes das 
mais diferentes variedades da língua. Dispomos, por exemplo, de uma única forma ortográfica — dente — 
embora sejam muitas as pronúncias dessa palavra nas diferentes variedades da língua: [de. ti], [dé.tl], 
[déy.ti], [dé.tji], [détj].1 
Os criadores da escrita alfabética tiveram essa fina percepção de que nem toda diferença fônica é 
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relevante e, consequentemente, as letras poderiam remeter não a sons da fala, mas a unidades sonoras 
abstratas, isto é, àquelas (e apenas àquelas) que têm efetiva funcionalidade na articulação sonora da 
língua. 
Desse modo, anteciparam em milênios, na sua genial criação, as formulações teóricas que vieram 
a ser construídas somente nos últimos dois séculos — primeiro com o desenvolvimento da fonética, a 
ciência que tem os sons da fala como objeto; e, posteriormente, com o desenvolvimento da fonologia, a 
ciência linguística que estuda a organização do sistema sonoro da língua, ou seja, a organização funcional 
abstrata que preside as emissões concretas da fala. 
Essa distinção entre fonética e fonologia se faz necessária porque nem todas as diferenças 
fonéticas têm relevância funcional numa língua. Assim, por exemplo, as duas vogais da palavra casa 
[ka.zia] são foneticamente diferentes (a primeira é uma vogal aberta e a segunda uma vogal média). No 
entanto, essa diferença fonética não é funcional em português: sua oposição não serve para distinguir 
palavras e os falantes, em geral, nem sequer percebem a diferença. 
Dizemos, então, que as duas vogais em questão [a] e [b] realizam foneticamente uma única 
unidade fonológica / a /. Os linguistas que criaram a fonologia deram o nome dt fonema a essa unidade 
fonológica. No caso das duas vogais de casa [ka.ze], temos dois sons da fala que realizam foneticamente o 
mesmo fonema. E, por isso, podem ser grafadas pela mesma letra justamente porque a escrita alfabética 
remete à realidade fonológica e não fonética. 
Posteriormente, os teóricos mostraram que o mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao estudo das 
letras. Ou seja, há inúmeras formas de desenhar concretamente uma mesma letra (maiúscula ou 
minúscula, manuscrita ou de fôrma, além das variadas fontes gráficas). Essas diferenças não impedem 
que reconheçamos todas como realizando a mesma unidade gráfica abstrata a que os teóricos deram o 
nome de grafema. 
No fundo, um sistema alfabético, tomando as consoantes e vogais como os elementos linguísticos 
de referência (e não as palavras ou as sílabas), tem, como princípio de base, uma correlação entre 
fonemas (unidades sonoras abstratas) e grafemas (unidades gráficas abstratas). 
O seu domínio pressupõe que o aprendiz - mesmo partindo de sons e letras - alcance 
operativamente esse nível de abstração, ou seja, saiba se desvincular de uma excessiva dependência da 
fala e, ao mesmo tempo, saiba reconhecer atrás de diferentes formatos gráficos um único grafema. 
Nesse processo, a mediação da língua falada é inevitável - afinal, o modo de expressão escrita, 
embora goze de relativa autonomia, tem o modo oral como ponto de referência. Assim, a tendência do 
aprendiz é depositar grande confiança nessa relação e apoiar-se nela para seus passos iniciais na 
apreensão do sistema alfabético. Contudo, o domínio efetivo da escrita alfabética vai exigir um salto de 
qualidade, ou seja, ascender ao patamar das relações abstratas que a caracterizam. 
Embora as diferenças entre fonética e fonologia, e entre unidades concretas e unidades abstratas 
sejam necessárias e de fácil apreensão, o discurso pedagógico sobre a alfabetização costuma confundir 
som da fala e fonema, além de não levar em conta os níveis de abstração envolvidos na escrita alfabética, 
no seu domínio e no seu uso. 
Nada impede, obviamente, que a entrada na lógica da escrita alfabética se faça pela mediação dos 
sons da fala. Mas será preciso não estabelecer uma correlação absoluta entre fonação e escrita para não 
falsear os princípios que regem, de fato, a escrita alfabética. Como bem disse Vygotsky (2007: 141): 
 
A compreensão da linguagem escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem falada; no 
entanto, gradualmente essa via é reduzida, abreviada, e a linguagem falada desaparece como elo 
intermediário. 
 
É preciso lembrar ainda que, no caso específico da ortografia da língua portuguesa, além do 
pressuposto alfabético de base (relações regulares entre fonemas e grafemas), opera-se também com a 
memória etimológica (como discutiremos mais detalhadamente em capítulos posteriores). Escreve-se, por 
exemplo, homem com uma letra inicial que não remete a nenhum fonema, mas preserva um elemento 
gráfico que estava presente em sua ancestral latina. 
A memória etimológica tem uma função cultural relevante, mas introduz graus de irregularidades 
e imprevisibilidades a exigir estratégias de aprendizagem específicas, sem a confiança excessiva na 
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mediação dos sons da fala. 
Em outras palavras, a entrada na escrita alfabética, seu domínio e seu uso autônomo exigem 
múltiplas oportunidades de aprendizagem. A metodologia deverá, assim, combinar diferentes estratégias. 
Se a mediação dos sons pode ser um auxiliar produtivo no caso das relações regulares e previsíveis, ela 
será, em geral, inútil nos casos de memória etimológica, que exigem uma abordagem integral da palavra 
(ou seja, uma aproximação pelo todo da palavra e não pelassuas partes). 
Esta abordagem integral, por sua vez, poderá ser útil como recurso complementar nos casos das 
relações regulares, oferecendo ao aprendiz caminhos diversos (da parte para o todo e do todo para a parte) 
para suas ações cognitivas. 
Outra situação que exemplifica muito bem a relativa distância entre o oral e o escrito é o da 
segmentação das unidades. Na escrita, escrevemos palavra por palavra, separando cada uma com espaços 
em branco. O critério de segmentação é basicamente lexical. 
Já na fala, a segmentação se dá por blocos fonético-fonológicos que reúnem, numa só emissão de 
voz, várias palavras. O critério de segmentação é basicamente prosódico: a emissão oral segue padrões de 
ritmo e métrica que nos levam, por exemplo, a juntar o fim de uma palavra com o começo de outra. Não 
há, portanto, coincidência entre o segmento da fala e o segmento da escrita. Escrevemos as asas azuis das 
araras, mas dizemos [a.za. za.za.zuys.da.za.ra.ras]. 
Um dos resultados dessa não coincidência é que os alunos, quando começam a produzir sua 
escrita, costumam grafar várias palavras juntas. Abaurre e Cagliari (1985) mostraram que essas junções 
não são aleatórias, mas revelam que o aprendiz está tomando estritamente a cadeia sonora como 
referência para a escrita. Não está, portanto, “errando”, mas operando com uma hipótese que remete 
diretamente à cadeia falada. Uma das exigências para o efetivo domínio da escrita é aprender, durante o 
processo, a superar essa hipótese, desvinculando a escrita da fala. 
 
 
1.8. OS CAMINHOS DA ESCRITA ALFABÉTICA 
A progressiva passagem de sistemas logográficos para sistemas silábicos e alfabéticos é também, 
como já observamos acima, uma progressão de economia de meios não desprezível. Assim, se um sistema 
logográfico precisa de muitos milhares de signos, um sistema silábico não precisa mais do que um 
estoque de cinquenta ou sessenta deles e um sistema alfabético funciona perfeitamente com não muito 
mais do que duas a três dezenas de signos. 
Essa escala de economia de meios dá, obviamente, grande versatilidade e funcionalidade ao 
sistema alfabético, além de favorecer um domínio mais rápido da notação escrita. 
O princípio da escrita alfabética já é visível na escrita uga- rítica. Os escribas de Ugarit, 
importante centro urbano portuário na costa do Mediterrâneo oriental (onde hoje está o litoral da Síria), 
adaptaram, por volta do século xv a.C., os signos da escrita cuneiforme dos sumérios para representar não 
palavras ou sílabas, mas basicamente consoantes. 
Quase ao mesmo tempo, os fenícios desenvolveram também uma escrita alfabética basicamente 
consonântica e cujos signos (as letras) serviram de fundamento para o alfabeto hebraico e também para o 
alfabeto grego e, por meio deste, para o alfabeto latino — o mais amplamente usado no mundo moderno. 
Os gregos (por volta do ano 1.000 a.C.) adotaram e adaptaram as letras fenícias, acrescentando-
lhes símbolos para a notação integral das vogais. Este alfabeto, com 23 letras, serviu de modelo para 
outros alfabetos europeus (o dos godos e dos eslavos, por exemplo), em especial para o alfabeto latino 
que começa a ser delineado por volta do século VII ou VI a.C. e alcança seu formato clássico por volta do 
século I a.C. 
A diversidade de formas de escrita, observável na história e na atualidade, é exemplo tanto da 
engenhosidade humana, quanto da vasta riqueza cultural da humanidade. 
 
1.9. A ESCRITA E A CULTURA LETRADA 
A criação da escrita teve duradouros impactos na cultura humana. Se, de início, o meio escrito 
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teve funções essencialmente práticas, logo passou a ser usado no registro da poesia, das crenças, da 
memória coletiva, das leis sociais e do conhecimento em geral. Paralelamente à cultura oral, foi, então, 
tomando forma a cultura letrada que transformou profundamente a vida humana. 
A inscrição das leis foi dando a base para a organização de sociedades cada vez mais complexas; 
a fixação das crenças acabou por estruturar religiões que espalharam suas visões de mundo e preceitos de 
vida por grandes espaços geográficos; a escrita do imaginário favoreceu a transmigração intercultural de 
símbolos, valores e arquétipos, resultando numa explosiva espiral criativa; a escrita amplificou 
enormemente o potencial de memória da humanidade; e, por fim, o registro do conhecimento permitiu o 
seu crescimento exponencial na medida em que facilitou o desenvolvimento de modos de organização 
intelectual mais sistemáticos e monitorados e, portanto, de práticas cognitivas mais abstratas e 
formalizadas que levaram, por exemplo, ao desenvolvimento da matemática, das ciências e das 
tecnologias. 
Quando falamos, então, de cultura letrada estamos nos referindo não apenas aos sistemas de 
transcrição gráfica da linguagem verbal (a escrita não se esgota na notação), mas, fundamentalmente, de 
uma vasta e complexa rede de práticas cognitivas, saberes e práticas socioculturais que a criação destes 
sistemas tornou possível. 
Mencionamos anteriormente que o meio de expressão escrita, diferentemente do meio de 
expressão oral, exige, para seu domínio, atividades de ensino sistemático. Dessa forma, a instituição 
escolar, em qualquer dos seus formatos históricos, é fruto da criação da escrita e existe milenarmente para 
dar acesso ao código gráfico e, principalmente, para transmitir a cultura letrada. Podemos dizer, então, 
que escrita, escola e cultura letrada estão historicamente em relação simbiótica. 
A prática continuada da escrita foi motivando o desenvolvimento e a consolidação de várias 
tradições discursivas. Dentre elas, podemos citar, por exemplo, as convenções gráficas corporificadas nos 
diferentes desenhos dos logogramas, dos silabogramas e das letras, na composição da página, nas direções 
de sua ocupação - se da direita para a esquerda, como na escrita árabe; ou se da esquerda para a direita, 
como na escrita latina. 
Inclui-se também nas tradições discursivas da escrita a formatação dos modos de dizer, 
materializados estes em diferentes gêneros e tipos de textos e no privilegiamento de determinados 
elementos lexicais e morfossintáticos da língua considerados adequados para a expressão escrita. Nesse 
sentido, a própria prática histórica da escrita foi delimitando as variedades da língua passíveis de 
ocorrerem nela (realidade linguística a que damos hoje o nome de norma culta, escrita). 
Aprender as práticas escritas exige um mergulhar em todas essas tradições discursivas. Trata-se 
de uma complexa experiência cognitiva que não começa nem termina com o domínio do alfabeto. A 
alfabetização é apenas o momento específico de aprendizado do sistema de notações gráficas. 
E dizemos que não começa nem termina com a alfabetização porque, como mostrou 
detalhadamente Vygotsky, a criança, em seus primeiros anos de vida e anteriormente ao aprendizado do 
alfabeto, deve vivenciar todo um conjunto de experiências sim- bólico-cognitivas (conjunto a que ele deu 
o nome de pré-história da escrita) materializadas principalmente nos jogos e brinquedos infantis e nos 
rabiscos e desenhos. 
Segundo Vygotsky 
 os gestos de representação simbólica presentes em cada uma dessas atividades devem ser vistos 
como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento em 
direção à linguagem escrita. (2007: 140-1) 
 
Haverá descontinuidades, saltos, retrocessos e avanços, mas subjacente a todas estas atividades 
semióticas há um mesmo funcionamento simbólico a caracterizar sua unificação e continuidade: nos 
jogos e brincadeiras, nos rabiscos e desenhos, e na escrita, há uma realidade simbólica em que 
determinado objeto representa outro - a vassoura “funcionando” como um cavalo, o desenho de uma 
árvore no lugar da árvore e, finalmente, as letras representando a linguagem verbal. 
Por outro lado, a criança