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1 SOCIEDADE DE ENSINO SUPERIOR DE SERRA TALHADA – SESST FACULDADE DE INTEGRAÇÃO DO SERTÃO – FIS BACHARELADO EM DIREITO ORTÊNCIA EMANOELA ONOFRE TAVARES A (IN) EFICÁCIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA FRENTE AO PROBLEMA DA SUPERLOTAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO. Serra Talhada 2017 2 ORTÊNCIA EMANOELA ONOFRE TAVARES A (IN) EFICÁCIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA FRENTE AO PROBLEMA DA SUPERLOTAÇÃO DO CARCERÁRIO BRASILEIRO. Monografia apresentada à disciplina de TCC do curso de Bacharelado em Direito da Faculdade de Integração do Sertão – FIS, como requisito parcial para o título de Bacharel em direito, sob a orientação do Prof. Esp. Manoel Arnóbio de Sousa. Serra Talhada 2017 3 ORTÊNCIA EMANOELA ONOFRE TAVARES A (IN) EFICÁCIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA FRENTE AO PROBLEMA DA SUPERLOTAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO. Monografia apresentada à disciplina de TCC do curso de Bacharelado em Direito da Faculdade de Integração do Sertão – FIS, como requisito parcial para o título de Bacharel em direito, sob a orientação da Prof. Esp. Manoel Arnóbio de Sousa. Monografia ____________________ pela banca examinadora, _______ ressalvas (Aprovada/Reprovada) (com/sem) com nota ________ (_______________) em ____ de _________________ de _________ Banca Examinadora: ______________________________________________ Examinador: Prof. Me. Stênio Max Lacerda Faculdade de Integração do Sertão – FIS ______________________________________________ Examinador: Prof. Esp. José Olegário de Lima Filho Faculdade de Integração do Sertão – FIS ____________________________________________ Orientador: Prof. Esp. Manoel Arnóbio de Sousa Faculdade de Integração do Sertão – FIS 4 Dedico esta Monografia: A Deus por sempre me abençoar, aos meus pais Manoel Tavares e Elda Gomes, ao meu irmão, às minhas avós, ao meu namorado, enfim, a toda minha família por se unir a mim na realização desse sonho. 5 AGRADECIMENTOS A Deus por me amar tanto e sempre demonstrar que está me guardando. Aos meus pais pela luta diária para que eu pudesse me formar. Ao meu pai Manoel Pereira Tavares pela dedicação a realizar esse sonho junto comigo e à minha mãe Elda Simone Onofre Gomes por ser minha companheira fiel de todas as horas. Ao meu orientador Manoel Arnóbio de Sousa pelo insubstituível auxílio durante a elaboração desse trabalho. Ao meu irmão pelo companheirismo desde a infância. Ao meu namorado pelo companheirismo e apoio durante a elaboração. Às minhas avós Lindaura (in memoriam) e Socorro por todos os ensinamentos. A todos que compõem a Vara Criminal da Comarca de Serra Talhada pela preocupação com meu aprendizado e pelo tratamento carinhoso que tiveram comigo desde o começo do estágio, em especial a Marcos César Diniz por todos os ensinamentos. A todos que compõem a Única Vara do Trabalho de Serra Talhada por todos os ensinamentos durante o estágio e pela amizade, especialmente à minha prima Edleny Tavares por ter sido uma das primeiras pessoas a acreditar em mim e por ser espelho de pessoa e profissional. Aos meus tios e tias pelo auxílio que deram a mim e a meus pais durante esses 5 anos. A todos meus professores por todos os conhecimentos passados. Enfim, a todos que colaboraram mesmo que indiretamente para a consolidação deste trabalho monográfico. 6 RESUMO O presente trabalho versa sobre o instituto da audiência de custódia no Brasil. Ao longo da pesquisa, será analisado se, de uma forma geral, a audiência de custódia está cumprindo com seus objetivos de resguardar os direitos humanos e verificar se estes estão sendo respeitados no momento da prisão, bem como se tal instituto “ajuda” ou não na diminuição da superlotação dos cárceres brasileiros. Destarte, surgem diversos questionamentos acerca da problemática, tais como: será que a audiência de custódia está sendo eficaz no cumprimento dos objetivos a que se propôs? O judiciário brasileiro bem como as demais instituições envolvidas na realização da audiência de custódia têm uma estrutura adequada para realizá-la? Para que fosse possível responder tais indagações, se fez necessário abordar de forma aprofundada a origem, o conceito e a evolução dos Direitos Humanos e sua (in) aplicabilidade no sistema carcerário brasileiro; analisar a forma como se deu sua observação, obrigatória, pelos juízes e tribunais do país através da ADPF 347; bem como mostrar aplicação da audiência de custódia no Brasil, seu conceito, mostrar seus objetivos e propósitos, sua fundamentação jurídica, como também a vivência do nosso Estado na realização da audiência de custódia, isto é, de como e quando o Estado de Pernambuco e o Tribunal de Justiça de Pernambuco a aderiram. Por fim, far-se-á uma explanação dos pontos positivos e negativos da audiência de custódia, os problemas que podem impactar sua eficácia e analisar se após a implantação do referido instituto a superlotação dos cárceres brasileiros diminuiu. Palavras-chave: Direitos. Audiência. Custódia. Superlotação. Prisões. 7 ABSTRACT The present work deals with the institute of the custody hearing in Brazil. Throughout the research, will be analyzed if, in a general way, the custody hearing is complying with its objectives of safeguarding human rights and verifying that they are being respected at the time of arrest, as well as whether such an institute "helps" or not in reducing the overcrowding of Brazilian prisons. In this way, several questions arise about the problematic, such as: Will the custody hearing be effective in achieving the goals it has set itself? Does the Brazilian judiciary as well as the other institutions involved in conducting the custody hearing have an adequate structure to carry it out? In order to answer such questions, it was necessary to address in depth the origin, the concept and evolution of human rights and its (in) applicability in the Brazilian prison system, analyze how the observation was made, required, by the judges and courts of the country through ADPF 347, as well as show application of the custody hearing in Brazil, your concept, show your goals and purposes, its legal basis, as well as the experience of our State in holding the custody hearing, this is, how and when the State of Pernambuco and the Court of Pernambuco they adhered. Lastly, will do an explanation of the positive and negative points of the custody hearing, the problems that may impact its efficacy and to analyze if after the implantation of said institute the overcrowding of Brazilian prisons has diminished. Keywords: Rights. Court hearing. Custody. Overcrowded. Prisons. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................10 1. OS DIREITOS HUMANOS E O DESAFIONA BUSCA DE SUA EFETIVAÇÃO...............................................................................................................13 1.1. Analise conceitual.....................................................................................................13 1.2. Visão Constitucional pátria......................................................................................18 1.3. O problema carcerário e a sua afronta aos direitos humanos...................................23 2. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL...........................................................29 2.1 Audiência de custódia e a ADPF 347........................................................................30 2.2 Conceito, Propósitos e Procedimento........................................................................34 2.3 Fundamentos jurídicos, projeto e adesão pelo Estado de Pernambuco e pelo TJPE.................................................................................................................................38 3. ANÁLISE ACERCA DOS ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E SEUS EFEITOS NA POPULAÇÃO CARCERÁRIA .............................................................................................................44 3.1 Pontos positivos e negativos da Audiência de Custódia para o Sistema Penal brasileiro..........................................................................................................................44 3.2 Problemas que impactam a eficácia da audiência de custódia..................................48 3.3 Efeitos da audiência de custódia na população carcerária.........................................55 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 59 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 61 ANEXO A – Termo De Adesão Do Governo Do Estado De Pernambuco Ao Termo De Cooperação Técnica N. 007/2015, Celebrado Entre O Conselho Nacional De Justiça, O Ministério Da Justiça E O Instituto De Defesa Do Direito De Defesa. (Processo 03003/2015)....................................................................................................66 ANEXO B – Termo de Adesão do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco ao Termo de Cooperação Técnica N. 007/2015, Celebrado Entre o Conselho 9 Nacional de Justiça, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa. (Processo 03003/2015)......................................................................................69 ANEXO C – Resolução Nº 380, de 10 de Agosto de 2015..........................................72 ANEXO D – Gráficos Quantitativos das Audiências de Custódia em Todos os Estados Brasileiros........................................................................................................77 ANEXO E – Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil no Ano de 2014....................81 10 INTRODUÇÃO A presente pesquisa encontra sua justificativa a partir da análise que será feita acerca do instituto jurídico da audiência de custódia, enquanto possível solução ou amenização para o problema da superlotação do sistema carcerário no Brasil. O tema é relativamente novo no direito penal brasileiro e merece uma especial atenção quanto a análise de seus objetivos, procedimentos, finalidades etc. Como mencionado, a realização da audiência de custódia ainda é algo novo para o nosso direito, por isso, é de suma relevância que se estude o tema, a fim de se conhecer a forma como foi estabelecida sua implantação em nosso sistema penal, seu conceito, para que serve, sua relevância jurídica, com qual intuito ela foi criada etc. Importante saber também se durante esse período em que está sendo realizada, a audiência está cumprindo ou não seus objetivos, objetivos estes que serão expostos ao longo do presente trabalho monográfico. Nossa pesquisa pretende analisar todos estes pontos acerca do referido instituto. Como se vê, o tema que será aqui tratado é de suma relevância acadêmica e científica, uma vez que deve ser estudado cautelosamente pelos atuais e futuros operários do direito, a fim de se conhecer e até melhorar o instituto que está sendo implantado agora no nosso sistema processual penal. O debate acadêmico sobre o presente tema contribuirá bastante na formação dos futuros agentes jurídicos, para que estes, na sua prática forense, possam contribuir para a melhoria do nosso sistema penal e para a justiça como um todo. Cumpre-nos dizer que a escolha da temática se deu pela própria vivência forense. Enquanto estagiária da Única Vara Criminal de Serra Talhada – PE, pude vivenciar a aplicação da audiência de custódia com todas as suas dificuldades e benefícios. A presente pesquisa seguirá no sentido de discutir acerca do instituto da audiência de custódia e se, de uma forma geral, ela está cumprindo com seu objetivo de “ajudar” na diminuição da superlotação dos cárceres brasileiros, tendo em vista que se for constatado na audiência de custódia que o cerceamento da liberdade é algo evitável, a pessoa presa poderá ficar liberto cumprindo medidas cautelares e, consequentemente, não contribuindo para superlotar mais ainda o sistema prisional. É com base nestas informações que prosseguiremos com a pesquisa, porém, será que a audiência de custódia está sendo eficaz no cumprimento dos objetivos a que se 11 propôs? Isto é, será que os resultados até agora obtidos com a audiência de custódia são os que ela pretendia quando da sua implantação? O judiciário brasileiro bem como as demais instituições envolvidas na realização da audiência de custódia têm uma estrutura adequada para realizá-la? São essas e outras indagações que buscaremos responder ao longo da nossa pesquisa monográfica. Temos como objetivos da presente monografia, a análise da audiência de custódia como possível solução ou sistema amenizador da superlotação do sistema carcerário brasileiro. Analisaremos também a efetiva aplicação, sobretudo nos presídios, dos Direitos Humanos, bem como se as medidas que muitas vezes são impostas pela audiência de custódia têm uma devida fiscalização e controle. Para o correto desenvolvimento do trabalho em tela, será utilizado como método de pesquisa primário o denominado método dedutivo. Tal método, sem sombra de dúvidas, é o que melhor se adequa a presente pesquisa, uma vez que o mesmo será percebido no desenvolver do trabalho, onde se buscará uma conclusão lógica através da averiguação de premissas verdadeiras que partiram do pensamento e obra de autores sobre os temas ora tratados. Outrossim, serão utilizadas técnicas de pesquisa, cujo procedimento nos permita chegar ao resultado almejado. Desta forma, os procedimentos técnicos que aqui serão utilizados: é a bibliografia, para que o presente trabalho seja bem fundamentado e para que se apresente uma pesquisa com bases consistentes. Sendo assim, a pesquisa será bibliográfica, pois serão utilizados livros, artigos, dissertações, teses, monografias, dentre outros instrumentos. Como veremos, nosso primeiro capítulo tratará acerca dos Direitos Humanos e a dificuldade que encontramos hoje em efetivá-los. Aqui discutiremos acerca do que são os Direitos Humanos e neste ponto utilizaremos a teoria do filósofo italiano Norberto Bobbio, em sua obra “A era dos direitos”. Trataremos, também, acerca da visão constitucional brasileira dada aos Direitos Humanos, bem como falaremos brevemente acerca do nosso sistema carcerário, de como se encontraatualmente e seus maiores problemas. No segundo capítulo falaremos de como fora implantada a audiência de custódia em nosso sistema processual criminal, definindo-a e mostrando seus objetivos e propósitos, sua fundamentação jurídica etc. Falaremos, também, da vivência do nosso estado na realização da audiência de custódia, isto é, de como e quando o estado de Pernambuco e o Tribunal de Justiça de Pernambuco a aderiram. 12 Ao final, no terceiro e último capítulo serão expostos alguns pontos tidos como positivos e negativos acerca da audiência de custódia, bem como apontaremos alguns problemas que podem impactar a sua eficácia, como por exemplo, a falta de estrutura do poder judiciário e a falta de controle acerca das medidas cautelares que possam vir a ser estipuladas na audiência de custódia quando ali se tem o entendimento de que a prisão não se faz necessária e a necessidade de fortalecimento das defensorias públicas do nosso país. Por fim, buscaremos relacionar diretamente o instituto da audiência de custódia com o problema da superlotação do sistema carcerário do Brasil, isto é, analisaremos se depois da implantação da audiência de custódia a quantidade de pessoas presas diminuiu ou não. Só a partir destas análises é que obteremos uma conclusão acerca da eficácia da audiência de custódia quanto ao cumprimento de seus objetivos, sobretudo, o de amenizar a superlotação dos cárceres brasileiros. 13 1. OS DIREITOS HUMANOS E O DESAFIO NA BUSCA DE SUA EFETIVAÇÃO O presente capítulo traz como objetivos uma explanação sobre o que são os direitos humanos na visão do filósofo italiano Norberto Bobbio (1992), para isso, traz- se aqui os conceitos utilizados pelo autor em sua obra “A Era dos Direitos”, considerada referência quando o assunto trata-se dos direitos dos homens. Ademais, ao longo do capítulo tentar-se-á demonstrar que os direitos dos homens são amplamente assegurados pelas diversas normas de direito internacional de direitos humanos e também pelas constituições dos países que tomaram para si a tarefa de também protegê-los. No entanto, como ainda não são plenamente efetivados, os inúmeros casos de desrespeito aos direitos humanos são cada vez mais frequentes, principalmente dentro do sistema penal brasileiro e é exatamente tal ponto que queremos discutir no presente capítulo. Ainda se falando da apresentação deste capítulo, o mesmo será dividido em três seções, nas quais a primeira tratará acerca da análise conceitual do que venha a ser os direitos humanos e como já falado acima, tal conceito será apresentado da forma pensada e externada por Bobbio (1992). Na segunda seção, far-se-á uma breve análise de como algumas das Constituições passadas dispunham sobre os direitos do homem, além de tratar sobre a visão que a Constituição Federal do Brasil de 1988 tem acerca do que são os Direitos Humanos, como ela os dispõe em seu texto, bem como quais destes direitos nossa Carta Magna assegura. Na terceira e última seção do capítulo será tratada a questão do sistema carcerário brasileiro e suas afrontas aos direitos humanos positivados e assegurados pela nossa Constituição e totalmente desrespeitados dentro do âmbito do sistema prisional do nosso país. 1.1. Análise conceitual Falar acerca dos direitos humanos requer que se adentre num campo muito amplo e abstrato, além do que se faz necessária uma análise da sua relação com o seu destinatário, o próprio homem. Tendo em vista toda esta abstração acima mencionada, o 14 presente trabalho adotará as definições do filósofo político italiano, Norberto Bobbio (1992) acerca dos direitos humanos. Como dito, conceituar direitos humanos não é uma tarefa fácil e não se sabe sequer se é possível. Quanto às suas tentativas de definição, pode-se constatar que estas vêm sendo feitas de forma vaga e um tanto insatisfatórias. O próprio Bobbio (1992) define os direitos humanos sob diversas óticas, as quais devem ser consideradas: 1. tautológicas – estabelecem que direitos do homem são os que cabem ao homem enquanto homem. Não indicam qualquer elemento que os caracterize; 2. formais – desprovidas de conteúdo e meramente portadoras do estatuto proposto para esses direitos. Assim, direitos do homem são aqueles que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os homens, ou dos quais nenhum homem pode ser despojado; 3. teleológicas – embora tragam alguma menção ao conteúdo, pecam pela introdução de termos avaliativos, ao sabor da ideologia do intérprete, como “direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização etc.” (BOBBIO, 1992, p. 17). Assim, Bobbio (1992) tenta trazer definições acerca dos direitos humanos sob óticas diversas. A primeira tem uma visão tautológica e estabelece que os direitos do homem são aqueles que cabem ao homem enquanto homem, sem que se tenha nenhum elemento que os caracterize. A segunda, a visão formal, estabelece que os direitos humanos são aqueles que pertencem a todos os homens, bastando apenas a condição humana para se fazer uso e gozo de tais direitos, além disso, nenhum homem pode ser privado destes. A terceira visão é a teleológica, por ela entende-se que os direitos humanos são aqueles que sem eles não se pode haver um aperfeiçoamento da pessoa humana, eles são condições necessárias para que o ser humano se aprimore e consequentemente haja uma progressão da própria civilização. Apresentadas todas as visões que buscam dar uma definição do que são os direitos do homem, pode-se verificar que a definição que melhor se apresenta, para o autor e, portanto, para o presente trabalho, é a de que “direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização etc., etc.” (BOBBIO, 1992, p. 17). Fazendo-se uma análise histórica mundial, o que se pode afirmar é que os direitos humanos resultam de uma série de acontecimentos ao longo da história. Moraes (2000) entende que, talvez o código de Hamurabi, em 1690 antes de Cristo, tenha sido o primeiro código a dispor acerca dos direitos dos homens, tendo em vista nele conter normas atinentes à proteção da vida, honra, dignidade etc. Porém, só foi na Idade Média que diversos documentos de cunho jurídico reconheceram a existência dos direitos do 15 homem. As Declarações de Direitos Humanos Fundamentais se desenvolveram fortemente entre os séculos XVII e XX. Segundo Moraes (2000), a Inglaterra é pioneira quanto à positivação dos direitos humanos, tendo como históricos importantes a Magna Carta Libertatum, de 1215, a Petition of Right, de 1689, e o Act of Seattlemente de 1701. Posteriormente, com a Revolução dos Estados Unidos da América, passam a ter destaque a Declaração de Direito da Virgínia e a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, ambas em 1776. Há de se observar a importância da Declaração de Independência dos Estados Unidos. Siqueira e Piccirillo (2011) destacam o singular valor histórico desta Declaração que teve como principal fator o limite ao poder estatal, destacando ainda a igualdade entre os homens perante Deus e que este lhes teria conferido direitos que nenhum poder político pudesse lhes retirar, direitos como a vida, liberdade e a busca da felicidade, dentre outros. A Declaração trazia também relatos de diversos abusos cometidos pelo Rei da Inglaterra, como sendo um dos motivos pelos quais houve a separação política.Posteriormente, veio a Constituição dos Estados Unidos de 1787, cuja pretensão era a limitação dos poderes estatais e a proteção dos Direitos Humanos Fundamentais. Ulteriormente, na França, exatamente em 26 de agosto de 1789, foi promulgada a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, a partir daí, passou-se por um período de maior efetivação dos direitos fundamentais. Outro marco histórico que ajudou no aperfeiçoamento dos direitos humanos foi o acontecimento da Segunda Guerra Mundial, isto porque foi a partir daí que surge o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Borges (2006) afirma que a internacionalização dos direitos humanos é algo extremamente recente, surgindo apenas a partir do pós-guerra respondendo às atrocidades do nazismo acontecidas nesta. A autora deixa claro que a Segunda Guerra mundial significou um grande rompimento com os direitos do homem até então já reconhecidos, no entanto, o pós-guerra veio significar a sua reorganização. Assim afirma Borges: Ao emergir da segunda guerra mundial, após três lustros de massacres e atrocidades, iniciado com o fortalecimento do totalitarismo estatal dos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da História, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da 16 sabedoria grega, veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos (BORGES, 2006, online). No pós-guerra, devido a todos os massacres sofridos, a humanidade passa a entender o valor da dignidade humana, que ela deve ser preservada e para isso o respeito e a proteção aos direitos humanos devem ser preservados acima de qualquer outro interesse. O ser humano e sua dignidade é mais importante do que qualquer outro interesse que possa vir a entrar em conflito. Contudo, o fim da Segunda Guerra Mundial não foi suficiente para o fortalecimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, este passou realmente a ser significativo com a Carta das Nações Unidas de 1945 e destaque na esfera internacional. Importante ressaltar que na concepção de Bobbio (1992), os direitos humanos são conquistas históricas, isto é, têm natureza histórica e se afirmaram em quatro gerações. Assim afirma Franca: Os direitos pertencentes à primeira geração referem-se aos direitos fundamentais do homem, afirmados nas lutas contra os governos absolutos e arbitrários, tendo por escopo limitar a atuação estatal em vista da preservação de direitos como a vida, a liberdade e a igualdade. Os ditos de segunda geração por sua vez decorrem das lutas de classes, das conquistas da classe operaria no século XIX, em vista da afirmação de que o Estado deve não apenas se omitir em praticar atos lesivos a esfera de direitos humanos, mas também promover e salvaguardar situações de direitos humanos relacionadas a vida digna: trabalho, educação, saúde, moradia, dentre outros. Assim, enquanto os direitos de primeira geração se apresentam como direitos negativos (posto que são limites ao Estado), os direitos de segunda geração são positivos, na medida em que exigem ações concretas para a promoção da dignidade humana. A partir do século XX, segundo Bobbio, surge uma terceira geração de direitos, que abrange a preservação do meio ambiente e do consumidor, numa clara preocupação com a manutenção da vida na Terra. Por fim, Bobbio nos fala de uma quarta geração, que compreenderia direitos ligados à vida como elemento político: a proteção do patrimônio genético, a preocupação com a bioética, dentre outros (FRANCA, 2009, online). Na primeira geração estão presentes os direitos ditos individuais. Tais direitos consideram os sujeitos abstratamente, além de impor uma igualdade formal perante a lei entre todos os homens. No intuito de limitar o poder estatal, estes direitos advieram de lutas travadas contra governos absolutistas e por maioria arbitrários e visam à preservação da vida, liberdade e igualdade. São direitos de cunho negativo, tendo em vista que impõem limites ao Estado, exigindo deste apenas o respeito aos direitos do homem. 17 Na segunda geração de direitos, estão presentes os chamados direitos coletivos. Estes, por sua vez, decorrem da luta entre classes e, sobretudo, são conquistas da classe operária no século XIX. Aqui, o Estado além de, por obrigação, ter que respeitar os direitos humanos de primeira geração, ainda deve promover a dignidade da vida de todos os homens, para isso deve fornecer trabalho digno, educação, saúde etc. São direitos positivos que exigem do Estado medidas que promovam a dignidade humana. Os de terceira geração são dos direitos dos povos ou os direitos de solidariedade. Surgidos no século XX, tais direitos são chamados de transindividuais ou coletivos e difusos, neles verifica-se uma constante preocupação com a manutenção da vida na terra, tendo em vista que trazem a questão ecológica, visando proteger o meio ambiente. É nesta geração, também, que se busca a proteção dos consumidores. Tal direito é categorial, pois protege uma categoria social que é o consumidor, este, por sua vez, é a parte mais fraca na relação de consumo, estando no outro polo desta relação o fornecedor, produtor, comerciante etc. O direito do consumidor é considerado difuso, uma vez que protege uma categoria social tão ampla que chega a ser praticamente toda a sociedade. Finalmente, na quarta geração de direitos humanos, Bobbio apresenta uma geração que compreende direitos relacionados à vida como elemento político, são os chamados direitos de manipulação genética. São direitos ligados à biotecnologia e bioengenharia, a proteção do patrimônio genético, além de tratar da bioética, ou seja, traz discussões acerca da vida e da morte que requerem um debate ético prévio. Se faz mister mencionar que Bobbio (1992) ainda traz como requisito essencial e indispensável para o respeito aos Direitos Humanos o regime democrático. Sim, para o filósofo italiano só se é possível o respeito aos direitos do homem nos países democráticos, sendo por tanto, direitos humanos e democracia intimamente ligados. Após todas estas definições, o autor inicia uma teoria acerca da historicidade dos direitos humanos, afirmando que todas as gerações se somam ao longo da história e trazem para o homem novas necessidades e também novos desafios. As gerações de direitos são, então, retratos dos avanços sociais no campo da moral e da tecnologia que se expandem constantemente. Por tais razões é que Bobbio (1992) tem nas Revoluções da história os principais marcos dos direitos do homem, já que são nas revoluções que acontecem as principais mudanças, rupturas, se apresentam novos elementos para se fazer a composição do que entendemos por dignidade humana, por isso que surgiram outras gerações de direitos, 18 não mais para salvaguardar a vida, igualdade e liberdade, mas para salvaguardar também a dignidade humana em suas diversas dimensões. Contudo, Bobbio(1992) afirma que o principal desafio em face dos direitos humanos não é mais afirma-los ou protege-los, mas, sobretudo, torna-los efetivos. Efetivar os direitos humanos é fazer com que eles sejam cumpridos tal qual estão dispostos, é torná-los eficazes. Pois, somente a afirmação não é suficiente para que tais direitos sejam colocados em prática. É uma questão política, em que não cumpre apenas ao Estado, mas a toda esfera social e ainda a todo o direito internacional. É dever de todo cidadão engajar-se politicamente, com vistas a afirmar e praticar ações para a realização daquilo que se entende indispensável à condição humana. Isto é, tornar os direitos humanosmais que um discurso, torna-los ações. E a discussão do presente trabalho também englobará essa questão, a audiência de custódia é um mecanismo suficiente para a efetivação dos direitos humanos no que tange a questão prisional no Brasil? Além de ser titular de tais direitos, o homem passa agora a ser responsável também por sua realização, a partir dos direitos do homem não se admite mais legalidades que acobertem crimes, nenhum Poder pode estar acima da justiça e da dignidade da pessoa humana. 1.2. Visão Constitucional Pátria Inicialmente serão analisadas algumas das Constituições brasileiras anteriores a de 1988 para se verificar o que estas Constituições dispunham acerca dos direitos do homem. Todas as informações constitucionais serão aqui expostas segundo o respeitável doutrinador Alexandre de Moraes. A começar pela Constituição Imperial de 1824, a qual foi a primeira Constituição brasileira e foi outorgada pelo imperador Dom Pedro II. Segundo Moraes (2000), tal Carta Magna instituiu uma unidade nacional com províncias autônomas e dispôs acerca da garantia dos Direitos Fundamentais, a fim de se adequar à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Ainda de acordo com Moraes (2000), a segunda Constituição brasileira, promulgada em 1891, transformou o Estado, até então unitário, em um Estado federativo, mantendo também a garantia aos direitos fundamentais e individuais, no 19 entanto sem nenhuma política de efetivação destes direitos, isto é, os direitos humanos estavam previstos apenas no papel, sem que houvesse políticas para que fossem postos em prática. A terceira Constituição foi a de 1934, já sob o governo de Getúlio Vargas. Tal Carta Magna consignou e instituiu diversos direitos como o direito ao voto das mulheres e, sobretudo, a criação de diversos direitos na seara trabalhista que mais tarde seriam compilados em um único documento, qual seja: A Consolidação das Leis do Trabalho, vigente até os dias atuais. Assim, a referida Constituição trouxe importantes avanços no que tange aos direitos humanos. A Constituição de 1937, por sua vez, também foi instituída sob o comando de Getúlio Vargas, outorgada pelo mesmo, trouxe diversas mudanças para o cenário brasileiro já que representava um golpe de Estado e a instituição de uma ditadura. Dentre as diversas mudanças, esta Magna-Carta modificou a forma de Estado, voltando o país a ser um Estado unitário, além de suprimir o federalismo, a relação dos poderes, dissolveu o Congresso Nacional e extinguiu os partidos políticos. A democracia desapareceu e alguns dos principais direitos e garantias fundamentais também, como a liberdade de imprensa e o direito a livre associação. Como se pode ver, um retrocesso às conquistas dos direitos humanos. Após a ditadura imposta por Getúlio Vargas, o país passa por um processo de retomada a democracia e respeito aos Direitos Humanos, isso acontece com a Constituição de 1946. Porém, em 1954 o país passa por outro período de ditadura, desta vez uma ditadura militar. Novamente os direitos e garantias individuais são suprimidos. Em 1967 é instituída uma nova Constituição, nos moldes da Magna-carta de 1937. Ampliou-se os poderes da União e do Presidente da República e novamente os direitos e garantias individuais são suprimidos. Importante mencionar ainda a Emenda de 1969, que verdadeiramente surgiu com uma nova Constituição já que alterou substancialmente a de 1967, tal emenda suprimiu ainda mais os direitos humanos e a partir dela a ditadura militar fica ainda pior, com maiores abusos ao ser humano. Contudo, com a promulgação da Constituição de 1988, no dia 05 de outubro do mesmo ano, os direitos e garantias fundamentais voltam a ser protegidos e de forma ampliada. A Constituição cidadã, como é conhecida a atual Lei Maior do nosso país, ampliou consideravelmente o rol de direitos e garantias individuais, além de elevá-los a cláusula pétrea, isto é, a lei brasileira passou a respeitar, de forma nunca vista anteriormente, aos Direitos Humanos. 20 Como mencionado anteriormente, A Constituição Federal de 1988 veio institucionalizar a inauguração de um regime político democrático no nosso país, bem como proporcionar um avanço legislativo no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais. A atual Carta Magna é bastante avançada no que tange aos direitos sociais e civis, além de proteger, conscientemente, os direitos políticos democráticos frente a qualquer interferência autoritária. Com a atual Constituição, os Direitos Humanos funcionam também como um limite aos representantes escolhidos pelo povo. Assim afirma Alexandre de Moraes: “o poder delegado pelo povo a seus representantes não é absoluto, conhecendo várias limitações, inclusive com a previsão de direitos e garantias individuais e coletivas do cidadão relativamente aos demais cidadãos e ao próprio Estado” (MORAES, 2000, p.25). Ainda pode-se mencionar que, dentre os fundamentos que alicerçam do Estado democrático de direito brasileiro, destacam-se o direito da dignidade da pessoa humana e a cidadania. Ao considerar e compreender a Constituição como unidade sistemática que seleciona determinados valores sociais, pode-se dizer que a Constituição Federal de 1988 elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como sendo um valor essencial para nossa nação. Também mencionado anteriormente, a Magna-Carta de 1988 elevou os direitos e garantias fundamentais ao status de cláusula pétrea1, demonstrando a sua vontade de priorizar os direitos humanos. As Constituições anteriores tratavam primeiramente do Estado e só depois dos direitos, outra diferença é que tinham o status de cláusula pétrea somente as questões afetas ao Estado e não aos direitos, assim demonstrava-se uma legislação inspirada totalmente pela ótica do Estado. Já com a Constituição de 1988 essa visão passa a ser a da cidadania, radicada nos direitos humanos do cidadão. Ao romper com a sistemática das Cartas anteriores, a Constituição de 1988, ineditamente, consagra o primado do respeito aos direitos humanos, como paradigma propugnado para a ordem internacional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica interna ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos. A partir do momento em que o Brasil se propõe a fundamentar suas relações internacionais com base na prevalência dos direitos humanos, está ao mesmo tempo reconhecendo a existência de limites e condicionamentos à noção de soberania estatal, do modo pelo qual tem sido 1 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. 21 tradicionalmente concebida. Isto é, a soberania do Estado brasileiro fica submetida a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos. Surge, pois, a necessidade de interpretar os antigos conceitos de soberania nacional e não-intervenção à luz de princípios inovadores da ordem constitucional; dentre eles, destaque-se o princípio da prevalência dos direitos humanos. Esses são os novos valores incorporados pelo Texto de 1988 e que compõe a tônica do constitucionalismo contemporâneo (PIOVESAN, 2010, p. 342). Sendo assim, constata-se que foi uma inovação da atual Constituição elevar o respeito aos direitos humanos, isto porque a partir de então, toda a ordem interna do país passa a formar-se de acordo com osregramentos internacionais de direitos humanos e de certa forma estes passam a constituir um limite para a soberania estatal. As relações de direito internacional também são fundamentadas a partir das regras de direitos humanos, enfim, com a Lei Maior de 1988, o respeito aos direitos do homem se consagra como o fundamento de toda a legislação nacional e internacional de que o Brasil participe. Outra inovação trazida pela atual Constituição foi o aumento na dimensão dos direitos e garantias, pois além de assegurar os direitos políticos e civis, passa-se a assegurar também os direitos sociais. É a primeira vez que se insere no texto de uma Constituição brasileira os direitos sociais, uma vez que nas outras Constituições estes direitos se espalhavam no âmbito da ordem econômica e social. Além disso, é a primeira vez também que, sobre qualquer lei nacional, prevalecem os direitos humanos2. Da mesma forma, a nossa atual Carta Magna prevê direitos pertencentes a praticamente todas aquelas gerações elencadas por Bobbio (1992), uma vez que assegura além dos direitos individuais, os coletivos e os difusos. Importante destacar que os direitos coletivos são aqueles que pertencem à determinada categoria ou classe social enquanto que os difusos são os direitos pertencentes a todos e a cada um enquanto individuo. Assim dispõe Flávia Piovesan: A Carta de 1988, ao mesmo tempo que consolida a extensão de titularidade de direitos, acenando para a existência de novos sujeitos de direitos, também consolida o aumento da quantidade de bens merecedores de tutela, por meio da ampliação de direitos sociais, econômicos e culturais” (PIOVESAN, 2010, p. 34). 2 Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. (CONSTITUIÇÃO, 1988, online) 22 Desta forma, além de conferir um aumento na titularidade de direitos, refletindo novos sujeitos de direito, a nossa Carta Magna também expande a quantidade de bens merecedores de tutela, por meio dos direitos sociais, econômicos e culturais. Além disso, pode-se dizer que os direitos e garantias fundamentais, com a atual Constituição, passam a ter uma força expansiva, tendo em vista que se projeta por toda a seara constitucional e serve de parâmetro de interpretação para todo o ordenamento jurídico brasileiro. Vale lembrar que doutrinariamente existe uma diferença na conceituação entre direitos e garantias fundamentais. Para Alexandre de Moraes (2000) a diferença entre estes dois institutos pode ser definida remontando a Rui Barbosa, que separou as disposições meramente declaratórias das disposições assecuratórias. As primeiras atribuem existência legal aos direitos reconhecidos, são as que instituem os direitos, já as segundas são as que, na defesa dos direitos, quando desrespeitados, procuram sanar tal desrespeito de forma a limitar o poder. Importante ressaltar que no Brasil há uma discussão entre os juristas acerca do valor constitucional que possuem as normas de direito internacional de direitos humanos. A discussão gira em torno da hierarquia que essas normas possuem no ordenamento jurídico nacional. Para a Constituição Federal, os tratados internacionais possuem força hierárquica infraconstitucional, de acordo com seu artigo 102, III, b. No entanto, os tratados internacionais de direitos humanos têm força e natureza constitucional, isso porque a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, atribui essa prerrogativa aos tratados internacionais atinentes aos direitos do homem. Nas palavras de Ricardo Castilho: Para o Brasil os tratados internacionais de direitos humanos são equiparados às normas constitucionais apenas se obtiverem votação de três quintos dos deputados e senadores para incorporação ao direito interno. Em geral, os tratados valem mais do que as leis ordinárias e menos que as normas constitucionais (CASTILHO, 2011, p. 77). E conclui: Os tratados de direitos humanos podem ser incorporados no direito interno de três maneiras: I) no nível de Emenda Constitucional, conforme o § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004; II) no nível de norma constitucional, autorizada pelo voto do ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário 466.343; III) no nível supralegal, abaixo da Constituição Federal, mas acima das leis, conforme o voto do ministro Gilmar Mendes no mesmo processo (CASTILHO, 2011, p. 82-83). 23 Já está mais que demonstrado que a nossa atual Constituição possui suas bases nos princípios assegurados pelos direitos humanos e todo seu sistema jurídico internacional. Entretanto, é de suma importância que o presente trabalho se atente de forma especial para um dos princípios mais fundamentais de todos seres humanos, que é o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Nada mais justo que encerrarmos a presente seção falando acerca da dignidade da pessoa humana. Definir o que seria a dignidade da pessoa humana ainda não se mostra uma tarefa fácil, principalmente por ser algo muito abstrato. Porém, é importante deixar claro o significado do que vem a ser dignidade da pessoa humana. Para Alexandre de Moraes (2000, p. 60), A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. Como se pode observar no pensamento de Alexandre de Moraes, a dignidade da pessoa humana é valor inerente a cada pessoa, que deve ser um mínimo que toda norma deve não só respeitar, mas firmá-la e assegurá-la. Toda pessoa, pelo simples fato de ser humana, deve ser sempre tratada com respeito, seja em qualquer situação econômica, social, cultural, religiosa etc. 1.3. O problema carcerário e a sua afronta aos direitos humanos No Brasil, muito comum é a veiculação de notícias acerca da precariedade do sistema carcerário. Problemas como a superlotação dos presídios é uma realidade brasileira, no entanto, tal problema já perdura por mais tempo do que se pode imaginar. Desde sua gênese o sistema prisional, sobretudo o brasileiro, enfrenta diversos problemas que afrontam diretamente os direitos do ser humano, mesmo quando tais direitos ainda nem eram assegurados. Em breve análise histórica acerca do sistema carcerário brasileiro, constatou-se que até o século XVIII, o direito penal tinha como marca a utilização de penas cruéis e 24 desumanas onde sequer existia a possibilidade da privação de liberdade ser uma forma de punição. Ao invés da privação de liberdade ser a pena fim, era considerada uma forma de custódia, ou seja, uma forma de garantir que o acusado não iria fugir. Assim,o acusado aguardava seu julgamento em cárcere, mas este não seria considerado sua punição final. Apenas em meados do século XVIII é que a privação de liberdade foi considerada uma forma de punição para o direito penal da época. No Brasil, até o ano de 1830, não se tinha código penal próprio, pois ainda era colônia de Portugal. As penas aplicadas eram a de morte, penas corporais, confisco de bens, humilhações públicas etc. Como dito, não havia a previsão da privação de liberdade, uma vez que o Brasil adotava as Ordenações Filipinas do século XVII como ordenamento jurídico penal e os movimentos reformistas penitenciários só vieram acontecer no final do século XVIII. Apenas em 1824, com sua própria Constituição é que o Brasil começa a reformar o ordenamento punitivo, não sendo mais utilizáveis as penas de açoite, tortura e outras penas cruéis, determinando que as cadeias devessem ser seguras, limpas e arejadas. Como visto anteriormente, passou-se a respeitar mais os direitos do homem, mas não em sua plenitude, uma vez que os escravos ainda estavam sujeitos às penas cruéis. Após análise histórica, importante mencionar qual o sentido da pena, isto é, com que finalidade a pena é aplicada àqueles que infringem o sistema de normas. Hodiernamente, no sistema punitivo brasileiro, a pena possui uma natureza mista que é a retributiva e a preventiva, mas tudo respeitando os direitos humanos trazidos pelos tratados de direitos internacionais e os direitos e garantias fundamentais dispostos pela Constituição Federal de 1988. Pela finalidade retributiva, a pena vem a significar uma punição ao infrator pelo descumprimento de uma norma penal. Já a finalidade preventiva visa a coibir a prática de novas infrações penais. Podem-se identificar tais finalidades no artigo 593 do Código Penal brasileiro, que trata acerca da fixação da pena privativa de liberdade. Vejamos o que assevera Capez (2011, p. 385): 3 Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. 25 1- teoria da retribuição ou absoluta: consiste em uma punição pelo desrespeito a um bem jurídico, devendo ser proporcional ao crime praticado. Está prevista no CP no art. 59, que faz referência a necessidade e suficiência. 2- teoria da prevenção ou relativa: Tem por objetivo coibir ou evitar a prática de novos delitos. A pena é vista como um instrumento para prevenir as futuras infrações penais. Podendo ser especial objetivando a readaptação do criminoso, como forma de impedi-lo de voltar a delinquir. Sendo geral quando visa incutir no ambiente social uma intimidação para as pessoas não delinquirem por medo de receber uma punição. 3- teoria mista: A pena tem a dupla função de punir o criminoso e prevenir a prática de crimes. Assim, na visão de Fernando Capez existem três teorias que explicam a natureza e objetivo da pena. A primeira diz respeito à teoria da retribuição em que a pena consiste em uma sanção pelo desrespeito a uma norma jurídica e deve ser proporcional ao delito praticado. A segunda teoria diz respeito à finalidade de prevenção da pena. Por ela, a pena é tida como instrumento que possa coibir futuras infrações penais. A terceira e última teoria é a mista, por ela a pena possui as duas finalidades anteriormente apresentadas, isto é, possui a finalidade retributiva e preventiva. Esta última é a adotada pelo sistema punitivo brasileiro. Cumpre destacar, ainda, as funções do nosso sistema prisional. Pode-se afirmar que a principal função das unidades prisionais é justamente resgatar o criminoso e mantê-lo fora da sociedade por um tempo razoável, até que o mesmo se recupere e possa ser reinserido no meio social. Entretanto, na praticidade não é bem isso que acontece, uma vez que a teoria não está sendo concretizada na realidade vivida. Portanto, pode-se dizer que o sistema prisional brasileiro encontra-se defasado em todos os seus aspectos, desde o administrativo até o judicial, causado aparentemente por falta de compromisso do próprio Estado ou até mesmo dos outros órgãos, tendo em vista não haver disposição por parte destes na hora de cumprir as leis e superar os problemas existentes no sistema carcerário. Neste sentido, nota-se que alguns direitos básicos inerentes aos presos não estão sendo observados, a exemplo da alimentação adequada, da assistência social e médica, entre outros direitos que também estão sendo violados, torando-se quase que inviável a ressocialização dos detentos. Segundo Assis (2007), um dos principais fatores que degradam o sistema carcerário é justamente a superlotação, uma vez que os presos são submetidos a situações desumanas, degradantes, chegando a serem tratados como animais presos em jaulas, não havendo o que se falar em observância aos direitos e garantias fundamentais nem, tampouco, aos direitos humanos. 26 Assim, além da superlotação dos presídios, as condições a que os presos estão expostos podem acometê-los de enfermidade incuráveis, e aquelas doenças até então consideradas leves podem se agravar diante do não tratamento adequado. Senão vejamos nas palavras de Assis (2007, online): A superlotação das celas, sua precariedade e sua insalubridade tornam as prisões um ambiente favorável à propagação de epidemias e ao contágio de doenças. Todos esses fatores estruturais aliados ainda à má alimentação dos presos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a falta de higiene e toda a lugubridade da prisão, fazem com que um preso que adentrou lá numa condição sadia, de lá não saia sem ser acometido de uma doença ou com sua resistência física e saúde fragilizadas. Alguém que permanece por algum tempo nas condições expostas no fragmento acima certamente fica com sua saúde debilitada. Além das doenças supracitadas, tem-se uma junção de fatores que ao invés de reinserir o preso à sociedade, faz é afastar qualquer possibilidade de reinserção, como a falta de fiscalização por parte da polícia e dos agentes penitenciários, permitindo-se assim que os presos usem drogas dentro da unidade prisional, a falta de estrutura que possibilite a implantação de programas educativos cuja finalidade seja coloca-lo novamente na sociedade. Como visto anteriormente, diversos são os direitos e garantias que o homem possui, tanto no ordenamento jurídico internacional, com a proteção aos direitos humanos quanto na legislação nacional, com a concessão dos direitos e garantias fundamentais. Esses direitos são fruto de toda uma evolução histórica que vê nos direitos humanos uma condição necessária para a existência do homem e o aperfeiçoamento da civilização. A Constituição Federal dispõe cerca de 32 incisos em seu artigo 5º, sobre a proteção aos direitos e garantias do preso, além da Lei de Execução Penal que dispõe em seu artigo 414, incisos I a XV, acerca dos direitos infraconstitucionais assegurados 4 Art. 41 - Constituem direitos do preso: I - alimentação suficiente e vestuário; II - atribuição de trabalho e sua remuneração; III - Previdência Social; IV - constituição de pecúlio; V - proporcionalidade na distribuiçãodo tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado; X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI - chamamento nominal; XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária 27 ao sentenciado no decorrer da execução penal. No entanto, a realidade dos nossos presídios não permite que tais direitos sejam respeitados. Isso vem a corroborar com o que já dizia Norberto Bobbio, de que os direitos humanos já estão assegurados nos ordenamentos jurídicos internacionais e nacionais nos casos de países democráticos, porém ainda não estão plenamente efetivados. Como destaca Balestreri (2004), que, na prática, é muito comum a inobservância das garantias legais dos presos no momento da execução da pena. Não é rara a incidência de abusos e agressões cometidas pelos próprios presos e a falta de punição, talvez, incite-os a essas práticas. Menos raro são os casos de agressões feitas pelo próprio Estado, nas pessoas de seus agentes penitenciários e policiais, no ato da prisão e também na ocorrência de rebeliões e tentativas de fuga. Exemplo histórico do que aqui estamos falando foi o episódio conhecido como o “Massacre do Carandiru”, ocorrido em São Paulo em 1992, onde 111 presos foram executados, conforme menciona Assis (2007). Fatos como este acontecem muitas vezes devido a falta de qualificação e preparo dos agentes de polícia, que por vezes agem mediante excesso de violência e abuso de autoridade. Há de se falar ainda que, mesmo passados séculos, o sistema carcerário brasileiro ainda possui problemas surgidos desde sua gênese, isto é, não houve grandes evoluções mesmo com a exigência do respeito aos direitos humanos. É o que nos dizem Bruno Morais di Santis e Werner ENGBRUCH: As penitenciárias do Brasil ainda eram precárias. Por isso, em 1828, a Lei Imperial determina que uma comissão visite prisões civis, militares e eclesiásticas para informar do seu estado e melhoramentos necessários. Esse trabalho resultou em relatórios de suma importância para a questão prisional do país, mostrando a realidade lastimável desses estabelecimentos. O primeiro relatório da cidade de São Paulo, datado em abril de 1829, já tratava de problemas que ainda hoje existem, como falta de espaço para os presos e a convivência entre condenados e aqueles que ainda aguardavam julgamento (...) Existia um grande abismo entre o que era previsto em lei com a realidade carcerária. No ano de 1906, por exemplo, foram condenados 976 presos no estado de São Paulo à prisão celular, mas existiam apenas 160 vagas, portanto 816 presos (90,3%) cumpriam pena em condições diversas àquela prevista no Código Penal vigente (SANTIS; ENGBRUCH, 2016, online). Por fim, pode-se notar que alguns dos problemas do sistema prisional brasileiro de hoje, data desde o seu início. Problemas estruturais como a falta de espaço para competente. Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento. 28 muitos presos e a convivência entre os presos já julgados e os que ainda aguardam julgamento não surgiram só agora, mas já era algo preocupante há tempos atrás e que desrespeitam os direitos do homem que foram conquistados a muito custo, os direitos e garantias fundamentais os quais assegura a Constituição de 1988 e desrespeita, sobretudo, o princípio da dignidade humana, já que o tratamento para com o preso, na maioria das vezes, não é feito como nossas normas asseguram. 29 2. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL O presente capítulo tem por objetivo trazer discussões acerca da chamada Audiência de Custódia. Aqui traremos o seu conceito, seus propósitos, seu procedimento, como se deu a imposição de sua realização, bem como a fundamentação jurídica que dá base a este projeto que foi implantado há pouco tempo e, portanto, tem recente aplicação no processo penal brasileiro. Hoje, o Código de Processo Penal brasileiro, em seu artigo 306, prevê que quando uma pessoa for presa em flagrante, os documentos policiais referentes a esta prisão serão encaminhados, em até 24 (vinte e quatro) horas, a um juiz. Ocorre que com a audiência de Custódia, não só os documentos policiais serão encaminhados, mas a própria pessoa presa será apresentada ao juiz, no mesmo prazo, para os fins a que esta se destina, como veremos adiante. Art. 306 - A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. § 1º Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. § 2º No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas (BRASIL, 1941). Segundo CANINEU (2014), alguns países da América Latina já apresentam o preso a uma autoridade judicial em prazos semelhantes ao aplicado na audiência de custódia do Brasil. O Código de Processo Penal do Chile, por exemplo, dispõe que, em casos de prisão em flagrante, o suspeito deve ser apresentado em até 12 (doze) horas a um promotor, caso este entenda pela soltura daquele, ele poderá fazer, no entanto, se entender pela necessidade da manutenção do flagrante, deve apresentar o suspeito a um juiz, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas da prisão. Já o Código de Processo Penal Federal da Argentina, dispõe que, nos casos de prisão sem uma ordem judicial, o suspeito deve ser apresentado a uma autoridade judicial competente, no prazo de 6 (seis) horas contadas do momento da prisão. No México, os flagranteados são entregues de imediato aos promotores e estes podem liberá-los, se assim entender possível ou apresenta-los prante um juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, isso na maioria dos tipos Penais. Na Colômbia é de 36 (trinta e seis) horas o prazo para o preso em flagrante ser levado a um Juiz. 30 A audiência de Custódia vem com o fito de introduzir uma oralidade ainda na fase preliminar, instalando uma lógica do contraditório e tornando o processo mais humano, pois, retira o caráter escrito e formal que aparece apenas nos papéis, além de efetivar a defesa real do imputado, já que aqui já existe um contato entre defesa e defendido, coisa que, pelo disposto no Código de Processo penal, não existia. A seguir, passa-se a analisar a forma como a audiência de custódia passou a ser uma determinação no sistema processual penalbrasileiro através de uma decisão judicial liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. 2.1 Audiência de Custódia e a ADPF 347 Como visto anteriormente, o problema carcerário brasileiro e sua afronta aos Direitos Humanos não é recente, já perdura desde o seu início. A omissão do Estado na garantia e preservação do princípio da dignidade daqueles que se encontram em situação de encarceramento revela, na verdade, a existência de um estado que a doutrina e a jurisprudência denominam de “estado de coisas inconstitucional”. Como se sabe, ao privar alguém de sua liberdade, o Estado passa a ser o garantidor dos demais direitos fundamentais que não foram limitados pelo encarceramento. Nesse sentido, pode-se analisar a orientação da Suprema Corte norte- americana no caso Brown vs. Plata: Ao encarcerar, a sociedade retira dos prisioneiros os meios necessários para que satisfaçam suas próprias necessidades. Prisioneiros são dependentes do Estado para comida, vestuário e o necessário cuidado médico. (...) Assim como um prisioneiro pode passar fome se não alimentado, ele pode morrer se não receber adequado tratamento médico. Uma prisão que priva os detentos do seu sustento básico, incluindo o adequado serviço médico, é incompatível como conceito de dignidade humana e não tem lugar numa sociedade civilizada. Se o Estado falha ao cumprir esta obrigação, as cortes têm a obrigação de remediar sua falha. De acordo com tal orientação, se ao detento a prisão importa em restrições a alguns de seus direitos, por outro lado, importa também em deveres para o Estado. Ou seja, o Estado deve garantir que a pessoa presa não seja submetida a tratamento desumano e degradante, deve fornecer comida, vestuário, medicamentos, serviços médicos etc. No entanto, o que temos visto no sistema prisional brasileiro não condiz com tal orientação, pelo contrário, o cenário é de total abandono. Por tais motivos, em 2015 o 31 Partido Socialismo e Liberdade – PSOL propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, onde requereu que o Supremo Tribunal Federal analisasse as violações ocorridas no sistema carcerário e determinasse a todos os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que tomassem uma série de medidas conjuntamente para que tais violações fossem cessadas. Tal ADPF adotou a tese central de que, na verdade, o que estaria acontecendo com o sistema carcerário brasileiro seria a existência de um estado de coisas inconstitucional, como já mencionado. O estado de coisas inconstitucional é uma tese que tem sua gênese no direito constitucional colombiano e através dela se reconhece uma série de violações aos direitos fundamentais de um número significativo de pessoas, ocorrendo, então, um “bloqueio institucional” na garantia dos direitos. Assim, para resolução de tais problemas, se faz imprescindível a adoção de medidas complexas e coordenadas, envolvendo diversos poderes e entidades, podendo o poder Judiciário, através da Corte Constitucional, impor ao Estado a adoção de medidas a serem tomadas e, posteriormente, o monitoramento do cumprimento efetivo das medidas tomadas. Para Carlos Alexandre de Azevedo Campos: O Estado de Coisas Inconstitucional se verifica quando há uma violação generalizada e sistemática de direito fundamentais, ocasionado pela omissão repetida das autoridades públicas em reverter esse quadro, gerando uma situação que somente através de um processo de transformação estrutural na atuação da Administração Pública pode corrigir essa condição inconstitucional (CAMPOS, 2015, online). Destarte, o estado de coisas inconstitucional se verifica quando as autoridades públicas se fazem omissas na resolução de um quadro de violação de direitos, ou seja, o Estado sabe que existe aquele estado de desrespeito à direitos fundamentais, no entanto permanece inerte sem nada fazer para mudar tal realidade. E para corrigir tal estado de inconstitucionalidade, a administração pública deve atuar na transformação da estrutura posta, tomando medidas que efetivamente sejam cumpridas. Não há na Constituição Federal nem em lei infraconstitucional brasileira qualquer tipo de previsão desse estado de coisas inconstitucional e, tendo em vista que confere à corte judiciária uma amplitude de poderes, só deve ser utilizada em casos excepcionais em que há uma geral afronta aos direitos humanos e que se faça necessária a intervenção da corte para solução do grave quadro enfrentado, fazendo com que esta assuma um papel atípico que envolva uma intervenção mais ampla nos demais poderes no que tange às políticas públicas, ou seja, a Suprema Corte Constitucional, em face da 32 inércia dos demais poderes que não agem para resolver o problema, age com uma postura de judicialização das políticas públicas. Ainda segundo Carlos Alexandre de Azevedo Campos, os pressupostos do estado de coisas inconstitucional são três: Em síntese, são três os pressupostos do Estado de Coisas Inconstitucional: A constatação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, e sim de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, que afeta a um número amplo de pessoas; A falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até judiciais, verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e agravamento da situação; A superação dessas violações de direitos exige a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma pluralidade destes — são necessárias mudanças estruturais, novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação de recursos etc. (CAMPOS, 2015, online). Desta forma, para que seja constatado um estado de coisas inconstitucional deve-se haver uma violação generalizada de direitos fundamentais, afetando um número extenso de pessoas; uma falha estatal estrutural que gera a violação do direito e a sua perpetuação ou agravamento e, por fim, que sejam tomadas uma série de medidas para que haja a superação de tal violação, desde mudanças estruturais, adoção de novas políticas públicas até a melhor alocação de recursos etc. Sabendo disso, a ADPF 347 enquadrou o sistema carcerário brasileiro como um estado de coisas inconstitucional havendo uma maciça violação dos direitos fundamentais dos presos, estes que formam uma população significativa, para não dizer alarmante e que, no entanto, o poder público se faz omisso quanto a tal problema. Por tais motivos, ainda segundo a inicial da ADPF citada, o Supremo Tribunal Federal deveria impor aos poderes do Estado que tomem medidas para a resolução do problema. Na inicial da citada ADPF, o proponente relata os problemas do sistema prisional brasileiro e aponta as reponsabilidades que cada Poder tem em relação a tais problemas, ou seja, o Estado estaria violando os direitos fundamentais dos presos através de todos os seus poderes. Em síntese, afirma que os recursos do Fundo Penitenciário (FUNPEN) vêm sendo contingenciados pela União Federal, isto é, o Poder Executivo não vem repassando valores relevantes do citando fundo aos Estados, o que, por certo, agrava a situação dos presídios já que não podem se utilizar de tais valores para obter melhorias para o sistema. 33 De acordo com informações obtidas pelo DEPEN, o saldo contábil do Fundo Penitenciário gira em torno de 2,2 bilhões. No entanto, em 2013, por exemplo, menos de 20% do orçamento autorizado do citado fundo foi efetivamente gasto. O Poder judiciário, segundo o proponente da ADPF, também possui sua parcela de responsabilidade já que,até então, não se aplicava às normas internacionais que já previam a audiência de custódia, sendo este, um instituto que poderia reduzir a grande quantidade das prisões. Outrossim, criticou-se o Poder Judiciário pela falta de fundamentação das decisões que deixavam de aplicar medidas cautelares alternativas à prisão. Já o Poder Legislativo teria sua parcela de responsabilidade no problema da superlotação do sistema carcerário no que tange às políticas criminais, já que na tentativa de se amenizar o sentimento de impunidade da sociedade, ao determinar um número elevado de prisões estar-se-ia agravando a superlotação do sistema prisional e não gerando a devida segurança da sociedade. Na citada ADPF existem diversos requerimentos de concessão de liminares, dentre elas pode-se citar a que pede a determinação de que os magistrados e tribunais sejam obrigados a motivar expressamente as razões que o impossibilitam aplicar medidas cautelares alternativas à prisão; passem a considerar, fundamentadamente, o quadro fático em que o sistema penitenciário brasileiro se encontra, no momento em que for aplicar a pena, no momento em que conceda cautelares penais e durante o processo de execução penal; a liberação de recursos destinados ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN); bem como reconheça a aplicabilidade direta de normas internacionais que determinam a realização de audiências de custódia. No mérito da ação, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 requer que o Supremo Tribunal Federal prolate uma determinação de que a União e, posteriormente, os estados da federação criem um plano que estabeleça medidas, preveja metas e prazos para sua implantação e reserve os recursos necessários para a implantação de tais medidas com vistas a resolver os problemas da superlotação do sistema prisional, a precariedade das suas instalações, a falta de treinamento dos agentes penitenciários, a falta de assistência, a falta de acesso à justiça, o número excessivo de prisões provisórias etc. Em setembro de 2015, em decisão monocrática, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento de liminar, concedeu parcialmente dois dos pedidos feitos na ADPF 347, quais sejam: A liberação, sem qualquer tipo de contingenciamento, do saldo acumulado 34 do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para ser utilizado nas suas finalidades e a implantação da realização de audiências de custódia. Assim, através da referida decisão, os juízes e tribunais estariam obrigados a realizarem audiências de custódia, com implantação no prazo de 90 dias, para que quando uma pessoa for presa em flagrante seja, em até 24 horas, levada à presença de um juiz para que este analise às condições em que se deu a prisão, se houve maus-tratos ou tortura, se há a necessidade de decretação de prisão preventiva ou se só a aplicação de medidas cautelas diversas da prisão são suficientes. As liminares concedidas pelo STF na ADPF 347 vão buscar tentar amenizar todos os problemas pelo quais passa nosso sistema penal, com essa concessão a Suprema Corte provoca os demais poderes a adotarem providências para cessar com tamanhas atrocidades que acontecem dentro dos nossos estabelecimentos prisionais, resta saber se tais medidas, sobretudo a implantação da audiência de custódia, estão sendo eficazes nesse sentido. 2.2 Conceito, Propósitos e Procedimento A palavra Custódia significa o ato ou efeito de proteger, guardar alguém ou algo. Na prática criminal, a audiência de custódia consiste na apresentação do preso, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a presença de um juiz ou autoridade judicial, onde fazem parte também o Ministério Público e a Defesa que estabelecem um contraditório, pugnando pela manutenção do encarceramento ou pela liberdade da pessoa presa. Diante deste contraditório, o juiz decidirá de imediato acerca da legalidade e a necessidade da manutenção da prisão, bem como se há indícios da prática da tortura ou dos maus tratos. De acordo com a página do Conselho Nacional de Justiça: O Projeto Audiência de Custódia consiste na criação de uma estrutura multidisciplinar nos Tribunais de Justiça que receberá presos em flagrante para uma primeira análise sobre o cabimento e a necessidade de manutenção dessa prisão ou a imposição de medidas alternativas ao cárcere, garantindo que presos em flagrante sejam apresentados a um Juiz de Direito, em 24 horas, no máximo (CNJ, 2016). Como se vê, a audiência de custódia tem por escopo garantir a integridade física do preso, analisando se houve tortura ou maus tratos quando do momento da prisão deste. Analisa-se também a legalidade da prisão, bem como apreciando questões referentes à vida da pessoa do flagranteado e se há necessidade da manutenção da 35 prisão, tudo isso em uma análise feita pela autoridade judicial, em audiência diante do Ministério Público, da Defesa e do próprio preso. Como percebido no decorrer do texto, o conceito dado à audiência de custódia tem uma relação direta com os propósitos, objetivos ou finalidades a que ela se propõe. Esses propósitos podem ser resumidos em: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil é signatário; Prevenir a tortura e os maus tratos policiais, salvaguardando os direitos humanos; evitar prisões ilegais, desnecessárias ou arbitrárias e, por fim, combater a superlotação do sistema prisional brasileiro. O instituto da audiência de custódia tem aplicação recente no processo penal brasileiro, no entanto já se encontrava previsto no ordenamento jurídico há muito tempo. Isso porque sua previsão normativa se encontra em Tratados Internacionais que o Brasil é signatário há anos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e o Pacto de São José da Costa Rica, que dispões em seu artigo 7.5 que: Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (CADH, 1969). E está prevista também no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) que prevê em seu artigo 9.3 que: Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade (...) (PIDCP, 1966). Assim, o propósito de ajustar o processo penal brasileiro aos tratados internacionais, só foi observado com uma certa demora pelo ordenamento brasileiro, uma vez que, como já mencionado, a audiência de custódia tem sua previsão nos tratados internacionais CADH e PIDCP que o Brasil é signatário desde o ano de 1992. No entanto, tal instituto só veio a ser discutido e posto em prática apenas recentemente. Como já dito, os tratados de direitos humanos podem ser incorporados no direito nacional de diferentes formas: podem ser incorporados com status de Emenda Constitucional, desde que passe por todo o processo de aprovação no legislativo. É exemplo de tratado de direitos humanos incorporado ao direito interno com status de 36 Emenda Constitucional a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que entrou em vigor no ano de 2009. Os tratados internacionais de direitos humanos podem, ainda, serem inseridos no ordenamento interno com caráter supralegal, isto é, podem ser inseridos no