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1 Como eu trato Parte 1 2 3 Agradecimentos À Administração do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, pelo apoio à iniciativa que permitiu a concretização deste projeto. À equipe da área de Marketing da Instituição, pelo empenho e dedicação em transformar uma ideia ambiciosa nesta completa e útil coletânea. E, especialmente, a todos os médicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas e outros profissionais do Hospital, pela boa vontade em compartilhar seus conhecimentos com a comunidade médica. 4 5 O início Os doutores Pedro Renato Chocair, diretor clínico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, e Vladimir Bernik, coordenador da Equipe de Psiquiatria da Instituição, discutiram a ideia e planejaram o “Como eu trato”, no princípio de abril de 2011. Graças à total colaboração do Corpo Clínico, Corpo de Enfermagem, departamento de Marketing e Comunicação, Diretoria Executiva e de outros profissionais de nosso Hospital, seis meses depois, em outubro, a primeira edição da obra está concluída e publicada com aproximadamente 250 textos produzidos. 6 10 Introdução 11 Prefácio 13 Alemanha e alemães: no mundo e na Nefrologia 20 Histórico do Hospital COMO EU TRATO A ALMA 21 Poesia: Esta vida 22 Poesia: Segunda Canção do Peregrino 23 Poesia: Cântico Negro 24 Os Flamboyants 26 Como eu trato a alma 28 O luto do contexto hospitalar 31 O imbricamento entre a clínica e o direito na questão da terminalidade 34 Reflexões sobre o morrer e o viver COMO EU TRATO bAsEAdO EM EvidênCiAs 39 Como eu trato baseado em evidências TEMAs AssisTEnCiAis 44 Assistência aos pacientes cirúrgicos com história de alergia ao látex 46 Atenção especial a pacientes submetidos a tratamentos antineoplásicos 48 Cuidado baseado no relacionamento - RBC (Relationship-Based Care) 50 Cuidados com nutrição enteral e parenteral 52 Gerontologia: reflexões sobre o processo de envelhecimento 54 Interação droga-nutriente 57 Síndrome metabólica 59 Úlcera por pressão (UP) AnATOMiA PATOLÓGiCA 62 Avaliação Histológica da Biópsia Hepática na Infecção pelo Vírus C 66 Biópsia estereotáxica do sistema nervoso central: a perspectiva do patologista 69 Exame colpocitológico 71 Linfonodos 74 PAAF de tireoide 77 Pólipos epiteliais serrilhados de intestino grosso 79 Pólipos inflamatórios e hamartomatosos de intestino grosso EXAMEs LAbORATORiAis 82 Corações, músculos e mentes: a saga da creatino-quinase 84 Auto-anticorpos contra peptídeo citrulinado cíclico (CCP) apresentam alta especificidade e sensibilidade para o diagnóstico de Artrite Reumatoide 87 Avaliação da dor abdominal aguda por métodos de imagem 90 Clostridium difficile 95 O BNP na insuficiência cardíaca 97 Proteína C-reativa ultrassensível na avaliação do risco cardiovascular 99 Síndrome mielodisplásica (SMD) no século XXI: diagnostico, classificação, prognóstico e novas opções terapêuticas MÉTOdOs diAGnÓsTiCOs 108 Cintilografia de perfusão miocárdica 110 Ecocardiografia transesofágica: indicações 113 Interpretação do FAN na prática do clínico não reumatologista 118 Líquor: aspectos de maior relevância 120 Monitorização ambulatorial da pressão arterial de 24 horas 124 O exame de polissonografia 126 Teste de inclinação ortostático (Tilt Test): indicações 129 Tratamento ablativo com iodo-131 em câncer diferenciado da tireoide 7 ACUPUnTURA 132 Acupuntura: principais indicações AnEsTEsiA 134 Avaliação pré-anestésica 138 Anestesia para cirurgia robótica 140 Dor pós-operatória 142 Via aérea difícil CARdiOLOGiA E dOEnÇAs CiRCULATÓRiAs 145 Orientação farmacêutica a pacientes em uso de Varfarina 147 Aneurismas da aorta torácica 151 Arritmias cardíacas 163 Arritmias cardíacas: quando indicar o uso de marcapasso 172 Aspirina na prevenção primária de doenças cardiovasculares 174 Crise hipertensiva 177 Dislipidemias 180 Dissecção aórtica 183 Edema agudo de pulmões 187 Estatinas: há alguma melhor do que a outra? 189 Estenose aórtica 193 Estenose da artéria renal 197 Estenose carotídea: como agir? 200 Filtro de Veia Cava 204 Hipertensão arterial 207 Insuficiência cardíaca congestiva 210 Insuficiência coronariana aguda: visão do cirurgião 212 Linfedema 218 Linfedema periférico 220 Medicamentos com possíveis efeitos adversos no sistema cardiovascular (SCV) 224 Microvarizes e Telangiectasias 228 Particularidades do coração feminino 231 Pericardite aguda 234 Pericardite aguda 238 Profilaxia de TVP 241 Quando indicar o uso do marcapasso definitivo? 244 Sincope 247 Síndromes coronarianas agudas: visão do clínico 252 Síndromes coronarianas agudas: visão do intervencionista 256 Tamponamento cardíaco 258 Taquicardias ventriculares 262 Tratamento percutâneo da estenose aórtica 265 Trombose venosa profunda 267 Úlceras de membros inferiores 270 Varizes CUidAdOs PALiATivOs 276 Conduta nutricional nos pacientes em cuidados paliativos 280 Cuidados paliativos dERMATOLOGiA 282 Alopecias 285 Anafilaxia – Critérios Diagnósticos e Tratamento 289 Eczemas 292 Feridas complexas: conceitos atuais e tratamento 295 Lúpus eritematoso cutâneo 299 Onicomicose 8 301 Psoríase 307 Tinea pedis e Tinea cruris 309 Urticária dOEnÇAs inFECCiOsAs E PARAsiTOsEs 313 Aids 316 Cancro mole 322 Citomegalia 324 Criptococose 326 Dengue 329 Endocardite infecciosa: visão do cardiologista 333 Endocardite infecciosa: visão do infectologista 337 Erisipela 338 Esquistossomose mansônica 340 Gonorreia 342 Gripe 344 Herpes simples 346 Herpes zoster 348 Meningites bacterianas 352 Moléstia de Hansen (MH) 363 Parasitoses intestinais 366 Parvovirose prolongada pós-transplante renal 373 Pneumonia por Pneumocystis jiroveci 375 Pneumonias hospitalares 378 Sarampo 380 Sífilis 383 Varicela EndOCRinOLOGiA 384 Crise addisoniana 387 Diabetes descompensado 389 Diabetes Mellitus tipo 1 391 Diabetes tipo 2 393 Hiperparatireoidismo 395 Manuseio dos nódulos tireoidianos 398 Pé Diabético 401 Perspectivas no tratamento da obesidade e da síndrome metabólica - visão do endocrinologista 405 Prevenção e Tratamento da Obesidade 412 Tireodites 414 Tratamento cirúrgico de doenças glândulas paratiroide 416 Tratamento cirúrgico de doenças glândula tireoide EndOsCOPiA 419 Colonoscopia 421 Ecoendoscopia digestiva na prática clínica: indicações e resultados 429 Ultrasonografia Endoscópica Terapêutica: um novo horizonte 437 Varizes hemorrágicas do esôfago FisiATRiA E FisiOTERAPiA 440 A importância da reabilitação precoce na recuperação do paciente com AVC 445 Como prevenir e atuar TVP: abordagem fisioterapêutica 447 Prevenção de atelectasias em paciente de alto risco 449 Reabilitação precoce em pacientes na Unidade de Terapia Intensiva 451 Utilização do modo ventilatório NAVA em pacientes sob ventilação mecânica invasiva 453 Ventilação não invasiva nas Unidades de Internação do HAOC 9 GAsTROEnTEROLOGiA 455 A cirurgia minimamente invasiva: laparoscopia, n.o.t.e.s, single port e robótica. Qual permanecerá? 460 Câncer do reto 463 Diverticulite aguda 466 Drenagem Biliar Eco-guiada: um novo horizonte 470 Hemorragia digestiva baixa 472 Cólica biliar 474 Hérnia inguinal encarcerada 476 Pancreatite aguda 479 Complicações de cirrose 484 Doença hepática gordurosa não alcóolica (DHGNA) 488 Gastroenterocolite aguda 493 Hepatites agudas 498 Hepatites crônicas 505 Tumores primários hepáticos 513 Diarreia crônica 517 Hemorragia digestiva alta 522 Câncer de esôfago 525 Doença do refluxo gastroesofágico 527 Câncer precoce no estômago 529 Síndrome Hepatorrenal (SHR) 531 Colecistite aguda 533 Hemorróidas 537 Soluços 539 Ascite e marcador ‘tumoral’ CA-125 541 Fecaloma 543 Colecistectomia no cirrótico 545 Herniorrafia abdominal em pacientes cirróticos 547 Ascite de difícil controle 549 Prática e benefícios da terapia nutricional enteral e parenteral hospitalar 10 IN T R O D U Ç Ã O | C o m o e ut ra to Introdução Esta obra, composta por mais de duas centenas de temas de interesse médico, foi elaborada pela livre e desinteressada colaboração de médicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas e outros profissionais, que pertencem ao Hospital Alemão Oswaldo Cruz, entidade reconhecida no País e no exterior pela qualidade dos serviços que presta e pela grandeza de seu Corpo Clínico. O conteúdo dos textos traz a experiência dos autores no tema que lhe foi indicado, evidentemente apoiada e sempre atualizada na literatura pertinente. O objetivo deste trabalho é o de colaborar com a classe médica, oferecendo uma fonte rápida de consulta que atualizaremos periodicamente. É a primeira publicação do material, que certamente será aprimorado nas próximas edições. Em hipótese alguma, destina-se a servir como orientação aos próprios pacientes ou estímulo à automedicação. Além de atender às necessidades dos profissionais, é nosso interesse contribuir com os estudantes e residentes de Medicina brasileiros, para que possam esclarecer eventuais dúvidas, acessando o “Como eu trato” no site da Instituição – www.hospitalalemao.org.br. A interação entre autores e leitores também poderá ser feita a qualquer momento por meio da Diretoria Clínica do Hospital (diretoriaclinica@haoc.com.br), que se encarregará de transmitir a mensagem ao autor. Nossa intenção é fazer a nossa parte para que a busca do conhecimento se aproxime do verdadeiro significado da palavra escola, originária do grego skhole, que significava “lazer”. Assim, acreditamos contribuir com toda a sociedade e demonstrar cada vez mais que, no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, tecnologia e carinho trabalham juntos. Pedro Renato Chocair Diretor Clínico PEdRO REnATO ChOCAiR diretor Clínico 11 Prefácio Em 2010, quando todos pensavam em produzir a revista “Visão Médica”, de alto nível e direcionada ao Corpo Clínico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, muitas ideias foram sugeridas e debatidas; umas refutadas, mas outras aproveitadas. Por exemplo, transmitir a experiência pessoal de profissionais competentes em suas áreas a outros que precisassem de orientações. Uma seção que deveria ser de fácil acesso, escrita de modo simples, didático, direto, conciso e atualizado. A ideia evoluiu e “Como eu trato” foi desenhada. Na edição de abril daquele ano, foi publicado o primeiro capítulo que abordou “parasitoses intestinais”. Impressa em papel de fundo com cor distinta das demais páginas da publicação e picotável, com o objetivo de ser recortada e colecionada para que, no futuro, pudesse formar um compêndio e, talvez, com o tempo, um livro. Era a ideia inicial. Uma ideia pequena, mas que deu muito certo. 2011: A idEiA EvOLUiU – “COMO EU TRATO” TRAz 245 CAPíTULOs Em 2011, aquela ideia pequena, torna-se um livro eletrônico de fácil acesso para auxiliar médicos que necessitam de apoio técnico e de orientação. A versão eletrônica de “Como eu trato” surgiu em abril desse ano e pensou- se em cem temas ligados à Medicina. No dia 12 de maio, a Diretoria Clínica circulou um e-mail, convidando renomados médicos do Corpo Clínico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz a participarem desse projeto, enviando seus textos e artigos de temas de seus conhecimentos e expertise. O objetivo era redigir mais do que um artigo científico repleto de citações e datas. Cada autor deveria passar a P R E F á C IO | C o m o e u t ra to Vladimir Bernik Coordenador da Equipe de Psiquiatria e colaborador da diretoria Clínica na elaboração do "Como eu trato" 12 P R E F á C IO | C o m o e u t ra to sua própria experiência pessoal sobre o assunto, a partir de anos de trabalho. Como cada vez mais a publicação contou com colaboradores, a obra se expandiu. Então, uma pergunta surgiu: porque só a Medicina? Isso porque a Medicina depende, para alcançar os seus êxitos, de uma ampla infraestrutura e de uma base legal. Sendo assim, abriram-se os horizontes e estenderam-se os campos para toda a área da saúde; da clínica aos exames subsidiários e suas interpretações; dos recursos básicos aos mais complexos; e de tecnologia de ponta, necessária ao sucesso dos tratamentos e, principalmente, a uma área do Hospital Alemão Oswaldo Cruz que é imbatível: a enfermagem. Dessa forma, também os principais temas da enfermagem foram considerados, como, por exemplo, os temas relacionados aos cuidados de apoio, como a fisioterapia. No mundo polêmico e conflitante de hoje, no qual interesses diferentes se cruzam, a Medicina também deve se apoiar em bases juridicamente estáveis e inquestionáveis. A contribuição do jurista foi imprescindível para assegurar a transparência e a legalidade dos procedimentos e dos atos médicos analisados do ponto de vista da bioética. A garantia para paciente e médico, com mútuas responsabilidades e deveres, estabeleceu-se nos “consentimentos” um acordo, gerando um contrato de prestação de serviços de saúde com vantagem para o paciente e também para o prestador de serviços. Um capítulo desta publicação foi todo dedicado a mostrar a interrelação entre o paciente e a prestação de serviço. A ideia era ampliada cada vez mais. Todos colaboravam escrevendo muito, de modo didático e em prazos antes considerados impossíveis de serem cumpridos, garantindo, assim, o sucesso do projeto. Em menos de três meses, com o fechamento do prazo de entrega dos trabalhos em final de julho deste ano, com a diagramação em andamento e a edição em fase de conclusão, o que seria considerado inviável tornou- se realidade. Para tal, a Diretoria Clínica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz mobilizou todo o seu corpo clínico, reunindo os profissionais mais experientes e em prazo recorde, recebendo dos colaboradores os originais completos para serem enviados para a elaboração da edição. Com a publicação, o Portal do Hospital Alemão Oswaldo Cruz ganhou um novo espaço de atualização em Medicina, na área de saúde, em diagnóstico e terapêutica, nos serviços de subsidiários necessários ao diagnóstico, nas áreas de apoio e nos aspectos éticos e legais. E para completar o projeto, serão distribuídos CDs com o conteúdo. A atualização, a renovação, a fácil acessibilidade e a leitura simples e didática, que apresenta a experiência de cada autor ainda indica algumas poucas, mas importantes fontes de referência cientificamente válidas para os textos elaborados, com a finalidade maior de servirem de apoio ao profissional da própria instituição, dos institutos de ensino, dos profissionais mais jovens e dos serviços de saúde oficiais de todo o país. 13 Alemanha e alemães: no mundo e na Nefrologia nO úLTiMO COnGREssO MUndiAL dE nEFROLOGiA, REALizAdO nO bRAsiL EM 2007, O COnhECidO E REsPEiTAdO nEFROLOGisTA iTALiAnO GiUsEPPE REMUzzi dissE EM UMA dE sUAs MAGníFiCAs PALEsTRAs: “sE vOCê PEnsA qUE dEsCObRiU ALGUMA COisA, PROCURE sAbER sE UM ALEMãO já nãO dEsCObRiU AnTEs”. Essas palavras me estimularam a procurar personagens de destaque da Medicina no povo germânico. Busca que me proporcionou fantásticas descobertas, muito além do mundo da ciência. Faço parte de uma geração catequizada para rejeitar tudo que viesse da Alemanha em função das terríveis histórias da II Guerra Mundial, do Holocausto e anos depois, da construção do muro de Berlim. Pouco a pouco os horrores da guerra foram sendo esquecidos, ou melhor, guardados em lugar seguro, e pudemos ver este país com outros olhos. As novas gerações já têm uma idéia completamente diferente e considero que a loucura de alguns não pode prejudicar a ótica que devemos ter de seus descendentes inocentes. A Alemanha Ocidental, nas últimas décadas do século XX, já era uma das grandes potências econômicas do mundo e, com a queda do muro (1989), unificada, se organiza para manter essa posição. A ciência na Alemanha voltoua tomar fôlego; diminuiu o êxodo dos grandes cientistas, mantendo-se no país os grandes cérebros da nação. Assim, organizamos este editorial em duas partes: na primeira, após uma breve história da Alemanha, enfocaremos seus grandes personagens diretamente relacionados à medicina e à Nefrologia. Na segunda, daremos uma idéia da grandiosidade do povo alemão, citando outros vultos em diferentes áreas da ciência, A L E M A N H A E A L E M à E S : N O M U N D O E N A N E F R O L O G IA | C o m o e u t ra to dR. EdisOn sOUzA A Diretoria Clínica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz agradece ao dr. Edison de Souza - professor de Nefrologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor deste texto - e à Revista Brasileira de Nefrologia pela autorização de publicarmos o material no “Como eu trato”. 14 A L E M A N H A E A L E M à E S : N O M U N D O E N A N E F R O L O G IA | C o m o e u t ra to música, esporte, religião, literatura, arquitetura e artes. A ORiGEM dO POvO GERMâniCO: Para os romanos, “bárbaros” eram todos os que viviam além das fronteiras do Império Romano e, portanto, não possuíam a cultura romana. De origem discutida, ocupavam uma região chamada Germânia e se subdividiam em vários povos: burgúndios, vândalos, francos, saxões, anglos, lombardos, godos e outros. Nos séculos IV e V, os principais povos bárbaros se deslocaram em direção ao Império Romano, empurrados pelos Hunos que vinham do oriente, levando pânico e destruição aonde chegavam. Esse processo acabou por precipitar a fragmentação do império, já decadente devido à crise do escravismo e à anarquia militar. A língua, a religião, os costumes e, sobretudo, as instituições político-jurídicas e sociais dos germanos, bem diferentes dos das populações submetidas, funcionaram como obstáculos à fusão entre as duas sociedades: a romana e a germânica. Após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, o Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla, continuou a existir até 1453. O Sacro Império Romano - Germânico, que existiu desde o século VIII, até 1806, é considerado o primeiro Reich alemão (Reich, Império, em alemão, termo usado para descrever os sucessivos períodos históricos do povo alemão). No momento de maior extensão territorial, o Império incluía o que são hoje a Alemanha, a áustria, a Eslovênia, a República Tcheca, o oeste da Polônia, os Países Baixos, o leste da França, a Suiça e partes da Itália central e setentrional. A partir de meados do século XV, passou a ser conhecido como o “Sacro Império Romano da Nação Germânica”. O Império Alemão (do alemão: Deutsches Reich) foi um país, dirigido pela Prússia na região da atual Alemanha, existente desde a sua consolidação como Estado-Nação em Versalhes, em janeiro de 1871 (fim da Unificação Alemã) até à abdicação do Kaiser Guilherme II em novembro de 1918, após a derrota na I Guerra Mundial. Segundo o mesmo raciocínio, Adolf Hitler referia-se à Alemanha Nazista (1933-1945) como o Terceiro Reich. Os alemães referem-se com freqüência a 1945 como a Stunde Null (a hora zero), para descrever o quase-total colapso do país. Na Conferência de Potsdam, a Alemanha foi dividida pelos Aliados em quatro zonas de ocupação militar; as três zonas a oeste viriam a formar a República Federal da Alemanha (conhecida como Alemanha Ocidental), enquanto que a área ocupada pela União Soviética se tornaria a República Democrática da Alemanha (conhecida como Alemanha Oriental), ambas fundadas em 1949. A Alemanha Ocidental estabeleceu-se como uma democracia capitalista e a sua contraparte oriental, como um Estado comunista sob influência da URSS. O acordo também determinou a abolição da Prússia e a repatriação dos alemães que residiam naqueles territórios, formalizando o êxodo alemão da Europa Oriental. As relações entre os dois Estados alemães do pós-guerra mantiveram-se frias, até a política de aproximação com os países comunistas da Europa Oriental promovida pelo 15 A L E M A N H A E A L E M à E S : N O M U N D O E N A N E F R O L O G IA | C o m o e u t ra to Chanceler ocidental Willy Brandt (Ostpolitik), nos anos 1970, cujo conceito principal era “Dois Estados alemães dentro de uma nação alemã”. O relacionamento entre os dois países melhorou e, em setembro de 1973, as duas Alemanhas tornaram-se membros da Organização das Nações Unidas. Durante o verão de 1989, mudanças políticas ocorridas na Alemanha Oriental e na União Soviética permitiram a reunificação alemã. Alemães orientais começaram a emigrar em grande número para o lado ocidental, via Hungria, quando o governo húngaro decidiu abrir as fronteiras com a Europa Ocidental. Milhares de alemães orientais ocuparam missões diplomáticas da Alemanha Ocidental em capitais do leste europeu. A emigração e manifestações em massa em diversas cidades pressionaram o governo da Alemanha Oriental por mudança, o que levou Erich Honecker a renunciar em outubro; em 9 de novembro de 1989, as autoridades alemãs orientais surpreenderam o mundo ao permitir que seus cidadãos cruzassem o Muro de Berlim e outros pontos da fronteira comum e entrassem em Berlim Ocidental e na Alemanha Ocidental - centenas de milhares aproveitaram a oportunidade. O processo de reformas na Alemanha Oriental culminou com a reunificação da Alemanha, em 3 de outubro de 1990. CiênCiA E PEsqUisA: Pesquisa e desenvolvimento floresceram na Alemanha em especial no século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX. Já no ano em que foi instituído, 1901, o Prêmio Nobel foi concedido a alemães em duas disciplinas: o de Física, a Wilhelm Conrad Röntgen, e o de Medicina, a Emil Adolph von Behring. No ano seguinte, o de Química foi concedido ao alemão Hermann Emil Fischer. Só até 1933, ano em que Adolf Hitler ascendeu ao poder, os alemães haviam conquistado dez prêmios Nobel de Física, 14 de Química e seis de Medicina. O período nazista representou o fundo do poço para a ciência no país; de um lado, pesquisadores participando do genocídio praticado pelo regime contra os judeus na Europa; de outro, os de origem judaica fugindo da perseguição (muitos foram para os Estados Unidos, onde deram prosseguimento a seu trabalho). Mesmo em tempos mais recentes, muitos alemães de nascimento receberam o Nobel nas três categorias mencionadas, embora vivam e pesquisem nos Estados Unidos. De uns anos para cá, são intensos os esforços para evitar a evasão dos pesquisadores e cientistas. Se, pesquisa e desenvolvimento são as bases da moderna sociedade do conhecimento, para a Alemanha elas adquirem importância vital, por ser um país pobre em matérias-primas. A reunificação, em 1990, representou um grande desafio para o setor. No Leste, onde a ciência e a pesquisa se desenvolveram durante décadas, sob os ditames do regime centralista, foi necessária profunda reforma estrutural para alcançar certa padronização. Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento crescem a cada ano. A pesquisa científica é realizada na Alemanha em três setores: nas mais de 300 universidades do país, em centenas de institutos públicos e privados sem finalidades comerciais e em institutos e laboratórios financiados pela economia privada. A pesquisa universitária tem tradição na Alemanha, consolidada pelo preceito da unidade entre pesquisa e ensino pregado por Wilhelm von Humboldt, que reformou as universidades prussianas no início do século XIX. As universidades são as únicas instituições na Alemanha em que a pesquisa abarca todas as disciplinas científicas. Nelas se realiza, sobretudo, pesquisa de base. Projetos de caráter específico e de maior porte, que envolvemequipes numerosas, tecnologia mais sofisticada e custos mais vultosos, são desenvolvidos pelos institutos extra-universitários, financiados em grande parte conjuntamente pela Federação e os Estados. A Alemanha é tradicionalmente um país de pesquisadores e inventores e seus cientistas gozam de prestígio em todo o mundo. Por sua vez, o país está aberto para receber pesquisadores de outras nações. Universidades, poder público e iniciativa privada conjugam esforços no fomento à pesquisa e ao desenvolvimento. Destacam-se as Academias de Ciências, que trabalham em estreita cooperação com as universidades, e das quais existem sete no país: Berlim-Brandemburgo, Düsseldorf, Göttingen, Heidelberg, Leipzig, Mainz e Munique. Desempenham ainda papel importante as fundações científicas. Entre as financiadas pelo empresariado, podem ser citadas a Fundação Fritz Thyssen e a Fundação Volkswagen. A Fundação Alexander von Humboldt (AvH), financiada pelos cofres federais, fornece a cientistas estrangeiros estágios para pesquisa na Alemanha e a alemães, estágios no exterior. Bolsas para acadêmicos estrangeiros são intermediadas também pelo Serviço Alemão de Intercâmbio acadêmico (DAAD). Um dado a ser destacado na nossa área é o fato de que nos últimos Congressos Americanos e Mundiais de Nefrologia e de Transplante, o número de trabalhos apresentados pelos alemães só foi superado pelo dos 16 A L E M A N H A E A L E M à E S : N O M U N D O E N A N E F R O L O G IA | C o m o e u t ra to americanos. PERsOnAGEns dE dEsTAqUE nA áREA MÉdiCA (PELA dATA dE nAsCiMEnTO) dorotea Cristina Erxleben, em 1754, para assombro de toda a Europa, conseguiu o título de Doutor em Medicina na Universidade de Halle, tendo sido a primeira mulher a receber oficialmente o diploma de médico. “Dorothea Leporin war die Tochter des Arztes Christian Polykarp Leporin und der Pastorentochter Anna Sophia Leporin. Von Kind an wurde das begabte Mädchen von ihrem Vater in der Heilkunde unterwiesen. Er unterrichtete sie, nahm sie zu seinen Patienten mit und ließ sich mit der Zeit sogar von ihr in seiner Praxis vertreten. Dorothea durchlief dieselbe Ausbildung wie ihr Bruder und wie er strebte sie die Erlangung eines akademischen Grades an. Trotz ihres breiten medizinischen Wissens blieb ihr der Zugang zur Universität verwehr”. barão de Münchhausen - Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen (1720 - 1797) foi um barão alemão, onhecido pelas histórias humorísticas e agressivas que inventava. Os relatos de suas aventuras serviram de base para a série As Aventuras do Barão de Münchhausen, compiladas por Rudolph Erich Raspe e publicadas em Londres em 1785. O médico inglês Richard Asher em 1951 chamou a atenção da classe médica para este terrível fenômeno ao publicar um artigo com relato de três casos numa famosa revista médica: (Münchausen`s Syndrome, Lancet, 1: 339-41, 1951, p. 339) e, desde então, ficaram fáceis o ensino e a divulgação entre os profissionais da saúde. Despertados pela denominação “Münchausen” dada por Asher, muitos médicos, em diferentes países, começaram a relatar casos desta síndrome. No momento existem 1795 citações no Pubmed. Falsificações causando lesões em filhos é denominada Munchausen syndrome by proxy. Primeira descrição no Lancet 13;2 ( 8033) : 342-5 em 1977 por Meadow. Kaspar Friedrich Wolff - 1733 - 1794 - Fisiologista. Fundador da embriologia observacional. Christian Friedrich samuel hanenmann - 1755 - 1843 - O pai da HOMEOPATIA. Friedrich Wohler - 1800- 1882 - Químico que pela primeira vez sintetizou a uréia. joahannes Peter Muller 1801 - 1858 - Fisiologista e Anatomista - Estudos iniciais de embriologia. justus von Liebig 1803 - 1873, foi um químico alemão. Seus experimentos possibilitaram a criação de fertilizantes químicos, sabão, explosivos e alimentos desidratados. Liebig criou o conceito do laboratório de química. Friedrich Gustav jakob henle 1809 - 1885 - Médico, patologista e anatomista - Descreveu a alça de Henle no rim. Theodor schwann 1810 - 1882 - Fisiologista, Histologista e Citologista - Descobriu a teoria celular, as células de Schwann no sistema nervoso periférico, a pepsina e inventou o termo “metabolismo”. bernhard von Longenbeck - 1810- 1891 Cirurgião, precursor dos treinamentos em cirurgia na Alemanha. Carl Friedrich Wilhelm Ludwig - 1816 -1895- Médico e Fisiologista - Descreveu pela 1a vez o mecanismo de filtração glomerular. Friedrich Theodor von Freichs - 1819-1885 - Escreveu livros com conclusões semelhantes às de Richard Bright. Rudolf virchow - 1821- 1902 - O pai da Patologia. Adolf Kussmaul - 1822 - 1902 - Médico que depois foi homenageado com o epônimo em função de respiração característica da cetoacidose diabética. Eduard Friedrich Wilhelm Pfluger - 1829-1910 Fisiologista que trabalhou com Karl Ludwig - Hoje famosa revista leva seu nome Pflüger Archives. Wilhelm Wundt - 1832- 1920 - Médico, Filósofo e Psicólogo - Pai da Psicologia Moderna. Friedrich von Recklinhausen - 1833 - 1940 - Patologista que descreveu a neurofibromatose. j. F. Wilhelm Adolf von baeyer - 1835 - 1917 - Químico. Prêmio Nobel de Química em 1905. Emil Theodor Kocher - 1841 - 1917 - Recebeu o Nobel de Medicina em 1909 por seus trabalhos em fisiologia, patologia e cirurgia da tireóide. Max jaffe - 1841 - 1911 - Descreveu a dosagem da Creatinina em 1886. heinrich hermann Robert Koch - 1843 – 1910 - Médico, patologista e bacteriologista, um dos fundadores da microbiologia. Em 1882 descobriu o agente da tuberculose. Recebeu o prêmio Nobel de Medicina em 1905. Wilhelm Conrad Roentgen - Físico 1845 - 1923 - Em 1895 realizou a primeira radiografia da história - Ganhou o Nobel de Física em 1901. Paul Langerhans 1847 - 1888 - Descobriu as ilhotas pancreáticas. Ludwig Karl Martin Leonhard Albretch Kossel - 1853- 1917-Médico - Nobel de Medicina em 1910 pela descoberta as bases adenina e timina dos ácidos nucléicos. 17 A L E M A N H A E A L E M à E S : N O M U N D O E N A N E F R O L O G IA | C o m o e u t ra to Emil Adolf von behring - 1854 - 1917 - Recebeu o primeiro Nobel de Medicina por seus trabalhos com soros antidiftéricos. Paul Erlich - 1854 - 1915 - Recebeu o Nobel de Medicina em 1908 por seus trabalhos em imunidade. Albert Ludwig sigesmund neisser - 1855 - 1916 - Descobriu o patógeno da gonorréia. Franz ziehl (1857 - 1926) bacteriologista e Friedrich Neelsen (1854-1894) patologista, desenvolveram o corante de Ziehl-Neelsen para identificar as micobactérias como as da tuberculose e da doença de Hansen. Alois Alzheimer - 1864 - 1915 - Neurologista primeiro a reconhecer como entidade distinta a doença neurodegenerativa que hoje leva seu nome. Otto Frank - 1865 - 1944 - Conhecido pela associação com Starling. Juntos lançaram a lei de Frank-Starling. August von Wasserman - 1866 -1925 - Descobriu a reação para o diagnóstico da sífilis. Gustav Giemsa - 1867 -1948 - químico que desenvolveu um corante que posteriormente recebeu seu nome. O corante de Giemsa é usado para o diagnóstico histopatológico de malária, tripanosomíase e clamídia. Max Wilms - 1867 - 1918 - Cirurgião que descreveu pela 1a vez o nefroblastoma que depois recebeu o nome de Tumor de Wilms. Eugen von-hippel - 1867 - 1939 Oftalmologista que participou na descoberta da doença de von-Hippel -Lindau (sueco). Felix hoffmann - 1868 - 1946 - Químico que sintetizou a Aspirina. hans spemann - 1869 - 1941 - Nobel de medicina de 1935, por estudos de embriologia humana. zimmerman KW - 18?? - 19?? Em 1929 descreveu o mesângio glomerular. Fritz schaudinn 1871 - 1906 - Zoologista, descobriu em 1905 com o dermatologista Erich Hoffmann o agente causador da sífilis, Spirochaeta pallida, depois chamadoTreponema pallidum. Franz volhard -1872- 1952 - Primeiras classificações de glomerulopatias e importantes estudos sobre suas relações com a hipertensão arterial. Otto Loewi - 1873 -1961 - Nobel de Medicina em 1936, por seus estudos com a acetilcolina em impulsos nervosos. G. Wegner - 1877 - Foi o primeiro a descobrir as propriedades de transporte do peritôneo. Otto heinrich Warburg - 1883 - 1970 - Fisiologista - Nobel de Medicina em 1931, pelos estudos de enzimas de oxidação e redução. Otto Fritz Meyerhof - 1884-1951 - Bioquímico - Nobel de Medicina de 1922, por estudos sobre a fadiga. George hass - 1886 - 1871 Em 1926 realizou as primeiras hemodiálises em Humanos na cidade de Giessen. Gerhard johannes Paul domagk - 1895-1964 -Patologista e Bacteriologista. Recebeu o Nobel de 1939, por ter descoberto a sulfa. Fritz Albert Lipman - 1899- 1986 - Bioquímico que ganhou o Nobel de Medicina em 1953, por ter descoberto a coenzima A. Ernst boris Chain - 1906- 1979 - Bioquímico recebeu o Nobel de Medicina de 1945, por seus estudos com a penicilina. hans Adolf Krebs -1900 - 1981 - Recebeu o Nobel de Medicina em 1953, pelo estudo do ciclo celular do ácido cítrico que recebeu seu nome Ciclo de Krebs. Paul Kimmestiel - 1900- 1970 - Juntamente com Clifford Wilson descreveu as lesões renais da nefropatia diabética. Werner Forssmann – 1904 – 1979 - Nobel de 1956, por estudos sobre o cateterismo cardíaco. Max delbruch - 1906- 1981 - Nobel de Medicina de 1964, por estudar as infecçoes virais. Friedrich Wegener - 1907- 1990 - Patologista que descreveu os primeiros casos de Granulomatose. bernard Katz - 1911 -2003 - Nobel de Medicina de 1970, por estudar os mecanismos de transmissões dos impulsos nervosos. Feodor Felix Konrad Lynen - 1911- 1979 - Nobel de Medicina de 1964, pelos estudos sobre o colesterol. Konrad Emil bloch 1912- 2000 - Nobel de Medicina de 1964, pelos estudos sobre o colesterol. George Ganter - 1923 - Realizou a primeira diálise peritoneal. Klaus Thurau - Início dos estudos de micropunção com ratos com glomérulos superficiais ( Munich -Wistar) descobertos em seu laboratório. Eberhard Ritz - 1928 - Destacado médico e pesquisador contemporâneo (1295 citações no PubMed) especializado em Hipertensão. Gunter blobel - 1936 - Nobel de 1999, por descobrir que as proteínas têm sinais intrínsecos que direcionam seu 18 A L E M A N H A E A L E M à E S : N O M U N D O E N A N E F R O L O G IA | C o m o e u t ra to transporte e sua localização nas células. bert sakmann - 1942 - Nobel de Medicina em 1991, por ter descoberto a técnica de patch-clamp. Christiane Nusslein Volhard - 1942 - Nobel de 1995 por suas descobertas relacionadas ao controle genético do desenvolvimento embrionário. Erwin neher - 1944 - Nobel de Medicina em 1991 por te descoberto a técnica do patch-clamp. Georges j.F.Kohler 1946- 1995 - Nobel de Medicina em 1984 pelo desenvolvimento dos métodos monoclonais. Willhelm Kriz - Renomado pesquisador de Heildberg, com 206 artigos citados no PUBMED, com muitos estudos sobre o podócito. Gerard Opelz - 1945 - Apesar de ter nascido na áustria tem trabalhado em Heidelberg durante os últimos 30 anos, sendo responsável pelo maior programa de avaliação do sistema HLA em transplantes no mundo o Collaborative Transplant Study. Kurt semm - Ginecologista pioneiro na cirurgia minimamente invasiva na década de 1980. Peter Mundel - Pesquisador com grandes contribuições na área de culturas de podócitos e proteínas podocitárias. Kerstin Aman - Renomada Patologista do Instituto de Patologia da Universidade de Erlangen, Nuremberg. Chaussy C - em 1980 realiza a primeira litotripsia extracorpórea. Guido Filler - Alemão radicado no Canadá, conhecido por muitos brasileiros em função da sua presença em nossos Congressos. É um defensor da Cistatina C. ALEMãEs qUE RECEbERAM O nObEL EM OUTRAs CATEGORiAs: Hoje perfazem mais de uma centena e por falta de espaço citarei apenas alguns, como os agraciados com o prêmio de Física: Max Planck, Nobel de 1918, o pai da teoria quântica, Albert Einstein em 1921, Gustav Hertz em 1925 e Peter Grunberg em 2007. Em Química - Dentre mais de 20 laureados citamos: Herman Emil Fischer (1902), Adolf von Bayer (1905) e no último ano o berlinense Gerhard Ertl. Em literatura foram três: Thomas Mann (1929), Hermann Hesse (1946) e Henrich Boll (1972) e da Paz mais dois: Gustav Stresemann ( 1926) e Willy Brandt (1971). nEsTA úLTiMA PARTE CiTAREMOs OUTROs ALEMãEs dE dEsTAqUE: Johannes Gutenberg, inventor da imprensa no século 15 e Heinrich Hertz, que comprovou em 1888 a existência das ondas magnéticas, Gabriel Fahrenheit que criou uma escala para medir temperatura, Hans Geiger que inventou o contador de radioatividade e Wernher von Braun expert no desenvolvimento de foguetes. na religião - Martim Lutero, o criador da religião protestante e o atual Papa católico Joseph Alois Ratzinger. na pintura - Johann Moritz Rugendas (Augsburgo, 1802 - Weilheim, de 1858) pintor alemão que viajou por todo Brasil pintando paisagens e cenas do cotiano. Integrou a missão do barão de Georg Heinrich von Langsdorff durante os três anos que permaneceu no Brasil durante 1822-1825. Rugendas era o nome que usava para assinar suas obras. Os naturalistas Ernst Haeckel e Alexander von Humboldt, além do conhecido Homem de Naendertal, encontrado em terras alemãs. Filósofos: Nietzche, Hegel, Weber, Goeth, Kant e Karl Marx nos esportes: A famosa seleção campeã do mundo de 1954, Beckenbauer, Schumaker, os tenistas Boris Becker e Stephi Graf, a Adidas. Também tem o mérito de terem organizado 2 copas do mundo, 1974 e 2006 e 2 Jogos Olímpicos em 1936 e 1972. No cinema organiza o Festival de Berlim e tem diretores famosos como Win Wenders. 19 A L E M A N H A E A L E M à E S : N O M U N D O E N A N E F R O L O G IA | C o m o e u t ra to na arquitetura: Bahaus, escola que foi um marco no design, arquitetura e arte moderna. nos veículos de transporte: Volkswagen, Mercedes, BMW, Audi e Porsche. nas lentes: Carl Zeiss. indústrias farmacêuticas: Hoechst, Bayer e Schering. nos animais: Pastor alemão, dachshund, weimaraner e rotweiller. na indústria: O famoso couro alemão, produtos químicos, eletrônicos, máquinas, automóveis e alimentos. na comida e bebida: A cerveja e a deliciosa culinária. no turismo: cidades maravilhosas e modernas e a famosa rota romântica com os castelos e cidades medievais. Curiosidades: O costume de procurar ovos de Páscoa foi iniciado por uma duquesa alemã, a cervejaria Hofbrauhaus am Platzl fundada em 1589 localizada no Centro de Munique é a cervejaria mais famosa do mundo e Hermann Bruno Otto Blumenau imigrou da Alemanha para o Brasil e fundou a cidade de Blumenau em 1850. FinALMEnTE A MúsiCA A Alemanha tem em seus compositores clássicos uma de suas maiores fortunas culturais e artísticas. Tentamos anexar a cada artigo um link para que um trecho de uma de suas composições fosse ouvido. Infelizmente a falta de espaço não nos permitiu e condensamos a grandiosidade de toda essa obra na Nona sinfonia de Beethoven. Não podíamos esquecer-nos do grande maestro Herber von Karajan que apesar de ter nascido na Aústria, passou 35 anos de sua vida à frente da Orquestra Filarmônica de Berlim. Termino esse editoral citando o nome desses grandes compositores que com suas músicas tem presenteado nossos ouvidos, corações, almas e logicamente nossos rins. George Philipp Telemann - Magdeburg, 1681- Hamburgo, 1767 johann sebastian bach - Eisnach, 1685 - 1750, Leipzig George Frideric händel - Halle ( Magdeburg), 1685- Londres, 1759 Ludwig van beethoven - Bonn, 1770 - Viena, 1827 Felix Mendelssohnbartoldy - Hamburgo 1809 - Leipzig , 1847 Robert Alexander schumann - Zwickau, 1810 - Bonn 1856 jacques Offenbach - Cologne, 1819 - Paris 1880 Richard Wagner - 1813, Leipzig - Veneza,1883 johannes brahms - Hamburgo, 1833 - Viena, 1897 Richard strauss - Munique, 1864 - Garmisch-Partenkirchen, 1949 Carl Orff - Munique, 1895 - Munique 1982 Auf Wiedersehen und danke schön. 20 Histórico do Hospital A vocação para cuidar da saúde da comunidade acompanha o Hospital Alemão Oswaldo Cruz há 114 anos. Essa missão está na essência da atividade da Instituição, fundada em 26 de setembro de 1897 por um grupo de imigrantes de língua alemã que sonhava em oferecer à comunidade serviços médicos de qualidade, como forma de retribuir o acolhimento que recebeu do povo brasileiro. Nos últimos anos, por meio do planejamento estratégico que orienta sua conduta, o Hospital definiu suas cinco áreas de referência e estabeleceu metas de expansão baseadas no conceito de crescimento sustentável. Entre as ações realizadas para atingir esses objetivos, houve a implantação de modernas ferramentas de avaliação e melhoria de processos, medidas para reforçar o relacionamento com os profissionais e investimentos na capacitação de pessoal. Iniciativas como essas posicionaram o Hospital entre os melhores do mundo, reconhecimento confirmado pela conquista da certificação da Joint Commission International (JCI), em 2009. Naquele ano, o Hospital inaugurou o Instituto da Próstata, o Centro de Diabetes e Doenças Metabólicas, o Instituto de Geriatria e Gerontologia, e o Centro de Excelência em Cirurgia Bariátrica e Metabólica. O compromisso da Instituição com a pesquisa e o ensino reflete-se na criação do Instituto de Educação e Ciências, que desenvolve programas de educação continuada e de pós-graduação, voltados para a qualificação profissional, além de realizar pesquisas clínicas e epidemiológicas, contribuindo para a geração e disseminação do conhecimento. O Hospital também intensifica ações que reforçam sua vocação para o trabalho social. Em 2008, houve a assinatura de termo de compromisso com o Ministério da Saúde, quando a Instituição foi reconhecida como Entidade Beneficente de Assistência Social e, em 2010, foi inaugurada a Unidade Ambulatorial de Sustentabilidade Social da Mooca, para atender gratuitamente a pacientes do SUS e sediar a administração dos projetos resultantes da parceria com o Ministério. No contexto da expansão do negócio, também estão as inaugurações do Ciama – Instituto da Mama, em parceria com a Pro Matre Paulista, do Centro de Especialidades no Campo Belo, e a construção de um novo prédio no complexo hospitalar, no Paraíso, a ser inaugurado em 2012. H IS T ó R IC O D O H O S P IT A L | C o m o e u t ra to 21 “Nada mais interessante do que iniciarmos este capítulo com poesias e textos que nos atingem profundamente e tocam a nossa alma.” Dr. Pedro Renato Chocair Esta Vida Um sábio me dizia: esta existência, não vale a angústia de viver. A ciência, se fôssemos eternos, num transporte de desespero inventaria a morte. Uma célula orgânica aparece no infinito do tempo. E vibra e cresce e se desdobra e estala num segundo. Homem, eis o que somos neste mundo. Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver dentro da própria morte, o encanto de morrer. Um monge me dizia: ó mocidade, és relâmpago ao pé da eternidade! Pensa: o tempo anda sempre e não repousa; esta vida não vale grande coisa. Uma mulher que chora, um berço a um canto; o riso, às vezes, quase sempre, um pranto. Depois o mundo, a luta que intimida, quadro círios acesos : eis a vida Isto me disse o monge e eu continuei a ver dentro da própria morte, o encanto de morrer. Guilherme de Almeida Um pobre me dizia: para o pobre a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre. Deus, eu não creio nesta fantasia. Deus me deu fome e sede a cada dia mas nunca me deu pão, nem me deu água. Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa de andar de porta em porta, esfarrapado. Deu-me esta vida: um pão envenenado. Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver, dentro da própria morte, o encanto de morrer. Uma mulher me disse: vem comigo! Fecha os olhos e sonha, meu amigo. Sonha um lar, uma doce companheira que queiras muito e que também te queira. No telhado, um penacho de fumaça. Cortinas muito brancas na vidraça Um canário que canta na gaiola. Que linda a vida lá por dentro rola! Pela primeira vez eu comecei a ver, dentro da própria vida, o encanto de viver. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 22 C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to Segunda Canção do Peregrino Guilherme de Almeida Vencido, exausto, quase morto, cortei um galho do teu horto e dele fiz o meu bordão. Foi minha vista e foi meu tacto: constantemente foi o pacto que fez comigo a escuridão. Pois nem fantasmas, nem torrentes, nem salteadores, nem serpentes prevaleceram no meu chão. Somente os homens, que me viam passar sozinho, riam, riam, riam, não sei por que razão. Mas, certa vez, parei um pouco, e ouvi gritar:-”Aí vem o louco que leva uma árvore na mão!” E, erguendo o olhar, vi folhas, flores, pássaros, frutos, luzes, cores... -Tinha florido o meu bordão. 23 C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to Cântico Negro José Régio “Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: “vem por aqui!” Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: “vem por aqui!”? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: “vem por aqui”! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí! 24 Os Flamboyants Rubem Alves A manhã estava linda: céu azul, ventinho fresco. Infelizmente, muitas obrigações me aguardavam. Coisas que eu tinha de fazer. Aí, lembrei-me do menino-filósofo chamado Nietzsche que dizia que ficar em casa estudando, quando tudo é lindo lá fora, é uma evidência de estupidez. Mandei as obrigações às favas e fui caminhar na lagoa do Taquaral. Bem, não fui mesmo caminhar. Meu desejo não era médico, caminhar para combatero colesterol. Caminhar, para mim, é uma desculpa para ver, para cheirar, para ouvir... Caminho para levar meus sentidos a dar um passeio. Tanta coisa: os patos, os gansos, os eucaliptos, as libélulas, a brisa acarinhando a pele — os pensamentos esquecidos dos deveres. Sem pensar, porque, como disse Caeiro, “pensar é estar doente dos olhos”. Aí, quando já me preparava para ir embora, já no carro, vejo um amigo. Paramos. Papeamos. Ele, com uma máquina fotográfica. Andava por lá, fotografando. Não tenho autorização para dizer o nome dele. Vou chamá-lo de Romeu, aquele que amava a Julieta. Me confidenciou: “Vou fazer uma surpresa para a Julieta. Ela adora os flamboyants. E eles estão maravilhosos. Vou fazer um álbum de fotografias de flamboyants para ela... Você não quer vir até a nossa casa para tomar um cafezinho?” Fui. Mas ele me advertiu: “Não diga nada para ela. É surpresa...” Esta história tem sua continuação um pouco abaixo. Recomeço em outro lugar. As crianças da 3ª série do Parthenon, escola linda, me convidaram para uma visita. Elas tinham estado fazendo um trabalho sobre um livrinho que escrevi, O Gambá Que Não Sabia Sorrir. Queriam me mostrar. Foi uma gostosura. É uma felicidade sentir-se amado pelas crianças. Eu me senti feliz. Aí aconteceu uma coisa que não estava no programa. Uma menininha, na hora das perguntas, disse que ela havia lido a minha crônica Se Eu Tiver Apenas Um Ano a Mais de Vida... Espantei-me ao saber que uma menina de nove anos lia minhas crônicas. Lia e gostava. Lia e entendia. Aí ela acrescentou: “Recortei a crônica e trouxe para a professora...” Confirmou-se aquilo de que eu sempre suspeitara: as crianças são mais sábias que os adultos. Porque o fato é que muitos adultos ficaram espantados e não quiseram brincar de fazer de contas que eles tinham apenas um ano a mais para viver. Ficaram com medo. Acharam mórbido. As crianças, inconscientemente, sabem que a vida é coisa muito frágil, feito uma bolha de sabão. Minha filha Raquel tinha apenas dois anos. Eram seis horas da manhã. Eu estava dormindo. Ela saiu da caminha dela e veio me acordar. Veio me acordar porque ela estava lutando com uma idéia que a fazia sofrer. Sacudiu-me, eu acordei, sorri para ela, e ela me disse: “Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?” Eu fiquei pasmo, sem saber o que dizer. Mas aí ela me salvou: “Não chore porque eu vou abraçar você...” As crianças sabem que a vida é marcada por perdas. As pessoas morrem, partem. Partindo, devem sentir saudades — porque a vida é tão boa! Por isso, o que nos resta fazer é abraçar o que amamos enquanto a bolha não estoura. Os adultos não sabem disso porque foram educados. Um dos objetivos da educação é fazer-nos esquecer da morte. Você conhece alguma escola em que se fale sobre a morte com os alunos? É preciso esquecer da morte para levar a sério os deveres. Esquecidos da morte, a bolha de sabão vira esfera de aço. Inconscientes da morte aceitamos como naturais as cargas de repressão, sofrimento e frustração que a realidade social nos impõe. Quem sabe que a vida é bolha de sabão passa a desconfiar dos deveres... E, como disse Walt Whitmann, “quem anda duzentos metros sem vontade, anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha”. O pessoal da poesia está levando a sério a brincadeira. Eu mesmo já fiz vários cortes drásticos em compromissos que assumi. Eram esferas de aço. Transformei-os em bolhas de sabão e os estourei. Pois o pessoal da poesia decidiu que, no programa de um ano de vida apenas, num dos nossos encontros não haveria leitura de poesia: haveria brinquedos e brincadeiras. Cada um trataria de desenterrar os brinquedos que os deveres haviam enterrado. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 25 Obedeci. Abri o meu baú de brinquedos. Piões, corrupios, bilboquês, iô-iôs e uma infinidade de outros brinquedos que não têm nome. Seria indigno que eu levasse piões e não soubesse rodá-los. Peguei um pião e uma fieira e fui praticar. Estava rodando o pião no meu jardim quando um cliente chegou. Olhou-me espantado. Ele não imaginava que psicanalistas rodassem piões. Psicanalista é pessoa séria, ser do dever. Pião é coisa de criança, ser do prazer. Acho que meus colegas psicanalistas concordariam com meu paciente. A teoria diz que um cliente nada deve saber da vida do psicanalista. O psicanalista deve ser apenas um espaço vazio, tela onde o paciente projeta suas identificações. Mas a minha vocação é a heresia. Ando na direção contrária. “Você sabe rodar piões?”, eu perguntei. Ele não sabia. Acho que ficou com inveja. A sessão de terapia foi sobre isso. E ele me disse que um dos seus maiores problemas era o medo do ridículo. Crianças são ridículas. Adultos não são ridículos. Aí conversamos sobre uma coisa sobre a qual eu nunca havia pensado: que, talvez, uma das funções da terapia seja fazer com que as pessoas não tenham medo das coisas que os “outros” definem como ridículo. Quem não tem medo do ridículo está livre do olhar dos outros. Preparei o encontro de poesia de um jeito diferente. Nada de sopas sofisticadas. Fui procurar macarrão de letrinha, coisa de criança. Não encontrei. Encontrei estrelinhas. Fiz sopa de estrelinhas. E toda festa de criança tem de ter cachorro-quente. Fiz molho de cachorro-quente. E nada de vinho. Criança não gosta de vinho. Gosta é de guaraná. Foi uma alegria, todo mundo brincando: iô-iôs, piões, corrupios, bilboquês, quebra-cabeças, pererecas (aquelas bolas coloridas na ponta de um elástico)... Rimos a mais não poder. Todo mundo ficou leve. Aí tive uma idéia que muito me divertiu: que na sala de visitas das casas houvesse um baú de brinquedos. Quando a conversa fica chata, a gente abre o baú de brinquedos e faz o convite: “Não gostaria de brincar com corrupio?” E a gente começa a brincar com o corrupio e a rir. A visita fica pasma. Não entende. “Quem sabe, ao invés do corrupio, um bilboquê?” E a gente brinca com o bilboquê. Aí a gente estende o brinquedo para a visita e diz: “Por favor, nada de acanhamentos! Experimente. Você vai gostar...” São duas as possibilidades. Primeira: a visita brinca e gosta e dá risadas. Segunda: ela acha que somos ridículos e trata de se despedir para nunca mais voltar... Pois a Julieta — aquela do Romeu — me trouxe uma pipa de presente. Vou empinar a pipa em algum gramado da Unicamp. E aí ela nos contou da surpresa que lhe fizera o Romeu. Fotografias de flamboyants vermelhos — que coisa mais romântica! árvores em chamas, incendiadas! Cada apaixonado é um flamboyant vermelho! E nos contou das coisas que o Romeu tivera que fazer para que ela não descobrisse o que ele estava preparando. Mas o mais bonito foi o que ele lhe disse, na entrega do presente. Não sei se foi isso mesmo que ele disse. Sei que foi mais ou menos assim: “Sabe, Julieta, aquela história de ter um ano apenas a mais para viver... Pensei que você gostava de flamboyants e que você ficaria feliz com um álbum de flamboyants. E concluí que, se eu tiver um ano apenas a mais para viver, o que quero é fazer as coisas que farão você feliz...” Um ano apenas a mais para viver: aí os sentimentos se tornam puros. As palavras que devem ser ditas, devem ser ditas agora. Os atos que devem ser feitos, devem ser feitos agora. Quem acha que vai viver muito tempo fica deixando tudo para depois. A vida ainda não começou. Vai começar depois da construção da casa, depois da educação dos filhos, depois da segurança financeira, depois da aposentadoria... As flores dos flamboyants, dentro de poucos dias, terão caído. Assim é a vida. É preciso viver enquanto a chama do amor está queimando... O texto acima foi extraído do jornal “Correio Popular”, de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o mo e u t ra to 26 Como eu trato a alma A palavra hebraica para alma é nefesch, que significa garganta. Os gregos a traduzem por psyche, que significa soprar, respirar. Já em latim é anima, de anemos, que é vento. Para muitos povos, alma é um respirador invisível. No Antigo Testamento, a alma é o sopro da vida, a força de vida que faz de nós seres humanos. Carl Gustav Jung dizia que a alma é uma instância curadora que opera em nós de forma oculta e que assume a direção de nossa vida quando o nosso eu consciente falha. Essas e outras definições demonstram que somos mais do que nosso corpo visível e material. Nossa interioridade precisa ser acolhida, cuidada, porque é ali que está o que temos de mais profundo e mais precioso – o sopro divino em nós. A alma é, por assim dizer, o centro interior de transformação que faz das vivências externas experiências intrínsecas. Mas como tratar a alma quando o corpo está dando sinais de SOS? O acolhimento, a atenção e a escuta ativa são instrumentos vitais para que o paciente se sinta cuidado de forma verdadeira e integral. O monge beneditino Anselm Grün escreve sobre esse núcleo interior que todos temos, esse lugar onde habita o sopro divino em nós: “Por vezes os nossos recursos se encontram escondidos por debaixo de uma grossa casca. Quando alcanço o núcleo interno no qual se encontra concentrada toda a força, nova energia fluirá para os meus pensamentos e ações, algo desabrochará em mim. Em cada um de nós existe este núcleo, repleto de energia e esperança.” Ali onde Deus habita em mim é que permaneço saudável e inteiro; onde a doença perde seu poder – ali está minha alma. Algumas vezes o corpo dói porque a alma adoeceu; noutras vezes, a alma é que dói porque o corpo está doente. Não há como separar um do outro, não temos um corpo e uma alma – somos corpo e somos alma. Não é possível curar o paciente se não o enxergarmos como alguém inteiro. Abraham Heschel escreveu: “A alma tem seu lar onde se reza. A oração é a morada da alma.” Sendo assim, tratar da alma é ajudar o paciente a se reencontrar, ou a encontrar pela primeira vez esse seu núcleo interior onde pode acessar suas forças, sua fé, suas energias vitais e sua cura. Rezar, ou orar, significa entrar em contato com o desejo da alma e ajudar o paciente a fazer esse contato, esse caminho até si mesmo – um caminho terapêutico necessário, seja na trajetória para a vida ou para a morte. Como a alma não aparece em exame algum, o paciente até pode estranhar que queiramos nos (pre)ocupar com o assunto. Mas é ali onde conseguimos colocar nosso amor – que não tem pátria em religião nenhuma e é humano C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to Pastora Vera Cristina Weissheimer enfa. suzana Bianchini (Coren 50656) 27 desde que o primeiro humano começou a perambular pela terra – que colocamos também nossa alma. Tratar a alma é ouvir as queixas do paciente em relação à saudade do seu cachorrinho, do qual teve que se afastar; é dar importância à angústia, mesmo quando a dor está sob controle; é dar a mão, mesmo que isso não conste nos protocolos; é ter um pouco mais de tempo, porque por vezes o que o paciente tem para contar pode não ter a ver com a dor em si, mas é sintoma de um quadro maior – a difícil e maravilhosa tarefa de ser um ser humano. Temos ainda, na área da saúde e, mais especificamente, no cuidado ao paciente, um modelo assistencial denominado Relationship-Based Care (RBC) ou Cuidado Baseado no Relacionamento, que se propõe a instrumentalizar os profissionais do cuidado direto e indireto, para que transformem a prática do cuidar. As transformações necessárias para que o paciente e sua família sejam verdadeiramente o centro da prática dos profissionais do cuidar, pedem que estes reflitam sobre três pontos principais do RBC: o relacionamento com paciente e família, o autoconhecimento e o relacionamento com os colegas. Quando se refere ao autoconhecimento, a compreensão de que todos os seres humanos são formados por corpo, mente e espírito, é primordial para trazer a reflexão sobre a necessidade de equilíbrio entre esses três componentes para que haja a saúde, como também a promoção da cura. O profissional que se propõe a transformar sua prática, adotando o RBC como modelo de cuidar, deve iniciar essa transformação pelo autoconhecimento, por uma reflexão profunda sobre seus desejos pessoais e profissionais e sua visão de futuro. A grande reflexão consiste em “se ver com os olhos do outro”, enxergando desta forma como ele é percebido pelo outro e como ele se relaciona com o outro. Essa percepção consiste no momento vital para a construção de um ambiente em que os relacionamentos sejam baseados e constituídos verdadeiramente no respeito entre os seres humanos, respeito entre os membros da equipe multiprofissional e conseqüentemente no respeito pelo paciente e sua família. Esse respeito fará com que todos os envolvidos no processo de cuidar possam dizer que verdadeiramente foram vistos, ouvidos e receberam atenção. A construção de relacionamentos baseados no respeito mútuo criará verdadeiros ambientes de cuidado e de cura, onde o cuidar técnico é extremamente importante, mas o cuidar por meio de relacionamentos de respeito entre os seres humanos pode promover a cura da alma, mesmo que por um breve momento, mas que será extremamente impactante para todos os envolvidos no processo do cuidar. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 28 O luto no contexto hospitalar “Porém, embora a gente faça de tudo para não notar, a morte está empoleirada em nosso ombro, espiando com seu inquietante olho de coruja: o que fazer com tal inquilina e com o tempo que ela ainda nos concede?” (Luft, 2006) Cada cultura tem suas próprias representações da morte. Em nossa atual sociedade, creio haver um misto daquilo que Ariès (1977) denomina de morte interdita e/ou oculta e que Kovács (2003) denomina de morte escancarada. Na primeira, a morte é vista como inimiga a ser vencida a qualquer custo, muitas vezes às custas daquilo que podemos chamar de vida. A obstinação terapêutica, pode-se dizer, dela é fruto e os grandes combatentes da morte são os médicos aos quais é atribuído (e eles muitas vezes também o fazem), o papel de guardiães da vida (Zaidhaft, 1990). Na segunda, a morte é banalizada, trazida de todas as formas pela mídia (que invade as casas), sem a possibilidade de uma mediação... Há, por assim dizer, uma banalização da morte, podendo levar a uma banalização da vida, do humano... Ambas as formas de representação da morte trazem como consequência a desumanização daquilo que há de mais humano: nossa finitude! Afinal, ela tocará a todos nós, ainda que não saibamos quando, onde e como. Apenas intuímos que talvez ela possa ser suavizada se houver alguém que seja presença e companhia, atravessando junto conosco o vasto campo da solidão. Também como consequência dos avanços científicos e tecnológicos do século passado e deste século, há uma mudança no que concerne ao local da morte, passando este a ser predominantemente o hospital onde, paciente, familiares e equipe de saúde formam, segundo penso, uma unidade de cuidados. Como tal, as ações, omissões, sentimentos, o dito e o não dito por um, terá reflexos no outro. São as reverberações... Qual a importância de entendermos as representações da morte e delas nos apropriamos? Elas são fundamentais para a forma como o processo de luto será ou não vivido, além, é claro, da “bagagem” e características pessoais de cada um. O PROCEssO dE LUTO (...) E fostes e eu fiquei. Fiquei começando por onde terminaste. Não houve confronto, houve renúncia. E te devo. Não o que me cobraste. Pois ao te descobrir, me revelei. C O M O EU T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to PsiCóloga ingrid esslinger (CrP 06/21550-5) A iniciativa no acalanto da partida... (...) Vai. Não te posso impedir. Não te seguirei... Nem devo. Tentarei ir pelo caminho de mim. “Perda” , Leda Lisboa Este poema traz, de forma belíssima, sensível e clara, a tarefa principal do processo de luto: deixar o morto ir sem que com ele morramos! 29 C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to O luto é definido como um processo que tem início após a perda significativa de um objeto – entendido no sentido psicanalítico, ou seja, uma pessoa, um relacionamento e até uma situação que tenham sido investidos de afeto e energia, com a qual se tem um vínculo forte. O papel-tarefa do luto é dar um sentido à perda para que a pessoa enlutada consiga seguir em frente. O psiquiatra e psicanalista inglês John Bowlby (1907-1990) define como tarefa deste processo reconhecer e aceitar a realidade; lidar com os problemas que advêm da experiência da perda, permitindo que a pessoa se reorganize sem a presença do objeto perdido. Uma das principais condições para que este trabalho se complete é a possibilidade de compartilhamento e expressão da dor. Pergunto: a formação dos profissionais de saúde, notadamente do médico, os instrumentaliza para lidar com as questões “do coração”? E mais: aos profissionais de saúde é dado o suporte necessário para lidar com o seu próprio luto? A dor destes profissionais é reconhecida, acolhida e validada? Observa-se neste processo de formação, ausência ou escassez de disciplinas que discutam tanto os aspectos cognitivos quanto afetivos relacionados ao processo do morrer e do luto; há também, como apontam vários estudos (Carvalho, Esslinger, Kovács, Shimizu), uma ausência de cuidado a estes cuidadores e esta é minha questão central: como posso cuidar, se não sou cuidado? Como posso ajudar o outro na expressão e elaboração de seu luto se a mim é vetado o contato com os sentimentos? Ou, quando os sentimentos são percebidos, o profissional passar a questionar seu profissionalismo! Franco (2003), ressalta que as relações no contexto hospitalar apresentam múltiplas implicações. São relações profissionais, mas que reeditam vínculos anteriores. Nas palavras da autora: “o profissional que trabalha em hospital sabe que há pacientes especiais, com os quais estabelece uma relação diferenciada. A morte deste paciente provoca luto, como se fosse por uma pessoa com a qual mantém relações de outra ordem, que não a profissional...É, portanto, um luto que precisa ser admitido, reconhecido e vivido em sua integridade, como um luto que tivesse ocorrido em outro contexto”. Alguns depoimentos extraídos de minha pesquisa de doutorado (Esslinger, 2004), demonstram claramente o grau de sofrimento contido na não legitimação dos sentimentos destes profissionais: “O médico, a gente é formado para evitar que as pessoas morram. Vou falar do médico “geralmente” e do médico “eu”. Nossa formação é para curar. Você não é formado para estar junto num processo de morte. Acompanhar isso aí com todas as coisas que são inerentes à família, paciente e tudo isto”. “Parece que a enfermeira que chora ao lado do leito do paciente que acabou de morrer, ou que chora junto com a família, quando a família está lidando com a situação de morte, é uma enfermeira pouco preparada, é uma enfermeira que não sabe lidar com as emoções”. “Desde o primeiro momento eu quis idealizar algumas coisas. Até que ponto a dificuldade em dar o diagnóstico é minha, porque não tolero a frustração de não ser bom; até que ponto é a dificuldade também de não aguentar ver o sofrimento de outra pessoa ou de não ser aceito, de não ser visto como todo poderoso?” Pode-se dizer que no hospital prevalece o luto não franqueado que caracteriza qualquer processo em que aquilo que foi perdido não é reconhecido e/ou valorizado pela sociedade ou em um determinado contexto (por exemplo, a instituição hospitalar). Segundo Doka (2002), há cinco razões para o não reconhecimento da dor daquele que sofre a perda. Uma delas, o enlutado não reconhecido, aplica-se aos profissionais de saúde. Considerando que o cotidiano destes é permeado por inúmeras situações de perdas, doença e morte, não fica difícil entender o porquê do alto índice de adoecimento desta categoria. Numa perspectiva sistêmica, a morte pode ser entendida como um processo transicional, que envolve os mortos e os sobreviventes num ciclo de vida comum, que reconhece a finalidade da morte e a continuidade da vida: cabe aos profissionais de saúde ajudar neste processo, colocando a perda numa perspectiva funcional o que significa ajudar as famílias a estar em harmonia com o passado, não em luta para recapturá-lo, escapar dele ou esquecê-lo. A família e o paciente têm como tarefas: a- O reconhecimento compartilhado da realidade da perda b- A reorganização do sistema 30 c- O investimento em outro projeto No médico e na equipe de saúde de forma geral é depositado um “saber/poder”, um “saber/fazer” que dá ao paciente e aos familiares a segurança de que haverá alguém em quem e a quem confiar sua dor. Alguém que, como bem diz Alves , “ande comigo no escuro da noite, segure meu medo em suas mãos”. Pela confiança depositada por parte dos pacientes e familiares na equipe de saúde, num momento de extrema vulnerabilidade, faz-se necessário que este profissional entre constantemente em contato com sua história pessoal de perdas e rompimento de vínculos. Um caminho para a humanização do cuidado... Humanizar é acolher esta necessidade de resgate e articulação de aspectos indissociáveis: o sentimento e o conhecimento. Mais do que isso, humanizar é adotar uma prática na qual o enfermeiro, o profissional que cuida da saúde do próximo, encontre a possibilidade de assumir uma posição ética de respeito ao outro, de acolhimento do desconhecido, do imprevisível, do incontrolável, do diferente, do singular, reconhecendo seus limites. (Baraúna, 2003). Para tanto, torna-se necessário que as instituições repensem a maneira como cuidam de quem cuida. Para fazer referência ao título desta obra: como tratar e/ou cuidar de quem cuida? Existem inúmeros caminhos os quais não vou descrever no presente artigo, mas é inegável que todos eles passam pela integração dos aspectos acima mencionados: ciência e sapientia. Todos os caminhos passam também por um resgate da morte familiar, domada, nomeada, “na hora certa”. Neste sentido, muito do cuidado aos cuidadores profissionais será decorrente de uma mudança de paradigma na instituição hospitalar: do curar, para o cuidar! Faz-se extremamente necessário uma adequada percepção de quais as necessidades psicológicas do profissional que tem, nas palavras de Pitta, a dor e a morte como ofício! Faço minhas as palavras de Alves (1997): “Sugiro, para a ciência, uma nova consciência: a de serva da sapientia. O único propósito dos saberes é tornar possível a exuberância dos sabores. Pois o que Barthes disse, afinal de contas, é que dali para a frente ele tomava a culinária como modelo para seu labor intelectual. Quem sabe, algum dia, esquecidos os saberes acumulados, cientistas e mestres se tornarão sábios e as escolas e universidades tomarão as cozinhas como modelo...” Como pode se dar este cuidado na prática? Este tema pode ficar para uma próxima reflexão. “ O sofrimento só é intolerável quando ninguém cuida”. (Dame Cicely Saunders) Referências bibliográficas - Alves, R. Cenas da vida. Campinas, Papirus, 1997. - Alves, R. Entre a ciência e a sapientia. São Paulo, Loyola, 1999. - Ariès, P. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. - Baraúna, T. Humanizar a ação para humanizar o ato de cuidar. O mundo da saúde, v. 27, n 2, p.304-307, 2003. - Bowlby,J. Perda, tristeza e depressão. Vol. III. São Paulo, Martins Fontes, 1973. - Carvalho, V. A. Cuidados com o cuidador/Who cares for the carers? O mundo da saúde, v.27,n.1, p.138-146, 2003. - Doka, K.J. Disenfranchized grief- New directions, challenges and strategies for practice. Research Press, 2002. - Esslinger, I. De quem é a vida, afinal? Descortinando os cenários da morte no hospital. São Paulo, Casa do Psicólogo/Loyola, 2004. - Esslinger, I.; Kovács, M.J.; Vaiciunas, N. Cuidando do Cuidador no Contexto Hospitalar. O mundo da saúde, v. 28, n.3, p. 277-283, 2004. - Esslinger, I.; Kovács, M.J.; Vaiciunas, N. Cuidando do Cuidador em UTIs Pediátrica e NeoNatal. O mundo da saúde, v. 32(1), p. 24-30, 2008. - Esslinger, I. Luto Proibido, In: Revista Mente e Cérebro, p 55 a 57, Ed. Duetto, ano XVIII, n. 216., janeiro/2011. - Franco, M.H.P. Cuidados Paliativos e o Luto no Contexto Hospitalar, Mundo da Saúde, v.27, n.1, 2003. - Kovács, M.J. Educação para a morte – Desafio na formação de profissionais de saúde e educação. São Paulo, Casa do Psicólogo,2003. - Luft, L. Em outras palavras – Crônicas Rio de Janeiro- São Paulo, Record, 2006. - Pitta, A. Hospital: dor e more como ofício. São Paulo, Hucitec, 1990. - Zaidhaft, S. Morte e formação médica – Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1990. - Shimizu, H.E. As representações dos trabalhadores de enfermagem não enfermeiros (técnicos e auxiliares de enfermagem) sobre o trabalho em unidades de terapia intensiva em um hospital-escola. São Paulo, Dissertação de doutorado. Escola de Enfermagem, USP, 2000. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 31 O imbricamento entre a clínica e o direito na questão da terminalidade O tema em apreço é eivado de ideias equivocadas e mesmo, algumas, pelo menos, preconceituosas. A finalidade deste texto será, portanto, esclarecer o quanto possível os conceitos a ele afetos. Falaremos de eutanásia, distanásia, ortotanásia e algumas entidades clínicas relacionadas. A eutanásia comporta definição clínica e jurídica. Para o melhor entendimento do conceito clínico, é necessário lembrar que a vida é um ciclo biológico que terminará, inexoravelmente, em algum momento. Posto isso, pode-se definir eutanásia, medicamente, como qualquer ação humana, comissiva ou omissiva, que antecipe o término natural desse ciclo, provocando a morte. Ao contrário, distanásia define-se como qualquer ação que prolongue a vida para além do momento do término natural do ciclo. Constitui-se, concretamente, na aplicação de medidas terapêuticas denominadas “fúteis” ou “inúteis” porque não possuem mais a finalidade de cura e tampouco de conforto e, ainda mais: caracterizam-se por prolongar o sofrimento e agonia do paciente e família. Do ponto de vista jurídico, a eutanásia enquadra-se na hipótese da primeira figura do § 1º (“Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor moral ou social”) do art. 121 do Código Penal (CP): trata-se, portanto, de homicídio, embora em um modo beneficiado por uma condição privilegiadora, o que significa, no caso, diminuição da pena entre 1/6 e 1/3 daquela aplicada à forma simples ou fundamental, que é de 6 a 20 anos. Não há, evidentemente, tratamento jurídico para medidas caracterizáveis como distanásicas, mas faremos algumas considerações nesse sentido no desenrolar deste texto. Em contraponto às condutas expressas pelos dois conceitos expostos acima e para exprimir o que seria a conduta equilibrada entre ambas, que se caracterizasse, em termos amplos, pelo respeito ao transcorrer natural dos últimos momentos da vida, cunhou-se o termo ortotanásia. Parte dos estudiosos do assunto evita o uso desse termo, porque, pela semelhança com a palavra eutanásia, teria incorporado certa carga de valor simbólico negativo. Utilizam-se, assim, preferencialmente, de termos tais como terminalidade, medidas paliativas e paliativismo. Diferentemente de outros países, não há leis no Brasil que tenham como objeto regulamentar o paliativismo. Há, sim, três normas referentes ao assunto: um dispositivo de lei e duas resoluções do CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to dr. sergio Pittelli (oaB/sP 165.277) 32 O dispositivo legal, entretanto, vem a ser exatamente o já citado art. 121 do CP, que, como sabido, não tem por objeto precípuo as situações clínicas terminais (certamente nem se cogitava esse tipo de questão quando da edição deste código, em 1940), tratando o assunto apenas de forma tangencial, ao qualificar a eutanásia como forma privilegiada de homicídio. Trata-se mais de um marco delimitador da ação do médico, uma espécie de “cerca” além da qual estaria o profissional agindo no campo da ilegalidade. Sendo assim, as duas únicas normas precipuamente voltadas para o objeto em questão são infra-legais: as Resoluções 1805/2006 e o CóDIGO DE ÉTICA MÉDICA, Resolução 1931/2009, ambas do CFM. Consideramos a Resolução 1805/2006 uma elaboração de rara felicidade por incorporar simplicidade (são apenas dois artigos tratando o objeto) e abrangência plena do tema. Transcrevemos abaixo os dois artigos, seguidos dos comentários pertinentes. Art. 1º. É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. Do primeiro dispositivo vale ressaltar, inicialmente, tratar-se de norma permissiva e não imperativa. Ou seja, o médico está autorizado, mas não obrigado a proceder nos termos preconizados. Por outro lado, as situações em que se aplica o dispositivo caracterizam-se pela tríade terminalidade, gravidade e incurabilidade; estando ausente qualquer um dos três elementos, não está caracterizada a condição abrangida pela norma. As implicações desta constatação serão expostas mais à frente. O sentido da norma completa-se com o texto do art. 2º, que, ao determinar a continuidade dos cuidados sob forma de medidas de alívio e conforto, afasta definitiva e expressamente a ideia de abandono que setores da sociedade atribuem às medidas paliativas. Significativamente, a norma não define terminalidade. Tal condição vem a ser um diagnóstico médico feito no caso concreto. Por último, integram o art. 1º três parágrafos que garantem direitos do paciente, tais como informação e autonomia (§§ 1º e 2º) e obrigam o médico a registrar suas decisões no prontuário (§ 3º). Logo após sua edição, a Resolução 1805/2006 foi objeto de equivocada ação judicial por parte do Ministério Público Federa, tendo tido, num primeiro momento, sua eficácia suspensa liminarmente. Posteriormente, entretanto, o próprio órgão pediu a improcedência da ação, o que efetivamente se concretizou em sentença transitada em julgado, de modo que, hoje, a norma vige plenamente. Vejamos agora o segundo dispositivo, que vem a ser o CóDIGO DE ÉTICA MÉDICA (CEM), Resolução 1931/2009. Dele, interessa-nos o art. 41 (capítulo V – Relação com pacientes e familiares), abaixo transcrito. (É vedado ao médico:) Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. O caput do artigoproíbe a eutanásia, medida que, além de satisfazer a exigência legal (art. 121, § 1º do CP) tem o efeito simbólico de afirmar, mais uma vez, a diferença entre eutanásia e cuidados paliativos. O parágrafo único retoma o tema “paliativismo”, ou seja, tem por objeto o mesmo da Res. 1805/2006. Mas aqui devemos apontar para o que nos parece ser uma diferença fundamental: a mudança do caráter permissivo do art. 1º da Res. 1805/2006 para caráter imperativo. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 33 Essa conclusão decorre da mudança do verbo utilizado (“deve”) associada à expressão “sem empreender...”. O conjunto parece conotar imperatividade à norma. Com efeito, o verbo dever possui, entre suas significações, segundo o dicionário Houaiss (2001, 1ª ed.), a seguinte: regra imposta pela lei, pela moral, pelos usos e costumes ou pela conveniência legítima do agente; obrigação Ex.: <votar é d. do cidadão> <o d. de amar o próximo> <a hospitalidade é d. de todos> Como a preposição “sem” tem caráter de negação, a soma do sentido imperativo do verbo com a negação/ vedação (neste caso) promovida pela preposição justifica a opinião em apreço. Há, entretanto, dois argumentos que permitem entendimento contrário a este. O primeiro constituído pelo fato de que o verbo dever possui também algumas conotações não imperativas. Exemplo, do mesmo dicionário: uma obrigação à qual o sujeito se submete ger. em razão de um preceito moral ou de um saber prático Ex.: <os alunos devem obedecer ao professor> <devemos todos escovar os dentes diariamente> Entendemos que este significado também é aplicável ao texto da norma em discussão. O segundo prende-se a saber se o poder normativo do CFM abrange esse tipo de determinação de conduta, discussão que não cabe neste texto. Desconhecemos, até o momento, qualquer manifestação oficial do órgão que permita saber seu entendimento próprio. A importância dessa questão é que, ao admitir a imperatividade da norma, sua não observância passaria a constituir falta ética, com todas as implicações disciplinares. Na ausência de lei (conforme apontado no início deste texto), o “tratamento jurídico” dado à distanásia no ordenamento jurídico nacional são as duas normas ora discutidas. Antes de passar à seguinte e última parte deste texto, registramos que, também pela já apontada ausência de lei regulando a matéria, o assim chamado “testamento vital” deve ser necessariamente balizado nas duas normas do CFM. Assim sendo, só pode o cidadão “testar” nos limites do estabelecido nos dois textos discutidos. Ao fechar a análise dos dois dispositivos, é importante registrar que ambos autorizam apenas e tão somente a supressão de medidas consideradas fúteis e/ou inúteis do ponto de vista terapêutico, devendo ser mantidas todas as medidas relativas ao tratamento do sofrimento físico, psíquico e espiritual, que incluem, evidentemente, cuidados relativos a alimentação, higiene e acomodação adequada. Estabelecidos os conceitos e as delimitações jurídicas do tema, vejamos algumas questões de ordem prática. Em nossa experiência pessoal médica, causa importantíssima do preconceito contra o paliativismo é a confusão que o leigo faz entre as entidades clínicas envolvidas. Na esfera da doação de órgãos, por exemplo, ou mesmo em casos de morte encefálica em não doadores, é necessário esclarecer que morte encefálica e estado neurovegetativo persistente (ENV), além de não serem a mesma coisa, não são coma e a nenhum dos três se aplicam quaisquer medidas abreviadoras da vida. À morte encefálica, porque o paciente já está morto, tanto biológica quanto legalmente. Ao ENV, porque se trata de um quadro sequelar, considerado enfermidade grave e até incurável, mas que não é terminal e ao coma porque, embora seja uma enfermidade grave, é uma condição tratável. Estendendo o âmbito das enfermidades, é necessário esclarecer ainda que quadros de sofrimento intenso em enfermidades não mortais (por exemplo, tetraplegia ou dor patológica não oncológica) não se enquadram nas hipóteses das duas normas do CFM, assim como dor oncológica em pacientes não terminais e mesmo formas de neoplasias presentemente incuráveis, em fase inicial, quando ainda comportam tratamento com finalidade terapêutica. Cremos que o esclarecimento preliminar sobre tais questões possa, eventualmente, auxiliar leigos envolvidos em situações de terminalidade a tomar mais serenamente suas decisões. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 34 dra. maria José Femenias Vieira (Crm 36525) Reflexões sobre o morrer e o viver Fragmentos Lá estava ela sentada defronte ao microscópio Tão serena e segura Acho que não se enganaria. Entrei tímida Não queria atrapalhar... E perguntei: “Você viu o exame do meu amigo?” Ela respondeu: “Ainda não. Estou atrasada” Tinham tantos exames sobre aquela mesa... Mas, esperta, experiente, nem precisou saber o número do registro Bateu o olho na lâmina e disse: “Só pode ser esse” Eu pensei: “Como pode ter tanta certeza!” Eram várias lâminas. Pareciam todas iguais. Eram róseas e às vezes com um tom de violeta. Comprovou que era aquela com a frase: “Não disse?” É verdade. Tinha dito mesmo. O fragmento era tão pequeno! Devia ter menos do que meio centímetro. Mas continha a sentença para a vida ou para a morte. Mas era tão pequeno... Como era possível?! Aquele laboratório tão frio... Olhou com a lente. Se sem a lente era tão boa, imagine com a lente. Com certeza acertaria. Fiz uma oração. “Deus, faça com que seja o melhor. Mude as células. Por favor, Deus...” Silêncio. Olhou para mim e disse: “É. Parece que é o pior” ....e pensei....muito rapidamente.... Como assim?! O fragmento é pequeno demais! Deve haver algum engano. Não pode ser. Está errado. Talvez, olhar um fragmento maior... Aquele era muito pequeno Levou duas horas para consegui-lo na biópsia Mas era muito pequeno A vida é muito grande Muito preciosa para se transformar num laudo Como se atreve a dar este diagnóstico? Eu não estou preparada para recebê-lo Quero que mude Quero um fragmento maior Do tamanho da nossa vida Do tamanho da minha dor... C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 35 Primeiramente, devemos lembrar que, hoje em dia, o câncer nem sempre leva à morte. Os medicamentos quimioterápicos, as técnicas cirúrgicas e a propedêutica armada que determinam diagnósticos mais precoces de recidivas permitem que a vida se estenda e, além disso, tenha mais qualidade. Em segundo lugar, o fato de ser portador de uma doença não confere destino fechado, uma vez que a fragilidade da existência demonstra a instabilidade do futuro em relação à saúde física, emocional e social. A única coisa certa que sabemos da vida é que vamos morrer. Não se sabe como, quando e por que; mas esta é uma certeza sem contradição. Vamos morrer e isto doi. Passamos a vida buscando coisas que afastem este pensamento, pois é muito doloroso pensar na própria morte. Deixar de existir. Não fazer mais parte do elenco no grande espetáculo da vida. Antes de conseguir compreender a morte é preciso entender que vida é o que acontece entre o nascer e o morrer. A vida se mostra muito frágil e solitária. Nascemos sozinhos. Morremos sozinhos. E no meio destas duas solidões, a vida acontece. A vida busca o preenchimento da solidão e da dor que o próprio viver contém. Não adianta fugir. Ela chegará. É a grande castração. Chega e nos arrebata da vida. Quando ela atinge pessoas do mundo corporativo, executivos, indivíduos no auge de sua potência profissional e com um extenso e brilhante futuro, pode-se ponderar sobre as reações. Por este motivo, a necessidade de refletirmos sobre a vidae a terminalidade. A condução destas reflexões poderão ser por meio do acolhimento do profissional de saúde, sua competência profissional, a atualização frente às novas terapêuticas e métodos de diagnóstico, e a própria história de vida dos envolvidos. Devem-se levar em consideração os recursos financeiros pessoais ou dos planos de saúde e o tempo entre o diagnóstico e inicio da terapêutica. O diagnóstico de câncer ou outras doenças graves não levam a um destino fechado, porém ocorrerão mudanças na rotina diária, não só do portador da patologia, mas dos familiares, amigos e da própria empresa. Como enfrentar estas mudanças? Como reagir quando chega um diagnóstico, que inverte a sequência do viver, como um carro, que faz um “cavalo de pau” e muda a direção. Como desmarcar reuniões, visita a clientes, palestras, congressos, viagens e passar a ir a médicos, laboratórios, ver agulhas e ficar dentro de máquinas, que nos fotografam por dentro, e às vezes a imagem obtida não é tão alegre? A médica Elizabeth Kübler Ross observou pacientes com diagnósticos de doenças graves, com possibilidade de morte mais precocemente. Talvez tenha realizado estas pesquisas para resolver o próprio complexo da morte que a incomodava e não solucionava. Procurou no outro aquilo que por ela mesma não estava conseguindo resolver. Segundo esta autora, a primeira fase quando se recebe uma notícia da possibilidade de morrer antes do previsto (se é possível fazer esta previsão), é a negação. Isto ocorre quando a expectativa perante fatos da vida não correspondem ao que era esperado. Frases tais como: “não é comigo”, “isso não é verdade”, “deve haver algum engano”, são ditas pelas pessoas ao se depararem com vicissitudes da própria vida ou das pessoas que se relacionam afetivamente de forma mais profunda. Esta fase da negação, no entanto, é importante, pois ajuda o indivíduo e os familiares a se reorganizarem perante a pior dor que poderá chegar. A sensação de ser portador de uma doença grave e a possibilidade da morte consome a energia da vida. Há necessidade de um tempo para mobilizar medidas menos radicais. Andamos de braços dados com a morte desde o nascimento, mas por vezes ela parece distante, como se nunca fosse nos atingir. C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 36 Na cena do clássico cult-movie de Ingmar Bergman, o Sétimo Selo, a morte e um guerreiro jogam xadrez. O diálogo entre os dois personagens demonstra esta guerra silenciosa que se trava desde o primeiro encontro com a vida. A cena começa com o guerreiro fazendo uma oração. Não é possível saber se é de agradecimento, se é para pedir algo, se é por arrependimento, ou talvez os três. A morte vem buscar o guerreiro e diz que já está ao seu lado há muito tempo e que é chegada a hora. O guerreiro então propõe um jogo de xadrez e, se ele der o xeque-mate, poderá viver e a morte o deixará em paz. Este jogo está ocorrendo desde que nascemos. Só que, talvez, nestes momentos mais limítrofes, tenha-se a oportunidade de pensar com mais cuidado no movimento das pedras e a negação ajuda, e mistura-se com ela a segunda fase que Kübler Ross descreve como a da raiva. Esta é a mais difícil para os que estão ao redor, mas por outro lado é boa para o doente, pois ele pode manifestar o seu sentimento e não tem mais nada a perder. O indivíduo questiona a todos e a Deus. Frases como “minha família foi culpada”; “falam muito”; “nada que ajude”; “os médicos são uns incompetentes que nada fazem por mim” são comuns nestes momentos. Manifestam raiva de si próprios, por terem agido de alguma forma que os levou a desenvolverem uma doença que pode levar à morte. Referem que o mundo é muito mau e se sentem injustiçados. É comum dizerem que “há tantas pessoas más no mundo e justo eu fiquei doente” e assim por diante. As pessoas ficam com raiva ao adoecer. A diferença é que algumas manifestam verbalmente e outras preferem continuar na negação ou não sentir raiva, talvez por medo de mais punição, como se houvesse alguém responsável pelo sofrimento. De qualquer forma, esta é uma fase difícil, porque somos apegados ao concreto e, quando ele foge ao nosso controle, é que nos deparamos com a finitude. Neste momento, a maioria das pessoas busca a espiritualidade como apoio. Se esta experiência do morrer e da própria finitude fosse vivida como fazendo parte da realidade da vida, talvez fosse mais verdadeiro o viver. A terceira fase que Kübler Ross identificou foi a da barganha. Isto quer dizer que as coisas são feitas esperando uma recompensa. Quando esta recompensa não chega são feitas as promessas, esperando algo em troca. Falta aí a espontaneidade, que é algo que vem de dentro do coração; algo inexplicável, que talvez somente as crianças façam. As crianças vão perdendo estas características, depois que são envolvidos com os adultos. “Você ganha o doce se fizer lição”; “seja bonzinho no médico que você não tomará a injeção” e muitos outros exemplos. E, assim, aprende- se a barganha. E por que não utilizá-la quando doentes? Pode ser em doenças graves ou mesmo quadros clínicos mais simples. É comum o paciente falar: “Doutor, farei tudo direitinho se o senhor garantir que vou melhorar”. A barganha com Deus é frequente em doenças graves. As pessoas fazem promessas, doações em dinheiro em troca da cura. Há culpa neste momento, sendo importante mostrar para o doente que ele não está sendo punido por estar doente, pois a morte faz parte da vida. Tanto os bons como os maus morrem. Os homens criaram os conceitos de castigo, incluindo as doenças e a morte como fazendo parte de uma punição. Quando o doente percebe que negar, ter raiva e criar um mercado de trocas não o levou à cura, ele pode entrar na quarta fase denominada depressão em que percebe a perda iminente das coisas que gosta. É uma fase de introspecção, de muita dor, isolamento e choro, pois não há o que fazer. Esta consciência da impotência, da solidão e da percepção da falta de controle sobre a vida, pode dar a consciência de que na realidade nunca se teve controle sobre nada, tendo-se vivido uma onipotência que nunca existiu. Neste momento, surge a aceitação, como a última fase, que de certa forma dá certa tranquilidade, pois o indivíduo deixa de lutar e se entrega. Muitas pessoas continuam jogando e enfrentam com esperança. Não se entregam. Pode-se lembrar daqueles que inclusive servem de estímulo para outras pessoas pela forma como enfrentam esta situações. Continuam trabalhando, escrevendo livros, construindo pontes e museus, recebendo prêmios, desenvolvendo novos C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 37 planos econômicos, aparecendo na mídia e dando testemunhos cheios de vida e confiança no futuro. Tenho convivido com empresários que se mantêm ativos e acrescentam em suas agendas o compromisso de cuidar de uma doença, mas não permitindo que isto seja um empecilho ao crescimento pessoal e da própria empresa. Preocupam-se com a família e as prioridades são transformadas. Segui a luta de um amigo durante quatro anos contra um tumor que apareceu de forma inesperada. Os médicos disseram aos familiares que ele teria em torno de seis a nove meses de vida. Eles não se deixaram abater por este número obtido a partir de estatísticas. Juntos, paciente, familiares, amigos e profissionais de saúde se uniram movendo as pedras do jogo de xadrez e as estatísticas tiveram que mudar. Este é um exemplo recente e está vivo na minha memória, pois este empresário continuou tomando decisões importantes nas suas idas e vindas do hospital. Além de tudo, deixou as equipes médicas surpresas com tanta pulsão de vida demonstrada. Durante uma das crises econômicas, enquanto os teoricamente “saudáveis” se apavoravam, ele mantinhaa serenidade e segurou a crise da empresa, mesmo tendo terminado sessões de quimioterapia. Uma das frases que citou foi mais ou menos assim: “O mundo estava ganhando muito dinheiro e agora vai ganhar menos; mas como toda crise... vai passar”. Os seus parceiros da empresa tomavam antidepressivos, ansiolíticos e remédios para insônia, mas ele continuou com a confiança daqueles que passam pela verdadeira “crise” e encontram o que é prioritário. Ele não desistiu de seus projetos e até plantou uma árvore. Sua secretária mais próxima em certa ocasião citou: “ele é nosso exemplo; ensina princípios de integridade, respeito e valores inegociáveis, que faz acordarmos todo dia e acreditar que todo esforço vale a pena”. O diferencial nestes momentos é o tipo de personalidade e temperamento, pois em tempos anteriores, quando estava sem qualquer doença, enfrentou outras crises com serenidade e equilíbrio. É muito importante também a entrega da vida ao médico que orquestra o tratamento e deixar que ele cuide. A confiança gera uma parceria que facilita o tratamento e também os prognósticos. Já vi muitos pacientes dizerem adeus à vida. Sempre é triste. Nunca se está preparado para tal. Uma coisa eu sei. Nestas fases de adeus, ninguém pensa que deveria ter aplicado mais dinheiro na bolsa ou comprado mais moeda estrangeira. Todos pensam no por do sol que não viu, no abraço que não deu, no carinho que não recebeu e no perfume das flores e no cheiro do morango. Por favor: não pensem na morte, mas saibam que ela está por aí. Não pensem muito nela, senão esquecerão os morangos, e as cerejas, e as flores e a areia e o mar. Ela está aí, mas o vento batendo no rosto como brisa suave dá um prazer muito grande. Estou falando de vento, brisa, não de ar condicionado. Este resseca a mucosa das narinas... Por outro lado, é bom pensar nela, para lembrar-se de viver. Seguem então as perguntas: Como travamos esta guerra? Como estamos jogando este xadrez? Talvez fosse melhor responder a estas questões no momento em que nos damos conta de que estamos vivos e que a morte está à espreita, podendo se manifestar a qualquer momento. Talvez vivêssemos a vida de uma forma mais coerente e com menos onipotência. Seria bom se esta entrega ocorresse antes da morte surgir tão próxima, uma vez que ela estava presente desde o início. Ter a consciência de que a vida é uma grande entrega entre o nascer e o morrer. É vital que se tenha a percepção da morte, pois é possível viver melhor, com o que realmente é essencial. E cada um sabe o que é essencial... Não somos deuses. Sofremos, choramos, lutamos e jogamos o nosso jogo de xadrez desde o nascimento. O tabuleiro vem pronto. As pedras são colocadas para jogarmos o nosso jogo. Ele nos pertence. Este é um grande presente. Quem move as pedras no início são as conservas culturais, mas temos a oportunidade de avaliar os movimentos, em um determinado instante, ao mirarmos este tabuleiro. O xeque-mate virá. Porém, com sabedoria, ponderação, C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 38 serenidade, pode ser até um jogo interessante... Peça isto a Deus. Ele ajuda a jogar... Olhe o tabuleiro do alto. Junto com Ele...ou sem Ele... Esta é também uma escolha. Referências bibliográficas Kübler-Ross,E – Sobre a Morte e o Morrer - Editora Martins Fontes, São Paulo, 1992 Kübler-Ross,E – A Roda da Vida- Memórias do Viver e do Morrer- Editora Sextante – Rio de Janeiro – 1998 Vieira, MJF – Uma cirurgiã na Encruzilhada in Psicossoma III – Interfaces da Psicossomática – Editora Casa do Psicólogo- São Paulo-2004 Vieira, MJF – E agora, doutora?! Estou câncer com câncer. – Revista de Marketing Industrial 53 ;44 – 49 – São Paulo - 2011 C O M O E U T R A TO A A L M A | C o m o e u t ra to 39 DR. PAULO D. PICON (CRM/RS 11057) Dr. Rafael V. Picon (CRM/RS 35287) No exercício da Medicina, o convencimento é formado com liberdade intelectual, mas este deve estar sempre apoiado em evidências, admitindo-se uma seqüência hierárquica entre estas, norteado pela assertiva de que “não há prova por mais especial que seja, que possa suprimir-lhe a falta”. A EvidênCiA CiEnTíFiCA EM MEdiCinA Foi somente com a incorporação do método científico como fundamento para a tomada de decisão terapêutica que os médicos conseguiram demonstrar a inadequação de alguns tratamentos recomendados por décadas ou mesmo séculos. Por muito tempo o imaginário médico assumiu que o tratamento de pacientes individuais reproduzisse o experimento científico. Entretanto, no experimento, em condições controladas, após uma intervenção sobre determinado substrato, pode-se medir objetivamente a mudança de condição do substrato imposta pela intervenção. Por analogia, entendeu-se, à exaustão, que a intervenção sobre o homem doente fosse, primordialmente, a causa de sua cura. A isto devemos a catastrófica e secular utilização de sangria para tratamento de “todos os males” e mais recentemente a utilização da “catarse” (limpeza intestinal através de procedimentos laxativos) para numerosas situações clínicas, algumas das quais foram até pioradas pelo tratamento. A morte de René Descartes em 1650, aos 54 anos, atribuída à sangria instituída para tratamento de uma pneumonia é um exemplo do mal que um tratamento ineficaz e até mesmo deletério pode trazer à humanidade. Ele não acreditava neste procedimento específico, mas, acabou anuindo a ele apressando o fim de seus dias. Nada mais avesso ao espírito cartesiano do que seguir modas que desviem a razão dos seus objetivos. Em tempos de modernidade, temos assistido a outro fenômeno, não menos deletério do que os citados acima, que é a apropriação, por parte das grandes corporações, do método de investigação clínica e da sua força de convencimento, para propiciar a criação do fundamento “científico” para vender medicamentos a preços cada vez mais inacessíveis para a maioria das famílias mais abastadas do mundo. O conhecimento científico evoluiu, os métodos diagnósticos e terapêuticos tornaram-se cada vez mais específicos e acompanhados de procedimentos mais complexos. Apesar destes avanços, a comunidade científica observa com preocupação uma progressiva má utilização destes processos de pesquisa e produção do conhecimento. Como eu trato baseado em evidências C O M O E U T R A TO B A S E A D O E M E V ID ê N C IA S | C o m o e u t ra to 40 hiERARqUiA dAs EvidênCiAs MÉdiCAs à LUz dA EPidEMiOLOGiA CLíniCA Toda a tomada de decisão em Medicina, nos diferentes cenários clínicos, deve ser embasada, preferencialmente, em evidências inequívocas de causalidade. Assim, idealmente, toda a intervenção médica prescrita deve ser sustentada por documentação científica que demonstre relação causal entre o tratamento e a melhora clínica ou cura. É isso que aborda a Medicina Baseada em Evidência (MBE), nome dado ao atual paradigma da Medicina, que, desde a década de 1970, propõe métodos de hierarquização e avaliação crítica das evidências com o intuito de auxiliar os médicos na tomada de decisão, embasando-a em resultados de estudos de pesquisa clínica: análises de eficácia, de segurança e de custo-efetividade das intervenções médicas. A MBE é também uma prática, definida como o uso consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência científica para a tomada de decisão no tratamento de pacientes, processo que envolve a integração entre o julgamento clínico e a experiência do médico com os dados da literatura disponível. Assim, um bom estudo de caso ou séries de casos pode ser reconhecido como melhor a evidência disponível em cenários clínicos em que não há, ou quando não é possível a realização de estudos controlados. Ciência fundamentalpara o entendimento da MBE é a epidemiologia clínica que estuda a freqüência das doenças e de seus determinantes em uma população, sempre em busca de associações ou relação causais entre esse e aquele. A epidemiologia é também a disciplina responsável pela criação e compreensão das diferentes metodologias de pesquisa clínica que, por sua vez, geram resultados com potenciais igualmente diversos para definir uma relação de causa e efeito. A relação causal e o rigor metodológico são tão importantes para a MBE que é justamente com base na força para detectar uma causalidade e na qualidade dos estudos clínicos que se classificam as evidências médicas. Dentro do âmbito da pesquisa médica clínica – que se distingue fundamentalmente da pesquisa médica básica por ter o indivíduo como objeto de estudo e não animais, tecidos, células ou moléculas – diferentes delineamentos, ou metodologias, garantem maior ou menor robustez aos resultados encontrados e, consequentemente, determinam uma relação causal entre o fator em estudo e o desfecho analisado igualmente variável. Nesse sentido, o ensaio clínico randomizado (ECR) é o delineamento de pesquisa que individualmente produz resultados com maior potencial para detectar causalidade entre uma intervenção médica e um desfecho clínico relevante como morte, cura, melhora da qualidade de vida, aumento de sobrevida etc. Sendo assim, esse delineamento merece uma breve explanação. Resumidamente, em um ECR, pacientes com uma mesma doença são aleatoriamente alocados para pelo menos dois grupos: um grupo que receberá tratamento com a intervenção médica em estudo (terapêutica nova ou sem comprovação prévia de eficácia) e um grupo controle que será tratado com intervenção padrão (com eficácia conhecida e já testada) ou, como ocorre em doenças que ainda não dispõem de tratamento, placebo. A alocação aleatória dos pacientes nos diferentes braços do estudo garante, pelas leis da probabilidade, que os grupos em escrutínio sejam homogêneos para todos os parâmetros aferidos e também para os não mensurados. Dessa forma, como em uma equação matemática, é possível isolar a incógnita e definir o seu valor, neste caso, quantificar o impacto da intervenção terapêutica em estudo sobre a evolução de uma doença. Há ainda outro método de pesquisa clínica que confere resultados tão ou mais robustos que os de ECRs: a revisão sistemática com meta-análise ou, simplesmente, meta-análise. Defini-se como: uma síntese estatística dos resultados numéricos de diversos estudos que avaliaram a mesma questão, ou seja, é um delineamento de pesquisa que através de uma revisão sistematizada de toda a literatura médica pertinente e de técnicas de modelagem estatística é capaz de compilar os resultados de, por exemplo, vários ECRs que analisaram a mesma intervenção em um mesmo cenário clínico e determinar, de forma ainda mais precisa e acurada, o impacto de uma terapêutica sobre uma doença. Entretanto, como a metáfora da torta de maçã feita com maçãs podres, devemos também ser muito críticos quanto ao poder destes estudos, pois uma meta-análise cujos ensaios clínicos não cumprirem os rigores da boa ciência estará contaminada em sua fonte. Os estudos de intervenção bem conduzidos e com alocação aleatória de participantes são tidos pela comunidade C O M O E U T R A TO B A S E A D O E M E V ID ê N C IA S | C o m o e u t ra to 41 médica internacional como os geradores dos mais altos níveis de evidência clínica, conhecidos como evidência nível 1 e 2, para meta-análise de ECRs e ECR, respectivamente. Por outro lado, as opiniões de especialistas, ou de comitês de especialistas, não fundamentadas por avaliação crítica da literatura médica ou embasadas apenas em princípios das ciências básicas (mecanicista) geram o mais inferior dos níveis de evidência: evidência nível 5. Entre esses dois pólos há todo um espectro de delineamentos de pesquisa que dão origem aos outros níveis de evidência clínica. PORqUE É iMPORTAnTE A CARACTERizAÇãO E A dEFiniÇãO dE EvidênCiA CiEnTíFiCA? Porque a cada ano mais de dois milhões de artigos são publicados em mais de 20.000 periódicos da área da saúde. Alguns destes periódicos têm seu corpo editorial montado não apenas por interesses acadêmicos, mas também por interesses corporativos. Mesmo as revistas médicas com conselho editorial forte, critérios definidos de declaração de ausência de conflitos de interesses de seus conselheiros, editores e autores, já foram envolvidas em situações embaraçosas tais como: publicações precipitadas (interesse pela novidade) ou cujo conteúdo provou-se falso, ou cujas conclusões dos autores e editores poderiam ser facilmente contestadas à luz da melhor ciência já disponível no momento da publicação. A maioria das publicações científicas tem sua produção atendendo a uma agenda que não é a agenda da sociedade. Segundo a OMS, 90% dos recursos de pesquisa mundiais são dirigidos para investigar apenas 10% das doenças. Este processo exclui doenças que não são lucrativas do ponto de vista meramente comercial e inclui na pauta das pesquisas aquelas condições onde a potencialidade do lucro está mais claramente definida. Assim, temos que ser exigentes em relação à qualidade das publicações, se elas respondem ou não a questões clinicamente relevantes para a saúde dos pacientes e se a qualidade metodológica aplicada durante o estudo científico (experimento) permite chegar àquelas conclusões. Estamos falando de leitura crítica de artigos científicos, atributo indispensável ao bom médico. Infelizmente, este treinamento não tem sido consistente nos cursos de medicina e boa parte da comunidade médica ainda deixa a desejar quanto a esta habilidade necessária para o bom exercício da medicina contemporânea. A TOMAdA dE dECisãO MÉdiCA: UM PROCEssO sOLiTáRiO Ao recomendarmos um medicamento ou procedimento médico, precisamos responder a várias perguntas: existe evidência de benefício desta intervenção para esta doença? Existem mais benefícios do que danos? Em qual grupo ou subgrupo de pacientes? Para qual desfecho clínico (reduz a pressão arterial ou reduz a mortalidade?). Em qual momento da evolução da doença este tratamento deve ser inserido? Nenhum medicamento ou procedimento médico será efetivo em todos os pacientes, para todos os desfechos clínicos, ou sequer para o mesmo desfecho clínico em outro período da evolução da doença. Um tratamento eficaz em fases iniciais da doença (ex. medicamentos inibidores da colinesterase para Doença de Alzheimer) pode ser completamente ineficaz ou deletério nas fases finais da doença. A Dra. Márcia Angell, médica, professora sênior da Escola de Medicina da Harvard, ex-editora chefe de uma das revistas médicas mais respeitadas do mundo: o New England Journal of Medicine, questionada sobre o que tem levado os Norte-Americanos a se afastarem da ciência? Respondeu: “Uma das razões é a educação científica precária que temos hoje em nossas escolas públicas. Os professores ganham pouquíssimo, então as pessoas mais talentosas não são atraídas para ensinar. Acabam indo para outras profissões... As crianças aprendem como os animais são classificados e como as coisas são vistas pelo microscópio. Mas elas não aprendem a pensar cientificamente – e isso é justamente o oposto de decorar fatos. Pensamento científico envolve ceticismo, até que haja provas. Deveríamos ensinar a maneira de avaliar evidências e como fazê-lo de forma crítica”. A Dra Márcia Angell chama a atenção para a facilidade com que os médicos são convencidos da benevolência dos novos produtos e os incorporam em suas práticas. É muito importante que se saiba que por vezes, por trás de uma alegada “redução do risco de um determinado evento” o que está colocado é o interesse financeiro em torno daquele medicamento ou procedimento. CO M O E U T R A TO B A S E A D O E M E V ID ê N C IA S | C o m o e u t ra to 42 Ora, mas será uma prescrição médica uma prova científica? À luz da MBE a resposta será “Sim”, se esta receita estiver acompanhada de uma referência bibliográfica de um ECR irrefutável que provou que aquele tratamento é eficaz e seguro naquela doença específica. Recomendações dos especialistas, individualmente, são consideradas evidência fraca se não estiverem acompanhadas da prova científica que a fundamenta. Mesmo em situações onde há prova científica de eficácia temos que estabelecer um balanço preciso para o binômio: eficácia versus segurança. Ou seja, quanto benefício versus quanto dano? Ao tomar a decisão de tratar um só paciente, os médicos têm que estabelecer qual a melhor dose para aquela situação? Quanto tempo de tratamento? É necessário que se informe ao paciente qual o desfecho clínico que irá melhorar e qual não vai responder à intervenção proposta. Não é prudente nem aceitável que uma nova tecnologia seja disponibilizada sem que ela tenha sido adequadamente estudada em seus aspectos de eficácia e segurança. Quanta eficácia? Quanta segurança? As respostas não são precisas, pois não estamos tratando de matemática e sim de fenômenos biológicos. A melhor resposta encontrada pela medicina contemporânea foi: prova científica. Leia-se: ensaio clínico randomizado, estudo clínico de eficácia e segurança, realizado em condições de isenção de conflitos de interesses, onde a única e genuína preocupação seja responder à pergunta científica. Apesar de conter numerosas limitações (especialmente nas questões de segurança), é atualmente considerado como procedimento mínimo necessário para criação de prova científica. Aos demais métodos de investigação atribuem-se pesos menores ou de meros geradores de hipótese. Infelizmente, não é possível realizar um ECR para cada situação de dúvida terapêutica, nestas situações as decisões são embasadas por estudos de menor qualidade metodológica o que já nos remete a uma situação de maior risco de estarmos optando por um tratamento pouco eficaz e com baixa segurança. Para eventos adversos muito raros são necessários milhares de pacientes serem expostos para que se possa detectar um caso. Prudência nunca é demais, pois morrer após usar um analgésico é inaceitável se pensarmos que existem várias alternativas terapêuticas que não causam morte. Em saúde pública, esta assertiva é muito importante e tem um caráter protetor que precisa ser compreendido pela sociedade. iMPACTO dA qUALidAdE METOdOLÓGiCA dOs EsTUdOs CLíniCOs Autoridades internacionais afirmam que o processo íntimo da realização e condução dos estudos clínicos é fundamental para sua reprodutibilidade e credibilidade. Por exemplo, durante a decisão de a qual grupo de tratamento o paciente participante da pesquisa será encaminhado (grupo controle ou tratamento ativo) é crucial que o segredo desta alocação seja mantido durante toda a investigação. Se investigadores ou pacientes forem capazes de, voluntariamente ou não, romper este sigilo, este fato implicará em uma superestimativa de até 30% a favor da intervenção em teste nos resultados finais da pesquisa. Ou seja, poderemos ter um benefício superestimado em 30% para a nova intervenção. O fato do estudo não ser duplo-cego (pacientes e investigadores desconhecem o tratamento que está sendo ministrado), permite-nos supor que esta superestimativa será de 20%. Se a análise estatística não for feita de forma a respeitar a randomização, a chamada análise por intenção de tratar, a superestimativa poderá chegar a 15%. COnCLUsõEs A prova médica é essencial na fundamentação de uma decisão clínica. Este fato torna a busca da prova ou da evidência, a leitura crítica e o convencimento pela robustez da relação de causalidade, um passo essencial no convencimento do profissional. Se por um lado, a medicina incorporou o método científico na tentativa de reduzir as incertezas, a incorporação deste entendimento por parte dos médicos não é universal. Ao contrário, quanto pior for o ensino nas escolas médicas, pior será a incorporação destes conhecimentos. Recomenda-se a todos os médicos, reciclagem contínua em leitura crítica de artigos científicos para que as tomadas de decisões sejam baseadas na melhor evidência científica disponível. Posto isso, as iniciativas de aprendizagem com especialistas através de leitura de recomendações do tipo “como eu trato” idealmente C O M O E U T R A TO B A S E A D O E M E V ID ê N C IA S | C o m o e u t ra to 43 deveriam partir da premissa de “como a melhor evidência científica disponível orienta que eu trate”. Referências 1. Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes RB, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996 Jan 13;312(7023):71-2. 2. Denis L. Rosenfield. Descartes: Discurso do Método. L&PM Pocket. Porto Alegre. 2004. 3. Fuchs FD, Wannmacher L. Fundamentos da terapêutica racional. Editora Guanabara Coogan. Rio de Janeiro. 2010. 4. Angell M. The truth about the drug companies – how they decieve us and what to do about it. Random House, New York. 2004. 5. Smith R. Curbing the influence of the drug industry: a British view. PLoS Med. 2005 Sep;2(9):e241. Epub 2005 Aug 2. 6. Smith R. Medical journals are an extension of the marketing arm of pharmaceutical companies. PLoS Med. 2005 May;2(5):e138. Epub 2005 May 17. 7. Moynihan R, Cassels A. Selling sickness: how the world´s biggest pharmaceutical companies are turning us all into patients. Nation Books. New York. 2006. 8. Shuchman M. Delaying generic competition – corporate payoffs and the future of plavix. NEJM. 2006;315:13:1297-1300 9. Sackett DL, Oxman AD. HARLOT plc: an amalgamation of the world’s two oldest professions. BMJ. 2003 Dec 20;327(7429):1442-5. 10. Sackett DL. Campaign to revitalise academic medicine: don’t believe us. BMJ. 2004 Jul 31;329(7460):294. 11. Sackett DL. Editorial independence at the BMJ: and the author apologises unreservedly. BMJ. 2004 Sep 11;329(7466):624-5. 12. Sackett D. Might banning trial publication do more harm than good? PLoS Med. 2005 Jul;2(7):e220. 13. Juni P, Reichenbach S, Egger M. COX 2 inhibitors, traditional NSAIDs, and the heart. BMJ. 2005 Jun 11;330(7504):1342-3. 14. Dieppe PA, Ebrahim S, Martin RM, Juni P. Lessons from the withdrawal of rofecoxib. BMJ. 2004 Oct 16;329(7471):867-8. 15. Angell M. Academic medical centers and conflicts of interest. JAMA. 2006 Jun 28;295(24):2848; author reply 2848-9. 16. Angell M. Excess in the pharmaceutical industry.CMAJ. 2004 Dec 7;171(12):1451-3. 17. Wazana A. Physicians and the pharmaceutical industry: is a gift ever just a gift? JAMA. 2000 Jan 19;283(3):373-80. 18. Kjaergard LL, Als-Nielsen B. Association between competing interest and authors’ conclusions: epidemiological study of randomized clinical trials in the BMJ. BMJ 2002;325:249-52. 19. Coyle SL, Physician-Industry relations. Part 1: individual physician. Ann Intern Med 2002;136:396-402. 20. Coyle SL, Physician-Industry relations. Part 2: Organizational Issues. Ann Intern Med 2002;136:403-06. 21. Murray C, Frenk J. 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O látex da borracha natural (LBN) é composto por mais de 200 proteínas ou polipeptídeos diferentes e somente cerca de um quarto destes são alérgenos, o que quer dizer que pessoas sensíveis ao látex formaram anticorpos da classe IgE a estes produtos.1 Na indústria em geral, o látex da borracha natural, há décadas vem sendo utilizado em larga escala como matéria- prima para fabricação de inúmeros produtos, incluindo os itens utilizados em produtos de assistência a saúde para fins diagnósticos e terapêuticos. Atualmente, sabe-se que a alergia ao látex é um problema que acomete cerca de 4% da população mundial. Com o passar dos anos, devido a constantes exposições dos seres humanos aos produtos derivados do látex da borracha natural, esse índice vem aumentando. Desta forma, a alergia ao látex tornou-se um risco crescente aos profissionais da área da saúde e aos pacientes que são submetidos a repetitivos tratamentos clínicos ou cirúrgicos. Os pacientes alérgicos ao látex, quando expostos aos produtos fabricados a partir borracha natural, correm o risco de apresentar reações que podem variar de uma dermatite leve até reações graves, com ameaça à vida, como choque anafilático.2 Um aspecto interessante da alergia ao látex é a existência de uma correlação com as reações alérgicas provocadas por alguns alimentos, principalmente frutas, como banana, kiwi, abacate, maracujá, manga, abacaxi ou mamão. Cerca de 50% dos pacientes alérgicos ao látex também apresentam reações alérgicas a, pelo menos, uma dessas frutas.3 Existe um vasto grupo de risco de indivíduos que manifestam algum tipo de reação alérgica ao látex, além dos profissionais da área de saúde, pacientes com espinha bífida e anomalias urogenitais congênitas, estes últimos considerados de alto risco por serem pacientes submetidos a procedimentos diagnósticos e terapêuticos frequentes.4 Este fato pode ser evidenciado no estudo de Cremer et al (1998) sobre a prevalência de alergia ao látex em população com espinha bífida, no qual se constatou que 40,5% dos pacientes desenvolveram anticorpos IgE.5 A alergia a látex pode se manifestar em qualquer faixa etária. enFa. Jeane aP. g. Bronzatti (Coren 23219) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 45 T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to Outros estudos identificaram grupos também predispostos a desenvolver reação alérgica: . Trabalhadores da indústria da borracha; . Pacientes atópicos (rinite e asma). As reações mais comuns são: . Na pele – Dermatite de contato, Urticária, Angioedema; . No sistema respiratório – Asma, Rinite, Conjuntivite; . Em setores variados do organismo – Anafilaxia. Medidas preventivas: Na prática hospitalar se faz necessária a adoção de medidas preventivas eficientes para reduzir riscos cirúrgicos aos pacientes com história de alergia ao látex. É importante informar a história prévia de alergia ao látex no momento do agendamento da cirurgia. A partir dos dados fornecidos, serão providenciados os materiais (sondas, drenos, luvas, curativos, dispositivos intravenosos, etc.), medicamentos e equipamentos isentos de látex, e adotados procedimentos operacionais especiais e diferenciados para limpeza e preparação da sala operatória, a qual deverá ser identificada como “Isenta de Látex”, alertando, assim, todos os profissionais envolvidos na assistência prestada ao paciente. Recomenda-se que a cirurgia eletiva de pacientes com histórico de alergia ao látex seja agendada no primeiro horário do dia, pois é quando encontramos os mais baixos níveis de antígenos dispersos no ar, diminuindo, assim, a exposição às proteínas do látex. Caso não seja possível agendar no primeiro horário, ressalta-se que deverão ser disponibilizadas aproximadamente duas horas e meia para o preparo da sala: limpeza e aspiração de partículas que contenham proteínas de látex, remoção de todos os artigos que possam conter látex na sua composição; garantindo um ambiente adequado. É importante a elaboração de um protocolo operacional padrão multidisciplinar, contendo a relação de todos os materiais, medicamentos e equipamentos isentos de látex. Com o objetivo de aperfeiçoar o atendimento aos pacientes, faz-se necessário disponibilizar um kit contendo todos os produtos isentos de látex será serem utilizados durante a cirurgia. Os equipamentos e materiais que não estejam identificados como isentos de látex, quando necessários, deverão ser encapados com outros produtos antes de seu uso. na presença de uma reação alérgica decorrente da exposição ao látex, recomendam-se os seguintes cuidados: − Remover imediatamente os produtos não identificados como isentos de látex, reduzindo assim o contato com o possível agente agressor; − Colocar aviso ALERGIA AO LáTEX na porta da sala de cirurgia e limitar a entrada de materiais e pessoal; − Durante a recuperação pós-anestésica e pós-operatória, deve-se manter todos os cuidados já citados. Referências: 1. Taylor JS, Praditsuwan P. Latex allergy review of 44 cases including outcome and frequent association with allergic hand eczema. Arch Dermatol 1996; 132(3): 265-71. 2. Lemgruber (empresa de industrialização de látex). Alergia ao Látex: Evite se tornar um doente ocupacional… previna-se enquanto é tempo. 2ª ed. Rio de Janeiro, 2001. 3. Delbourg MF, Guilloux L, Moneret-Vautrin DA et al. Hypersensitivity to banana in latex-allergic patients. Identification of two major banana allergens of 33 and 37 kd. Ann Allergy Asthma Immunol 1996; 76(4): 321-26. 4. Burrow GH, Vincent KA, Krajbich JI et al. Latex allergy in non spina bitida patients: unfamiliar intra-operative anaphylaxis. Aust N Z J Surg 1998; 68(3):183-85. 5. Cremer K, Hoppe A, Korsch E et al. Natural rubber latex allergy: prevalence and risck factors in patients with spina bifida compared with atopic children and controls. Eur J Pediatr 1998; 157(1): 13-6. 46 Atenção especial a pacientes submetidos a tratamentos antineoplásicos Os pacientes oncológicos têm cada vez mais opções de tratamentos antineoplásicos e, portanto, necessitam de orientações atuais, constantes e direcionadas ao seu protocolo de tratamento, que pode incluir cirurgia, radioterapia, quimioterapia e outros medicamentos antineoplásicos (anticorpos, antiangiogênicos, etc.). O conhecimento de parâmetros biológicos que possam influenciar na evolução da doença, resposta ao tratamento antineoplásico e no desenvolvimento de reações adversas é de grande interesse clínico, pois possibilita programação da assistência individualizada aos pacientes e, com isto, redução da morbidade no tratamento. Observa-se que os pacientes oncológicos submetidos a qualquer tratamento antineoplásico têm grande necessidade de receber informações durante todo o tratamento. São muito frequentes os relatos de sofrimento psicológico e ansiedade nesses pacientes. Eles experimentam queda de satisfação com a qualidade de vida durante o tratamento, também devido às mudanças nas suas rotinas. Por essas razões, a equipe de profissionais envolvidos no tratamento, em especial, o enfermeiro, exerce papel relevante quanto à orientação sobre os cuidados gerais, tranquilização e aceitação da terapêutica pelos pacientes.(1) O enfermeiro deve questionar os pacientes sobre suas dúvidas e preocupações pessoais, fornecer as orientações solicitadas e aumentar o vínculo até o final do tratamento. Pode ajudar a equilibrar o tempo e a energia gastos, durante o tratamento, com as prioridades sociais e profissionais desses pacientes e estimulá-los a terem atitudes proativas.(2) O conhecimento dos parâmetros mais influentes na incidência e gravidade das reações permite oplanejamento de condutas mais adequadas e otimização do tratamento; muitas vezes, a escolha das condutas deve ser feita com base nas queixas do paciente e na promoção do conforto e bem-estar. Há muita variedade de trabalhos na literatura sobre diferentes condutas, o que não mostra um consenso, mas os enfermeiros atuam guiados por suas experiências individuais e ações de benchmarking. Tais cuidados devem ser baseados na coleta dos dados de cada paciente e exame físico. Esses procedimentos permitem melhor avaliação da probabilidade de ocorrência dos efeitos indesejados do tratamento e, então, programação de um atendimento adequado e individualizado, com objetivo de proporcionar o tratamento sem interrupções e, consequentemente, melhor resposta clínica. enFª. ana maria teixeira Pires (Coren 46148) enfª. Fabiana Cristina mari mancusi (Coren 57442) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 47 Para que o paciente consiga acompanhar estas variedades de sinais e sintomas, a enfermagem do Hospital Alemão Oswaldo Cruz elaborou um manual para ser entregue ao paciente e familiares. Este manual é um guia geral que sumariza algumas informações bá¬sicas sobre os tratamentos antineoplásicos. Contém o conceito de quimioterapia, definição de protocolo, explicação sobre as opções de tratamento, etc. Os efeitos colaterais da quimioterapia variam de acordo com os agentes do protocolo e da sensibilidade individual do paciente. As¬sim, nem todos os pacientes apresentam os mesmos sintomas, ainda que recebam o mesmo agente quimioterápico. Há meios bastante eficientes, atualmente, de prevenir ou ame¬nizar os efeitos colaterais mais comuns da quimioterapia. Empregar todos os meios disponíveis para reduzir o impacto negati¬vo dos efeitos colaterais do tratamento é preocupação primor¬dial da equipe interdisciplinar. Após esta introdução, explicamos alguns efeitos adversos e recomendamos algumas ações. Todas as orientações são lidas em conjunto com o paciente/familiar, para que o entendimento seja total. Com isso, o relacionamento enfermeiro-paciente se fortifica e facilita o plano de cuidados. Especificamos os seguintes temas: fadiga, febre, sangramentos, náuseas e vômitos, diarreia/obstipação intestinal, mucosite, alopecia, alteração em pele e unhas, sexualidade e toxicidade neurológica. Existem atualmente vários protocolos de tratamento que incluem medicações orais. Para tal, também há orientações importantes a fornecer aos pacientes/familiares. Ex.: guarda da medicação, modo de administração, conduta em caso de esquecimento ou vômito. A maioria destes pacientes realiza o tratamento via ambulatorial, o que nos motiva a esclarecer condutas de emergência em casa. Citamos alteração neurológica (confusão mental, convulsão), febre, sangramentos, dispneia, dor não controlada com analgésicos prescritos, vômitos e/ou diarreia persistente. Este esclarecimento tranquiliza pacientes/familiares e lhes dá maior segurança. Existem várias legislações que beneficiam os pacientes oncológicos. Para tanto, também fornecemos sites com informações relacionadas ao câncer. Referências: 1. Dow KH, Lafferty P. Quality of life, survivorship, and psychosocial adjustment of young women with breast cancer after breast-conserving surgery and radiation therapy. Oncol Nurs Forum 2000; 27(10): 1555-64. 2. Golant M, Altman T, Martin C. Managing cancer side effects to improve quality of life. Cancer Nurs 2003; 26(1): 37-44. T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 48 Cuidado baseado no relacionamento (RBC - Relationship-Based Care) Quando refletimos sobre o processo de hospitalização, independentemente do desfecho, pensamos na importância da vivência deste período em que o indivíduo, e muitas vezes sua família, encontra-se dentro do hospital. Para que uma instituição de saúde tenha bons resultados e traga satisfação aos pacientes e familiares, é fundamental a existência de uniformidade na prestação dos cuidados, bem como uma prática baseada em evidências, não pautada no empirismo. Para tanto, precisamos de profissionais capacitados e continuamente estimulados a repensar suas práticas e buscar melhores resultados. Estas são premissas básicas, exigidas para o bom funcionamento de qualquer instituição de saúde. Para irmos além do mínimo necessário, buscamos recursos para melhor entender as relações que permeiam o cuidar, com o objetivo de trazer fluidez nas relações entre os profissionais e, portanto, agilidade na resolução de problemas. Essa busca tende ainda a fortalecer a relação entre o paciente, seus familiares e a equipe multiprofissional, removendo barreiras e colocando o paciente como a mais alta prioridade. Neste sentido, nós, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, optamos pelo modelo de Cuidado Baseado no Relacionamento (Relationship-Based Care – RBC), definido como um modelo assistencial que propõe a transformação da entrega do cuidado, por meio do fortalecimento das relações. Isso estimula toda a organização para criar ambientes adequados para o cuidado, onde os pacientes e seus familiares são, verdadeiramente, o centro da prática do cuidar. Este modelo pressupõe 12 valores, listados como premissas para o RbC: 1. O significado e a essência do cuidado podem ser experimentados no momento em que um ser humano se conecta com o outro. 2. Sentindo-se conectados uns aos outros, existirá a possibilidade de harmonia. 3. Cada componente da equipe multiprofissional e cada um dos diversos departamentos têm uma valiosa contribuição para dar. 4. A relação entre pacientes, familiares e membros da equipe multiprofissional é a essência do cuidado. 5. O autoconhecimento e o autocuidado são requisitos fundamentais para a assistência e para relações interpessoais saudáveis. 6. Relacionamentos saudáveis entre os membros da equipe multiprofissional resultam na entrega de cuidados de enFa. Fátima s. F. gerolin (Coren 39115) enfa. luciana Berlofi (Coren 115482) enfa. suzana Bianchini (Coren 50656) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 49 qualidade e com altos índices de satisfação dos pacientes, colaboradores e médicos. 7. As pessoas estão mais satisfeitas quando seus papéis e práticas de trabalho diário estão alinhados com seu desenvolvimento pessoal, profissional e seus valores pessoais; quando sabem que estão fazendo uma diferença positiva para os pacientes, acompanhantes e seus colegas de trabalho. 8. O valor do relacionamento com o paciente deve ser entendido, valorizado e acordado por todos os membros da organização de saúde. 9. A relação terapêutica entre família, paciente e profissional da saúde é essencial para a qualidade da assistência. 10. A experiência do paciente melhora quando os profissionais dominam sua prática e sabem que são valorizados pela sua contribuição. 11. As pessoas aceitam melhor as mudanças quando estão inspiradas e partilham uma visão comum; quando a infraestrutura é adequada para apoiar as novas formas de trabalho; quando educação relevante é fornecida para o desenvolvimento pessoal e profissional, e quando elas evidenciam o sucesso do novo plano. 12. As mudanças transformacionais ocorrem, nas relações, uma de cada vez. A equipe multiprofissional reconhece que o objetivo maior de sua prática profissional é cuidar de pacientes e familiares, sendo que os melhores resultados são obtidos quando o paciente se sente seguro dentro de um relacionamento de confiança. O relacionamento entre equipe multiprofissional, paciente e familiares é reforçado pelo foco na continuidade da assistência prestada no âmbito da colaboração interdisciplinar. Essa estrutura é composta de quatro princípios: 1. Autonomia na relação da equipe assistencial com o paciente;2. Equipe assistencial para suprir as necessidades dos pacientes; 3. Comunicação entre enfermeiro, paciente e equipe assistencial; e 4. Gerenciamento do ambiente do cuidado. O grande desafio, portanto, está em transformar o ambiente de trabalho e o ambiente do cuidar, colocando sempre o paciente e seu familiar no centro de nossas ações. Referências: 1. American Nurses Association Bill of Rights for Registered Nurses, (2001), ANA website: http://www.nursingworld.org. 2. Koloroutis M. ed. (2004) Relationship-Based Care: A model for transforming practice. Creative Health Care Management, Minneapolis, MN. 3. Manthey M (2003). Aka Primary Nursing, Journal of Nursing Administration. 33; 7/8: 369-370. Nursing: Scope and Standards of Practice, (2004) American Nurses Association, Silver Spring, MD. 4. Manthey M. The Practice of Primary Nursing. 2th Ed. Minneapolis, MN: Creative Health Care Management, 2002. Orem D E. Nursing: Concepts of Practice. 6th Ed. New York: Mosby, 2001. Care Model. T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 50 Cuidados com nutrição enteral e parenteral A desnutrição, infelizmente, ainda é um problema frequente em pacientes hospitalizados, e deve ser identificada de forma precoce, a fim de ser prevenida e tratada, pois o estado nutricional prejudicado aumenta o risco de complicações e piora a evolução clínica dos pacientes. Portanto, a terapia nutricional (TN) constitui parte integral do cuidado ao paciente. A TN é definida como o conjunto de procedimentos terapêuticos para manutenção ou recuperação do estado nutricional do paciente, por meio da nutrição enteral e/ou parenteral. Os cuidados em relação à terapia nutricional envolvem desde a indicação da melhor via de administração da TN, seleção da fórmula mais adequada, administração e monitoramento etc.; e para que todos esses cuidados sejam realizados de forma adequada, é necessário que as instituições contem com equipe multidisciplinar, e que tenham protocolos e rotinas específicos para a terapia nutricional. A nutrição enteral (NE) é o método de escolha para oferecer suporte nutricional a pacientes que têm trato gastrointestinal funcionante ou parcialmente funcionante, mas em situação clínica que impossibilite ou contraindique a alimentação por via oral, ou ainda, quando a nutrição por via oral for insuficiente (< 60% das necessidades nutricionais). A nutrição parenteral (NP) é indicada quando a alimentação por via oral e/ou enteral não é possível, por conta de trato gastrointestinal (TGI) não funcionante, obstrução do TGI, inacessibilidade, ou quando a alimentação via oral ou enteral não é desejada. Também pode ser indicada em casos graves de desnutrição, má absorção e hipermetabolismo, ou como complemento à nutrição enteral. Está indicada quando sua duração for de, no mínimo, sete dias, sendo que a via de administração (central ou periférica) deve ser avaliada de acordo com o tipo de fórmula a ser usada, condições clínicas do paciente e tempo de permanência do acesso. Atualmente, existe uma infinidade de fórmulas enterais para as mais diversas indicações, como dietas enterais hipercalóricas e hiperproteicas, dietas com imunonutrientes, dietas oligoméricas, entre outras, tornando a terapia nutricional mais ampla. Em relação à nutrição parenteral, existem as misturas 2:1 que contêm associação de glicose, aminoácidos, vitaminas, eletrólitos e minerais, e as misturas 3:1, com associação de aminoácidos, glicose, lípides, vitaminas, eletrólitos e minerais. Cabe a cada profissional avaliar a real necessidade do paciente e os benefícios que uma fórmula específica pode trazer ao quadro. nUtriCionista mYlene m. rodrigUes Faim (Crn-3 17598) enfa. rosângela Barboza silva (Coren 161660) Farma. rômula Betânia mendes a. da rocha (CrF 41361) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 51 A avaliação nutricional realizada pelo nutricionista para determinação das necessidades calóricas e proteicas do paciente, bem como de seu estado nutricional junto à equipe médica, é de extrema importância para auxiliar o médico na prescrição da terapia nutricional mais adequada e volume para se atingir as necessidades nutricionais determinadas. A apresentação das dietas enterais também evoluiu. Hoje, é possível indicar dieta desse tipo em sistema fechado; é uma NE industrializada, estéril, acondicionada em recipiente hermeticamente fechado e apropriado para conexão ao equipo de administração, evitando uma série de etapas presentes na nutrição enteral em sistema aberto, como manipulação, envase, armazenamento e transporte, prévias à infusão, que aumentam o risco de contaminação. Os cuidados na administração da terapia nutricional enteral ou parenteral também são de extrema importância para seu sucesso. Uma equipe de enfermagem bem treinada é responsável por garantir que todos os protocolos e rotinas de administração da terapia nutricional sejam realizados. Os principais cuidados de enfermagem na terapia nutricional são: avaliar a integridade da embalagem da NE e/ou NP, validade e identificação do paciente e da dieta antes da infusão, verificação do volume da NE e/ou NP prescrito pelo médico e garantir que seja infundido em sua totalidade, anotar o volume total da dieta infundida em 24 horas, verificar a via de acesso da terapia nutricional prescrita, se enteral (nasoenteral, nasogátricas, gastrostomia, jejunostomia) ou parenteral (central ou periférica), observar o posicionamento do paciente para iniciar a infusão da NE, realizar hidratação do paciente conforme prescrição, realizar balanço hídrico rigoroso, principalmente em pacientes com NP, realizar a lavagem da sonda nos horários determinados, observar sinais de intolerância à TN, observar posicionamento da sonda, realizar cuidados com a pele do paciente no local de inserção da sonda, ostomias ou cateter, realizar controle glicêmico e sinais vitais. A equipe de farmácia, além de garantir rigoroso controle de temperatura no armazenamento e transporte da NP para oferecer uma bolsa de qualidade ao paciente, atua na farmacovigilância e avaliação da interação droga-nutriente e nutriente-nutriente, a fim de promover maior aproveitamento da terapia utilizada. Além de todos os cuidados de avaliação, prescrição e administração da TN realizados pela equipe, é necessário estabelecer um plano de monitoramento da terapia nutricional aplicada, a fim de verificar sua eficácia, prevenir complicações metabólicas e sépticas e realizar adequações, se necessário, para atingir suas metas no tratamento. O monitoramento da terapia nutricional deve ser realizado por toda a equipe de assistência ao paciente (médico, enfermeiro, nutricionista e farmacêutico) de forma padronizada, devendo-se ter registros bem completos de todos os profissionais envolvidos, para melhor interpretação dos dados. O monitoramento deve ser realizado periodicamente e pode ser feito pela verificação do volume de nutrição prescrito e infundido, bem como sua relação com as necessidades nutricionais determinadas, exames bioquímicos, exame físico (sinais de edema, desidratação, deficiência ou excesso de micronutrientes), controle glicêmico, peso diário, sinais vitais, alterações gastrointestinais, avaliação das medidas antropométricas a cada 7-10 dias, reavaliação das necessidades nutricionais do paciente e verificação da evolução do estado nutricional. A terapia nutricional requer uma série de cuidados por parte de toda a equipe que assiste o paciente – médico, nutricionista, enfermeiro e farmacêutico ¬ – e a efetividade de todos estes cuidados contribui ricamente para a evolução do paciente. Referências: Ministério da Saúde. Portaria 272 da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, Regulamento para a Terapia de Nutrição Parenteral.Brasília, 1998. Ministério da Saúde. Resolução RDC 63 da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, Regulamento Técnico para a Terapia de Nutrição Enteral. Brasília, 2000. Ukleja A et al. Shuster and Task Force on Standards for Nutrition Support: Adult Hospitalized Patients, and the American Society for Parenteral and Enteral Nutrition Board of Directors. Nutr Clin Pract 2010; 25: 403. Waitzberg DL, Júnior PEP, Cecconello I. Indicação, Formulação e Monitorização em Nutrição Parenteral Total Central e Periférica. In: Waitzberg DL. Nutrição Oral, Enteral e Parenteral na Prática Clínica. 3ed. São Paulo; Editora Atheneu, 2000; 735-51. T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 52 Gerontologia: reflexões sobre o processo de envelhecimento “Não me pergunte sobre a minha idade porque eu tenho todas as idades. Eu tenho a idade da infância, da adolescência e da velhice” Cora Coralina O fenômeno do envelhecimento populacional, que vem ocorrendo mundialmente, é notável e significativo no Brasil. Em nosso país, houve um aumento da expectativa de vida nas últimas décadas, processo decorrente dos avanços alcançados nas condições sanitárias e estratégias de prevenção e tratamento de doenças. No ano 2000, havia no mundo 600 milhões de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. A estimativa é que este número cresça para 1.2 bilhões em 2025 e 2 bilhões em 2050, visto que a faixa etária que apresenta a maior taxa de crescimento é aquela composta por indivíduos com 80 anos ou mais.1 Assim, com o envelhecimento populacional, experimentamos uma mudança no perfil epidemiológico para um aumento na prevalência de doenças crônico-degenerativas. Seja pela diminuição da reserva funcional própria do envelhecimento, seja pelo maior tempo de exposição a agentes patógenos, a predominância de tais moléstias é maior em indivíduos com 60 anos ou mais. O projeto SABE1 descreve a seguinte distribuição de doenças crônicas na população idosa paulista: hipertensão arterial, 53,3%; osteoartrose, 31,7%; cardiopatias, 19,5%; diabetes, 17,9%; osteoporose, 14,2%. Estas patologias, quando acometem indivíduos sexagenários, ou de idade mais avançada, devem ser gerenciadas para que se amenizem os prejuízos. Com base nesses dados e analisando o envelhecimento como um processo, faz-se necessária a capacitação e sensibilização dos profissionais de diversas áreas, principalmente da saúde, para o atendimento ao idoso. A complexidade das ações de saúde é notória e, para que a assistência seja efetiva, é importante que, quando se trata do idoso, essas ações estejam voltadas não apenas para o tratamento das doenças e sim para a adoção de medidas preventivas. A equipe deve estar atenta para interagir com o idoso e adotar “prescrições” adequadas ao seu estilo de vida, pois é ele quem determina a prevenção ou o retardo das incapacidades e o aparecimento de enFa. Cristina hUssne (Coren 17262) enfa. genova Principe Valente (Coren 99777) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 53 doenças crônico-degenerativas. Quando dizemos “envelhecemos como vivemos” reforçamos o autocuidado como ponto fundamental para mantermos a saúde em dia. Neste contexto, o envelhecimento saudável passa a ser resultante da interação multidimensional entre saúde física, mental, independência na vida diária, integração social, suporte familiar e independência econômica. Dessa forma, o bem-estar na velhice, ou saúde, em um amplo sentido, resulta do equilíbrio entre as várias dimensões da capacidade funcional do idoso, sem necessariamente significar ausência de problemas em todas as dimensões.2 O envelhecimento fisiológico é chamado de senescência e os processos patológicos relacionados são denominados senilidade. Isso deve ser do conhecimento de todos aqueles que atuam com os idosos, para que seja possível evitar eventuais equívocos como: deixar de tratar adequadamente a manifestação de uma doença por atribuí-la ao processo de envelhecimento ou mesmo evitar condutas diagnósticas e terapêuticas para condições fisiológicas. É importante conhecer as peculiaridades da senescência dos diversos órgãos e sistemas e respeitar a condição de diminuição de reserva funcional que caracteriza o envelhecimento, para, então, entender e abordar melhor a senilidade.3 As práticas clínica geriátrica e gerontológica devem, portanto, se preocupar com a manutenção e a promoção das condições de saúde da pessoa idosa. Essa é uma visão holística, com abordagem global das diversas dimensões relacionadas às características físicas e mentais, funcionais, comportamentais e socioeconômicas do idoso, em busca de um planejamento para intervenção, seja ela de reabilitação, aconselhamento ou internação. Propomos aqui uma reflexão sobre o que podemos fazer em relação ao nosso processo de envelhecimento, porque só assim estaremos sensibilizados para tratar o idoso. Em um modelo de sociedade que valoriza a juventude e a idade adulta, pelo que representam em termos de força física e produtividade, o que se observa, como afirma Mercadante4, é que “a identidade do idoso constrói-se pela contraposição à identidade de jovem e, consequentemente, tem-se também a contraposição das qualidades: atividade, produtividade, beleza, força, memória, como características típicas presentes nos jovens e as qualidades opostas a estas últimas presentes nos idosos.” Haja vista a frase: “No meu tempo...”, tão citada por pessoas na idade adulta; que tempo é esse senão o da juventude? Isso nos mostra a visão que temos do nosso próprio envelhecimento; precisamos valorizar o tempo atual, pois este é o nosso tempo. Cada etapa da vida tem sua beleza e faz-se necessário explorá-la e vivê-la intensamente: este o caminho para reinventarmos a velhice. Em cada fase da vida temos necessidades diferentes, mas sempre o mesmo direito a dignidade de poder viver com plenitude. E então? O que você pensa sobre o seu envelhecimento? “Construímos o mundo a partir dos laços afetivos. Estes laços tornam as pessoas e as situações preciosas, portadoras de valor. Preocupamo-nos com elas. Tomamos tempo para nos dedicarmos a elas. Sentimos responsabilidade pelo laço que cresceu entre nós e os outros. A categoria cuidado recolhe todo esse modo de ser. Mostra como funcionamos enquanto seres humanos”. 5 Referências bibliográficas 1. Lebrão ML, Duarte YAO (org). O Projeto SABE no Município de São Paulo: uma abordagem inicial. Brasília: OPAS/MS, 2003. 2. Ramos LR. Fatores determinantes do envelhecimento saudável em idosos residentes em centro urbano: projeto Epidoso. São Paulo. Cad. Saúde Pública. 19: 793-798. 2003. 3. Jaluul, O. Análise da dosagem sérica de elementos traço e sua correlação com aspectos clínicos de uma população de idosos saudáveis. Tese (doutorado). FMUSP. São Paulo, 2010. 4. Mercadante EF. A Construção da identidade e da subjetividade do idoso, 115 p. Tese (Doutorado)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997. T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 54 Interação droga-nutriente A influência dos alimentos durante a administração de medicamentos deve ser considerada tendo em vista que podem comprometer a absorção e biodisponibilidade de algumas drogas. A presença de alimentos no trato gastrointestinal pode acarretar: • Interações físico-químicas: incluem adsorção, formação de complexos e precipitação que afetam a absorção da droga, do nutriente ou ambos; • Alterações do tempo de esvaziamento gástrico: podem ocorrer devido à consistência da dieta ou tipo de nutriente. O estômago vazio favorece uma rápida passagem do medicamento pelo trato gastrointestinal, porém desfavorece suadesintegração, dissolução e, consequentemente, sua absorção. Nesse caso, o local de absorção deve ser considerado; • Competição droga-nutriente por um mesmo sítio de absorção. Para não comprometer o seu efeito, alguns medicamentos devem ser administrados considerando-se os aspectos abaixo: Farmª. alessandra Pineda a. gUrgel (CrF 17774) Farmª. lara Cristina Viana de a. Bueno (CrF 27289) Farmª. Priscila shoji (CrF 60670) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 55 Ampicilina Cetoprofeno Ciprofloxacino Fenitoína IMAO’s Isoniazida Lansoprazol Levodopa Levotiroxina Metotrexato Norfloxacina Refeição regular Refeição regular Dietas enterais, laticínios, alimentos ricos em Fe, Mg, Zn, Ca Refeição regular, dieta hiperlipídica e dieta enteral Alimentos ricos em tiramina (ex.: queijo, salame) e bebidas (ex.: cerveja, vinho) Refeição regular, queijo maturado e peixes (ex.: atum, cavala, salmão) Refeição regular Dieta hiperproteica Refeição regular e dieta enteral Laticínios Laticínios, alimentos ricos em Fe, Mg, Zn, Ca Retarda o esvaziamento gástrico, diminui a absorção em cerca de 30% e diminui os níveis plasmáticos. 1,2,5 Diminui a extensão da absorção da droga. 1,2 Diminui a absorção por complexação com cátions divalentes, reduz a biodisponibilidade em 30%. 2,5 As concentrações séricas são alteradas quando tomada com alimento; dieta enteral diminui a biodisponibilidade e níveis séricos da droga. 1,5 Pode surgir crise hipertensiva potencialmente perigosa. 2,5 Retarda o esvaziamento gástrico, aumenta o pH gástrico, diminui a solubilidade e a absorção. 1,2,3,5 Reduz a biodisponibilidade da droga em até 50%.1,2,5 Diminuição da absorção da droga por competição com aminoácidos em dietas hiperproteicas. 1,2,5 Diminui absorção, dieta enteral diminui a biodisponibilidade e níveis séricos da droga. 5 Diminui a velocidade e a extensão da absorção da droga. 1,5 Diminui a absorção da droga por complexação com cátions divalentes, reduz a biodisponibilidade em 50%.1,2,5 RECOMEndAÇõEs Administrar 1h antes ou 2h após as refeições X X X X X X X X X Administrar 1h antes ou 2h após as refeições MECAnisMOs/EFEiTOsTiPOs dE diETA COM REsTRiÇãO MEdiCAMEnTOs Evitar alimentos ricos em tiramina e ingestão de cervejas e vinhos. Administrar a levodopa em pequenas doses múltiplas e as proteínas em intervalos espaçados. T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 56 Penicilina Rifampicina Tetraciclina Teofilina Varfarina Refeição regular Refeição regular Laticínios, alimentos ricos em Fe, Mg, Zn, Ca Café, chá e outras bebidas com cafeína Alimentos ricos em vitamina K (ex.: vegetais folhosos verde-escuros) * Pode reduzir a absorção da droga em cerca de 30%.1,2 Retarda o esvaziamento gástrico, a liberação e a dissolução, diminui a absorção da droga. 1,2,3,5 A absorção da droga pode ser reduzida em até 65%. 1,2 Ocorre saturação enzimática, prejudicando a etapa da eliminação, aumentando a concentração sérica. 1,4 Reduz ou anula o efeito da varfarina. 2,5 RECOMEndAÇõEs Administrar 1h antes ou 2h após as refeições X X X X Administrar 1h antes ou 2h após as refeições MECAnisMOs/EFEiTOsTiPOs dE diETA COM REsTRiÇãO MEdiCAMEnTOs Ingestão moderada de cafeína. * Controlar a ingesta de alimentos ricos em vitamina K. Referências: 1. FORTES ST, SILVA MLT. Influências de drogas no metabolismo nutricional. In: WAITZBERG DL (editor). nutrição oral, enteral e parenteral na prática clínica. 3a ed. São Paulo: Atheneu, 2006. 915-24. 2. BAXTER K, ROSARIO BA (trad). interações Medicamentosas de stockley. Porto Alegre: Artmed, 2010. 3. Zent C, Smith P. Study of the effect of concomitant food on the bioavailability of rifampicin, isoniazid, and pyrazinamide. Tubercle 1995: 109-113. 4. MARTindALE – ThE COMPLETE dRUG REFEREnCE. 36. ed. London: Pharmaceutical Press, 2009. 5. MEdiCAMEnTOs LEXi-COMP MAnOLE. 1a ed. Barueri: Manole, 2009. T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 57 Síndrome metabólica A síndrome metabólica (SM) pode ser caracterizada como um conjunto de fatores de risco cardiovascular, tais como obesidade central, hipertensão arterial e anormalidades no metabolismo lipídico e glicídico.4,5. Muitas organizações propuseram critérios para o diagnóstico da SM; pela simplicidade e praticidade, a I Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome Metabólica (I-DBSM) preconiza o proposto pela National Cholesterol Education Program’s Adult Treatment Panel III (NCEP-ATP III).1,4,5. Segundo o NCEP-ATP III, a síndrome metabólica representa a combinação de, ao menos, três componentes dos apresentados no quadro abaixo:5. Quadro 1: Componentes da Síndrome Metabólica segundo o NCEP-ATP III Componentes níveis Obesidade Abdominal por meio de circunferência abdominal Homens > 102 cm Mulheres > 88 cm Triglicérides ≥ 150 mg/dl HDL-colesterol Homens < 40 mg/dl Mulheres < 50 mg/dl Pressão Arterial ≥ 130 mmHg ou ≥ 85 mmHg Glicemia de Jejum > 110 mg/dl A presença de Diabetes Melittus não exclui o diagnóstico de SM *Adaptado de I Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome Metabólica, 2005. Existem também outros fatores de risco, como sobrepeso, obesidade, ingestão alta de carboidratos, sedentarismo e tabagismo.6 A predisposição genética, a alimentação inadequada e a inatividade física estão entre os principais nUtriCionista JoYCe r. Passos moUrão (Crn-3 17.613) nutricionista livia Yumi Yokomizo (Crn-3 12.006) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 58 fatores que contribuem para o surgimento da SM.1,2,3,4,5 A NCEP-ATP III recomenda que a obesidade seja o alvo principal do tratamento da SM.4,5 A perda de peso melhora o perfil lipídico, reduz a pressão arterial e a glicemia, além de melhorar a sensibilidade à insulina, reduzindo o risco de doença aterosclerótica. O tratamento da SM deve ser baseado, portanto, em aumento da atividade física e modificações da alimentação.5 A dieta DASH (Dietary Approches to Stop Hypertension) é rica em frutas, verduras, cereais integrais, laticínios desnatados, grãos, carnes brancas, castanhas e tem quantidade reduzida de gordura total, saturada, colesterol, sódio e doces; segundo alguns estudos, demonstrou-se que, associada a mudanças no estilo de vida, pode diminuir de forma significativa a pressão sanguínea em hipertensos, aumentar a sensibilidade à insulina e reduzir a maioria dos fatores de risco metabólico.1,2,5 De acordo com a I-DBSM, recomenda-se que o tratamento não medicamentoso da síndrome metabólica se baseie em: redução do sal de cozinha para máximo de 6 g/dia, carboidratos entre 50 a 60% das calorias totais diárias, proteínas correspondendo a 15% do valor calórico total (VCT) ou 0,8 a 1 g/kg/dia, gorduras com cotas inferiores a 15% do VCT, preconizando o consumo dos ácidos graxos poli-insaturados (W3) e limitando o consumo de ácidos graxos trans; fibras devem ser ingeridas diariamente em torno de 20 a 30 g, frutas devem estar presentes no cardápio de duas a quatro porções diárias, sendo ao menos uma rica em vitamina C e as hortaliças cruas e cozidas entre três a cinco porções.5,4,2 A inatividade física é determinada como um marco para a SM. Sabe-seque fazer exercícios físicos reduz de forma importante o risco de progressão da doença, como descrevem Katzmarzyk y Laaksonen.1,2 Nesse contexto, é mais importante implementar ações para incluir a atividade física como medida preventiva e no tratamento de condições de risco cardiovascular, entre eles os componentes da SM, fornecer um programa de exercícios regulares bem específicos, com efeitos favoráveis na redução do peso corpóreo e na distribuição de tecido adiposo, melhorando a pressão arterial e o perfil lipídico (elevando o HDL, reduzindo triglicérides e LDL) e incrementando a sensibilidade à insulina.1,2,4 Por fim, deve ser ressaltado que a maior dificuldade a ser enfrentada no tratamento da SM é a adesão do paciente, principalmente quanto às mudanças no estilo de vida. Por esta razão, a atuação integrada de uma equipe multidisciplinar composta por médico, nutricionista, educador físico, enfermeiro, assistente social, psicólogo e farmacêutico, visando ao tratamento do paciente, é altamente desejável e, sem dúvida, um grande passo para conquistas efetivas.1,4 Referências: 1. Barrera MDP, Pinilla AEMD, Cortés ETF et al. Síndrome metabolico: Una mirada interdisciplinaria. Rev. Col. Cardiol. vol 15. nº 3. Bogota. May/June 2008. Casanova MA, Medeiros FJ, Cohen C et al. Análise Qualitativa e Quantitativa do Padrão Alimentar de uma População Hipertensa com Síndrome Metabólica. Rev SOCERJ. 2008; 21(4): 205-211. Julho/Agosto. 2. Eckel RH, Grundy SM, Zimmet PZ. The metabolic syndrome. Lancet.2005; 365 (9468): 1415-428. 3. Brandão AP et al. I Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome Metabólica. Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Vol. 84, Suplemento I: 6-35. Abril 2005. 4. Penalva DQF. Síndrome metabolica: diagnótico e tratamento. Rev Med (São Paulo) 2008. 87 (4): 245-50.T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 59 Úlcera por pressão (UP) Objetivo: oferecer recomendações para tratamento de úlcera por pressão, assim como aspectos relacionados à avaliação e tratamento de pacientes com esse tipo de lesão. Os tópicos abordados incluem avaliação do paciente com UP, os cuidados com a ferida, o controle da sobrecarga dos tecidos, o controle da colonização bacteriana e da infecção, o reparo operatório (cirurgia plástica) e educação dos profissionais, pacientes e familiares/cuidadores. Introdução: As úlceras por pressão são deformidades definidas como lesões cutâneas ou de partes moles, superficiais ou profundas, de etiologia isquêmica, secundária a um aumento de pressão externa e localiza- se usualmente sobre uma proeminência óssea. É uma das principais complicações que acometem pacientes críticos hospitalizados, prolonga a hospitalização, dificulta a recuperação, aumenta o risco de desenvolver outras complicações, eleva os custos e permanece um desafio para os profissionais de saúde, gestores e administradores. A prevalência em hospitais dos Estados Unidos varia de 3 a 14% e de 15 a 25% em casas de repouso, de acordo com National Pressure Ulcer Adivisory Panel (NPUAP). Causas: são causadas por fatores extrínsecos e intrínsecos ao paciente. Fatores extrínsecos: a pressão, o cisalhamento, a fricção e a umidade. A pressão é o principal fator causador de UP, e o efeito patológico pode ser atribuído à intensidade da pressão, duração da mesma e tolerância tecidual. Dentre os fatores intrínsecos, destacam-se a idade, estado nutricional, perfusão tecidual e as doenças crônicas, como diabetes mellitus e doenças cardiovasculares. Para avaliação dos riscos de formação de UP, existem várias escalas, dentre elas a de Braden, que foi desenvolvida com base na fisiopatologia das UPs, utilizando dois determinantes considerados críticos: a intensidade e duração da pressão e a tolerância dos tecidos. É composta por seis subescalas: percepção sensorial, umidade da pele, atividade, mobilidade, estado nutricional, fricção e cisalhamento. Os escores variam de seis a 23 pontos, sendo que os mais altos valores indicam baixos riscos para desenvolver UP, e os baixos escores indicam altos riscos para formação dessas lesões. Os pacientes com escore de 16 ou abaixo são considerados de risco para o desenvolvimento de úlceras. EsTáGiOs dA UP Estágio i - É um eritema da pele intacta que embranquece após a remoção da pressão. Em indivíduos com pele mais escura, a descoloração da pele, o calor, o edema e o endurecimento também podem ser indicações. enFo. lindolFo santos (Coren 40719) enfa. see hee (Coren 201695) T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 60 Estagio ii - Uma perda parcial da pele, envolvendo a epiderme, derme, ou ambos. A úlcera é superficial e apresenta-se clinicamente como abrasão, uma bolha ou uma cratera rasa. Estágio iii - É uma perda na espessura total da pele, envolvendo danos ou necrose de tecido subcutâneo, podendo aprofundar-se, mas sem chegar à fáscia. A úlcera se apresenta clinicamente como uma cratera profunda. Estágio iv - É uma perda na espessura total da pele com destruição extensa, necrose do tecido ou danos no músculo, osso ou estrutura de suporte, por exemplo: tendão ou cápsula articular. Tratamento: o tratamento é mais eficaz se for realizado com abordagem de uma equipe multiprofissional, envolvendo paciente, familiares e cuidadores. O tratamento recomendado deve focalizar a avaliação do paciente e da UP, a sobrecarga dos tecidos, o alívio da pressão, o controle da colonização bacteriana, a infecção e o reparo operatório. Avaliação da UP: avaliamos a lesão, inicialmente, pela sua localização, estágio, tamanho, presença de túneis, descolamento, tecido necrótico, presença ou não de tecido de granulação e epitelização. Avaliação do paciente: na avaliação do indivíduo, tratamos da saúde física, das complicações, avaliação nutricional e da dor. Fazemos uma história completa, pois a UP deve ser avaliada no contexto geral da saúde do indivíduo. Os profissionais devem estar atentos às complicações associadas à UP, como endocardite, fístulas, artrite séptica, osteomielite, bacteremia e celulite avançada. Avaliação nutricional: é muito importante no tratamento da UP, pois assegura o suporte nutricional adequado, que favorece a cicatrização. Caso a ingesta da dieta por via oral seja inadequada ou impraticável, um suporte nutricional enteral deve introduzido. sobrecarga nos tecidos: criamos um ambiente que favoreça a viabilidade dos tecidos e promova a cicatrização da UP, pela distribuição da pressão, do controle da umidade, da prevenção da fricção e dano aos tecidos. Evitamos posicionar o paciente sobre a UP, estabelecemos um cronograma por escrito de reposicionamento baseado no risco de desenvolver úlceras adicionais. Ex.: quando o escore na escala de Braden tem risco ≤ 16, reposicionamos o paciente a cada duas horas. Utilizamos superfície de suporte adequada ao risco do paciente para desenvolver UP (superfície estática ou dinâmica). Limpeza da ferida: Para otimizar a cicatrização e diminuir o potencial para infecção, utilizamos solução fisiológica, com pressão de 8 a 15 psi. Evitamos soluções antissépticas, técnicas traumáticas, e usamos solução de limpeza como poli-hexinamida + betaína (Prontosan®) para remover biofilmes da ferida. desbridamento: Selecionamos os métodos mais apropriados para as condições e meta do tratamento do paciente. As técnicas podem ser cirúrgicas, mecânicas, enzimáticas ou autolíticas, quando não existe nenhuma necessidade clínica urgente de drenagem ou remoção de tecido desvitalizado. Coberturas (curativos): Em feridas, são necessárias coberturas que mantenham sua integridade fisiológica. A condição do leito da úlcera e função da cobertura determinam o tipo de curativo a ser aplicado. Utilizamos coberturas que controlam o exsudato e não ressecam oleito da lesão, controlam o odor, a dor, a colonização, e previnem a infecção local, como curativos que contêm prata na composição. É impossível uma única cobertura com todas essas funções, mas temos opções de curativos para uso conforme a necessidade da ferida em cada estágio da cicatrização. TERAPiAs AdiCiOnAis Câmara hiperbárica: tem efeito importante no estímulo da cicatrização pela hiperoxigenação tecidual, na redução do tempo de tratamento e de possíveis complicações. A terapia por sistema VAC (Fechamento Assistido a Vácuo) é um sistema de fechamento de ferida por pressão negativa, ativa e não invasiva, que ajuda a promover a cicatrização por meio de pressão negativa localizada, diminui o tempo de tratamento e prepara o leito da lesão T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 61 para o reparo cirúrgico. Reparo cirúrgico: os procedimentos cirúrgicos agilizam o processo de cura pelo fechamento direto, enxerto de pele e rotação de retalho muscular. Deve-se ter atenção especial às medidas preventivas no pós-operatório, essenciais para promover a cicatrização e impedir a recorrência do problema, evitando posicionar o paciente sobre a úlcera por duas semanas. Educação: os programas educacionais para profissionais, pacientes, familiares/cuidadores devem ser estruturados, organizados, abrangentes e dirigidos a todos os níveis de profissionais da saúde, incluindo: etiologia da ferida, avaliação da pele, indicação de superfície de suporte e posicionamento apropriado do paciente no leito ou na cadeira. O treinamento é realizado com demonstrações práticas para todos os envolvidos no tratamento do paciente com UP. Referências: Bergstrom N, Braden BJ, Laguzza A et al. The Braden for predicting pressure sore risk. Numrs Res 1987: 36: 205-10. Dealey C. Cuidando de Feridas: um guia para as enfermeiras. São Paulo: Ateneu 1992; 83-126. Bergstrom MN et al. Treatment of Pressure Ulcers. Clinical Practice Guideline Number 15, U.S. Department of Health and Human Services, Public Health Service, Agency for Health Policy and Research. Publication 95-0652. December 1994. T E M A S A S S IS T E N C IA IS | C o m o e u t ra to 62 Avaliação histológica da biópsia hepática na infecção pelo vírus C Em pacientes com infecção pelo vírus da hepatite C (VHC), observa-se um variado espectro de alterações histológicas no fígado, incluindo a hepatite aguda e os fenômenos reacionais leves, até as formas mais graves da doença, que incluem as hepatites crônicas – com graus variados de inflamação e fibrose –, a cirrose e o carcinoma hepatocelular. Raros são os casos de hepatite C biopsiados em sua fase aguda, ficando a atenção do patologista voltada para a forma crônica da doença. O diagnóstico histológico de hepatite crônica, pela biópsia hepática, continua sendo de extrema importância para a condução do tratamento em pacientes infectados pelo VHC, pois é a pedra fundamental para a detecção da presença ou não de doença hepática causada pelo vírus, e sua intensidade (graduação e estadiamento); soma-se, portanto, ao diagnóstico de infecção que é dado pelos métodos sorológicos. O parâmetro básico para o diagnóstico histológico de hepatite crônica é a presença de infiltrado inflamatório portal, predominantemente linfocitário, usualmente com número variável de plasmócitos e histiócitos. A inflamação é acompanhada de grau variável de atividade periportal (também chamada de atividade de interface ou necrose em saca-bocados), atividade parenquimatosa (lobular) e fibrose. Existem diversos sistemas de classificação (graduação e estadiamento) das hepatites crônicas, mas em nosso meio, por recomendação da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, duas são as classificações mais usadas: a da Sociedade Brasileira de Patologia ou a METAVIR. Estas duas classificações têm vários aspectos em comum, ambas levando em conta os aspectos básicos das hepatites crônicas já destacados – atividade periportal, lobular e fibrose. Além delas, na literatura internacional usa-se bastante a classificação proposta por Ishak, em 1995 (atualização da classificação proposta pelo mesmo autor em 1981, que ficou muito conhecida como classificação de Knodell, não devendo ser mais usada). Uma tabela aproximada de correspondência entre esses sistemas está exposta abaixo, tanto para a fibrose (alteração arquitetural), quanto para a atividade. Tabela. Equivalência aproximada das classificações mais usadas no estadiamento e graduação das hepatites crônicas: dr. eVandro soBroza de mello (Crm 95539) dr. Venâncio avancini Ferreira alves (Crm 34238) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 63 A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to ALTERAÇÃO ARQUITETURAL (FIBROSE) * sbP, 2000 METAviR, 1994 ishAK, 1995 0 0 0 1 1 1 ou 2 2 2 3 3 3 4 ou 5 4 4 6 ATIVIDADE INFLAMATóRIA ** SBP, 2000 e ISHAK, 1995 METAVIR, 1994 Atividade Periportal Atividade Parenquimatosa A 0 ou 1 0 0 0 ou 1 1 ou 2 1 2 0 – 1 1 2 2 2 2 3 – 4 3 3 0 – 2 2 3 3 – 4 3 4 0 – 4 3 * na classificação de ISHAK, o escore de fibrose vai até 6, enquanto na METAVIR e na SBP, até 4. ** correspondendo à atividade periportal e parenquimatosa independentemente para SBP e ISHAK, e um misto de periportal e lobular para METAVIR; na classificação de METAVIR, o escore de atividade vai até 3, enquanto em ISHAK e SBP, vai até 4. PROTOCOLO dE AvALiAÇãO hisTOLÓGiCA PARA biÓPsiAs hEPáTiCAs dE PACiEnTEs COM hEPATiTE CRôniCA viRAL: Esse protocolo pode ser aplicado às diversas etiologias de hepatite crônica, incluindo, além da hepatite C, o vírus da hepatite B, a hepatite autoimune e, menos frequentemente, a doença de Wilson ou algumas hepatites medicamentosas. O protocolo está centrado nos critérios do Consenso Nacional das Hepatites Crônicas da Sociedade Brasileira de Patologia (Gayotto et al, 2000). 1) Tipo de amostra (biópsia por agulha, biópsia em cunha, peça cirúrgica de ressecção, outro): 2) Tamanho da amostra Número de espaços-porta na biópsia: _____________________________ 3) Variáveis histológicas: - Fibrose portal: ( ) 0 (ausente) ( ) 1 (discreta, sem formação de septos) ( ) 2 (com septos porta-porta) ( ) 3 (com septos porta-porta e porta-centro, esboçando formação de nódulos – em “transformação nodular”) () 4 (cirrose) - Inflamação portal ( ) 0 (ausente) ( ) 1 (discreta) ( ) 2 (moderada) ( ) 3 (acentuada) ( ) 4 (muito acentuada) 64 - Atividade periportal (atividade de interface) ( ) 0 (ausente) ( ) 1 (presença apenas de “spill over”) ( ) 2 (necrose em saca-bocados discreta – focos ocasionais em alguns espaços-porta) ( ) 3 (necrose em saca-bocados moderada – focos ocasionais em muitos espaços-porta ou numerosos focos em poucos espaços-porta) ( ) 4 (necrose em saca-bocados acentuada – numerosos focos em muitos espaços-porta) - Atividade parenquimatosa ( ) 0 (ausente) ( ) 1 (tumefação, infiltrado linfocitário sinusoidal e ocasionais focos de necrose lítica hepatocitária) ( ) 2 (numerosos focos de necrose lítica hepatocitária) ( ) 3 (áreas de necrose confluente ocasionais) ( ) 4 (numerosas áreas de necrose confluente ou áreas de necrose panacinar) - Evidências histológicas de associação com outras condições: ( ) siderose grau ______ ( ) marcadores de esteato-hepatite ( ) outros:______ nATUREzA E TAMAnhO dA biÓPsiA hEPáTiCA Biópsias cirúrgicas feitas com pinças geram amostras subcapsulares e devem ser desencorajadas, pois os espaços-porta nesta localização são frequentemente volumosos, sendo difícil ou impossível avaliar corretamente a presença de fibrose. Mesmos durante ato operatório, portanto, a biópsia hepática deve ser obtida por agulha. Adicionalmente, a biópsia deve preferencialmente ser obtida no começo da cirurgia, para evitar as alterações secundárias à manipulação cirúrgica. Dados da literatura demonstram que o tamanho da biópsia obtida por agulha influencia enormemente o resultado de sua análise. Vários autores têm considerado 1,5 cm como o tamanho mínimo ideal para diagnóstico em biópsia hepática por agulha. Agulhas de espessura fina também obtêm resultados inferiores. Bedossa e colaboradores apenas alcançaram um platô de precisão no diagnóstico histológico com biópsias de 2,5 cm de comprimento. Portanto, deve-se considerar que biópsias com 1,5 cm de comprimento são o mínimo necessário e, idealmente, devem ter 2,5 cm ou mais. Agulhas de calibre maior, como a trucut, também são recomendadas. EsTEATOsE O espectro esteatose, esteato-hepatite e cirrose tem sido definido como doença gordurosa não alcoólica do fígado (DGNA). A DGNA é comum na população geral, mas sua associação com o VHC é 2-3 vezes maior do que seria esperado apenas ao acaso. Em pacientes com infecção crônica pelo VHC, a esteatose tem sido atribuída a uma série de fatores usualmente associados à DGNA, incluindo elevado índice de massa corpórea, resistência à insulina e idade avançada. As evidências também se acumulam, indicando que a esteatose contribui para a progressão da fibrose em um padrão similar àquele visto na DGNA. Tem-se sugerido que a esteatose pode também ser decorrente de efeito citopático viral, especialmente nos pacientes infectados com genótipo do tipo 3. Atualmente, portanto, é essencial a caracterização da esteatose e suas lesões relacionadas nos pacientes VHC +, em especial a presença e quantificação da fibrose perissinusoidal e centrolobular característica da esteato- hepatite. Da esteatose tiramos a lição de que a biópsia no paciente infectado pelo VHC é um instrumento para a detecção de doenças hepáticas associadas ou não ao próprio vírus, e de que devemos estar preparados para outras (provavelmente menos frequentes) que podem estar presentes em um determinado caso. A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 65 Hepatite crônica pelo VHC, com fibrose portal com septos porta-porta – estadio arquitetural 2 na classificação da SBP Hepatite crônica pelo VHC, com inflamação portal e atividade de interface A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 66 Biópsia estereotáxica do sistema nervoso central: a perspectiva do patologista A biópsia estereotáxica cerebral, conjugada aos avanços na neuroimagem que facilitaram a localização das lesões e ampliaram a capacidade de formular diagnósticos diferenciais pré-operatórios, obteve ampla aceitação como ferramenta diagnóstica em afecções do sistema nervoso central (SNC). Recentemente, a mortalidade e a morbidade deste procedimento decresceram radicalmente, em conjunto com uma maior eficácia no diagnóstico histopatológico, inclusive de lesões não neoplásicas. Durante o procedimento, realiza-se consulta ao médico patologista, que deve sempre estar a par da história clínica do caso analisado e conhecer detalhes da localização e características de imagem da lesão. A análise intraoperatória do material inclui o uso tanto de técnicas citológicas quanto de secções histológicas por congelamento em criostato. A opção do método depende da textura, geralmente amolecida, das lesões do SNC, que permite a preparação de esfregaços citológicos, muito utilizados atualmente. Algumas lesões de consistência mais endurecida ou borrachosa são mais bem avaliadas por cortes em criostatos. O consenso atual, utilizado pelo centro de imuno-histoquímica citopatologia e anatomia patológica - CICAP, é de que o uso combinado das duas técnicas aumenta a eficácia diagnóstica. O objetivo do exame intraoperatório é orientar o neurocirurgião em decisões clinicamente relevantes. Assim, o primeiro passo na avaliação intraoperatória é decidir se o tecido é normal ou patológico. Este passo, aparentemente óbvio, é de crucial importância na avaliação da representatividade do alvo na biópsia estereotáxica. Uma vez estabelecida a representatividade da amostra, o segundo passo é a identificação da natureza do processo: inflamatório / infeccioso ou neoplásico. Doenças inflamatórias e infecciosas podem simular tumores do SNC, tanto na apresentação clínica, quanto nos achados de imagem, e o diagnóstico diferencial é um desafio para o médico patologista. Assim, alguns casos de leucoencefalopatia multifocal progressiva em portadores do vírus HIV podem apresentar quadro morfológico com acentuada inflamação e escassez de células gliais e as alterações características da infecção pelo papovavírus tipo JC, simulando linfoma primário do SNC. Nesses casos, o paciente pode apresentar, clinicamente, uma lesão dra. maria regina Vianna (Crm 45383) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 67 expansiva, acentuada pelo contraste, tanto à tomografia computadorizada, quanto à ressonância magnética, dificultando ainda mais o diagnóstico diferencial. Quando o processo é identificado como infeccioso, o patologista deve sugerir ao neurocirurgião que proceda à coleta de material para estudos microbiológicos, uma vez que os métodos anatomopatológicos de identificação de microrganismos são, muitas vezes, inconclusivos. Geralmente, lesões como abscessos, carcinomas metastáticos, linfomas e gliomas obviamente malignos são relativamente simples de identificar. A grande dificuldade reside no diagnóstico diferencial entre gliose reacional e glioma de baixo grau. Alguns casos de linfoma apresentam características bastante peculiares de reconhecimento mais complexo. Assim, o diagnóstico de linfoma não Hodgkin de grandes células B intravascular requer, além da integração com os dados clínicos de doença sistêmica multifocal, análise detalhada da amostra para o encontro das células neoplásicas intravasculares (Fig. 1). O diagnóstico definitivo destes casos depende da imunofenotipagem (Fig. 2). Fig. 1 - Células atípicas intravasculares Fig. 3 - Necrose com paliçada das células neoplásicas em glioblastoma multiforme Fig. 2 - Linfoma de grandes células B (CD20) Os PAssOs COnvEnCiOnAis nA AnáLisE dE nEOPLAsiAs PRiMáRiAs dO snC inCLUEM: 1- avaliação da arquitetura tumorale da celularidade; 2- observação de arranjos histológicos característicos, como pseudorrosetas em ependimomas; 3- caracterização de aspectos citoplasmáticos, como padrão fibrilar em astrocitomas e halo perinuclear em oligodendrogliomas; 4- apreciação de indicadores de malignidade, como atipias citológicas, atividade mitótica, proliferação endotelial microvascular e necrose tumoral (Fig. 3). A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 68 Deve-se salientar que a consulta intraoperatória não é definitiva na avaliação de neoplasias, mas serve apenas como guia para o neurocirurgião, que deve garantir que remanesça tecido suficiente para análise histológica convencional e procedimentos especiais, como colorações específicas e imuno-histoquímica. Esta última é rotineiramente utilizada na identificação de gliomas, na avaliação de proliferação celular e na tentativa de caracterização de sítio primário em neoplasias metastáticas. Finalmente, em alguns casos, a biópsia estereotáxica não permite diagnóstico definitivo e o patologista deve estar preparado para admitir que os achados são negativos ou incongruentes com os dados clínicos, laboratoriais ou de neuroimagem. A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 69 Exame colpocitológico O exame colpocitológico, popularmente conhecido como “teste de Papanicolaou”, em homenagem ao seu criador, é o primeiro e, até hoje, mais eficiente exame de rastreamento para detecção precoce do câncer. Sua aplicação em larga escala resultou na queda expressiva da mortalidade pelo câncer do colo uterino em várias partes do mundo. Ainda assim, a sensibilidade deste método varia ao redor de 50 a 70% em estudos populacionais. Grande parte destas falhas se deve à colheita (as células malignas não estão presentes na amostra enviada ao laboratório) ou mesmo ao preparo da amostra (as células estão presentes, mas são difíceis de identificar devido a artefatos técnicos). Com o intuito de evitar esses problemas, foi criada a citologia em base líquida, a qual utilizamos rotineiramente no Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Esta técnica difere da convencional, pois, enquanto nesta última o material obtido pela raspagem do colo uterino é espalhado na lâmina de vidro sob a forma de esfregaço, na base líquida a escova usada para colher o material é imersa no líquido fixador e enviada para o laboratório, onde as células colhidas são submetidas ao preparado citológico, diminuindo os artefatos técnicos. Após o preparo e a coloração, nós submetemos os espécimes a escrutínio, sendo o resultado dos exames liberado em, no máximo, dois dias. Cada etapa, desde o registro dos espécimes até a liberação do exame, é submetida a controle de qualidade. A revisão de 10% das amostras, incluindo todos os casos que apresentem indícios de maior risco, tanto morfológicos (casos suspeitos ou positivos) quanto clínicos – por exemplo, sangramento ou alterações colposcópicas – é realizada como parte do controle de qualidade. Outro procedimento importante, realizado como rotina, é a comparação dos exames citológicos com os espécimes de exames anteriores, tanto citológicos como histológicos de colo uterino. A foto 1 mostra um caso de citologia líquida com células de lesão de alto grau cervical, a qual foi submetida a correlação com exame de biópsia da mesma paciente demonstrada na foto 2. Utilizamos, na elaboração dos laudos, a nomenclatura Brasileira para Laudos Citológicos de Colo Uterino, aprovada pelo Ministério da Saúde após amplos estudos realizados pelas Sociedades Brasileiras de Patologia e Citopatologia, que permitiram a aplicação dos mais recentes conhecimentos do câncer do colo uterino. De acordo com este modelo de laudo, os espécimes são inicialmente avaliados quanto à qualidade da amostra, ou seja, são identificados os tipos celulares presentes, sua quantificação e a preservação destas células, bem como dr. Celso di loreto (Crm 39831) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 70 possíveis aspectos que prejudiquem sua avaliação, como fundo purulento ou hemorrágico. Após esta etapa, as eventuais alterações morfológicas celulares são classificadas com vista à conduta mais adequada, sendo as eventuais lesões pré-neoplásicas ou neoplásicas classificadas. Os microrganismos presentes são também referidos. Ao longo das últimas décadas, numerosos estudos melhoraram consideravelmente o conhecimento sobre a história natural do câncer do colo uterino. Dentre estes, destacam-se as pesquisas do médico alemão Harald Zur Hausen, que se iniciaram nos anos 70 e demonstraram que alguns tipos de Papilomavírus humanos (HPV) são os agentes causadores desta enfermidade, feito que lhe valeu o prêmio Nobel de medicina em 2008. Atualmente, vários testes para pesquisa destes tipos de HPV estão disponíveis, permitindo maior eficácia no rastreamento. No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, realizamos habitualmente a pesquisa de DNA de HPV pela técnica de captura híbrida nos espécimes citológicos de colo uterino, nos casos em que o clínico julgar necessário. As vantagens de ser relativamente barato e não invasivo fizeram do Papanicolaou o teste ideal para rastreamentos populacionais, nos quais a nomenclatura padronizada permite uma rápida comunicação dos aspectos morfológicos por parte do patologista, permitindo ao clínico a conduta adequada. No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, além dos procedimentos padronizados para o rastreamento, podemos incorporar técnicas mais modernas, como a base líquida, que permite avaliação morfológica mais precisa, com menos artefatos técnicos e maior representatividade. Ainda que o exame citológico apresente elevada especificidade na detecção precoce das lesões do colo uterino, alguns casos de lesões de significado indeterminado ainda persistem. A pesquisa de DNA de HPV de alto risco é altamente específica, sendo a combinação de ambas as técnicas muito eficiente, ainda que não acessível aos rastreamentos populacionais. A incorporação destas técnicas ao exame convencional é um importante avanço. Apesar disso, acreditamos que o fato de estarmos disponíveis para nos comunicarmos com o ginecologista no caso de alguma dúvida ou para integrar os aspectos clínicos, morfológicos e, eventualmente de estudos moleculares, ainda é indispensável para a realização do melhor atendimento. Foto 1 - Citologia de base líquida – Lesão de alto grau Foto 2 - Biópsia de colo uterino – Lesão de alto grau A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 71 Linfonodos Aqui serão abordadas as diversas etapas do estudo histopatológico de linfonodos retirados para diagnóstico de processos em que a manifestação clínica acontece por meio de linfadenomegalias secundárias processos neoplásicos ou de natureza reacional. Os linfonodos requerem uma fixação inicial bastante adequada, já que as células linfoides são bastante susceptíveis a artefatos de retração, o que prejudica a análise morfológica precisa quanto ao tipo de células envolvidas no processo, por exemplo: células grandes ou pequenas, núcleos clivados ou não clivados, irregularidades da membrana nuclear, padrão de condensação da cromatina, etc. Outro aspecto importante na análise do linfonodo é a avaliação da sua arquitetura. Para isso, recomenda-se que o linfonodo, sempre que tecnicamente possível, seja retirado integralmente, com a cápsula linfonodal. O fixador usado rotineiramente é a solução de formalina a 10%, tamponada, normalmente disponível no próprio centro cirúrgico. Para melhor fixação do tecido, é necessário seccionar o linfonodo (duas ou mais secções transversais, dependendo do tamanho). Nos casos de suspeita clínica de processo infeccioso,é importante a coleta de tecido para cultura ainda nesta fase, com o material a fresco, em procedimento estéril. As pesquisas de microrganismos como micobactérias e fungos podem ser posteriormente realizadas no tecido processado para exame anatomopatológico, mas a sensibilidade do método é geralmente mais baixa do que por estudo microbiológico. O uso de “imprints” ou esfregaços do linfonodo pode ser útil durante o exame intraoperatório de congelação realizado pelo patologista, mas para o exame de rotina, não é necessário, pois não acrescenta informações que não possam ser tiradas do exame histológico. Além disso, o tecido linfoide deve ser manipulado com delicadeza, porque é muito susceptível a artefatos de pinçamento ou pode sofrer até desestruturação, caso haja muita pressão no momento do esfregaço. Não é recomendado um período de fixação inferior a 6 horas, sendo o ideal de 24 horas. Embora para alguns tipos de biópsia pequena possamos realizar um processamento técnico rápido, com resultado do exame histopatológico no mesmo dia, o tecido linfoide não se presta a este tipo de procedimento, adquirindo sérios artefatos de retração dra. Yara de menezes (Crm 45279) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 72 celular. Entretanto, quando o material é abundante, por exemplo, um linfonodo de grandes dimensões, pode- se tentar o processamento rápido em parte da amostra, no intuito de um diagnóstico mais rápido, deixando o restante para o dia seguinte. Particularmente, prefiro o exame intraoperatório de congelação nos casos de urgência. O exame histopatológico de rotina com cortes do material incluído em parafina, em geral, já permite o diagnóstico de processos reacionais (hiperplasia linfoide reacional inespecífica ou processos específicos com reação granulomatosa) apenas com a coloração pela hematoxilina-eosina e, eventualmente, com pesquisas de bacilos álcool-ácido resistentes pelo método de Ziehl-Neelsen adaptado ao tecido de fungos e de Pneumocystis carinii pelo método de Grocott. Fungos também podem ser pesquisados pela coloração pelo PAS (ácido periódico de Schift) e pela coloração do mucicarmin (no caso de criptococose). Alguns agentes podem também ser pesquisados com o auxílio do exame imuno-histoquímico (leishmania, P. carinii e certos fungos). Nos casos neoplásicos, a coloração pela hematoxilina-eosina frequentemente já permite o diagnóstico diferencial entre as neoplasias linfoides ou não linfoides, com exceção das muito indiferenciadas, que requerem estudo imuno-histoquímico para o diagnóstico diferencial inicial entre carcinoma, melanoma, linfoma e também sarcoma (embora este último grupo de neoplasias raramente curse com metástases linfonodais). Definida a histogênese da neoplasia, o painel imuno-histoquímico poderá ser ampliado para pesquisa de sítio primário ou de diferenciação neuroendócrina nos carcinomas, para verificar a diferenciação celular nos sarcomas e classificar os linfomas. Vamos nos deter aqui a aprofundar mais apenas os aspectos do diagnóstico e subclassificação dos linfomas, já que é no comprometimento linfonodal que a grande maioria tem suas características definidas. Embora a maior parte dos casos de hiperplasia linfoide reacional já possa ter o diagnóstico firmado apenas pelo exame morfológico com o auxílio de colorações específicas, já mencionadas, alguns casos requerem estudo imuno-histoquímico adicional para o diagnóstico diferencial com linfomas. Atualmente, para o diagnóstico dos linfomas, é utilizada a classificação da Organização Mundial da Saúde de 2008 (WHO Classification – Tumours of Haematopoietic and Lymphoid Tissues, IARC), muitas vezes referido como o “livro azul”. Resumidamente, esta classificação tem por base a divisão em neoplasias linfoides de células B e células T (referidas como linfomas não Hodgkin) e o linfoma de Hodgkin. Dessa forma, o primeiro aspecto importante para o estudo do linfonodo é a definição dos compartimentos de linfócitos B e T e o quanto eles se encontram alterados, realizando um “mapeamento” inicial imprescindível com os anticorpos anti-CD20 e anti-CD3, marcadores, respectivamente, de linfócitos B e T. Os linfomas B apresentam um número variável de células T reacionais em meio às áreas neoplásicas, de forma que nem sempre haverá um predomínio de células positivas para CD20 num linfoma B. Também vários linfomas apresentam um “fundo inflamatório”, com plasmócitos, histiócitos e granulócitos maduros. Daí a necessidade de a interpretação dos resultados estar atrelada aos aspectos morfológicos: não basta saber apenas se é positivo ou negativo, mas em que célula e em que lugar do linfonodo está. Um diagnóstico diferencial frequente é entre hiperplasia linfoide reacional de padrão folicular e o linfoma de células B folicular. Nestes casos, adicionamos ao painel imuno-histoquímico dois marcadores: bcl-2, que é negativo nas hiperplasias e positivo em cerca de 70% dos linfomas foliculares, e o antígeno de proliferação celular Ki-67, que é alto na hiperplasia reacional folicular e baixo nos linfomas foliculares, pois estes são, de um modo geral, de baixo grau. Para os chamados linfomas de baixo grau (ou indolentes), com predomínio de células pequenas e com baixo índice mitótico (Ki-67 baixo, em geral menor que 40%), utilizamos um painel que inclui, além do CD20 e CD3, o CD10, CD23, CD5, CD43 e ciclina D1, sendo este último marcador importante para o diagnóstico de linfoma de células do manto, que, embora geralmente de pequenas células, cursa com comportamento clínico agressivo. Fala-se muito em definição da “monoclonalidade” por método imuno-histoquímico, principalmente nos A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 73 linfomas de pequenas células B, através da expressão de cadeias leves Kappa ou Lambda de imunoglobulina. Mas a positividade para estes anticorpos só é obtida pelo exame imuno-histoquímico quando há imunoglobulina citoplasmática, ou seja, quando pelo menos parte das células apresenta diferenciação plasmocitária, o que ocorre em poucos subtipos de linfomas B. Nos outros linfomas B, as células têm apenas imunoglobulina de superfície, o que não é suficiente para a imunomarcação no tecido. Desta forma, particularmente nesses linfomas de pequenas células, é muito importante a correlação com outros métodos diagnósticos, como a fenotipagem das células linfoides em sangue periférico ou aspirado de medula óssea, já que muitos deles leucemizam e/ou comprometem a medula óssea, mesmo em fases iniciais. Já nos linfomas de alto grau (ou agressivos), com predomínio de células grandes ou blásticas, o diagnóstico depende do estudo histopatológico, pois, de modo geral, comprometem a medula óssea apenas em casos muito avançados e, com poucas exceções, não leucemizam. Para estes linfomas, utilizamos os anticorpos CD10 e MUM- 1, marcadores para definição de padrão de células centro germinativo-símiles ou células ativadas-símiles (pós- centro germinativo). O índice de proliferação celular, marcado pelo Ki-67, é superior a 40%, chegando próximo de 100% no linfoma de Burkitt, no linfoma de grandes células B não classificável (intermediário entre linfoma de grandes células e linfoma de Burkitt) e no linfoma plasmoblástico. A pesquisa de bcl-2 é também importante nestes casos como fator prognóstico. O painel imuno-histoquímico incluirá pesquisas de CD30, CD15, proteína ALK1 e EMA (antígeno epitelial de membrana) quando o exame morfológico requer o diagnóstico diferencial entre linfoma de Hodgkin, linfoma de grandes células B (subtipo rico em linfócitos T e histiócitos reacionais), linfoma de células T não especificado (com grande número de células grandes) e linfoma de grandes células anaplásico (CD30 + e ALK + ou -). Quando, sob o pontode vista morfológico, as células supostamente linfoides que infiltram o linfonodo apresentam características que não se “encaixam” em um subtipo de linfoma, deve-se pensar na possibilidade de neoplasia de linhagem mieloide (leucemia mieloide aguda), com apresentação clínica de comprometimento inicial linfonodal, e incluir no painel imuno-histoquímico a pesquisa de mieloperoxidase e CD68 (marcador monocitário e histiocitário). Vários dos subtipos de linfomas B e T definidos pela OMS (2008) são, na verdade, entidades anatomoclínicas, necessitando-se, assim, de uma abordagem multidisciplinar próxima, como preconizado pela própria OMS, com integração de dados clínicos, exames de imagem e os diversos exames laboratoriais. Linfoma de Hodgkin clássico A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 74 PAAF de tireoide A PAAF (punção aspirativa por agulha fina) de tireoide é frequentemente utilizada para o diagnóstico de nódulos descobertos em exames clínicos, durante a palpação do órgão, ou por algum método de imagem. Várias são as indicações clínicas estabelecidas na literatura que indicam a realização de PAAF, que levam em consideração, por exemplo, o tamanho do nódulo, as características de vascularização e ecogenicidade, as características de produção hormonal e captação de iodo. A decisão, no entanto, de realizar o exame e que conduta tomar diante dos possíveis diagnósticos, será sempre individualizada, em parceria médico-paciente. Uma vez recebido o pedido de exame, mesmo que o nódulo seja palpável, a patologia do laboratório CICAP opta sempre por realizá-lo com orientação ultrassonográfica. A visualização direta, concomitante, da PAAF e do USG, oferece a tranquilidade de visualizar estruturas vasculares, podendo-se evitá-las durante o procedimento, e certificar-se da posição da agulha dentro do nódulo durante todo o exame. Nos casos de nódulos com componente cístico, também é útil a identificação, localização e punção guiada da área sólida residual, após esvaziamento do cisto. O procedimento é bem simples e não requer preparo algum do paciente, não sendo necessário jejum. Após os trâmites de termo de ciência e consentimento informado, na sala de exame, explicamos novamente como será o procedimento. Durante essa conversa, avaliamos o grau de ansiedade do paciente, um dos parâmetros para indicação de anestesia local. Como se trata de punção com uma agulha de 25 a 27 gauges de diâmetro (semelhante ao das seringas utilizadas nas punções para coleta de sangue), a sensação dolorosa é parecida com a de uma punção venosa. Sendo assim, sempre preferimos o exame sem a utilização da anestesia local para não haver alteração da ecogenicidade ou risco de aspiração do anestésico junto com o material desejado. Havendo necessidade de anestesia local, usamos 0,5 ml de lidocaína 1% no subcutâneo para bloqueio retrógrado dos nervos dérmicos, após assepsia local. Para a punção, preferimos a utilização da agulha fina e seringa descartáveis acopladas a aparelho para obtenção e manutenção de pressão negativa, para que o mesmo patologista tenha a liberdade de introduzir a agulha e aspirar o material com uma das mãos, enquanto realizamos oscilações pequenas dentro do nódulo. Essas oscilações visam à obtenção de microrrupturas teciduais, facilitando a perda da coesividade entre as células, que são, então, aspiradas. dra. Fernanda de Barros Correia CaValCanti (Crm 75598) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 75 Imediatamente após a obtenção do material, depositamos uma gota do mesmo em três ou quatro lâminas e realizamos o esfregaço direto, que consiste no deslizamento de uma lâmina em branco sobre a outra com a gota, para espalhar em uma camada fina as células obtidas, a fim de serem mais bem fixadas e, posteriormente, coradas. Coloca-se o esfregaço direto em frasco com álcool para fixação. Se houver indício de alguma doença (por exemplo, linfomas) cuja avaliação por coloração derivada do Romanowsky torna-se importante, deixamos uma lâmina secar em ar ambiente. Sempre preferimos a fixação em álcool da maioria das lâminas, pois somente o material assim fixado pode ser submetido a exames de imunocitoquímica (Fig. 1). Realizamos pelo menos duas punções do mesmo nódulo para, então, procedermos à coloração de algumas das lâminas, a fim de avaliar imediatamente a adequabilidade do material obtido. Se essa avaliação inicial não mostrar material suficiente, realizamos mais punções com esse intuito, no limite do tolerável para o paciente. Esse procedimento é realizado em todos os nódulos indicados para exame. Cada material obtido é, portanto, identificado quanto ao seu posicionamento na glândula. Após a obtenção de material suficiente para análise, certificamo-nos de quaisquer intercorrências imediatas (edema importante, formação de hematoma) e colocamos um curativo superficial para oclusão apenas temporária dos pontos de entrada da agulha, que não requer ser mantido após sua retirada durante a higiene pessoal diária. Informamos ao paciente que é normal a sensação de um pequeno desconforto local por um ou dois dias e nos colocamos à disposição para contato em caso de dúvidas ou aparecimento de sinais ou sintomas diferentes do esperado. Os esfregaços obtidos após a fixação são submetidos às colorações histoquímicas (Papanicolaou para os fixados em álcool e Giemsa para os secos) e o material remanescente nas agulhas, também encaminhadas ao laboratório, passa por processamento técnico para obtenção de emblocado celular, a partir do qual se confecciona bloco de parafina para corte histológico corado pela hematoxilina-eosina. A avaliação citológica das PAAF de tireoide atualmente é feita utilizando-se a classificação de Bethesda, resultante do trabalho multidisciplinar do National Cancer Institute Thyroid Fine Needle Aspiration State of The Science Conference realizado em Bethesda, em outubro de 2007. CLAssiFiCAÇãO dE bEThEsdA Categoria i Insuficiente ou inconclusivo (artefatos de fixação ou de superposição celular) para diagnóstico Categoria ii Benigno (nódulo hiperplásico, coloide ou tireoidite) Categoria iii Atipia de significado indeterminado (atipia citológica, que é insuficiente para o diagnóstico de uma neoplasia folicular, mas cujos achados não são convincentemente benignos) Categoria iv Sugestivo de neoplasia folicular Categoria v Sugestivo de malignidade (suspeito para carcinoma papilífero, carcinoma medular, metástase ou linfoma) Categoria vii Maligno (carcinoma papilífero (Fig. 2), carcinoma pouco diferenciado ou anaplásico, carcinoma medular, metástase ou linfoma) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 76 Os casos classificados como III e IV, com origem em epitélio folicular, podem se beneficiar de imunocitoquímica para avaliação dos marcadores de risco de lesões foliculares CK19, galectina e HBME-1. Sempre que possível, de acordo com o médico requisitante do exame, indicamos e realizamos essas pesquisas imunocitoquímicas adicionais. Os casos de suspeita ou diagnóstico de linfomas, carcinoma medular ou metástase devem ser sempre submetidos a exame imunocitoquímico pertinente à doença. Fig. 1 - Carcinoma medular – Imunocitoquímica para Calcitonina Fig. 2 - Pseudoinclusão nuclear em carcinoma papilífero – coloração de Papanicolaou A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 77 Pólipos epiteliais serrilhados de intestino grosso O termo pólipo é utilizado para descrever qualquer crescimento ou tumor circunscrito que se projete acima da mucosa adjacente. Dentre os pólipos de natureza epitelial com arquitetura serrilhada dos cólons temos os de aspectoserrilhado. A natureza neoplásica potencial destes pólipos foi descrita recentemente e implica na evolução com alterações displásicas e, eventualmente, adenocarcinoma, com altos níveis de instabilidade de microssatélites. O evento inicial é diminuição da apoptose, com aumento do número de células epiteliais, promovendo o aspecto serrilhado. A lateralidade da lesão tem importância, pois parece que os à direita têm maior potencial maligno, notando-se pior comportamento das lesões maiores e múltiplas. A classificação é controversa. A adotada pelo CICAP baseia-se na presença ou ausência de displasia. O padrão arquitetural e as características proliferativas também são significativos. CLAssiFiCAÇãO dOs PÓLiPOs sERRiLhAdOs dOs CÓLOns AdOTAdA PELO CiCAP: I - Pólipos serrilhados não displásicos A. Arquitetura normal, proliferação normal A1. Pólipo hiperplásico de tipo microvesicular A2. Pólipo hiperplásico de tipo rico em células caliciformes A3. Pólipo hiperplásico de tipo pobre em mucina B. Arquitetura anormal, proliferação anormal B1. Adenoma serrilhado séssil II – Pólipos serrilhados displásicos A. Adenoma serrilhado tradicional B. Pólipo misto com componente convencional e componente serrilhado (pólipo hiperplásico, adenoma serrilhado séssil ou adenoma serrilhado tradicional). dra. maria regina Vianna (Crm 45383) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 78 1 - Pólipo hiperplásico – Pequenos, mais frequentes no reto, podendo ser encontrados em todo o cólon; 90% deles encontram-se à esquerda. Endoscopicamente são pequenos, sésseis. Na classificação utilizada, distinguem-se três tipos, com base no padrão de crescimento e ausência de anormalidades proliferativas ou de maturação. O tipo microvesicular é o mais comum e acredita-se que seja resultante de um aumento do turnover celular combinado com maturação retardada da base para a superfície das criptas. De fato, não há “hiperplasia”. Há potencial maligno, sobretudo relacionado ao tamanho e localização. Caracteriza-se pela presença abundante de mucina microvesicular e pobreza de células caliciformes. Pode ter estratificação nuclear em sua base. Alguns casos têm espessamento da muscular da mucosa com extensão para lâmina própria, podendo ocorrer também inclusão de criptas na submucosa. O tipo rico em células caliciformes, também mais frequente à esquerda, tem baixo nível de metilação do DNA e ausência ou baixo nível de mutação BRAF ou APC, com mutação KRAS comum. É o segundo mais frequente, com aspecto serrilhado menos evidente. O tipo pobre em mucina é pouco conhecido em suas características moleculares, sendo o menos frequente, talvez representando irritação do microvesicular, com depleção de mucina e inflamação devida a prolapso. Os núcleos são hipercromáticos. 2 - Adenoma serrilhado séssil – Geralmente maior que 0,5 cm, séssil, localizado predominantemente à direita, podendo atingir 2 cm. As características desta lesão são: distorção de criptas, assimetria na proliferação e ausência de zona proliferativa facilmente identificável. Apresenta elevada taxa de metilação do DNA e mutação de BRAF, mas baixa prevalência de mutação APC ou KRAS. Microscopicamente, observam-se criptas dilatadas, com serrilhamento exuberante completo e dilatação basal, podendo ocorrer ramificação horizontal, aumento do número de células caliciformes distróficas, estratificação nuclear focal, mitoses superficiais, redução na quantidade de lâmina própria entre as criptas, epitélio hipermucinoso e, ocasionalmente, crescimento invertido. A porção basal pode estar ramificada, assemelhando-se a um T invertido (Fig. 1). A correlação com o tamanho, localização e aspecto colonoscópico é fundamental. Lesões maiores que 0,5 cm, sésseis e localizadas no cólon direito ou transverso, provavelmente representam um adenoma serrilhado séssil precoce. Fig. 1- Adenoma serrilhado séssil de cólon direito Fig. 2- Adenoma serrilhado tradicional 3 - Adenoma serrilhado séssil tradicional – Geralmente pedunculado, exibe arquitetura complexa serrilhada, podendo ser confundido com adenoma viloso. O padrão é de núcleos ovalados, com nucléolo evidente, estratificação nuclear, citoplasma eosinofílico e ausência de maturação na superfície. Embora os núcleos sejam “atípicos”, são diferentes dos núcleos displásicos dos adenomas convencionais, refletindo via molecular diversa. Caracteristicamente, apresentam criptas ectópicas, desenvolvidas com perda da polaridade em relação à muscular da mucosa (Fig. 2). Estes pólipos devem ser ressecados completamente, quando possível, e o paciente deve seguir controle como dos adenomas convencionais. A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 79 Pólipos inflamatórios e hamartomatosos de intestino grosso No centro de imuno-histoquímica citopatologia e anatomia patológica – Laboratório CICAP, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, recebemos, diariamente, numerosos pólipos de intestino grosso ressecados por colonoscopia. Os dados macroscópicos descritos pelo colonoscopista são muito importantes para a linha de raciocínio do médico patologista na análise do espécime. Estes, integrados ao padrão microscópico da lesão, permitem o diagnóstico na maior parte dos casos, restando aqueles de difícil interpretação, em que utilizamos métodos complementares (colorações específicas, exame imuno-histoquímico) para conclusão diagnóstica. Dentre os pólipos não exclusivamente epiteliais, temos: PÓLiPOs inFLAMATÓRiOs 1 - Pólipo inflamatório secundário a doenças inflamatórias intestinais, como retocolite ulcerativa idiopática (10 a 20% dos casos) e Doença de Crohn, além de outras afecções, como esquistossomose, doença isquêmica ou até anastomose cirúrgica. 2 - Pólipo inflamatório tipo prolapso (induzido por prolapso): geralmente ocorre no reto baixo/transição anorretal (pólipo inflamatório cloacogênico), sendo caracterizado por hiperplasia fibromuscular da lâmina própria, espraiamento da muscular da mucosa envolvendo criptas com alterações arquiteturais, tais como alongamento, dicotomização, serrilhamento, além de inflamação, com focos de ulceração e regeneração epiteliais. 3 - Pólipos inflamatórios tipo “cap”: predominantemente do retossigmoide e cólon distal, sendo sésseis, únicos ou múltiplos. Exibem criptas alongadas, dilatadas, tortuosas, com intensa inflamação na lâmina própria e na superfície do tecido de granulação e exsudato fibrinopurulento. 4 - Colite cística profunda poliposa: em raras ocasiões, ocorre isoladamente, podendo relacionar-se a síndrome da úlcera retal solitária. Quando distal (proctite cística profunda), ocorre em paraplégicos. Caracterizam-se por criptas cisticamente dilatadas na submucosa ou na muscular da mucosa, com lâmina própria na periferia. dra. maria regina Vianna (Crm 45383) A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 80 5 - Pólipos associados a doença diverticular: podem confundir-se macroscopicamente com adenoma. Observam- se dois tipos: divertículo invertido (intussuscepção) ou prolapso poliposo de prega mucosa. Caracterizam-se pela presença de hemorragia, congestão e deposição de hemossiderina na lâmina própria, com fibrose e alterações arquiteturais de criptas, como dilatação e dicotomização. Quando maiores, são semelhantes aos do tipo prolapso. A patogênese está ligada a espessamento da tênia coli, que leva a encurtamento do sigmoide, iniciando o processo patogenético da lesão. 6 - Pólipo inflamatório mioglandular: predominantemente localizado no sigmoide, raramente no íleo, onde pode provocar intussuscepção. Sua patogênese é discutida (trauma? hamartoma?), sendo semelhante ao pólipo da Síndrome de Peutz-Jeghers, com rede de musculatura lisa ramificada e criptas hiperplásicas,cisticamente dilatadas (Fig. 1). Na superfície, possui tecido de granulação, com aspecto serrilhado e discreta depleção de mucina. Dentre os diagnósticos diferenciais, tem-se o pólipo juvenil, distinguindo-se deste pela ocorrência em idade mais avançada e pela presença de musculatura lisa ramificada no processo. Em alguns casos, pode ser impossível chegar-se a conclusão diagnóstica precisa. 7 - Pólipo linfoide: ocorre principalmente no reto, geralmente séssil e único. Caracteriza-se pela presença de folículos linfoides reativos na mucosa e submucosa. 8 - Pólipo fibroide inflamatório: mais frequente no estômago e intestino delgado, podendo atingir até 4 cm. Geralmente limitado à submucosa, caracteriza-se por proliferação mesenquimal, com componente inflamatório e vascular e presença de eosinófilos (Fig. 2). As células mesenquimais fusiformes são negativas para CD117 e S100. PÓLiPOs hAMARTOMATOsOs 1 - Pólipo juvenil: mais frequente nas duas primeiras décadas de vida, mas pode ocorrer em adultos. Localiza- se predominantemente no reto, geralmente solitário. Há casos de polipose juvenil definidos como (a) mais de cinco pólipos juvenis no cólon e reto, (b) pólipos juvenis em todo trato gastrointestinal e (c) qualquer número de pólipos juvenis em paciente com história familiar de polipose juvenil. Geralmente pedunculado e menor que 3 cm, com superfície lisa. Microscopicamente, caracteriza-se por criptas tortuosas e dilatadas, imersas em estroma inflamado (Fig. 3). Fig. 1- Pólipo inflamatório mioglandular Fig. 2- Pólipo fibroide inflamatório Fig. 3 - Pólipo juvenil Fig. 4 - Pólipo de Peutz-jeghers A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 81 Fig. 3 - Pólipo juvenil Fig. 4 - Pólipo de Peutz-Jeghers 2 - Pólipo de Peutz-Jeghers: é uma lesão hamartomatosa que ocorre no estômago, intestino delgado e cólon, mais frequentemente associada à síndrome de Peutz-Jeghers (autossômica dominante, exibindo pólipos gastrointestinais e pigmentação mucocutânea), podendo ser isolado. Pode ser séssil ou pedunculado, com até 3,5 cm. A arquitetura básica é de epitélio glandular normal da região onde está inserido, imerso em uma trama ramificada de malha muscular lisa (Fig. 4), em padrão arborescente (“árvore de Natal”). A N A TO M IA P A TO L ó G IC A | C o m o e u t ra to 82 Corações, músculos e mentes: a saga da creatino-quinase A creatinoquinase (CK, vide box 1) é uma enzima que catalisa a fosforilação da creatina pelo ATP, formando creatina fosfato. No pH neutro, esta reação se dá preferencialmente no sentido inverso, ou seja, há favorecimento da formação de ATP a partir da creatina fosfato. Essa reação é dependente do íon magnésio e pode ser inibida pelo aumento da concentração de outros cátions bivalentes, tais como cálcio, zinco e cobre. A CK está presente em grande quantidade nos músculos esqueléticos, no cérebro, no coração e, de forma menos abundante, em outros órgãos, tais como fígado e rins. A sua forma ativa se apresenta como um heterodímero, com subunidades com peso molecular de cerca de 40 kDa cada. As subunidades B (de brain) e M (de muscle) são codificadas por genes localizados nos cromossomos 14 e 19, respectivamente. São reconhecidas três isoenzimas da CK: BB, MB e MM; a fração BB é mais abundante no cérebro, onde representa cerca de 97% da CK; a fração MB representa 20% da CK encontrada no coração e a fração MM constitui-se em cerca de 99% da enzima encontrada no músculo e em 79% da encontrada no coração (vide tabela 1). É importante notar que, durante a vida fetal, a proporção da fração MB presente no músculo pode chegar a 5%. Mais ainda, no processo de reparo da musculatura esquelética que ocorre, por exemplo, após exercícios intensos, pode ocorrer um aumento da expressão da isoenzima B e consequente aumento da fração CK-MB, sem que isto indique dano cardíaco. A relação dos exames disponíveis para a avaliação da CK encontra-se na tabela 2. Uma das principais funções da creatina fosfato é servir de reservatório de fosfato de alta energia; este, durante a contração muscular, é transferido para o ADP, produzindo, assim, o ATP que será utilizado na manutenção da atividade muscular. A determinação da atividade da CK é importante na investigação de diversas condições clinicas (vide tabela 3). É importante, no entanto, ter claro que existem marcadores, tais como as troponinas T e I, que são mais sensíveis e específicos do que a dosagem de CK-MB para o diagnóstico do infarto agudo do miocárdio. dr. Fernando kok* (Crm 32255) dr. nairo sumita* (Crm 61649) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 83 E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to Tabela 1 - Distribuição das isoenzimas de CK, de acordo com o tecido analisado ÓRGãO \ isOEnziMA CÉREbRO MúsCULO CORAÇãO CK-MM 0% 98,9% 78,7% CK-Mb 2,7% 1,1% 20% CK-bb 97,3% 0,06% 1,3% Fonte: Tietz Textbook of Clinical Laboratory, 1999. * Assessores Médicos em Bioquímica Clínica – Fleury Medicina e Saúde E qUAL O nOME CORRETO: CREATinOqUinAsE (CK) OU CREATinOFOsFOqUinAsE (CPK)? O nome correto da enzima é creatinoquinase, uma vez que as quinases são sempre responsáveis pela adição de um grupo fosfato a determinado substrato. Desta forma, embora a abreviatura CPK seja muito utilizada, CK é etimologicamente mais correta. Tabela 2 - Exames laboratoriais disponíveis para a determinação de creatinoquinase e suas isoenzimas Determinação da atividade da creatinoquinase (inclui as três formas da enzima) Quantificação de CK-MB (CK-MB massa) Determinação das isoenzimas de CK, por eletroforese (CK-BB, CK-MB, CK-MM) Pesquisa de macro-CK (vide box 2) O qUE É MACRO-CK? A macro-CK é decorrente da formação, muitas vezes transitória, de complexos de CK (em geral da isoenzima BB) com imunoglobulinas da classe IgG. Por ter meia vida mais longa, a presença de macro-CK pode determinar um aumento da atividade da CK que não está associado a doença de qualquer natureza. Desta forma, a possibilidade de macro-CK deve ser considerada sempre que ocorrer elevação de CK sem causa aparente, especialmente em mulheres com mais de 50 anos. Tabela 3 - Principais causas de elevação de creatinoquinase dE ORiGEM MUsCULAR dE ORiGEM CARdíACA (CK-Mb) dE ORiGEM CEREbRAL - Distrofia muscular - Doenças inflamatórias musculares (inclusive polimiosite e miosites virais) - Atividade física intensa - Medicamentos: estatinas, anfotericina B e muitos outros. - Infarto agudo do miocárdio - Cardioversão - Cateterismo cardíaco - Acidente vascular cerebral - Trauma cranioencefálico 84 Autoanticorpos contra peptídeos citrulinados (ACPA) apresentam alta especificidade e sensibilidade para o diagnóstico de Artrite Reumatoide A Artrite Reumatoide (AR) é uma doença sistêmica cuja característica mais marcante é uma poliartrite simétrica crônica e erosiva. É considerada uma das doenças autoimunes mais comuns, atingindo uma prevalência de até 1% na população geral. Embora seu diagnóstico seja eminentemente clínico, pode haver considerável dificuldade em se identificar os elementos clínicos e radiográficos característicos nas fases iniciais da moléstia. Nessas circunstâncias, a disponibilidade de um marcador diagnóstico sensível e específico seria altamente desejável. O Fator Reumatóide IgM (FR) tem sido utilizado há décadas com esta finalidade, entretanto chama a atenção a sua baixa especificidade, apenas 59% a 65%, pois pode ser encontrado em diversas outras doençasreumáticas auto- imunes, doenças infecciosas, neoplásicas e mesmo em uma considerável fração de indivíduos sadios. Ademais, o FR é detectado em somente 33% dos pacientes que se encontram na fase inicial da doença. Este é um ponto importante em vista do conceito atual de que o tratamento precoce e adequado dos pacientes é fundamental para redução da morbidade da AR. A busca por marcadores diagnósticos alternativos mais eficazes para o diagnóstico de AR levou à descoberta de dois marcadores mais específicos que o FR IgM há várias décadas: o anticorpo antifator perinuclear (APF), em 1964, e o anticorpo antiestrato córneo de esôfago de rato (AKA), em 1989. Os antígenos alvos desses anticorpos estão presentes em alguns tipos de epitélios ceratinizados, como mucosa oral humana (APF) e mucosa do esôfago de rato (AKA). A forma de detectar e identificar esses autoanticorpos é o teste de imunofluorescência indireta utilizando substratos de manipulação delicada e difícil padronização. Como consequência, o uso clínico desses marcadores ficou restrito a algumas instituições universitárias, principalmente europeias, por mais de 30 anos. Na década de 1980, sucessivos estudos culminaram com a demonstração de que o anticorpo antifator perinuclear (APF) e o anticorpo antiestrato córneo de esôfago de rato, detectados pela técnica de imunofluorescência indireta, equivalem a anticorpos contra profilagrina/filagrina (Figura 1). O APF tem sensibilidade em torno de 70% e especificidade acima de 90%. O anticorpo antiestrato córneo de esôfago de rato tem apresentado sensibilidade dr. lUis edUardo Coelho andrade* (Crm 38661) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 85 mais baixa (em torno de 46%), mas é um dos autoanticorpos de maior especificidade clínica (em torno de 97%). A diferença no desempenho diagnóstico dos dois testes relaciona-se ao painel de epítopos apresentado por cada substrato. A progressiva caracterização molecular desses antígenos revelou que os principais epítopos reconhecidos por esses autoanticorpos são peptídeos citrulinados. A citrulinação consiste na deiminação de um resíduo de arginina pela peptidilarginino deiminase (Figura 2), processo que ocorre abundantemente na profilagrina e filagrina. Outras proteínas com resíduos de citrulina são a vimentina e a fibrina. A literatura contemporânea tem denominado esta nova classe de anticorpos como ACPA (do Inglês, anti-citrullinated protein antibodies). A identificação da natureza molecular dos autoantígenos relavantes aos ACPA permitiu a elaboração de kits de ELISA para pesquisa desses anticorpos. Por sua praticidade e por não necessitar de conhecimento e mão de obra especializados, os kits de ELISA para ACPA possibilitaram a disseminação mundial do uso dessa nova classe de autoanticorpos. O mais difundido desses sistemas de ELISA lança mão de peptídeos citrulinados ciclizados (CCP, do Inglês, cyclic citrullinated peptides), o que contribui para melhor exposição dos epítopos relevantes. Conforme a marca proprietária, são denominados anti-CCP-2 e anti-CCP-3, o que não significa que uma versão seja a evolução do outro. Outras marcas utilizam outros substratos citrulinados, como a vimentina citrulinada, por exemplo. Os estudos comparativos desses métodos mostram equivalência diagnóstica significante. Nossa maior experiência é com o anti-CCP-2, que tem demonstrado alta sensibilidade e especificidade para Artrite Reumatoide em diversos estudos em diferentes etnias e condições sócio-econômicas (Tabela 1). Uma análise global de oito estudos com pacientes europeus e norte-americanos evidenciou sensibilidade de 78% e especificidade de 96% para os anticorpos anti-CCP-2 contra sensibilidade de 74% e especificidade de 65% para o FR IgM. Ademais, vários estudos têm demonstrado que os ACPA ocorrem precocemente no curso da doença, podendo até mesmo preceder a eclosão clínica da mesma. Assim, os ACPA (anticorpos antiprofilagrina/filagrina, anti-CCP-2 e congêneres) aparecem como novos marcadores imunológicos sensíveis e específicos para o diagnóstico da Artrite Reumatoide, especialmente úteis para a abordagem das formas iniciais em que a doença não está plenamente desenvolvida. Além de suas propriedades diagnósticas, alguns autores têm sugerido que os ACPA têm valor prognóstico baseado em estudos que mostraram associação dos mesmos com formas mais erosivas da doença. Tabela 1 - Desempenho diagnóstico dos anticorpos antipeptídeo citrulinado cíclico (anti-CCP-2) e do fator reumatóide IgM em oito diferentes centros Europeus Dundee Leeds Londres Viena Atenas Boston Los Angeles Nijmegen sensibilidade Especificidade NR --- 336/431 (76%) 94/104 (90%) 83/103 (81%) 60/101 (60%) 71/105 (68%) 81/92 (88%) 78/100 (78%) 78% NR --- 319/404 79% 94/100 94% 69/103 67% 51/101 50% 69/105 66% NR --- NR --- 74% 16/476 (4%) 17/121 (14%) 4/118 (3%) 1/76 (1,5%) 4/139 (3%) 14/153 (9%) 9/381 (2%) 4/277 (1,5%) 96% 128/473 27% 58/106 55% 61/116 53% 17/72 24% NR --- NR --- NR --- NR --- 65% CEnTRO Anti-CCP + Fator Reumatoide igM + ARTRiTE REUMATOidE ARTRiTE REUMATOidE OUTRAs dOEnÇAs OUTRAs dOEnÇAs NR: Não realizado E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 86 Figura 1 - Imunofluorescência indireta em células da mucosa oral humana, apresentando coloração evidente dos corpos ceratohialinos perinucleares: anticorpo antifator perinuclear (APF) ou antiprofilagrina/filagrina positivo. Figura 2 - O aminoácido citrulina é proveniente da deiminação da L-arginina. Literatura Recomendada: 1. Nienhuis RLF & Mandema EA: A new serum factor in patients with rheumatoid arthritis. The antiperinuclear factor. Ann Rheum Dis 23: 302-305, 1964. 2. Sebbag M, Simon M, Vincent C, Masson-Bessiere C, Girbal E, Durieux JJ & Serre G: The antiperinuclear factor and the so-called antikeratin antibodies are the same rheumatoid arthritis-specific autoantibodies. J Clin Invest 95: 2672-2679, 1995. 3. Santos WS, Silva NP, Sato EI, Fernandes AC & Andrade LEC: Valor Diagnóstico do Fator Antiperinuclear e do Anticorpo Antiestrato Córneo Na Artrite Reumatóide. Parte I. Revista Brasileira de Reumatologia 37: 251 - 259, 1997. 4. Santos WS, Silva NP, Fernandes AC & Andrade LEC: Significado Clínico do Fator Antiperinuclear e Anticorpo Antiestrato Córneo Na Artrite Reumatóide. Parte II. Revista Brasileira de Reumatologia 37: 309 - 316, 1997. 5. Schellekens Ga, de Jong BAW, van den Hoogen FHJ, van de Putte LBA & van Venrooij WJ: Citrulline is an essential constituent of antigenic determinats recognized by rheumatoid arthritis-specific autoantibodies. J Clin Invest 101: 273-281. 1998. 6. Schellekens Ga, Visser H, de Jong BAW, van den Hoogen FHJ, Hazes JMW, Breedveld FC & van Venrooij WJ: The diagnostic properties of rheumatoid arthritis antibodies recognizing a cyclic citrullinated peptide. Arthritis Rheum 43: 155-163, 2000. 7. Bizzaro N, Mazzanti G, Tonutti E, Villalta D & Tozzoli R: Diagnostic accuracy of the anti-citrulline antibody assay for rheumatoid arthritis. Clinical Chemistry 47: 1089-1093, 2001. 8. Scott DL: The diagnosis and prognosis of early arthritis: rationale for new prognostic criteria. Arthritis Rheum 46: 286-200, 2002. 9. Coenen D, Verschueren P, Westhovens R, Bossuyt X: Technical and diagnostic performance of 6 assays for the measurement of citrullinated protein/peptide antibodies in the diagnosis of rheumatoid arthritis. Clin Chem;53:498-504, 2007. * Assessor Médico para Reumatologia - Fleury Medicina e Saúde E X A M E S L A B O R A TOR IA IS | C o m o e u t ra to 87 Avaliação da dor abdominal aguda por métodos de imagem Alguns métodos de imagem podem ser utilizados na avaliação do abdome agudo, e incluem a radiografia simples do abdome, a ultrassonografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética. A radiografia é um método muito limitado, porém é um exame barato e disponível, podendo ser utilizado na avaliação inicial de algumas situações clínicas, como na suspeita de pneumoperitônio, de obstrução intestinal, na pesquisa de litíase urinária e no seguimento de pacientes com distensão intestinal já conhecida. (1) A ultrassonografia também é um método de baixo custo, disponível e de rápida execução, podendo ainda ser realizada à beira do leito. Possui boa sensibilidade e especificidade para diversas situações, tendo a vantagem de não produzir radiação ionizante e permitir a interação médico-paciente, o que pode facilitar o diagnóstico e estreitar o diagnóstico diferencial. É um método que depende da experiência do examinador, além da qualidade do equipamento utilizado. O exame pode ser prejudicado na presença de distensão gasosa, em pacientes obesos e não cooperativos. (2) A tomografia computadorizada é um método que permite avaliação adequada de múltiplas patologias na urgência. É um exame mais reprodutível que a ultrassonografia e que pode ser revisado ou avaliado a distância. Não há limitações em obesos (exceto em pacientes acima da capacidade do equipamento, cerca de 200 quilogramas). A tomografia não é limitada pela distensão gasosa. A utilização de contraste iodado intravenoso facilita a avaliação de muitas patologias, inclusive vasculares, porém seu uso é limitado em pacientes com história de alergia ao iodo e insuficiência renal. É disponível na maioria dos grandes serviços. Sua principal desvantagem está na emissão de radiação ionizante. (1) A ressonância magnética é um método muito pouco utilizado na avaliação de pacientes com abdome agudo, sendo uma alternativa em pacientes selecionados, especialmente quando os outros métodos disponíveis não forem elucidativos. É um método menos disponível, de alto custo e demorado, por vezes pouco tolerado pelo paciente. Na maioria das situações de urgência, tem eficácia semelhante à tomografia computadorizada, porém dr. CeCil Wall BarBosa de CarValho neto (Crm 132858) dr. Flávio Ferrarini de oliveira Pimentel* (Crm 82350) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 88 permite a realização do contrate intravenoso com mais segurança em pacientes com histórico de alergia. (3) O diagnóstico diferencial do abdome agudo é vasto, sendo imprescindível uma avaliação clínica inicial adequada para o direcionamento correto dos exames de imagem. Conforme as alterações clínicas observadas, as principais causas de abdome agudo podem ser agrupadas em abdome agudo inflamatório (colecistite aguda, pancreatite aguda, apendicite, diverticulite, entre outras), obstrutivo, vascular, causas urológicas e ginecológicas, entre outras. (4) Na colecistite aguda, o método diagnóstico de escolha é a ultrassonografia. Deve-se ter atenção especial com os idosos, em quem há condições que predispõem à doença biliar (ducto biliar mais calibroso, facilitando a estase biliar, sendo mais frequente a presença de cálculos, e bile litogênica). Neste grupo de pacientes, a doença biliar representa até 1/3 dos casos de dor abdominal e consiste na principal indicação de cirurgia. O diagnóstico clínico é dificultado, pois cerca de metade dos idosos com colecistite aguda apresentam-se sem febre, dor localizada ou alteração no leucograma, o que pode atrasar o diagnóstico, tornando-os mais sujeitos a complicações. (5) Na avaliação da pancreatite aguda, o exame de escolha é a tomografia computadorizada; o método, além de confirmar o diagnóstico, detecta complicações. A ultrassonografia apresenta menor sensibilidade e especificidade, sendo indicada principalmente para a investigação de uma possível etiologia biliar e para controle de coleções, podendo ainda ser utilizada na orientação de intervenção diagnóstica e/ou terapêutica. A ultrassonografia é o método indicado na avaliação inicial de pacientes com suspeita de apendicite aguda; o apêndice inflamado, espessado, é visualizado em 76 a 95% dos casos. A visualização do apêndice com espessura normal exclui o diagnóstico. Na ausência de um apêndice visualizável, deve-se correlacionar o resultado aos dados clínicos e laboratoriais. Mantendo-se a alta suspeição, a tomografia computadorizada passa a ser indicada. A ultrassonografia é o exame de escolha em crianças e gestantes, por não provocar exposição à radiação ionizante, e em mulheres na pré-menopausa, por permitir a avaliação concomitante de uma possível origem ginecológica para a dor. A tomografia apresenta alta sensibilidade e especificidade, sendo a melhor opção para avaliação de pacientes obesos e na presença de coleção associada. A apendagite epiploica é um importante diagnóstico diferencial de apendicite e diverticulite, representando, na maioria das vezes, torção e infarto de um apêndice epiploico. Apresenta-se como uma dor localizada, principalmente nas fossas ilíacas, que é autolimitada e não requer abordagem cirúrgica. Outro frequente diagnóstico diferencial de apendicite, a adenite mesentérica, é a segunda causa mais comum de dor na fossa ilíaca direita, predomina em pacientes jovens e também é autolimitada. A identificação de linfonodos mesentéricos aumentados e do apêndice vermiforme normal são importantes para o seu diagnóstico. A doença diverticular dolorosa e a diverticulite são a causa de 10 a 30% dos casos de abdome agudo; em 2/3 dos casos afetam o cólon sigmoide e apresentam-se com dor na fossa ilíaca esquerda, incidindo principalmente em pessoas com mais de 50 anos. A ultrassonografia costuma ser o exame indicado inicialmente na suspeita de diverticulite. Porém a tomografia computadorizada tem maior sensibilidade, sendo considerado o exame de escolha, permitindo também melhor avaliação de perfuração e coleções associadas. (6) O abdome agudo obstrutivo representa cerca de 20% dos atendimentos por abdome agudo. É suspeitado na presença de dor difusa em cólica, distensão abdominal, náuseas e vômitos, e sua mortalidade pode variar de 5 a 40%, maior na presença de sofrimento vascular. As causas de abdome agudo obstrutivo são diversas, sendo as obstruções de intestino delgado (bridas, hérnias, neoplasias e outras) até cinco vezes mais comuns que as de cólon (neoplasias, volvos e outras). Em pacientes idosos, destaca-se a ocorrência de obstrução por bridas, neoplasias e hérnias. A radiografia simples apresenta sensibilidade semelhante à tomografia para identificação de obstrução intestinal, porém é pouco específica em relação a sua causa, podendo ser usada no acompanhamento do quadro obstrutivo. A tomografia computadorizada é o exame de escolha, permitindo boa avaliação da causa e localização da obstrução, além de possíveis complicações associadas. (7) (8) As causas vasculares de abdome agudo incluem condições agudas da aorta abdominal (rotura de aneurisma E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 89 e dissecção aórtica) e a isquemia mesentérica aguda. A rotura de aneurisma é mais frequente em homens fumantes, com história de doença vascular periférica e hipertensão arterial sistêmica, apresenta alta mortalidade, em especial na primeira hora do atendimento, e o quadro clínico clássico é de dor abdominal intensa e choque, podendo ou não haver massa pulsátil. A isquemia mesentérica é uma causa incomum, porém muito grave de abdome agudo; os pacientes apresentam dor intensa e de rápida instalação, que, na presença de irritação peritoneal echoque, sugerem a presença de necrose e perfuração; o exame de escolha na sua suspeita é a tomografia computadorizada com contraste intravenoso Existem outras várias causas de dor abdominal que podem ter origem intra ou extra-abdominais, e devem ser avaliadas por exames específicos em função do contexto clínico, incluindo infarto agudo do miocárdio, tromboembolismo pulmonar, pneumonias, cetoacidose diabética, gastroenterite e doença péptica. Em resumo, para a avaliação adequada das causas de abdome agudo, é fundamental a realização de uma avaliação clínica cuidadosa. Anamnese e exame físico bem feitos permitem direcionar os exames laboratoriais e de imagem necessários, tornando mais ágil o diagnóstico e tratamento do paciente. Pacientes com suspeita de abdome agudo vascular devem ser avaliados rapidamente por ultrassonografia quando houver suspeita de rotura da aorta, podendo-se realizar o exame na própria sala de emergência; nos casos em que não houver instabilidade hemodinâmica, a tomografia computadorizada está indicada. Muitas causas de abdome agudo têm seu diagnóstico definido pela associação de exames laboratoriais, eletrocardiograma e radiografias simples de tórax e abdome, entre elas: infecção urinária, infarto agudo do miocárdio, pneumonia, cetoacidose diabética, perfuração intestinal e volvos. Não sendo suficiente, passam a ser indicados exames de imagem mais específicos: a ultrassonografia é o exame mais indicado na suspeita de patologia biliar, na avaliação de possível apendicite ou diverticulite, especialmente em crianças e gestantes; a tomografia computadorizada é o exame indicado na suspeita de pancreatite, para o diagnóstico da causa e localização de processos obstrutivos, e para avaliação de apendicite e diverticulite, especialmente em pacientes obesos ou quando a ultrassonografia não for elucidativa. A ressonância magnética não costuma ser indicada em exames de emergência abdominal, salvo alguns casos selecionados. (8) Referências: 1. Seminars in Ultrasound, CT, and MRI, Vol. 20, Nº2, 1999: 142-147. 2. Radiol Clin N Am 41 (2003) 1227-1242. 3. Radiographics 2007; 27: 1419-1431. 4. Geriatrics 2002; 57: 30-42. 5. Gastroenterol Clin North Am 2001; 30: 531-45. 6. Radiology, Vol 205, 503-512, 1997. 7. Paes Jr. J, Giavina-Bianchi P. Diagnóstico clínico e terapêutica das urgências cirúrgicas São Paulo - Roca 2006. 8. Am Fam Physician 2006; 74: 1537-44. * Médico radiologista do Centro de Procedimentos Guiados por Imagem – Fleury Medicina e Saúde E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 90 Clostridium difficile As infecções por Clostridium difficile (CDI) podem ter apresentações clínicas diversas, desde diarreia até perfuração de cólon, secundária à colite pseudomembranosa. Os fatores de risco clássicos associados a essa infecção são idade avançada, uso de antimicrobianos, internação em unidade de terapia intensiva ou em instituições de assistência à saúde por período prolongado. Os principais antimicrobianos implicados na CDI são clindamicina, quinolonas fluoradas e as cefalosporinas de uso parenteral, em particular ceftriaxona e cefotaxima (1). Apesar de o uso prévio de antimicrobianos representar o fator de risco mais importante para a CDI, tem sido relada a ocorrência de CDI em gestantes sem esse fator de risco (2, 3), e a sua associação com o uso de inibidores de bombas de prótons (4). Vários relatos na literatura descrevem o aumento da incidência de diarreia causada por este agente nos últimos anos, com aumento da duração das internações hospitalares, maior morbidade, mortalidade e aumento de custos (5-11). A CDI pode ocorrer por transmissão cruzada no ambiente hospitalar ou por proliferação de C. difficile da própria microbiota do indivíduo, previamente alterada pelo uso de antimicrobianos. C. difficile é um bacilo gram-positivo anaeróbio, capaz de formar esporos. Essa propriedade permite que a bactéria não seja eliminada de modo eficaz com o uso de álcool-gel, sendo essencial a higienização das mãos com água e sabão (12). Dentre os fatores que podem limitar a ocorrência de casos de diarreia por C. difficile (DCD), os mais relevantes são o uso de antimicrobianos durante o menor tempo possível e a implementação de medidas de precaução de contato (MPC), precocemente. Para isso, a confirmação diagnóstica rápida e com elevados valores preditivos negativo e positivo é fundamental. O AGEnTE ETiOLÓGiCO E sUA viRULênCiA A primeira descrição da espécie foi feita em 1935, por Hall e O’Toole, estudando a microbiota fecal de recém-natos (13). Estudos subsequentes evidenciaram que até 70% dos lactentes são colonizados por C. difficile, incluindo cepas toxigênicas, mas são assintomáticos (14, 15). Alguns autores advogam que a ausência de diarreia induzida por C. difficile em crianças colonizadas por cepas toxigênicas, com até um ano de idade, é provavelmente devida à expressão reduzida de receptores para toxina A em enterócitos imaturos (16). Considerando esses dados, o diagnóstico da infecção não deve ser buscado em crianças nessa faixa etária que apresentem diarreia na vigência de tratamento antimicrobiano, mas apenas em casos selecionados, quando houver suspeita de enterocolite dr. Jorge lUiz mello samPaio* (Crm 103822) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 91 necrotizante ou colite pseudomembranosa (17, 18). A associação entre uso de antimicrobianos, colite pseudomembranosa e C. difficile foi descrita apenas em 1978 por Bartlett e colaboradores (19). Os dois principais fatores de virulência de C. difficile são as toxinas A e B (Figura 1). As duas toxinas têm grande homologia, com domínio C-terminal, cuja ligação ao receptor da membrana do enterócito induz endocitose. O pH ácido do endossomo provoca uma alteração conformacional na toxina B, com inserção da porção central hidrofóbica na membrana do endossomo, permitindo que o domínio N-terminal, com ação enzimática, alcance o citosol. A exposição da porção N-terminal ao citosol ativa a quebra autocatalítica, liberando a porção N-terminal da toxina, que glicosila as GTPases Rho, causando desorganização do citoesqueleto e morte celular (20). Além dos genes que codificam as toxinas, a proteína tcdC desempenha um papel fundamental, pois as cepas hipervirulentas apresentam deleção parcial do gene tcdC, e estão associadas a ocorrências das formas mais graves da doença. Em alguns países, a gravidade e o aumento do número de casos têm sido associados à disseminação da cepa NAP1 (North America Pulsed-field type 1), também denominada ribotipo 027, que tem uma deleção no gene tcdC e é resistente às quinolonas fluoradas (21-23). Apesar de alguns trabalhos demonstrarem a ocorrência de CDI no Brasil, a presença dessa cepa ainda não foi descrita (24-27). Figura 1 – Locus de patogenicidade de C. difficile. tcdR – codifica ativador transcricional de tcdA e tcdB; tcdA e tcdB – codificam a enterotoxina A e a citotoxina B, respectivamente; tcdE – codifica facilitador da liberação das toxinas A e B; tcdC – codifica regulador negativo da transcrição dos genes tcdA e tcdB. diAGnÓsTiCO LAbORATORiAL A amostra de fezes deve ser coletada sem conservante e mantida sob refrigeração (2 a 8 °C) até o processamento. O método considerado padrão ouro para o diagnóstico das CDI é a cultura toxigênica das fezes, que consiste no isolamento da bactéria em meio seletivo anaeróbio, seguido de teste para avaliação da produção de toxinas A e B. Em função do tempo necessário para liberação do resultado – três a cinco dias – o teste é pouco utilizado na prática clínica. A cultura pode ser feita diretamente em meio seletivo contendo cefoxitina e cicloserina, ou em ágar Brucella com sangue de cavalo e taurocolato de sódio, após tratamentocom etanol a 95% (Figura 2). Recentemente, foi descrito o uso de meio cromogênico (28, 29). O taurocolato de sódio é essencial quando se utiliza tratamento com etanol, pois este composto estimula a germinação dos esporos (30). Após 48 horas de incubação em anaerobiose, a identificação presuntiva deve ser feita por microscopia pelo método de Gram, que evidenciará bacilos gram-positivos esporulados. A seguir, deve ser comprovada a produção de toxinas A ou B, por ensaio imunoenzimático (31). Figura 2 – Cultura de C. difficile em ágar Brucella com sangue de cavalo a 10% E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 92 O método com maior sensibilidade e especificidade, utilizando-se a cultura toxigênica como padrão ouro, é a detecção dos genes que codificam as toxinas A ou B, por PCR em tempo real, a exemplo do sistema GeneXpert. Para esse teste, o estudo multicêntrico mais recente, envolvendo 2.296 pacientes, evidenciou sensibilidade de 93,5%; especificidade de 94,0%; valor preditivo positivo de 73,0%; valor preditivo negativo de 98,8% e prevalência de 14,7% (32). Os testes imunoenzimáticos para detecção de toxinas ou glutamato desidrogenase têm sensibilidade inferior e especificidade semelhante àquela da PCR em tempo real. O valor preditivo negativo da PCR em tempo real é superior àquele dos demais testes, enquanto o valor preditivo positivo é superior ou similar àqueles dos testes fundamentados em detecção de antígenos. Várias outras publicações evidenciam que a PCR em tempo real é o teste com maiores sensibilidade e especificidade quando comparado à cultura toxigênica (31, 33-36). A PCR em tempo real para C. difficile ainda não está disponível na maioria dos laboratórios no Brasil. Os dois tipos de testes mais utilizados são os imunocromatográficos (Figura 3A) e os testes pelo método ELISA com imunocaptura (Figura 3B). Há vários testes disponíveis no mercado nacional, mas não há publicação nacional avaliando a sensibilidade e especificidade dos mesmos. O estudo mais recente indica sensibilidades de 33,3 a 53,8% e especificidade de 93,6 a 97,6% para kits com método ELISA (32). Figura 3 – Testes para detecção de toxinas A e B de C. difficile. A – teste imunocromatográfico. Notar a presença de linha de cor roxa na área TEST. B- ensaio imunoenzimático. Notar ausência de cor no teste negativo (1) e cor amarela na amostra positiva (2). RECOMEndAÇãO: Baseando-se na literatura atualmente disponível, na necessidade de implementação precoce de medidas de precaução de contato, e na rapidez de obtenção dos resultados – uma hora – o teste com maior impacto clínico para diagnóstico de diarreia por Clostridium difficile é a PCR em tempo real. Em face de um resultado negativo por PCR e persistência da suspeita clínica, o teste indicado para complementação diagnóstica é a cultura para C. difficile. Alternativas seriam os testes imunoenzimáticos ou imunocromatográficos. Em caso de incompatibilidade clínica-laboratorial, a cultura toxigênica deverá ser o teste de eleição. E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 93 Referências: 1. Bartlett JG. Detection of Clostridium difficile infection. Infect Control Hosp Epidemiol. 2010 Nov; 31 Suppl 1: S35-7. 2. Severe Clostridium difficile-associated disease in populations previously at low risk--four states, 2005. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2005 Dec 2; 54(47): 1201-5. 3. Surveillance for community-associated Clostridium difficile--Connecticut, 2006. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2008 Apr 4; 57(13): 340-3. 4. Howell MD, Novack V, Grgurich P et al. Iatrogenic gastric acid suppression and the risk of nosocomial Clostridium difficile infection. Arch Intern Med. 2010 May 10; 170(9): 784-90. 5. Ghantoji SS, Sail K, Lairson DR et al. Economic healthcare costs of Clostridium difficile infection: a systematic review. J Hosp Infect. 2010 Apr; 74(4): 309-18. 6. Vonberg RP, Reichardt C, Behnke M et al. Costs of nosocomial Clostridium difficile-associated diarrhoea. J Hosp Infect. 2008 Sep; 70(1): 15-20. 7. Song X, Bartlett JG, Speck K et al. Rising economic impact of Clostridium difficile-associated disease in adult hospitalized patient population. Infect Control Hosp Epidemiol. 2008 Sep; 29(9): 823-8. 8. Paladino JA, Schentag JJ. The economics of Clostridium difficile-associated disease for providers and payers. Clin Infect Dis. 2008 Feb 15; 46(4): 505-6. 9. Ananthakrishnan AN, McGinley EL, Binion DG. Excess hospitalisation burden associated with Clostridium difficile in patients with inflammatory bowel disease. Gut. 2008 Feb; 57(2): 205-10. 10. Kyne L, Hamel MB, Polavaram R et al. Health care costs and mortality associated with nosocomial diarrhea due to Clostridium difficile. Clin Infect Dis. 2002 Feb 1; 34(3): 346-53. 11. Pepin J, Valiquette L, Alary ME et al. Clostridium difficile-associated diarrhea in a region of Quebec from 1991 to 2003: a changing pattern of disease severity. CMAJ. 2004 Aug 31; 171(5): 466-72. 12. Jabbar U, Leischner J, Kasper D et al. Effectiveness of alcohol-based hand rubs for removal of Clostridium difficile spores from hands. Infect Control Hosp Epidemiol. 2010 Jun; 31(6): 565-70. 13. Hall IC, O’Toole E. Intestinal flora in new-born infants: with a description of a new pathogenic anaerobe, Bacillus difficilis. Am J Dis Child. 1935; 49(2): 13. 14. Al-Jumaili IJ, Shibley M, Lishman AH et al. 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Use of sodium taurocholate to enhance spore recovery on a medium selective for Clostridium difficile. J Clin Microbiol. 1982 Mar; 15(3): 443-6. 31. Knetsch CW, Bakker D, de Boer RF et al. Comparison of real-time PCR techniques to cytotoxigenic culture methods for E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 94 diagnosing Clostridium difficile infection. J Clin Microbiol. 2010 Oct 27. 32. Tenover FC, Novak-Weekley S, Woods CW et al. Impact of strain type on detection of toxigenic Clostridium difficile: comparison of molecular diagnostic and enzyme immunoassay approaches. J Clin Microbiol. 2010 Oct; 48(10): 3719-24. 33. Doing KM, Hintz MS, Keefe C et al. Reevaluation of the Premier Clostridium difficile toxin A and B immunoassay with comparison to glutamate dehydrogenase common antigen testing evaluating Bartels cytotoxin and Prodesse ProGastro Cd polymerase chain reaction as confirmatory procedures. Diagn Microbiol Infect Dis. 2010 Feb; 66(2): 129-34. 34. Babady NE, Stiles J, Ruggiero P et al. Evaluation of the Cepheid Xpert Clostridium difficile Epi Assay for Diagnosis C. difficile Infection and Typing of the NAP1 Strain at a Cancer Hospital. J Clin Microbiol. 2010 Oct 13. 35. Eastwood K, Else P, Charlett A et al. Comparison of nine commercially available Clostridium difficile toxin detection assays, a real-time PCR assay for C. difficile tcdB, and a glutamate dehydrogenase detection assay to cytotoxin testing and cytotoxigenic culture methods. J Clin Microbiol. 2009 Oct; 47(10): 3211-7. 36. Sloan LM, Duresko BJ, Gustafson DR et al. Comparison of real-time PCR for detection of the tcdC gene with four toxin immunoassays and culture in diagnosis of Clostridium difficile infection. J Clin Microbiol. 2008 Jun; 46(6): 1996-2001. * Assessor Médico para Microbiologia e Parasitologia - Fleury Medicina e Saúde E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 95 O BNP na insuficiência cardíaca Os peptídeos natriuréticos são neuro-hormônios com importante papel na homeostase cardiovascular. São conhecidos o tipo A ou ANP, liberado pelos átrios; o tipo B ou BNP – oriundo do termo em inglês Brain Natriuretic Peptide – e o tipo C ou CNP, liberado pelas células endoteliais. O BNP é o mais utilizado na prática clínica e, em humanos, é liberado, principalmente, pelos ventrículos cardíacos, em resposta a uma sobrecarga de pressão ou volume. Os peptídeos natriuréticos promovem diurese, natriurese, vasodilatação periférica, inibição do sistema renina angiotensina e da atividade simpática, estando aumentados em pacientes com insuficiência cardíaca congestiva. O estiramento da musculatura cardíaca é o principal estímulo para a secreção do BNP. Sua síntese ocorre no cardiomiócito, a partir de uma molécula maior denominada pre-pro-BNP. A clivagem enzimática do pre-pro-BNP produz a forma ativa, denominada BNP, e o fragmento inativo, denominado pro-BNP. A dosagem das duas moléculas permite avaliar a gravidade da falência cardíaca, sendo de grande utilidade no manejo do paciente com insuficiência cardíaca. O processo de inativação do BNP se dá, principalmente, pela degradação pelas endopeptidases e, em menor parcela, pela filtração glomerular. Esse peptídeo apresenta meia vida de 15 a 20 minutos e, por isso, é um parâmetro de extrema utilidade nas situações em que há necessidade de avaliação imediata das mudanças na ativação do sistema de neuro-hormônios e do estado hemodinâmico, particularmente em relação à sobrecarga ventricular. O fato de os níveis de BNP não sofrerem redução após as medidas terapêuticas é indicativo de mau prognóstico. Há evidências, também, de que os níveis de BNP apresentam relação direta com o prognóstico das síndromes coronarianas agudas. O pro-BNP apresenta depuração mais lenta. Sua concentração é, naturalmente, mais elevada na circulação, sendo mais estável e com menor variabilidade biológica que o BNP. É retirado do organismo, principalmente, pela filtração glomerular, com meia vida ao redor de 60 minutos. Importante ressaltar que a disfunção renal interfere na concentração plasmática, tanto do BNP, quanto do pro-BNP. O BNP é útil na exclusão do diagnóstico de insuficiência cardíaca, particularmente, diante de sinais e sintomas discretos ou quando há associação com outras condições clínicas, como doença pulmonar ou obesidade, que também podem cursar com dispneia e dificultar a definição da etiologia desse sintoma. Habitualmente, recomenda-se o valor de 100 pg/mL como o limite superior de normalidade para o BNP. Níveis dr. nairo m. sUmita* (Crm 61649) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 96 inferiores, praticamente, afastam a insuficiência cardíaca. Já valores acima de 400 pg/mL estão fortemente associados às manifestações clínicas decorrentes dessa cardiopatia. Valores entre 100 e 400 pg/mL necessitam dos dados clínicos e de exame físico, associados a outros métodos diagnósticos, para definição diagnóstica. Ressalta-se que os níveis de BNP, normalmente, elevam-se com a idade, sendo que, para uma mesma faixa etária, as mulheres apresentam níveis de BNP mais elevados do que os homens. Portanto, a dosagem do BNP é um parâmetro de elevada sensibilidade e especificidade no diagnóstico de insuficiência cardíaca congestiva, colaborando com o diferencial dos quadros clínicos de dispneia aguda numa unidade de emergência. É, também, muito útil no manuseio de pacientes com insuficiência cardíaca congestiva descompensada e como fator prognóstico na síndrome coronariana aguda. Referências 1. MAIR, J. Biochemistry of B-type natriuretic peptide - where are we now? Clin Chem Lab Med; 46: 1507-14, 2008. 2. Clerico A, Fontana M, Zyw L et al. Comparison of the diagnostic accuracy of brain natriuretic peptide (BNP) and the N-terminal part of the propeptide of BNP immunoassays in chronic and acute heart failure: A systematic review. Clinical Chemistry; 53: 813-22, 2007. * Assessor Médico em Bioquímica – Fleury Medicina e Saúde E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 97 Proteína C-reativa ultrassensível na avaliação do risco cardiovascular A proteína C-reativa (PCR) ultrassensível tem se mostrado um marcador útil na avaliação do processo inflamatório vascular, um dos fenômenos responsáveis pela gênese da aterosclerose. A PCR é um polipeptídeo sintetizado no fígado por mediação da interleucina-6, sendo caracterizada como uma proteína de fase aguda que se eleva em resposta às inflamações, infecções, doenças neoplásicas e traumas. Nas situações agudas, esse incremento pode ser observado após 6 a 8 horas, podendo alcançar níveis 1.000 vezes superiores, em relação aos níveis basais, após 24 a 48 horas. Os níveis desse marcador não se alteram após ingestão de alimentos e não apresentam variação circadiana. O processo inflamatório que compromete predominantemente o endotélio vascular induz elevações discretas da PCR – bem mais baixas que as que ocorrem nas inflamações agudas -, fato que permite a sua utilização nas prevenções primária e secundária para eventos coronarianos agudos, acidente vascular cerebral, doença vascular obstrutiva periférica e morte súbita cardíaca, além de acrescentarvalor prognóstico ao escore de Framingham. Estudos têm demonstrado uma estreita associação prognóstica da elevação dos níveis da PCR ultrassensível na síndrome metabólica, diabetes e hipertensão, condições estas que também elevam sobremaneira o risco cardiovascular. O termo ultrassensível relaciona-se ao método laboratorial utilizado para a dosagem da PCR, pois as medidas são realizadas com ensaios de elevada sensibilidade analítica, sendo a imunonefelometria e a imunoturbidimetria as metodologias mais comumente aplicadas. Esses recursos são capazes de detectar mínimas concentrações da PCR, que podem alcançar valores tão baixos quanto 0,2 mg/L ou 0,02 mg/dL. Importante ressaltar que métodos não ultrassensíveis para dosagem da PCR também são disponibilizados pelos laboratórios clínicos. Esses ensaios estão indicados para a avaliação de processos inflamatórios decorrentes, por exemplos, de infecções e doenças autoimunes, onde são observados valores substancialmente mais elevados. Nesses contextos, apresentam desempenho analítico superior em relação aos de alta sensibilidade que, inclusive, apresentam um custo mais elevado, razão pela qual possuem aplicabilidade mais justificada na avaliação do risco cardiovascular. dr. nairo m. sUmita* (Crm 61649) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 98 Os valores da PCR ultrassensível, para a avaliação do risco cardiovascular, nas unidades de concentração mg/dL e mg/L são: • Abaixo de 0,1 mg/dL: risco baixo • De 0,1 e 0,3 mg/dL: risco intermediário • Acima de 0,3 mg/dL: risco aumentado Para utilizar a PCR ultrassensível como marcador de risco cardiovascular, recomenda-se a realização de duas determinações, com um intervalo mínimo de duas semanas entre as dosagens, sendo o valor médio o que deve ser considerado para a estimativa do risco. As concentrações iniciais acima de 1,0 mg/dL devem ser interpretadas como possível quadro de inflamação e/ou infecção aguda. Nessas situações, a dosagem deve ser repetida somente após estabilização das condições clínicas do paciente. Referência: PEARSON, T.A.; MENSAH, G.A.; et al. Markers of inflammation and cardiovascular disease: application to clinical and public health practice: A statement for healthcare professionals from the Centers for Disease Control and Prevention and the American Heart Association. Circulation, v.107, p.499-511, 2003. * Assessor Médico em Bioquímica – Fleury Medicina e Saúde E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 99 Síndrome mielodisplásica (SMD) no século XXI: diagnóstico, classificação, prognóstico e novas opções terapêuticas REsUMO A SMD é um conjunto de doenças hematológicas malignas ainda pouco compreendido. Trata-se de doença clonal de célula precursora hematopoética caracterizada por hematopoese ineficaz em uma ou mais linhagens celulares da medula óssea. A história natural é a progressão da citopenia para leucemia aguda. A expectativa é de que haja aumento do número de casos diagnosticados pelo envelhecimento da população mundial e pelo maior índice de cura no tratamento de tumores sólidos, situação na qual aparecem as chamadas SMD secundárias à quimio e/ou radioterapia. A SMD tem recebido dedicada atenção de pesquisadores e clínicos, especialmente nas últimas três décadas. O diagnóstico, a classificação e os sistemas de escore prognóstico foram atualizados e novas drogas estão disponíveis. Dada a relevância da SMD, o presente texto descreve, de forma simplificada, detalhes essenciais dessas atualizações e oferece uma visão geral das novas opções terapêuticas disponíveis, sem, entretanto, pretender esgotar o tema. inTROdUÇãO Síndrome mielodisplásica (SMD) constitui-se num grupo heterogêneo de neoplasias mieloides, anteriormente denominado pré-leucemia. Trata-se de proliferação clonal caracterizada por citopenia devida a defeitos de maturação. Pode haver, inicialmente, citopenia isolada ou pancitopenia que, por vezes, evolui para a franca leucemia (40%). Os demais pacientes que não sofrem transformação leucêmica vão a óbito por falência medular (30%) ou por outras causas (30%). A doença é mais incidente em idosos, acima de 65 anos de idade, mas pode ocorrer em qualquer idade. A etiologia da SMD primária é desconhecida. Indivíduos com exposição ambiental a agentes físicos e químicos, como benzeno, têm maior risco de desenvolver a doença. A fisiopatologia é a maturação defeituosa com proliferação aumentada de células precursoras da medula óssea, ou dra. maria de loUrdes l. F. ChaUFFaille* (Crm 44281) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 100 seja, hematopoese ineficaz, desencadeada por processo múltiplo, que se inicia numa mutação somática em célula progenitora pluripotente com vantagem proliferativa. Há, também, envelhecimento celular precoce, aumentada apoptose e capacidade limitada de autorrenovação das células precursoras, além de resposta inadequada a estímulos de fatores de crescimento, apesar de o número de receptores ser normal, bem como a capacidade de ligação. Além disso, alterações na angiogênese e no grau de metilação de genes também estão presentes. A primeira classificação das SMD mundialmente aceita foi a FAB (tabela 1) e perdurou por cerca de duas décadas até ser revista e atualizada pela OMS (tabela 2), que alterou a porcentagem de blastos de 30% para < 20% para ser considerada a SMD. Acima de 20%, passou a ser leucemia aguda. siGLA AR ARSA AREB AREBT LMMC LMMCT bLAsTOs MO* < 5% < 5% 5-20% 20-30% 5-20% 21-29% bLAsTOs nO sP* < 1% < 1% < 5% < 30% < 5% < 30% sidERObLAsTOs - + +/- +/- - - sUbTiPO Anemia refratária Anemia refratária com sideroblastos em anel Anemia refratária com excesso de blastos Anemia refratária com excesso de blastos em transformação Leucemia mielomonocítica crônica Leucemia mielomonocítica crônica em transformação Tabela 1. Classificação FAB (Bennett et al, 1982). • MO: medula óssea • SP: sangue periférico E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 101 Tabela 2: Classificação da OMS (Swerdlow et al, 2008). siGLA AR NR TR ARSA CRDM AREB1 AREB2 DEL(5Q) CRI SMD-I sP Anemia, < 1% de blastos Neutropenia, < 1% de blastos Trombocitopenia < 1% de blastos Anemia Sem blastos Citopenia, < 1% de blastos, sem Auer Citopenia, < 5% de blastos, sem Auer Citopenia, 5 a 19% de blastos, com ou sem Auer Anemia, plaquetometria normal ou aumentada, < 1% de blastos Pancitopenia Citopenia, < 1% de blastos sP Displasia eritroide, < 5% de blastos Displasia granulocítica, < 5% de blastos Displasia megacariocítica, < 5% de blastos Displasia eritroide, > 15% sideroblastos em anel, < 5% de blastos Displasia multilinhagem, com ou sem sideroblastos em anel, < 5% de blastos, sem Auer Displasia uni ou multilinhagem, 5 a 9% de blastos, sem Auer Displasia uni ou multilinhagem, 10 a 19% de blastos, com ou sem Auer Deleção 5q31 isolada, anemia, megacarióticos hipolobados, < 5% de blastos <5% de blastos, medula hipocelular Não se encaixa em outras categorias, displasia e < 5% de blastos, se não houver displasia: SMD associada a cariótipo sUbTiPO Citopenia refratária com displasia unilinhagem: - anemia refratária - neutropenia refratária -trombocitopenia refratária Anemia refratária com sideroblastos em anel Citopenia refratária com displasia multilinhagem Anemia refratária com excesso de blastos tipo 1 Anemia refratária com excesso de blastostipo 2 SMD associada a del(5q) isolada SMD infantil, incluindo citopenia refratária da infância SMD inclassificável Na tentativa de estabelecer quais pacientes têm maior ou menor probabilidade de evolução e sobrevida, foi desenvolvido o INTERNATIONAL PROGNOSTIC SCORING SYSTEM (IPSS), que se baseia na alteração citogenética, citopenias e porcentagem de blastos na medula óssea (MO) (tabela 3). Assim, pacientes com escore baixo têm maior sobrevida e podem ser candidatos a tratamentos específicos. E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 102 Tabela 3. IPSS (Greenberg et al, 1997) * Cariótipo bom = normal ou –Y, del(5q) e del(20q) como únicas alterações. Desfavorável = complexo (com mais de três alterações) ou anomalias envolvendo cromossomo 7. Intermediário = outras anomalias. ** hemoglobina < 10g/dL, neutrófilos < 1.500/mm3 e plaquetas < 100.000/mm3. baixo risco = 0 intermediário i = 0,5 – 1 intermediário ii = 1,5 – 2 Alto risco >2,5 Recentemente, foi proposto um refinamento do IPSS, o WPSS, que considera os subtipos da OMS com as alterações de Hb < 10g/dL, plaquetas < 100.000/uL, e neutrófilos < 1.800/uL, além de acrescentar a dependência transfusional como parâmetro de importância prognóstica (tabela 4). Ademais, tanto o IPSS quanto o WPSS consideram as anomalias cromossômicas que estratificam os pacientes como sendo de risco baixo, intermediário e alto. Tabela 4: Classificação WPSS (Malcovati et al, 2007). Grupos de risco são: muito baixo (escore = 0); baixo (escore = 1); intermediário (escore = 2); alto (escore = 3 ou 4) e muito alto (escore = 5 ou 6). * Necessidade transfusional definida como: pelo menos uma unidade de concentrado de hemácias a cada oito semanas em um período de quatro meses. Todavia, as alterações citogenéticas que são detectáveis em cerca de 30-60% das SMD primárias e 80% das secundárias, continuam a ser reavaliadas em estudos com grande número de pacientes, de tal forma que algumas anormalidades novas e importantes serão seguramente incorporadas. A tabela 5 mostra as anormalidades cromossômicas mais frequentemente observadas na SMD. Tabela 5: Alterações cromossômicas mais frequentemente observadas em SMD (Haase et al, 2007). vALOR dE EsCORE Variável prognóstica % de blastos MO Cariótipo* Citopenia** 0 < 5 Bom 0 / 1 0,5 5 – 10 Intermediário 2 / 3 1,0 -- Desfavorável -- 1,5 11 – 20 -- -- 2,0 21 – 30 -- -- variável Categoria OMs Cariótipo necessidade transfusional* 0 AR, ARSA, 5q- Bom Nenhuma 1 CRDM com ou sem SA Intermediário Regular 2 AREB-1 Desfavorável - 3 AREB-2 - - E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 103 ALTERAÇãO del(5q) del(20q) +21 del(11q) del(13q) del(12q) del(9p) +8 -5/5q- e/ou -77q- inv(3)(q21;q26) t(3;3) t(1;3)(p36;q21) sUbTiPO del 5q isolada ARsA baixa taxa de progressão se isoladas PROGnÓsTiCO FAvORávEL inTERMEdiáRiO dEsFAvORávEL qUAdRO CLíniCO E diAGnÓsTiCO LAbORATORiAL A suspeita clínica de SMD é feita diante de quadro de citopenia (anemia, neutropenia ou plaquetopenia) inexplicável e persistente. O quadro clínico varia desde assintomático a diferentes graus de anemia (fraqueza, cansaço, adinamia), granulocitopenia (febre e infecções de repetição) e/ou plaquetopenia (sangramento mucoso, epistaxe, gengivorragia, petéquias). hemograma: o hemograma pode mostrar anemia macrocítica em cerca de 80% dos pacientes, granulocitopenia em 50% e plaquetopenia variável. Uma análise citomorfológica cuidadosa é necessária para documentação das displasias celulares. Deve-se ter um esfregaço adequado, corado de modo que se avalie bem tanto o núcleo como o citoplasma das células. Esfregaços espessos ou excessivamente corados atrapalham a interpretação. Na série vermelha, pode haver hemácias macrocíticas, ovalócitos, acantócitos, eliptócitos, dacriócitos, ponteado basófilo e Howell Jolly, dentre outras alterações. Os granulócitos podem apresentar hipogranulação, alterações de segmentação nuclear, hipo (pseudo Pelger-Huët) ou hipersegmentação, formas em “rosca ou anel”, presença de bastões de Auer em blastos e plaquetas com alterações na forma, tamanho ou granulação. Mielograma: A medula óssea apresenta como característica principal a hipercelularidade., com dispoese de um ou todos os setores, embora possa, mais raramente, ser normo ou hipocelular. Devem ser contadas 500 células nucleadas para a avaliação das alterações displásicas, que incluem: na série eritroide, dissociação maturativa nucleocitoplasmática, sideroblastos em anel (coloração de Perls), eritropoese megaloblástica, irregularidade nuclear, pontes internucleares, cariorrexis, vacuolização citoplasmática e multiplicidade nuclear; na série mieloide, além daquelas observadas no periférico, bloqueio de maturação em nível de mielócitos, monocitose e número de blastos possivelmente aumentado. Alterações de megacariopoese também são comuns, podendo haver megacariócitos uni, bi ou multilobulados e micromegacariócitos. Se mais de 10% das células eritroides, granulocíticas ou megacariocíticas apresentarem displasia, o diagnóstico de SMD pode ser estabelecido na presença de citopenia inexplicável. A coloração por Perls permite a identificação de sideroblastos e de sideroblastos em anel (acúmulo anormal de grânulos de ferro dentro da mitocôndria, dispostos ao redor do núcleo). A demonstração de > 15% de E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 104 sideroblastos em anel fecha o diagnóstico de ARSA. biópsia de medula óssea: a histologia da biópsia de medula óssea fornece informações adicionais quanto ao grau de fibrose (impregnação pela prata), agrupamento de células imaturas (CD34+) e se há angiogênese aumentada, além de permitir diagnóstico diferencial com outras neoplasias, como linfoma, mastocitose, metástase ou mesmo transformação gelatinosa da medula e doenças infecciosas, dentre outras. Cariótipo: o cariótipo da medula óssea pode demonstrar anomalias cromossômicas clonais entre 30 e 60% dos pacientes e em até 80% das SMD secundárias, sendo mais frequentes as deleções (5q-, 7q-, 20q-), monossomias (-5, -7, -9) e trissomias (+8). A citogenética é variável importante na determinação de prognóstico e sobrevida, devendo sempre ser realizada ao diagnóstico. O estudo cromossômico deve ser feito em amostra aspirada de medula óssea e devem ser analisadas, pelo menos, 20 metáfases por banda G. Caso o cariótipo medular se apresente normal, deve ser repetido sequencialmente, porque alterações podem surgir na evolução da doença. Da mesma forma, pacientes que têm alterações citogenéticas devem ser monitorados periodicamente para a detecção de evolução clonal. Nos casos de cariótipo normal, pode ser feita, adicionalmente, a pesquisa das alterações genéticas mais frequentes por hibridação in situ por fluorescência (FISH), em especial naqueles para os quais se pretenda oferecer tratamento alvo-específico. imunofenotipagem: Pode contribuir na identificação e quantificação de células CD34+ (células precursoras), monocíticas e mieloides mais maduras. Ademais, auxilia na distinção entre situação reacional da clonal e pode oferecer informações de valor prognóstico. É fundamental para o diagnóstico diferencial entre SMD e hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) e linfoma de grande célula granular. Testes moleculares: Várias alterações moleculares foram descritas em SMD, a exemplo de mutação NRAS, P53, RUNX1, TET2, mas, do ponto de vista da condução clínica, no momento, destacam-se: a pesquisa da mutaçãoJAK2 V617F para os casos de SMD com trombocitose ou suspeita de SMD/mieloproliferação e a pesquisa da mutação KIT D816V para afastar mastocitose sistêmica. Os casos de leucemia mielomonocítica crônica (LMMC) devem ser investigados para mutação PDGFRbeta. diAGnÓsTiCO diFEREnCiAL Como os achados displásicos podem não ser devidos à SMD, outras causas de displasia medular devem ser afastadas. Na verdade, o diagnóstico de SMD só é feito após a exclusão de uma série de outras doenças, tais como: carências vitamínicas (ácido fólico, B12, ferro e piridoxina); disfunção tireoidiana, renal, hepática, doenças autoimunes, infecciosas (hepatite, citomegalovírus, etc.), neoplasias, hemoglobinúria paroxística noturna, HIV, etilismo, uso de medicamentos, anemia hemolítica, dentre outras causas secundárias. Portanto, a investigação deve ser minuciosa e extensa. Além disso, critérios mínimos para a conclusão diagnóstica de SMD foram estabelecidos (tabela 6). São necessários ambos os pré-requisitos e a presença de pelo menos um dos critérios decisivos. Se não houver critério decisivo, mas o paciente provavelmente sofrer de doença mieloide clonal, os cocritérios devem ser aplicados e podem auxiliar na conclusão diagnóstica ou na classificação como “altamente suspeito de SMD”. No entanto, como nem todos os cocritérios estão disponíveis nos serviços médicos, os casos questionáveis devem ser monitorados periodicamente até que se consiga uma conclusão diagnóstica. E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 105 Tabela 6: Critérios diagnósticos mínimos para SMD (Valente et al, 2007). A. Pré-requisito: - citopenia constante (Hb < 11g/dL; neutrófilos < 1.500/uL e/ou plaquetas < 100.000/uL) - exclusão de outras causas b. Critérios relacionados à sMd (decisivos): - displasia em pelo menos 10% das células de uma linhagem medular; > 15% de sideroblastos em anel; 5 a 19% de blastos na medula ou alteração cromossômica típica (por cariótipo ou FISH) C. Cocritérios para pacientes que preencheram A, mas não b, e que apresentam características clínicas típicas (como anemia macrocítica dependente de transfusão): - citometria de fluxo demonstrando a presença de fenótipo anormal das células da MO com população eritroide e/ou mieloide monoclonal; - sinais moleculares claros de população celular monoclonal em ensaio HUMARA, expressão gênica ou análise de mutação de ponto (ex.: mutação RAS); - formação de colônia persistente ou importantemente reduzida na medula óssea e/ou de células progenitoras circulantes (ensaio CFU). TRATAMEnTO Pode-se dividir o tratamento da SMD em três grandes grupos: terapia de suporte, não intensiva e intensiva. Pacientes com subtipos de baixo risco não considerados para terapia intensiva precisam ter sua qualidade de vida mantida. Já os pacientes de alto risco, para os quais não está indicado tratamento agressivo, a preocupação principal é impedir a progressão da doença com medidas paliativas, uso de medicamentos alvo específicos e contornar a anemia, trombocitopenia ou neutropenia. Tem-se preconizado, diante de quadro de anemia macrocítica, o uso de ácido fólico (5 mg/dia/três meses), B12 (uma única ampola) e piridoxina (300 mg, três vezes ao dia, por três meses) nos casos recém-diagnosticados, na tentativa de afastar possível anemia carencial. Para pacientes sintomáticos, o tratamento de suporte é necessário com transfusão de hemoderivados (concentrado de hemácias e plaquetas). O concentrado de hemácias deve ser leucodepletado e, para os candidatos a transplante de células precursoras hematopoéticas (TCPH), também irradiado. Para receptores citomegalovírus negativos, os hemoderivados devem igualmente ser negativos. A hemoglobina deve ser mantida em torno de 10 g/dL em indivíduos sintomáticos. Após receberem 20 a 30 unidades de concentrado de hemácias transfundidas, os pacientes podem desenvolver sobrecarga de ferro e, se estiverem dentro do grupo com sobrevida maior (IPSS baixo ou intermediário I) e com menos de 70 anos, há necessidade de quelação do ferro antes que desenvolvam disfunção cardíaca, hepática ou endócrina. A quelação pode ser feita com desferroxiamina, 20 a 60 mg/kg/dia, via subcutânea (por meio de bomba de infusão) ou endovenosa por 8 a 12 h/dia, cinco dias/semana), ou deferiprona, 75-100 mg/kg/dia, via oral, três vezes ao dia, e deferasirox, 20-30 mg/kg/dia, via oral, uma vez ao dia. O uso de desferroxiamina deve ser monitorado com avaliação periódica da função renal, visual e auditiva. A deferiprona pode induzir agranulocitose enquanto deferasirox pode provocar insuficiência renal ou distúrbios gastrointestinais. O controle da quelação pode ser feito pela dosagem de ferritina sérica, biópsia hepática para avaliação do conteúdo de ferro, ressonância nuclear magnética e SQUID (Superconducting Quantum Interference Device). Há várias diretrizes para uso combinado ou isolado dos quelantes. A introdução de antibioticoterapia de amplo espectro é necessária sempre que houver infecção ou febre de origem indeterminada. E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 106 ácido aminocaproico e outros antifibrinolíticos podem ser considerados diante de sangramentos refratários a transfusão de plaquetas. No tocante à terapia não intensiva, a eritropoetina – ou fator de crescimento eritropoético (EPO) – é considerada uma opção para subtipos de baixo risco e intermediário 1. EPO é estimulante da eritropoese normal e seu uso tem- se demonstrado eficaz na faixa de 20 a 30% dos casos. As doses variam de 40.000 a 60.000 UI, via subcutânea, três vezes/semana. A resposta eritroide desejada é esperada para a quarta semana de terapia e, geralmente, dentro das oito primeiras semanas. Resposta tardia após períodos de até 16 semanas ou, às vezes, maior, já foi observada. Há relação inversa entre EPO sérica endógena e resposta ao tratamento exógeno. Pacientes com EPO endógena baixa (< 200 U/L) têm alta taxa de resposta. Apesar disso, poucos se tornam independentes de transfusão e os que o fazem, geralmente, são aqueles com subtipos mais benignos (AR e ARSA). A EPO tem efeito sinérgico com outras citocinas, particularmente a G-CSF, associação essa que oferece taxa de resposta de 40%. Nessa estratégia, a dose de G-CSF é 1 a 2 ug/kg, uma a três vezes por semana, por via subcutânea. Fatores de crescimento granulocítico (G-CSF – filgrastima ou GM-CSF – molgramostima) têm sido usados em situações de neutropenia grave e são relativamente eficazes em aumentar o número de neutrófilos, mas não têm efeito na sobrevida. A talidomida é agente imunomodulador e antiangiogênico com propriedades imunossupressoras, que tem sido usada em SMD de baixo risco com alguma resposta, particularmente a diminuição da necessidade transfusional. A lenalidomida é análogo da talidomida, muitas vezes mais potente, que ofereceu a pacientes de baixo risco, em estudo da fase II, 67% de independência transfusional e resposta citogenética completa com desaparecimento da del(5q) em 45% dos casos. Hoje, tem-se preconizado o uso de lenalidomida para pacientes com del(5q) com anemia sintomática. Terapia imunossupressora com globulina antitimocítica (ATG) e ciclosporina também tem sido usada em pacientes com SMD hipoplástica. Apresentam maior chance de resposta os indivíduos jovens, com SMD de baixo risco (AR e IPSS Interm-1), com HLA-DR15 positivo, presença de subclone HPN e medula hipoplástica. Agentes hipometilantes, como 5-azacitidina e decitabina, são medicamentos recém-disponibilizados e indicados para SMD de alto risco. A azacitidina foi usada em estudo de fase III com resultados superiores a tratamento convencional (29% versus 21%) após nove meses de terapia e mostrou vantagem significativa na taxade resposta hematológica, prolongamento do tempo para transformação ou óbito e melhora na qualidade de vida. A decitabina, em estudo de fase III, ofereceu resposta completa a 9%, resposta parcial a 8% e melhora hematológica a 13% dos casos, ou seja, 30% de resposta. Um importante aspecto é que, para ambos os medicamentos, a resposta é observada apenas após longo período de latência. Esquemas semelhantes ao tratamento de LMA (por exemplo, danorrubicina e citarabina, fludarabina, ou topotecan) são preconizados para pacientes com SMD de alto risco. Os pacientes mais jovens que alcançam remissão podem, a seguir, ser encaminhados a TCPH para consolidação. Vários fatores influem no resultado do transplante, tais como porcentagem de blastos, padrão citogenético, risco IPSS e SMD primária ou secundária, que afetam a probabilidade de recaída, enquanto a idade, duração da doença, contagem plaquetária e compatibilidade do doador afetam a mortalidade relacionada ao tratamento. De qualquer forma, o TCPH continua sendo a única opção de cura para SMD. Quanto à LMMC com eosinofilia e alterações cromossômicas envolvendo 5q33, que implicam rearranjo do gene de fusão do receptor de PDGF-β, o uso de mesilato de imatinibe mostrou-se de grande valia. COnsidERAÇõEs FinAis Os estudos conduzidos em SMD nas últimas três décadas proporcionaram avanços no diagnóstico, classificação, prognóstico e melhor compreensão dos mecanismos fisiopatológicos, citogenéticos e moleculares subjacentes. E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 107 Novos medicamentos estão disponíveis e induzem taxas de resposta animadoras. Porém, ainda resta muito por ser entendido desse conjunto de doenças hematológicas malignas, altamente prevalente, embora ainda subdiagnosticado em nosso meio. A expectativa é de que, num futuro próximo, todos os aspectos citados estejam mais claros, que recomendações atualizadas para um diagnóstico rápido e seguro estejam disponíveis, e diretrizes terapêuticas objetivas proporcionem resultados eficazes. Referências: Bennett JM, Catovsky D, Daniel MT et al. Br J Haematol 1982, 51: 189-99. Corey SJ, Minden MD, Beerber DL et al. Nature 2007, 7: 118-29. Della Porta MG, Malcovati L, Boveri E et al. J Clin Oncol 2009, 27: 754-62. Greenberg P, Cox C, Lê Beau M et al. 1997 89: 2079-2088. Haase D, Germing U, Schanz J et al. Blood 2007, 110: 4385-95. Leitch HA, Vickars LM. ASH Education Book 2009, 664- 72. Malcovati L, Germing U, Kuengden A et al. J Clin Oncol 2007, 25: 3503-10. Nimer S. Blood 2008 111: 4841-51. Swerdlow SH, Campo E, Harris NL et al. WHO Classification IARC press, Lyon, 2008. Valent P, Horny HP, Bennett JM et al. Leuk REs 2007, 31: 727-36. * Assessora Médica para Hematologia - Fleury Medicina e Saúde E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 108 Cintilografia de perfusão miocárdica i. PRinCíPiOs A cintilografia de perfusão miocárdica constitui uma modalidade de imagem que avalia a perfusão miocárdica em diferentes condições fisiológicas, através da administração de radioisótopos (tálio-201) ou radiofármacos (sestaMIBI- 99mTc), que se concentram no miocárdio em proporção ao fluxo sanguíneo coronariano regional. Sistemas específicos de detecção, denominados câmaras de cintilação, são atualmente empregados na prática clínica. O teste consiste essencialmente em comparar o estado perfusional nos diferentes territórios coronarianos em condições de estresse e em condições basais de repouso. O estudo compreende, portanto, a aquisição de duas séries de imagens: uma em repouso e outra em estresse físico ou farmacológico, para que se possa efetuar essa análise comparativa. O estudo é considerado normal quando, em situações de estresse máximo e repouso, demonstra boa e simétrica captação do radiofármaco nos diferentes territórios vasculares coronarianos. O estudo é considerado isquêmico quando se observa defeito em um ou mais territórios coronarianos sob estresse máximo, sem correspondência nas imagens de repouso (hipoperfusão transitória). Em essência, as imagens representam a inadequação da oferta de O2 (fluxo coronariano) em relação à demanda miocárdica deste mesmo substrato (proporcional ao grau de trabalho cardíaco). A hipoperfusão persistente é caracterizada quando o defeito de captação é observado tanto nas imagens de estresse como nas de repouso. ii. MÉTOdOs Os estudos são obtidos com estresse físico, quando o paciente apresenta condições para executar um teste ergométrico efetivo, realizados em esteira ou bicicleta ergométrica. Quando o paciente não consegue realizar um teste de esforço eficaz (p.e. hipertensão arterial severa, doença pulmonar obstrutiva crônica descompensada, doença arterial periférica, deficiência física, etc.), opta-se pelo estresse farmacológico, com o uso de drogas como o dipiridamol, a adenosina e a dobutamina. Os dois primeiros são potentes agentes vasodilatadores que agem preferencialmente ao nível das arteríolas coronárias. Estudos experimentais têm demonstrado aumentos de taxa de fluxo coronário da ordem de 3 a 4 vezes em comparação às taxas de fluxo basal. Sua ação baseia-se no fato que a droga age, preferencialmente, diminuindo a resistência do território arteriolar distal de vasos não obstruídos. No território onde existe uma estenose não ocorre vasodilatação adicional após infusão da droga porque, por conta de mecanismos de autorregulação, este território já se encontra em máxima vasodilatação para compensar a obstrução vascular proximal. Isto provoca um efeito convencionalmente conhecido como “roubo” de fluxo para o território que apresenta maior diferencial arteriovenoso de pressão. A dobutamina constitui um potente agente inotrópico, e seu princípio baseia-se dr. Carlos alBerto BUChPigUel (Crm 51371) dr. sergio tazima (Crm 57401) E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 109 em criar maior demanda de O2 por meio de maior trabalho cardíaco, induzido pela ação da droga. Territórios irrigados por artéria coronária com estenose não poderão aumentar o fluxo proporcionalmente ao trabalho cardíaco induzido e, portanto, provocarão isquemia. Diferentes agentes ou indicadores podem ser empregados para o registro cintilográfico da perfusão miocárdica. A partir de 1974, iniciou-se o uso clínico do tálio-201, o mais antigo e tradicional. O mesmo apresenta como vantagens o fato de ser captado pelo músculo cardíaco através de um processo ativo (bomba de Na+/K+), apresentar redistribuição temporal da sua concentração cardíaca (diretamente relacionada à viabilidade celular) e possuir alta taxa de extração miocárdica em primeira passagem. Contudo, apresenta como desvantagens a baixa energia, que propicia artefatos de atenuação (mamária e diafragmática), características físicas para detecção de imagens subótimas em câmaras de cintilação de cristal de pequena espessura, e a relativa baixa disponibilidade em virtude da necessidade de importação ou fracionamento do produto importado no país. Para contrapor essas dificuldades, foram desenvolvidos fármacos que pudessem ser marcados in loco com isótopos mais largamente disponíveis e com características físicas mais adequadas. O sestamibi (Cardiolite-Lantheus Medical Imaging) marcado com tecnécio-99m foi inicialmente lançado no mercado com resultados clínicos comparáveis aos obtidos com tálio-201, apesar de sua relativa menor eficiência de extração de primeira passagem (65%). Atualmente, outros marcadores estão disponíveis no mercado, tais como o tetrofosmin (Myoview-Amershan) e o furofosmin (Q12- Mallinkrodt). Esses agentes não possuem redistribuição significativa temporal, o que obriga à administração de duas doses, uma em condição de repousoe outra em condição de estresse. iii. APLiCAÇõEs CLíniCAs A cintilografia de perfusão miocárdica tem sido empregada preferencialmente na avaliação da doença arterial coronariana aguda e crônica (DAC). A cintilografia permite avaliar, de forma não invasiva, a extensão e a severidade do comprometimento das artérias coronárias. De forma genérica, o método possui sensibilidade aproximada de 80% e especificidade de 90%, em condições de estresse máximo e excelência de controle de qualidade. A sensibilidade varia conforme o território coronariano, sendo maior na detecção de envolvimento da artéria descendente anterior, seguida da artéria coronária direita e, por fim, da artéria circunflexa. Quanto maior o número de vasos obstruídos, maior a sensibilidade do teste. Ao se conhecer a sensibilidade e especificidade da cintilografia, estabelecida a probabilidade pré-teste de DAC, pode-se facilmente determinar, através do teorema de Baye´s, a probabilidade pós-teste. Contudo, a indicação deste procedimento é reservada aos pacientes que apresentem probabilidade intermediária (20-80%) de doença arterial coronariana, como pacientes com angina atípica e teste de esforço negativo ou duvidoso, teste de esforço positivo em pacientes assintomáticos, pacientes com histórico familiar importante ou fatores de risco para DAC, pacientes que apresentem condições que dificultam ou impossibilitam a análise através do teste ergométrico (distúrbios de condução e ritmo, interferências medicamentosas, deficiência física, doença pulmonar obstrutiva crônica severa, etc.). Paralelamente ao valor diagnóstico, tem sido observado um valor prognóstico da cintilografia de perfusão miocárdica. Forte correlação tem sido observada entre o resultado normal do estudo funcional e a baixa taxa de eventos coronarianos futuros em pacientes sabidamente portadores de doença arterial coronariana. A presença de estenose coronariana em um ou mais territórios vasculares com cintilografia de perfusão miocárdica normal, porém, está associada à taxa de eventos futuros (angina, infarto, insuficiência cardíaca congestiva e morte) menor que 1% ao ano. A detecção de reestenose pós- angioplastia ou pós-revascularização miocárdica é outra indicação da cintilografia de perfusão miocárdica. Na literatura encontram-se evidências que comprovam o maior valor de predição da cintilografia, comparativamente à presença ou não de angina e ao teste ergométrico. iv. Referências bibliográficas 1. Is¬kan¬drian AS, Ve¬ra¬ni MS. Nu¬clear Car¬diac Ima¬ging: prin¬ci¬ples and ap¬pli¬ca¬tions. 2nd ed. Phi¬la¬del¬phia: FA Da¬vis Com¬pany, 1996; 242-78:2. 2. To¬yo¬ta E, Kos¬hi¬da R, Hat¬tan N, Chi¬lian WM. Re¬gu¬la¬tion of the co¬ro¬nary va¬so¬mo¬tor tone: what we know and whe¬re we need to go. J Nucl Car¬diol 2001; 8:599-605. 3. Ro¬bert F W. 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E X A M E S L A B O R A TO R IA IS | C o m o e u t ra to 110 Ecocardiografia transesofágica: indicações Ainda que a ecocardiografia transtorácica (ETT) permaneça como o exame fundamental no diagnóstico cardiovascular por ultrassonografia, a ecocardiografia transesofágica é uma ferramenta complementar de enorme valor, oferecendo melhor visualização de determinadas estruturas cardíacas e vasculares, devido à proximidade do esôfago com a região posterior do coração, e sem a interferência pulmonar ou óssea, permitindo o uso de transdutores de alta frequência e a obtenção de melhor resolução espacial.(1) Todavia, por ser um exame considerado semi-invasivo, é importante conhecer suas indicações. O primeiro uso clínico do ecocardiograma transesofágico (ETE) data de 1976, quando foi utilizado um transdutor endoscópico rígido contendo um único cristal, em modo M (i.e., modo unidimensional).(2) A partir dos anos 80, a tecnologia evoluiu rapidamente com o desenvolvimento de endoscópios flexíveis e a miniaturização dos cristais de ultrassom, permitindo a obtenção de imagens transversais (plano 0º) e perpendiculares (plano 90º), transdutores biplanares, incrementando a análise de estruturas cardíacas tais como a veia cava superior, septo interatrial, apêndice atrial e também o eixo longitudinal do ventrículo esquerdo. Posteriormente, foram criados transdutores rotacionais de 180º, permitindo a aquisição de múltiplas imagens em diversos planos bidimensionais e o uso de múltiplas frequências de imagem (3,5; 5,0 e 7,0 MHz).(3) O transdutor multiplanar foi um grande avanço, pois como pode rastrear a angulação ideal (0º a 180º), permite analisar com muito mais acurácia algumas estruturas cardíacas - por exemplo, na avaliação de alguma vegetação ou complicações da endocardite, na avaliação mais detalhada de dissecção de aorta, na investigação de uma CIA (comunicação interatrial), entre outros. Este já é um recurso técnico implantado em todos os aparelhos modernos. O avanço da tecnologia aponta para a miniaturização dos transdutores e a adição de tecnologia tridimensional, permitindo a aquisição de imagens 3D em tempo real,(1,3) bem como maior desenvolvimento da tecnologia de resolução de imagens bidimensionais, técnica Doppler e color Doppler (já estabelecidas na ecocardiografia). O exame, em geral, é realizado sob sedação leve, utilizando-se técnica apropriada para introdução do transdutor, eventualmente sendo necessária anestesia, e também pode ser realizado em pacientes intubados. Portanto, algumas das contraindicações absolutas ou relativas estão relacionadas a patologias do esôfago, como neoplasia avançada, interposição cirúrgica do esôfago, divertículo de Zenker e história recente de hemorragia (de origem esofágica). Também existem a contraindicações clínicas, em que a necessária sedação pode precipitar a dr. Pedro graziosi (Crm 55034) dr. manuel P. horna (Crm 100253) M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 111 M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to deterioração clínica, como em pacientes com insuficiência respiratória, em condição hemodinâmica limítrofe ou com estimulação vagal na passagem do transdutor, que pode acentuar a bradiarritmia. Em geral, recomenda-se jejum de seis horas e, quando possível, deve-se obter o consentimento informado do paciente ou familiar responsável. Como norma de boa prática, um ecocardiograma transtorácico deve anteceder o ETE, concentrando-se o procedimento na aquisição das informações essenciais, não obteníveis com o transtorácico. Conforme já estabelecido na literatura, as principais indicações desta metodologia, em ordem de frequência, são a pesquisa de fonte cardioembólica (36%), pesquisa de endocardite (14%), avaliação da função de próteses valvares (12%), doença de valva nativa, dissecção aórtica ou aneurisma, tumor intracardíaco, massa ou trombo (cada um com 6 a 8%) e doença cardíaca congênita (4%).(3,4,5) Entretanto, podemos ampliar e detalhar as indicações. Deve-se ter em mente que as estruturas proximais e posteriores do coração e os grandes vasos da base são mais bem avaliados pelo ETE e as estruturas mais apicais, pelo ETT. Justamente por não apresentar as limitações de janela acústica do ETT, podem-se utilizar transdutores de maior frequência, com uma penetração menor, mas de resolução bem mais elevada (podendo detalhar com mais precisão certas estruturas, como vegetações, fístulas, abscessos periprótese, por exemplo). Todavia existem situações em que a indicação não é apropriada, desencadeando-se custos e riscos desnecessários,sobretudo em situações em que não ocorrerá modificação de conduta. Com base nas diretrizes do American College of Cardiology e American Society of Echocardiography (e demais Instituições correlatas), de 2011, definiu-se o atual consenso de indicações mais apropriadas para o ETE.(6) Entre elas, podemos descrever algumas: 1- Avaliação para origem/etiologia de embolia cardíaca (sobretudo quando não existe uma origem não cardíaca identificada); 2- Quando for incluída a pesquisa de trombo em apêndice atrial (pouco visualizado no ETT); 3- Melhor identificação do autocontraste (achado de estase sanguínea atrial, que pode propiciar a formação de trombos); 4- Avaliação das inúmeras estruturas que podem dar origem à embolia (por exemplo, vegetações, estruturas protéticas, tumores etc.). Na presença de fibrilação (ou flutter) atrial, é importante a pesquisa de trombos para tomadas de decisão com respeito à cardioversão, anticoagulação e/ou ablação por radiofrequência; 5- Também é indicado ETE para reavaliação da presença ou desaparecimento da fonte emboligênica após alguma intervenção terapêutica, como um período de anticoagulação ou de antibioticoterapia, quando isso puder implicar modificação na conduta; 6- Suporte na investigação de acidentes vasculares isquêmicos criptogênicos (etiologia desconhecida), em que o achado de comunicação interatrial ou de forame oval patente pode sugerir embolia paradoxal e contribuir na definição terapêutica, incluindo procedimento intervencionista com implante de prótese oclusiva; 7- Avaliação de patologia valvar, seja para melhor quantificação da disfunção, seja para melhor análise do aparato valvar, em que possa pesar um melhor planejamento terapêutico; 8- Para diagnosticar endocardite infecciosa (em pacientes com probabilidade pré-teste moderada ou alta, por exemplo, aqueles com bacteremia, prótese valvar, dispositivos intracardíacos etc.) e/ou avaliar complicações (como fístulas, abscessos e perfurações de folheto valvar), seja na valva ou em outro sítio cardiovascular; 112 9- Avaliação de patologias da aorta torácica, como aneurismas e presença de ateromatose, incluindo importante papel na investigação da dissecção aguda (ou crônica) de aorta; 10- Investigação de tumorações, sobretudo atriais; avaliação intraprocedimentos cardíacos percutâneos (implante de próteses valvares, dispositivos para oclusão de shunts etc.) ou cirúrgicos (plastia de valva mitral, por exemplo); 11- Importante papel na avaliação ecocardiográfica quando a janela acústica limita muito a observação pela ecocardiografia transtorácica.(6) 12- Existe também o emprego significativo do ETE em protocolos de pesquisa, como na investigação de fluxo arterial coronariano, entre tantas outras aplicações.(7) A tecnologia tridimensional está apontando para o futuro da ecocardiografia, e este avanço também está se estendendo para o ETE. Os primeiros protótipos de ecocardiografia transesofágica tridimensional (ETE-3D) foram lançados no início da década de 1990. Com a evolução da informática e o grande aumento da velocidade dos processadores digitais, a tecnologia avançou para a obtenção de imagens em tempo real, com ótima correspondência anatômica. A utilização do ETE-3D traz, de forma similar ao ETE-2D, grandes possibilidades de acréscimo de informações diagnósticas, sobretudo como adjuvante no tratamento percutâneo de cardiopatias congênitas (por exemplo, fechamento de comunicação interatrial e fechamento de comunicação interventricular); implante percutâneo de prótese valvar aórtica; fechamento percutâneo de insuficiência mitral funcional (como o fechamento com utilização de clip mitral); oclusão de apêndice atrial esquerdo, entre outros. O método apresenta também maior acurácia na avaliação da valva mitral (incluindo informações para planejamento cirúrgico), e observação de outras estruturas, como tumores atriais, e implementação na quantificação de refluxos.(8) O processo permite, inclusive, a aquisição das imagens em bloco e a reconstrução nas diversas incidências e cortes (em cineloop), para uma reavaliação mais precisa das estruturas do coração. Portanto, ainda que apresente um potencial diagnóstico bastante interessante, na utilização prática da ecocardiografia transesofágica, o conhecimento de suas limitações e, sobretudo, de suas indicações, pode aperfeiçoar muito seu emprego clínico. 1. Manning W. et al. Transesophageal echocardiography: Technology, complications, indications end normal views. In: UpToDate, Basow, DS (Ed), UpToDate, Waltham, MA, USA. 2011. 2. Frazin L. et al. Esophageal echocardiography. Circulation 1976; 54: 102. 3. Zamorano J. L. et. The ESC Textbook of Cardiovascular Imaging. London. Springer. 2010 4. Daniel WG. et al. Safety of transesophageal echocardiography. A multicenter survey of 10,419 examinations. Circulation 1991; 83: 817. 5. Khandheria BK et al. Transesophageal echocardiography. Mayo ClinProc 1994; 69: 856. 6. Douglas PS, Garcia MJ, Haines DE et al. ACCF/ASE/AHA/ASNC/HFSA/HRS/SCAI/SCCM/SCCT/SCMR 2011 Appropriate Use Criteria for Echocardiography A Report of the American College of Cardiology Foundation Appropriate Use Criteria Task Force, American Society of Echocardiography, American Heart Association, American Society of Nuclear Cardiology, Heart Failure Society of America, Heart Rhythm Society, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions, Society of Critical Care Medicine, Society of Cardiovascular Computed Tomography, and Society for Cardiovascular Magnetic Resonance Endorsed by the American College of Chest Physicians. J Am Coll Cardiol. 2011; 57(9): 1126-66. 7. Graziosi P. Ecocardiografia transesofágica de estresse com adenosina na avaliação da reserva coronária em pacientes com doença de Chagas. In: Picano (ed.). Ecocardiografia de Estresse - 3ª ed. pp. 229-31. Ed. Revinter. 1999. 8. Badano L, Lang RM, Zamorano JL et al. Textbook of Real-Time Three Dimensional Echocardiography. Springer. 2011. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 113 Interpretação do FAN na prática do clínico não reumatologista 1. inTROdUÇãO As doenças autoimunes (DAI) têm se tornado cada vez mais presentes na prática clínica diária, não apenas do médico reumatologista, mas de clínicos gerais, infectologistas, nefrologistas, gastroenterologistas e demais especialidades médicas. Com o avanço dos métodos diagnósticos, exames laboratoriais, antes de fácil interpretação, tornaram-se por vezes complexos, em que a relevância clínica do seu resultado depende do conhecimento dos conceitos de sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e negativo. A pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares, também conhecido como fator antinuclear (FAN) ou pesquisa de anticorpos antinúcleo (ANA), tem grande utilidade na investigação de DAI. No entanto, com o incremento da sensibilidade do método, houve queda de sua especificidade e, assim, 10% a 20% dos indivíduos sadios podem apresentar o exame positivo, embora sem nenhuma evidência clínica de DAI. A seguir, descreveremos as técnicas atuais para realização do FAN e como interpretar o exame, enfatizando as peculiaridades do padrão e título. 2. TÉCniCAs REALizAÇãO dO FAn Nos idos de 1940, foi demonstrada por Hargraves a presença de material nuclear fagocitado em sangue de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES), que deu origem a um ensaio laboratorial denominado pesquisa de células LE. Pela complexidade na interpretação, difícil treinamento e reprodutibilidade e baixa sensibilidade, este teste foi eliminado dos critérios de classificação da doença pelo American College of Rheumatology, em 1997. Uma década mais tarde, a técnica de imunofluorescência indireta (IFI) começou a ser utilizada para a realização do FAN. O substrato escolhido foi o corte detecido de roedores ou imprint de fígado de camundongo. Com essa metodologia, autoanticorpos presentes no soro de pacientes são capazes de reconhecer antígenos presentes no núcleo do hepatócito, ampliando a identificação de outros autoanticorpos que, outrora, não era possível com a pesquisa das células LE, mais específicas do LES. Inicialmente, cinco padrões de IFI foram observados: periférico e homogêneo, homogêneo, pontilhado fino, pontilhado grosso e nucleolar. dr. edgard torres dos reis neto (Crm 114511) dr. diogo domiciano (Crm 122488) dr. marcelo de medeiros Pinheiro (Crm 77428) M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 114 Durante a década de 1980, com a melhor padronização de técnicas laboratoriais e maior difusão da IFI, as células HEp-2 puderam ser usadas. Elas são de linhagem de células tumorais de carcinoma de laringe humana cultivada em monocamadas sobre lâminas de vidro. Por serem células vivas e em crescimento, diferentemente do imprint, elas forneceram a identificação de um maior número de antígenos celulares, incluindo o núcleo, mas também o nucléolo, o citoplasma, o aparelho mitótico e a placa cromossômica metafásica. Assim, ao invés de cinco padrões anteriormente descritos, mais de 20 padrões de IFI puderam ser identificados. Novamente, houve incremento da sensibilidade do método e consequente diminuição da sua especificidade. 3. inTERPRETAÇãO dO FAn Como consequência do aumento da sensibilidade, 10% a 22,6% de indivíduos sadios podem vir a ter o exame positivo. Watanabe et al, em 2004, avaliaram 597 trabalhadores hígidos de um hospital no Japão e encontraram 20% de frequência de FAN positivo. No Brasil, Santos et al, em 1997, encontraram 12,8% de FAN positivo entre 259 indivíduos com idade acima de 65 anos, e Fernandez et al, em 2003, encontraram 22,6% de exame positivo entre 500 doadores de sangue no hemocentro de São Paulo. Estes dados ressaltam a importância de análise crítica tanto no momento de solicitação do exame, devendo evitar o seu pedido desnecessário fora de um contexto clínico, como também na interpretação do seu resultado. Segundo recomendações do Consenso Brasileiro para pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2, o laudo do exame deve ser padronizado (Quadro 1). quadro 1 – Recomendação para laudo do FAN segundo o Consenso Brasileiro para pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2 3.1. COMO inTERPRETAR O PAdRãO dO FAn nA iFi EM CÉLULAs hEP-2 A IFI reflete a topografia de antígenos reconhecidos e autoanticorpos têm associação estrita com algumas DAI. Assim, a identificação de padrões de IFI tem como objetivo direcionar o clínico a testes específicos que identificam o antígeno alvo. Na Tabela 1, estão descritos os principais padrões de IFI em células HEp- 2, os principais autoanticorpos e as associações clínicas mais frequentes. Outros padrões e associações estão disponíveis no 3° Consenso Brasileiro para pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2 e devem ser consultados sempre que necessário. Resultado: Reagente ou Não reagente Núcleo: Nucléolo: Citoplasma: Aparelho Mitótico: Placa metafásica cromossômica: Padrão: Título: Comentário/ Interpretação: M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 115 Leser et al, em 2004, avaliaram amostragem aleatória de 394 pacientes com FAN-HEp-2 positivos recrutados da rotina de um laboratório clínico e encontraram que os padrões nuclear pontilhado grosso e nuclear homogêneo associaram-se quase exclusivamente a pacientes com doenças reumáticas autoimunes, enquanto os padrões nuclear pontilhado fino denso e nuclear pontilhado grosso reticulado associaram-se quase que exclusivamente a indivíduos sem qualquer evidência de autoimunidade. Em outro levantamento com 30.728 exames de FAN realizados em um grande laboratório de São Paulo, 44% apresentavam positividade nuclear, sendo os padrões Tabela 1 – Padrões de IFI em células HEp-2, principais autoanticorpos associados e associações clínicas mais frequentes Padrão Autoanticorpo associado Associações clínicas mais frequentes Nuclear Pontilhado Fino Denso Anti-LEDGF/p75 Um dos padrões mais frequentemente encontrados na rotina, sendo encontrados em indivíduos sem evidência objetiva de doença sistêmica. Raramente encontrado em DAI reumática Nuclear Pontilhado Fino Anti-SS-A/Ro LEA, lúpus cutâneo subagudo, lúpus neonatal, síndrome de Sjögren primária, esclerose sistêmica, polimiosite, cirrose biliar primária Anti-SS-B /La LES, lúpus neonatal, síndrome de Sjögren primária Nuclear Homogêneo Anti-DNA nativo LES Anti-nucleossomo LES Anti-histona Lúpus eritematoso sistêmico induzido por droga, Lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, artrite idiopática juvenil, síndrome Felty e hepatite autoimune Nuclear Pontilhado Grosso Anti-Sm LES Anti-RNP LES, doença mista do tecido conjuntivo, esclerose sistêmica Nuclear Pontilhado Centromérico Anti-centrômero Esclerose sistêmica, cirrose biliar primária e síndrome de Sjögren Citoplasmático Pontilhado Fino Denso Anti-PL7/PL12 Polimiosite (raramente) Anti-P-Ribossomal LES Citoplasmático Pontilhado Fino Anti-Jo1 Polimiosite, síndrome anti-sintetase, dermatomiosite Citoplasmático Pontilhado Reticulado Anti-mitocôndria Cirrose biliar primária, esclerose sistêmica Ad ap ta do d e De lla va nc e et a l, 20 09 . M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 116 pontilhado fino (47%) e pontilhado fino denso (41%) os mais frequentes. O padrão pontilhado fino denso apresentou maior frequência de títulos mais altos, enquanto o padrão pontilhado fino, títulos mais baixos. 3.2. COMO inTERPRETAR O TíTULO dO FAn nA iFi EM CÉLULAs hEP-2 No trabalho realizado por Leser et al, o padrão nuclear pontilhado fino, embora tenha sido o mais frequente, em baixos títulos não estava associado com autoimunidade. Em outro estudo, Tan et al, avaliando indivíduos saudáveis, encontraram títulos 1/40 em 31,7% dos casos, 1/80 em 13,3%, 1/160 em 5% e 1/320 em 3,3%. Na maioria das vezes, pacientes com doenças reumáticas autoimunes tendem a ter títulos elevados e indivíduos sadios tendem a ter títulos mais baixos. Entretanto, uma das peculiaridades mais importantes é a consideração do padrão do FAN na interpretação clínica de um paciente. 3.3. COMO inTERPRETAR O PAdRãO E O TíTULO COnCOMiTAnTEs Mariz et al compararam 918 indivíduos sadios, provenientes de banco de sangue (12,9% FAN positivo), com 153 pacientes com DAI reumáticas (90,2% FAN positivo). Os títulos de FAN em indivíduos sadios foram significativamente menores que em pacientes com doença reumática autoimune. O padrão nuclear pontilhado fino foi o mais frequente em indivíduos sadios e em pacientes com doença reumática autoimune, entretanto, seus títulos foram menores em indivíduos sadios. Além disso, o padrão nuclear pontilhado fino denso foi encontrado exclusivamente em indivíduos sadios, e os padrões nuclear pontilhado grosso, homogêneo e centromérico não foram observados em nenhum indivíduo sadio. Assim, estes autores demostraram que o padrão do FAN é mais consistente que o título para discriminar o FAN positivo de indivíduos sadios daqueles com doença reumática autoimune. 4. vALORizAÇãO dO FAn Quando o médico se depara com um exame de FAN positivo, o primeiro questionamento deve ser sobre a relevância do cenário clínico em que ele foi solicitado. Partindo da premissa de que nenhum exame deve ser valorizado sem uma adequada anamnese e exame clínico, recomenda-se que um paciente FAN positivo, dependendo do título e, sobretudo, do padrão, deva ser melhor investigado com relação a outros exames complementares, como hemograma, velocidadede hemossedimentação, proteína C reativa, creatinina, dosagem de complemento, pesquisa de autoanticorpos mais específicos e urina I. Quando não há evidência de DAI associada, o achado do FAN positivo pode ser incidental. Além disso, pode estar associado a doenças inflamatórias crônicas, doenças infecciosas (HIV, hepatite C, hanseníase, citomegalovírus, etc), neoplasias, uso de drogas, entre outros. Por outro lado, pode ser uma manifestação mínima ou precoce de DAI incipiente, uma vez que FAN positivo pode preceder o início do LES em até 9,4 anos (média de 3,3 anos). Para discernir entre um achado incidental ou um dado precoce, o raciocínio clínico é fundamental. 5. COnCLUsãO Com a frequência cada vez maior de pedidos de exames por médicos de diferentes especialidades e o aumento da sensibilidade dos métodos laboratoriais para pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares, torna-se necessário o conhecimento e interpretação do resultado deste exame. Como qualquer outro exame, este só deve ser solicitado dentro de um contexto clínico e suspeita diagnóstica, devendo-se evitar o pedido de exame desnecessariamente, inclusive em situações de check-up. Indivíduos sadios podem ter exame positivo, sem nenhuma relação com doença reumática autoimune, sendo a interpretação do padrão e título fundamentais para o discernimento clínico. O reumatologista é o médico mais indicado quando há dúvidas nesta interpretação e o paciente deve ser encaminhado sempre que necessário. REFERênCiAs 1. Dellavance A, Gabriel Júnior A, Nuccitelli B, et al. 3º Consenso Brasileiro para pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2 (FAN). Recomendações para padronização do ensaio de pesquisa de autoanticorpos em células HEp-2, controle de qualidade e associações clínicas. Rev Bras Reumatol 2009;49:89-109. 2. Dellavance A, Andrade LEC. Como interpretar e valorizar adequadamente o teste de anticorpos antinúcleo. J Bras Patol Med Lab 2007; 43: 157-168. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 117 3. Dellavance A, Leser PG, Andrade LEC. Análise Crítica do Teste de Anticorpos Antinúcleo (FAN) na Prática Clínica. Rev Bras Reumatol 2007; 47: 265-275. 4. Watanabe A, Kodera M, Sugiura K, Usuda T, Tan EM, Takasaki Y: Anti-DFS70 antibodies in 597 healthy hospital workers. Arthritis Rheum 2004; 50: 892-900. 5. Fernandez SAV, Lobo AZC, Oliveira ZNPO, Fukumori LMI,Perigo AM, Rivitti EA: Prevalence of antinuclear autoantibodies in the serum of normal blood donors. Rev Hosp Clin Fac Med 2003; 58: 315-9. 6. Santos LM, Moreira KECS, Rodrigues SH, Alamada Filho CM, Ramos LR, Andrade LEC: Prevalência e valor prognóstico de anticorpos antinucleares em indivíduos idosos. Rev Bras Reumatol 1997; 37: 323-8. 7. Leser PG, Dellavance A, Barbosa SH, et al.: Distinctive features of antinuclear antibodies observed in health and in subjects with autoimmune rheumatic diseases. In: Conrad K, Bachmann MP, Chan EKL, Fritzler MJ, Humbel RL, Sack U, Shoenfeld Y, eds. (org.). From animal models to human genetics: research on the induction and pathogenicity of autoantibodies. Dresden: Pabst Science Publishers 2004: 493-510. 8. Tan EM, Feltkamp TE, Smolen JS, et al.: Range of antinuclear antibodies in “healthy” individuals. Arthritis Rheum 1997; 40: 1601-11. 9. Mariz HA, Sato EI, Barbosa SH, Rodrigues SH, Dellavance A, Andrade LEC. Pattern on the Antinuclear Antibody–HEp-2 Test Is a Critical Parameter for Discriminating Antinuclear Antibody–Positive Healthy Individuals and Patients With Autoimmune Rheumatic Diseases. Arthritis Rheum 2011; 63: 191–200. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 118 Líquor: aspectos de maior relevância O exame de líquor continua sendo um exame imprescindível na propedêutica médica, especialmente quando há envolvimento do sistema nervoso. É um exame simples, rápido e muito pouco agressivo. Deve ser realizado sempre na região lombar, onde a coleta é praticamente isenta de riscos. Principais indicações: 1. Na suspeita de infecções do sistema nervoso: meningites, encefalites, mielites ou associação delas. O exame do líquor pode permitir a identificação do agente etiológico: a. Pelo exame bacteriológico, micológico ou micobacteriológico; b. Por meio de reações de PCR. Estão disponíveis comercialmente reações de PCR para borrelia, brucella, vírus da coriomeningite linfocitária, enterovírus, herpesvírus (HSV1, HSV2, VZV, CMV, EBV, HSV6, HSV7, HSV8), HIV (carga viral), JC vírus, leptospira, listeria, micobactérias, neisserias, pneumococos e outros agentes; c. Pela detecção de anticorpos específicos. Além dessa determinação, é possível avaliar se há produção local de anticorpos (índice de anticorpos específicos). Este índice é essencial para saber se os anticorpos presentes no líquor foram produzidos no sistema nervoso ou resultaram de simples passagem passiva a partir do sangue, sem que haja neuroinfecção; 2. Se houver exames de imagem (tomografia computadorizada ou ressonância magnética) que apresentem imagens de difícil interpretação; 3. Em doenças desmielinizantes: isoeletrofocalização com imunoblotting e imunofixação, em soro e líquor; pesquisa de quebra de barreira hematoencefálica; caracterização de imunoprodução local de IgG; 4. Em demências. É possível determinar rotineiramente biomarcadores específicos para: (a) doença de Alzheimer (assinatura da doença de Alzheimer): proteína tau, proteína fosfo-tau e peptídeo beta-amilóide; (b) doença priônica de Creutzfeldt-Jakob: proteína 14-3-3; 5. Em vasculites do sistema nervoso; 6. Em diversos tipos de neoplasias. Na maioria destas doenças, a pesquisa de células tumorais é o biomarcador mais importante. Além disso, procede-se à dosagem de marcadores oncológicos, assim como à imunofenotipagem e citometria de fluxo em casos particulares, nos quais o número de células apresente aumento que permita o exame; 7. Em doentes imunodeprimidos com queixas neurológicas, como no caso de doenças relacionadas à má absorção intestinal, alcoolismo, esplenectomia, doenças reumatológicas de longo tratamento e outras, em especial, da AIDS; 8. Em doentes com quadros infecciosos de origem não esclarecida, sobretudo quando há comprometimento dr. lUís dos ramos maChado (Crm 22196) dr. José antonio livramento (Crm 14205) M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 119 importante do estado geral; 9. Para aplicação de medicamentos no sistema nervoso ou para injetar substâncias-contraste para exames especiais; 10. Para diminuir a quantidade de líquor no sistema nervoso (punção esvaziadora ou de “alívio”) em doentes com hidrocefalia comunicante de qualquer etiologia ou em casos de hidrocefalia a pressão normal (tap test). A maioria das pessoas submetidas ao exame de líquor afirma que a dor é plenamente suportável, com intensidade pouco maior do que aquela que acontece ao se colher sangue. Em cerca de 90% dos pacientes não há qualquer incômodo relacionado à colheita do líquor. Pode aparecer cefaleia, que melhora com o decúbito ou, mais raramente, lombalgia, que também melhora com o repouso. Há situações em que não deve ser feita a coleta do líquor: 1. Na vigência de hipertensão intracraniana ainda não investigada por outros métodos diagnósticos; 2. Na vigência de síndrome de hipertensão intracraniana com efeito de massa, tipo tumoral, seja qual for sua patogênese; 3. Quando há discrasias sanguíneas que facilitem sangramentos (plaquetopenia, diminuição do tempo de protrombina) ou na vigência de tratamento anticoagulante; 4. Os casos de infecções cutâneas na região lombar, nos pontos de eleição para a punção; 5. Em bacteremias, quando ainda não há controle adequado das condições gerais do paciente, sobretudo antes daaplicação da antibioticoterapia. A punção poderia servir de porta de entrada para que o agente infeccioso atinja o SNC; 6. Quando há hipotensão acentuada do LCR. Nessa eventualidade, não é possível coletar a amostra, apesar da sensação de se atingir o espaço subaracnóideo; 7. Em doentes com obesidade mórbida, quando o comprimento da agulha é insuficiente para atingir o espaço subaracnóideo. Nesses casos, deve ser contraindicada também a punção suboccipital. É importante dizer que, mesmo em exames de neuroimagem e outros de uso habitual em medicina, tidos como não invasivos, há uma série considerável de incômodos causados ao paciente. Alguns desses incômodos têm morbidade muito maior do que aquela relacionada à coleta do líquor. Entretanto, frequentemente, ao contrário do que ocorre em relação ao líquor, a referência a efeitos pós-exame é minimizada ou mesmo não referida. Segundo editorial recente de Herskovits AZ e Growdon JH, publicado na Archives of Neurology, uma das mais prestigiadas revistas da neurologia, é necessário devolver ao exame de líquor seu papel proeminente no diagnóstico de muitas doenças neurológicas. A coleta de líquor é percebida por muitos pacientes como dolorosa, difícil de realizar e perigosa. Histórias apócrifas circulam acerca de dor lombar crônica pós-punção lombar e também de paralisia de membros inferiores. Tudo isso é falso e improcedente. O paciente deve saber da ausência de risco, da baixíssima morbidade, da utilidade do exame e das informações preciosas que ele pode fornecer acerca de sua doença. Evidentemente, é importante que esse exame seja colhido por especialistas treinados e que as amostras sejam processadas em laboratórios competentes e experientes. Além disso, médicos e pacientes devem ter consciência de que, em muitas situações, os exames de imagem, por mais sofisticados e úteis que sejam, como de fato são, não podem substituir o exame de líquor. Referências 1. Herskovitts AZ, Growdon JH. Sharpen that needle. Arch Neurol 2011; 67:918-919. 2. Machado LR, Livramento JA, Spina França A. Exame de Líquido Cefalorraquidiano. In Mutarelli EG (Ed). Manual de Exames Complementares em Neurologia. Sarvier, São Paulo, 2006:241-62. 3. www.spinafranca.com.br M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 120 Monitorização ambulatorial da pressão arterial de 24 horas A monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA) consiste no uso de um aparelho portátil instalado no paciente – um gravador de registros e o manguito – que realiza medidas da pressão arterial durante 24 a 48 horas, geralmente a cada 15 a 20 minutos durante o período de vigília e a cada 30 a 60 minutos durante o sono. Estas medições, obtidas em um dos braços, são gravadas e posteriormente analisadas em programas específicos de computador, oferecendo, fundamentalmente, dados do comportamento da pressão arterial média diurna e noturna e a porcentagem de leituras acima dos valores de referência.(1) O avanço tecnológico, associado a inúmeras publicações na literatura, tem possibilitado um adequado entendimento do método e um uso mais amplo na prática clínica para fins de diagnóstico e avaliação terapêutica de hipertensão arterial sistêmica (HAS), estabelecendo-se, também, seu valor prognóstico na morbimortalidade de doenças cardiovasculares.(1,2) Os valores de referência dessa metodologia foram recentemente modificados após publicações de estudos e consensos que demonstraram seu impacto na morbimortalidade ao longo de 10 anos de seguimento, sendo considerados valores anormais as médias de pressão arterial (PA) de 24 horas acima de 125x75 mmHg, na vigília, acima de 130x85 mmHg, e durante o sono, acima de 110x70 mmHg.(3,4) As principais indicações para uso da MAPA são: suspeita de hipertensão do avental branco, avaliação da eficácia terapêutica anti-hipertensiva, avaliação de hipotensão arterial, avaliação de normotensos com lesão de órgão- alvo, avaliação e correlação de sintomas, avaliação de hipertensão mascarada, hipertensão noturna, disfunção autonômica e hipertensão em gestantes. As três primeiras indicações são consenso das sociedades brasileira, americana, britânica e europeia de hipertensão.(5) Os dados obtidos pela MAPA permitem um melhor conhecimento do comportamento da pressão arterial no cotidiano do paciente nos diferentes períodos do dia e da noite, sendo possível estudar a presença do efeito do avental branco, os picos tensionais, episódios de hipotensão arterial, a característica do descenso fisiológico da dr. manUel P. horna (Crm 100253) dr. Pedro graziosi (Crm 55034) M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 121 pressão arterial durante o sono, a variabilidade circadiana do comportamento da pressão arterial, os eventuais períodos de ascensão pressórica matinal, o comportamento da pressão de pulso e, por fim, sua correlação com as atividades e sintomas. As principais vantagens da metodologia são a obtenção de múltiplas medidas nas 24 horas, a avaliação da pressão arterial durante as atividades cotidianas, a avaliação da pressão arterial durante o sono, a avaliação do padrão circadiano da pressão arterial, a avaliação do efeito anti-hipertensivo nas 24 horas e a possibilidade de estratificação de risco de eventos cardiovasculares. As limitações são a anatomia de braços que não permitam o ajuste adequado do manguito, valores muito elevados da pressão arterial sistólica, situações clínicas associadas a tremor corporal (Parkinsonismo, etc.) e pulsos muito irregulares (fibrilação e flutter atriais). Um grande número de estudos tem concluído que o risco de complicações cardiovasculares secundárias à hipertensão arterial (incluindo o desenvolvimento hipertrofia ventricular esquerda e sua regressão por tratamento apropriado) correlaciona-se mais com a MAPA do que com medidas casuais da pressão arterial.(6) O estudo Syst- Eur demonstrou que, na avaliação prognóstica da HAS sistólica, a variável que apresentou melhor correlação com eventos cardiovasculares maiores, como acidente vascular cerebral, infarto agudo do miocárdio e óbito, foi a pressão arterial sistólica durante o sono, seguida da pressão arterial sistólica de 24 horas e da pressão arterial sistólica de vigília.(5,7) A média da pressão arterial é o melhor dado a ser analisado: apresenta maior índice de correlação com o diagnóstico, a lesão de órgão-alvo e prognóstico cardiovascular, e é considerada como o único parâmetro relacionado à mortalidade.(8) Valores acima de 135 mmHg na pressão média sistólica de 24 horas denotam risco elevado de novo evento cardiovascular em pacientes hipertensos tratados.(9) O significado clínico de episódios sintomáticos de hipotensão arterial pode traduzir ação medicamentosa, síncope, lipotimia pós prandial, hipotensão postural, disautonomia e presença de diabetes mellitus. A elevação da pressão de pulso, caracterizada pela diferença da PA sistólica e diastólica acima de 50 mmHg, tem valor preditivo positivo para doença cardiovascular em pacientes hipertensos acima de 60 anos.(10) O estudo Framinhgam demonstrou em 6.539 pacientes, ao longo de 17 anos de pesquisa, que a pressão arterial diastólica (PAD) é o fator de maior risco de evento cardiovascular em pacientes com idade menor que 50 anos. Na faixa etária de 50 a 59 anos, os fatores de maior risco são a pressão arterial sistólica (PAS), a PAD e a pressão de pulso (PP); a partir dos 60 anos, o fator de maior risco é a PP.(11) Em relação ao descenso fisiológico da pressão arterial durante o sono, existe maior incidência de AVC em pacientes hipertensos acima de 60 anos, com atenuação do descenso fisiológico durante o sono (non dipper) constatado pela MAPA.(12,13) A ausência de descenso noturno da pressão arterial constatadapela MAPA encontra-se correlacionada com o aumento da albuminúria (> 300 mg/24h) e elevada taxa de morbimortalidade cardiovascular nos pacientes hipertensos portadores de diabetes mellitus (DM) tipo 2.(14) A MAPA também tem um papel na avaliação das causas secundarias de HAS, pois identifica o perfil de comportamento da PA (por exemplo, se está relacionada ao sono, como na apneia do sono, se é episódica, como no feocromocitoma, ou se tem relação com outras manifestações clínicas específicas), colaborando, tanto no diagnóstico, como na terapêutica. A hipertensão do avental branco – definida como a presença de níveis pressóricos elevados na consulta médica, com estudo de MAPA em 24 horas normal – tem prevalência de 10 a 21%, é mais frequente em mulheres jovens não obesas, podendo ser observada também em idosos e gestantes, e foi considerada de caráter benigno, segundo M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 122 o estudo PIUMA, que acompanhou 1.392 pacientes durante 7,5 anos, observando ausência de valor preditivo para eventos cardiovasculares fatais e não fatais.(9,15) Recentes estudos demonstraram o desenvolvimento futuro de hipertensão estabelecida após cinco a seis anos de seguimento e aumento do índice de massa ventricular esquerda em comparação com a população não hipertensa.(16, 17) A presença de ascensão pressórica matinal, caracterizada pela diferença da PA sistólica matinal menos a menor PA sistólica durante o sono acima de 55 mmHg, encontra-se correlacionada com maior prevalência de AVC isquêmico em pacientes acima de 60 anos.(18) A avaliação da eficácia terapêutica anti-hipertensiva por MAPA está baseada na diminuição da PA média e na atenuação da variabilidade da pressão arterial, sendo esta última considerada como fator independente de risco para dano de órgão-alvo e eventos cardiovasculares.(15) A variabilidade da pressão arterial é medida pelo índice vale-pico (valor ideal acima de 0,50) ou pelo índice de homogeneidade (ideal acima de 3), índice validado em diferentes estudos clínicos, apresenta correlação inversa com a variabilidade da PA, é reproduzível, apresenta correlação positiva com a regressão de hipertrofia do VE e está correlacionada com a diminuição do dano de órgão-alvo. Em conclusão, a MAPA é instrumento útil e prático para uma melhor acurácia diagnóstica e condução do tratamento das alterações dos níveis de pressão arterial sistêmica. Destacando-se a abordagem na hipertensão arterial sistêmica, principalmente quando existem comorbidades associadas (por exemplo, insuficiência cardíaca, doença cardíaca isquêmica, aortopatias, etc.) que exigem um refinamento no controle. O conhecimento de suas limitações técnicas e indicações especificas faz com que se possa extrair o máximo desse importante instrumental diagnóstico. Referências: 1. Myers MG. Ambulatory blood pressure monitoring for routine clinical practice. Hypertension 2005; 45:483. 2. Pickering TG et al. White coat hypertension: time for action. Circulation 1998; 98: 1834-5. 3. Kikuya M et al. On Behalf of the International Database on Ambulatory blood pressure monitoring in relation to Cardiovascular Outcomes (IDACO) Investigators Diagnostic Thresholds for Ambulatory Pressure Monitoring Based on 10-Year Cardiovascular Risk. Circulation 2007; 115: 2145-2152. 4. Sociedade Brasileira de Cardiologia. Sociedade Brasileira de Hipertensão. Sociedade Brasileira de Nefrologia. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Arq Bras Cardiol 2010; 95 (1 supl.1): 1-51 5. Sociedade Brasileira de Cardiologia – IV Diretriz. Para uso da Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial II Diretriz para uso da Monitorização Residencial da Pressão Arterial IV MAPA / II MRPA. Arq. Brás. Cardiol, volume 85, Suplemento II, Jul/2005. 6. Dolan E et al. Superiority of ambulatory over clinic blodd pressure measurement in predicting mortality: the Dublin outcome study. Hypertension 2005; 46: 156. 7. Staessen J et al. For the Systolic Hypertension in Europe Trial Investigators. Predicting cardiovascular risk usi ng conventional vs ambulatory blood pressure in older patients with systolic hypertension. JAMA 1999; 282:539-46. 8. Perloff D et al. The prognostic value of ambulatory blood pressure. JAMA 1983; 248:2792-8. 9. Verdecchia P et al. Ambulatory blood pressure. An independent preditor of prognosis in essential hypertension. Hypertension 1994; 24: 793-801. 10. Verdecchia P et al. Ambulatory pulse pressure: a potent predictor of cardiovascular risk in hypertension. Hypertens 1998; 32:983-8. 11. Franklin et al. Does the relation of blood pressure to coronary heart disease risk change with aging? The Framingham Heart Study. Circulation 2001; 03: 1245-9. 12. Kario et al. Nocturnal fall of BP and silent cerebrovascular damage in elderly hyoertensive patients. Hypertension 1996; 27:130-5 13. Shimada et al. Nocturnal fall of blood pressure and silent cerebrovascular damage in elderly hypertensive patients. Hypertension. 27; 130-5, 1996. 14. Equiluz-Bruck et al. Nondipping of nocturnal blood pressure is related to urinary albumin excretion rate in patients with type 2 diabetes mellitus. Am J Hipertens 1996; 9: 1139-43. 15. Verdechhia P et al. Different Prognosis Impact of 24-Hour Mean Blood Pressure and Pulse Pressure on Stroke and Coronary Artery Disease in Essenctial Hypertension. Circulation, 2001; 103: 2579-2584. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 123 16. Bidlingmeyer I et al. Isolated office hypertension: a prehypertensive state? J Hypertens 1996; 14: 327 17. Palatini P et al. Target-organ damage in stage I hypertensive subjects with white coat und sustained hypertension: results from the HARCEST study. Hypertension 1998; 31:57. 18. Kario et al. Morning surge in blood pressure as predictor of silent and clinical cerebrovascular disease in elderly hypertensives. Circulation 2003; 107: 1401-6 M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 124 O exame de polissonografia A polissonografia apareceu na década de 1960, tornando-se o principal método diagnóstico para os transtornos do sono, sendo utilizada até os dias atuais. O exame é realizado em laboratórios de sono, registrando-se, durante uma noite de sono, diversas funções de nosso organismo, envolvendo principalmente sistema nervoso, respiratório e cardiovascular. Eletrodos aderidos no couro cabeludo registram a atividade elétrica cerebral ou eletroencefalograma; eletrodos colocados nos cantos dos olhos registram os movimentos oculares, enquanto os fixados na região do mento captam a atividade muscular. Esses três parâmetros – eletroencefalograma, eletro-oculograma e eletromiograma de mento – fornecem elementos que caracterizam os diversos estágios do sono. O sono é constituído de quatro fases ou estágios: N1, N2, N3 e o REM, do inglês rapid eye movement (movimento rápido dos olhos). O estágio N3, ou sono de ondas lentas, é a fase mais profunda do sono e se concentra principalmente no primeiro terço da noite. O sono REM ocupa de 20 a 25% do tempo total de sono, mais concentrado no terço final da noite, e se caracteriza pela atonia muscular e pela ocorrência de sonhos. Sensores colocados nas narinas captam o fluxo aéreo e esforço respiratório, enquanto cintas torácicas e abdominais registram os movimentos respiratórios. As principais alterações respiratórias são as apneias, que podem ser centrais, obstrutivas ou mistas, as obstruções parciais, denominadas de hipopneias, e o microdespertar relacionado a esforço respiratório, conhecido por RERA (respiratory effort related arousal). Quanto ao índice de apneia e hipopneia, o limite da normalidade é a ocorrência de até cinco eventos respiratórios por horade sono. Por intermédio de um oxímetro também se registra a saturação da oxi-hemoglobina, que deve permanecer acima de 90% durante toda a noite. Com sensores colocados no tórax, obtém-se o posicionamento do paciente na cama e outro, colocado na região cervical, registra o ronco. Com sensores aderidos nos membros inferiores, registram- se os movimentos das pernas e, finalmente, os batimentos cardíacos são dados por um eletrocardiograma. Após o término do registro, pela manhã, o exame é lido por profissionais especializados, os quais marcam os diversos estágios do sono, os eventos respiratórios, os microdespertares e os movimentos dos membros inferiores. dr. lUCiano riBeiro Pinto Jr. (Crm 20350) M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 125 O computador faz uma análise e fornece os vários parâmetros fisiológicos do sono: 1. O Tempo Total de Sono consiste na soma de todos os períodos que o paciente dormiu, independentemente da fase do sono, desde o início até o final do registro polissonográfico; 2. A Eficiência do Sono se caracteriza pela porcentagem do tempo total de sono, devendo ser maior que 85%; 3. A Latência do Sono é o tempo decorrido desde o início do registro até o início do sono, devendo ser inferior a 30 minutos; 4. A Latência REM se caracteriza pelo tempo decorrido do início do sono até o primeiro episódio REM, devendo ficar entre 70 e 120 minutos, sendo que valores inferiores podem ocorrer em narcolépticos; 5. A distribuição dos diversos estágios se dá pelo tempo, em minutos e em porcentagem, sobre o tempo total de sono; 6. Microdespertares são despertares breves, comumente associados a eventos respiratórios anormais; 7. Movimentos de membros inferiores são contrações que podem acometer as pernas de maneira repetitiva; 8. Índice de distúrbio respiratório é o número de apneias, hipopneias e RERAs, por hora de sono, devendo ficar abaixo de cinco por hora; 9. Saturação da oxi-hemoglobina; 10. Registro do ronco. Os parâmetros acima mencionados são colocados em um gráfico, para que se estabeleça a correlação entre eles. Ao final, o médico neurofisiologista clínico, baseando-se nesses dados, emite uma conclusão, na qual ressalta: 1. índice de distúrbios respiratórios – normal ou aumentado e em que intensidade; 2. valores de saturação da oxi-hemoglobina e dessaturações; 3. presença ou ausência de ronco; 4. presença de microdespertares e movimentos de pernas; 5. ritmo cardíaco e a presença de arritmias; 6. estrutura do sono, caracterizada pela porcentagem do tempo total de sono (eficiência do sono), latência do sono, e distribuição dos respectivos estágios do sono; 7. presença de alterações mais específicas, como comportamentos anormais ou grafoelementos patológicos no traçado eletroencefalográfico, importantes para o diagnóstico diferencial entre parassônias e epilepsias, sendo que, nesses casos, o monitoramento com câmera de vídeo é fundamental. O médico solicitante estabelece uma correlação da polissonografia com a clínica do paciente, para que se tenha uma conduta adequada nos diversos transtornos englobados pela Medicina do Sono. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 126 Teste de inclinação ortostático (Tilt Test): indicações O teste de inclinação (TI) ou Tilt Test é um método muito utilizado para a investigação de síncopes, pré- síncopes, tonturas, palpitações relacionadas ao ortostatismo e quadros disautonômicos.1 No entanto, a principal indicação tem sido a investigação da síndrome neurocardiogênica ou vasovagal.1,2 Há cerca de 20 anos, o TI tem demonstrado efetividade e segurança em identificar pacientes com síncope neurocardiogênica, cujo estímulo deflagrador parte de receptores sensoriais miocárdicos, mediado pelo estresse ortostático, resultando em hipotensão e bradicardia reflexa, responsáveis pelos eventos sincopais. Na prática clínica, utilizam-se as indicações preconizadas pela Diretriz Europeia de Síncope, atualizada em 2009, a qual descreve as recomendações da metodologia e das indicações e tipos de resposta.2 Essa diretriz estabelece que o TI seja realizado para fins diagnósticos nas situações descritas a seguir. indiCAÇõEs dO TEsTE dE inCLinAÇãO Recomendação Classe i • Em pacientes jovens, sem doença cardíaca evidente ou suspeita, com síncopes recorrentes de origem inexplicada, nos quais a história não é suficientemente típica para o diagnóstico de síncope neuromediada. • Em casos de episódio único de síncope inexplicada, ocorrida em situação de alto risco de trauma físico ou com implicações ocupacionais; síncope recorrente na ausência de cardiopatia ou ainda, se em um paciente portador de cardiopatia, forem excluídas as causas cardíacas de síncope. • Em casos em que a demonstração da susceptibilidade à síncope neuromediada tiver relevância clínica. Recomendação Classe ii • Quando o entendimento do padrão de resposta hemodinâmica durante a síncope puder alterar a programação terapêutica. • Na diferenciação de síncope convulsiva e epilepsia. • No diagnóstico diferencial entre síncope reflexa e hipotensão ortostática. • Para a avaliação de pacientes com quedas recorrentes inexplicadas. • Na abordagem de pacientes com pré-síncope ou tonturas recorrentes. dra. silVana C. Bastos (Crm 74526) dr. Pedro graziosi (Crm 55034) M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 127 • Na avaliação de pacientes com síncopes recorrentes e doenças psiquiátricas. A realização de TI para controle de tratamento ou seguimento em longo prazo não tem sido recomendada. Alguns autores recomendam diferentes opções terapêuticas, dependendo do tipo de síncope vasovagal; portanto, nesse caso, o TI serviria como orientação terapêutica. PROTOCOLOs Diversos aspectos críticos são descritos sobre o protocolo do TI, desde o tempo de realização, fase de ortostase passiva prolongada, uso de drogas para sensibilização, angulação, população estudada, sensibilidade e especificidade do TI.1,3 A Diretriz Europeia de Síncope, publicada em 2004, relata uma análise de estudos que utilizaram 20 ou 45 minutos de fase passiva seguida por sensibilização com nitrato e concluíram que a sensibilidade dos exames com menor ou maior duração é semelhante (69% versus 62%) sem diminuição da especificidade (94% para os protocolos com 20 minutos de fase passiva).1 Desde então, recomenda-se que o TI seja constituído por 20 minutos de fase passiva e 20 minutos de fase sensibilizada (nitroglicerina ou isoproterenol). Deste modo, o protocolo clássico (sem uso de drogas sensibilizantes) vem sendo substituído pelo protocolo combinado de fase passiva seguida por fase sensibilizada. A nitroglicerina sublingual não é comercializada no Brasil desde 2002; assim, o vasodilatador utilizado é o dinitrato de isossorbida, na dose de 1,25 mg (1/4 do comprimido de uso sublingual). O isoproterenol vem sendo abandonado devido a menor sensibilidade, pela inconveniência do acesso endovenoso e efeitos colaterais, principalmente nos pacientes com cardiopatia isquêmica. METOdOLOGiA O TI deve ser realizado por médico capacitado e auxiliar de enfermagem, e não se recomenda a presença de familiares. O ambiente deve ser tranquilo, com pouca iluminação e temperatura agradável para evitar estímulos ao paciente. A sala deve ser equipada por material de reanimação cardiovascular, embora raramente seja utilizado. Monitoração do eletrocardiograma e medidas da pressão arterial devem ser realizadas durante todas as fases do exame. A maca utilizada para inclinação deve dispor de suporte para os pés e cintos de segurança e o ângulo de inclinação deve ser de 60 a 70 graus. O jejum de quatro horas para líquidos e seis horas para sólidos é recomendado devido aos sintomasreproduzidos durante o TI (náuseas, vômitos e síncope). Pode ser realizado no período matutino ou vespertino. Estudos para avaliar eficácia e terapêutica devem ser realizados no mesmo período, para efeito de comparação. Em pacientes acima de 40 anos com história de síncope, é recomendável a massagem dos seios carotídeos, pois, durante o período de inclinação, aumenta a sensibilidade desta técnica.4 TIPO DE RESPOSTAS AO TESTE DE INCLINAÇÃO O critério de positividade do TI ocorre quando há reprodução espontânea dos sintomas clínicos associados ao colapso hemodinâmico (bradicardia ou hipotensão). A classificação modificada do VASIS (Vasovagal Syncope International Study) é a mais aceita para definir os tipos de resposta ao teste de inclinação: tipo 1 ou mista; tipo 2 ou cardioinibitória; e tipo 3 ou vasodepressora (tabela 1). Mas além da resposta vagal, O TI possibilita o diagnóstico de outras formas de disautonomia e intolerância ortostática.2 A hipersensibilidade do seio carotídeo é confirmada durante a massagem, pela presença de pausa sinusal maior ou igual a três segundos ou queda da pressão sistólica maior ou igual a 50 mmHg. Outra disautonomia frequente é a Síndrome de Taquicardia Postural Ortostática ou Síndrome Postural Ortostática Taquicardizante, que apresenta aumento da frequência cardíaca (FC) maior ou igual a 30 bpm (batimentos por minuto) durante a inclinação em relação à FC basal ou superior a 120 bpm durante o período de ortostase associado aos sintomas de palpitações, pré-síncope ou síncope M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 128 Tabela 1- Classificação das respostas positivas ao teste de inclinação Tipo 1 ou mista Tipo 2 A ou cardioinibitória sem assistolia Tipo 2 B ou cardioinibitória com assistolia Tipo 3 ou vasodepressora Exceção 1 - incompetência cronotrópica Exceção 2 - Síndrome da Taquicardia Postural Ortostática (POTS) A FC cai no momento da síncope, mas não a valores inferiores a 40 bpm. Se ocorre queda da FC abaixo de 40 bpm, a duração é menor que dez segundos. A pressão arterial (PA) cai antes da FC. A FC cai para menos que 40 bpm por tempo superior a dez segundos. A PA cai antes da frequência cardíaca. Ocorre assistolia maior que três segundos. A queda da PA precede ou coincide com a queda da FC. A FC não cai mais do que 10% em relação ao pico no momento da síncope. Não há aumento significativo da FC durante a inclinação (isto é, menor que 10% da FC pré-inclinação). Aumento excessivo da FC (isto é, maior que 130 bpm), tanto no início, quanto durante toda a inclinação antes da síncope. COMPLiCAÇõEs E COnTRAindiCAÇõEs O TI é um teste provocativo; nas condições recomendadas acima e após exclusão de causas cardíacas, é seguro. Os sintomas reproduzidos durante o TI são prontamente revertidos com retorno rápido à posição supina ou à posição de Trendelenburg. Não é infrequente a ocorrência de assistolia prolongada, porém, na maioria dos casos, não é necessária a ressuscitação cardiovascular ou uso de drogas; a técnica anterior, em geral, reverte o quadro. O efeito colateral mais encontrado com o uso do dinitrato de isossorbida é a cefaleia e, nos idosos acima de 80 anos, pode ocorrer uma resposta hiper-reativa com hipotensão e aumento excessivo da FC. Para este grupo, recomendamos o protocolo passivo prolongado. As contraindicações para a realização TI (ou aplicação não justificada) ocorrem em: pacientes com cardiopatia obstrutiva severa, estenose aórtica acentuada, miocardiopatia hipertrófica importante, estenose mitral crítica; pacientes com doença coronariana obstrutiva proximal significante, em quem a bradicardia e hipotensão podem trazer complicações mais expressivas; doença cerebrovascular obstrutiva; gravidez; e nos pacientes que não conseguem ficar em pé por período prolongado. O teste de inclinação é um exame não invasivo, importante na avaliação diagnóstica da síncope inexplicada e tem papel relevante no diagnóstico diferencial das disautonomias. Contudo, é fundamental que as indicações sejam criteriosas e que os protocolos obedeçam às normas internacionais, para correta interpretação dos resultados. Referências: 1. Brignole M, Alboni P, Beneditt DG et al. Guidelines on management (diagnosis and treatment) of syncope –update 2004; 6(6): 467-537. 2. Moya A, Sutton R, Ammirati F et al. Guidelines for the diagnosis and management of syncope(version 2009) :the Task Force for the Diagnosis and Management of syncope of the European Society of Cardiology(ESC).Eur Heart J. 2009; 30(21): 2631-71. 3. Hermosillo AG, Marquez MF, Jauregui-Renaud K et al. Tilt Test in neurocardiogenic syncope: isosorbide versus isoproterenol. Acta Cardiol. 2000; 55(6): 351-5. 4. Diretrizes para Avaliação e Tratamento de Pacientes com Arritmias Cardíacas. Arq Bras Cardiol. 2002; 70(5): 9-10. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 129 Tratamento ablativo com iodo-131 em câncer diferenciado da tireoide i. PRinCíPiOs Há décadas é reconhecido o valor da terapia com iodo-131 como tratamento complementar (adjuvante) no carcinoma diferenciado da tiroide. A destruição celular de eventual tecido remanescente pós-tiroidectomia total ou mesmo de metástases de carcinoma diferenciado da tiroide reside na propriedade funcional que estes tecidos possuem de captar iodo, de forma análoga e semelhante ao que ocorre com o tecido tiroideano normal. Na tiroide, o iodo é absorvido e transportado para os folículos através da ação da bomba de iodeto, que sofre estímulo contínuo humoral no organismo. Através o eixo hipotálamo-hipófise-tiroide, o organismo registra a necessidade de maior ou menor absorção de iodo para produção e reposição dos estoques de hormônios produzidos pela tiroide. O principal estímulo humoral para se incrementar a captação de iodo pela glândula tiroide e, consequentemente, a produção hormonal, é a liberação pela glândula hipófise do hormônio estimulador da tiroide (TSH). Portanto, através de estímulo endógeno (TSH) e com o emprego de um isótopo radioativo do iodo (I-131), o mesmo é captado pelo tecido tiroideano promovendo, assim, pela ação da radiação, destruição celular progressiva e programada. ii. ObjETivOs Resumidamente, podemos citar dois principais objetivos do tratamento com iodo radioativo (iodo-131) do carcinoma diferenciado da tiroide: 1) O primeiro é de se promover a ablação completa de restos de tecido tiroideano após uma tiroidectomia total, visto que, por mais habilidoso que se seja o cirurgião, é muito frequente a persistência de quantidades mínimas de tecido residual em loja cirúrgica tiroideana. O tratamento destes “restos” cervicais tem por finalidade erradicar qualquer quantidade de tecido tiroideano (mesmo que desprovidos de células tumorais), pois sua ausência facilita e sensibiliza o acompanhamento laboratorial com dosagens periódicas de tireoglobulina (Tg). Quanto menos tecido remanescente, maior a sensibilidade e confiabilidade do ensaio laboratorial de tireoglobulina. Outro aspecto não menos relevante é o grau de evidência existente que comprova uma relação direta entre o tratamento ablativo no câncer diferenciado da tiroide com uma menor taxa de recorrência da doença; Este impacto prognóstico torna-se mais importante em pacientes sem evidência de tecido tumoral residual pós- dr. Carlos alBerto BUChPigUel (Crm 51371) dr. sergio tazima (Crm 57401) M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 130 cirurgia, porém que apresentam alguns sinais clínicos ou histopatológicos que configuram um risco um pouco mais elevado de recidiva da doença, tais como tumores com dimensões acima de 4,0cm, presença de infiltração linfonodal na apresentação inicial,multicentricidade do tumor na peça cirúrgica, idade > 45 anos, sexo masculino, e histologia do tumor de comportamento mais agressivo. Nestas situações o tratamento ablativo (preventivo) agrega impacto prognóstico mais significativo. 2) O segundo objetivo é tratar doença tumoral residual ou doença metastática conhecida. Nesta situação, o tratamento tem intenção curativa mais do de preventiva, pois o paciente já foi diagnosticado com doença tumoral em outros sítios (metástases). Apesar de o iodo radioativo ser um agente terapêutico em uso por mais de cinco décadas, ainda hoje, é considerado a modalidade de tratamento mais eficaz do câncer diferenciado da tiroide, após a cirurgia. iii. PREPARO PRÉviO A primeira etapa do preparo é o estímulo para que células tiroideanas normais ou tumorais captem de forma efetiva o iodo-131 administrado por via oral. Portanto, o paciente deve permanecer sem uso da hormonioterapia substitutiva (T3/T4) por período não inferior a 03 semanas. Neste período, à medida que o organismo vai se utilizando dos estoques de hormônio produzidos e liberados no sangue antes da tiroidectomia total, vai ocorrendo uma elevação progressiva nos níveis sanguíneos de TSH, que per si irá estimular funcionalmente os focos de tecido tiroideano remanescente. Considera-se apropriado um nível de TSH sanguíneo não inferior a 30 UI/mL. Outra forma de estímulo é a denominada exógena, onde se emprega TSH humanizado produzido de forma sintética, conhecido por TSH recombinante. Com este medicamento, através de duas injeções intramusculares realizadas 24 horas e 48 horas previamente à administração da dose de iodo-131, é possível obter um efetivo estímulo sem que haja necessidade de suspensão da terapia hormonal substitutiva. Isto evita todos os sintomas decorrentes do hipotiroidismo induzido pela suspensão da terapia substitutiva, o que é extremamente desejável em pacientes com comorbidades clínicas importantes ou em pacientes que apresentam intolerância ao hipotiroidismo. O único inconveniente deste tipo de estímulo exógeno é o custo da medicação, que é elevado considerando a complexidade de sua produção. Outro fator extremamente importante é o controle da dieta e de uso de medicamentos e substâncias que possam conter alta concentração de iodo em suas respectivas formulações. No caso da dieta, é recomendado que o paciente faça uso de uma dieta padronizada, pobre em iodo, por pelo menos duas semanas antes da administração da dose. Por exemplo, peixes e frutos do mar, algas marinhas, sal iodado, alimentos enlatados ou embutidos, bem como outros alimentos que se caracterizam por um excesso de iodo são proibidos neste período. Medicamentos e substâncias que contenham na sua fórmula altas taxas de iodo são também proibidos, sendo que alguns necessitam de períodos mais prolongados de suspensão, como é o caso da amiodarona – que, por vezes, pode exigir períodos tão longos como 6 meses. Contrastes iodados utilizados em exames de tomografia computadorizada e em estudos radiológicos como urografia excretora devem ser evitados por período de 1-2 meses. iv. CáLCULO E AdMinisTRAÇãO dA dOsE Existe ainda bastante controvérsia quanto ao método mais apropriado para cálculo da dose de iodo-131 a ser administrada. Contudo, recomenda-se para tratamento ablativo doses de 100mCi (3700 MBq) e para tratamento de doença metastática doses entre 200 a 350mCi (7400 a 12950 MBq). Alguns grupos têm defendido o uso de doses ambulatoriais (doses até 30mCi), principalmente quando os pacientes são categorizados como de baixo risco. Contudo, ainda não existem grandes séries prospectivas comparando o impacto prognóstico da baixa dose com o emprego de doses mais elevadas. O inconveniente de se utilizar doses mais elevadas de iodo-131 consiste na necessidade de internação em quartos especialmente preparados para esse tipo de tratamento, com isolamento do paciente por período de 48 a 72 horas. Embora o uso destes quartos promova incremento dos custos de tratamento, o uso dos mesmos permite uma maior segurança quanto aos cuidados de proteção radiológica, sendo que apenas os profissionais que trabalham e são licenciados para trabalhar com fontes radioativas são expostos de forma controlada e muito limitada à radiação ionizante. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 131 v. inTERnAÇãO A dose de iodo-131 é administrada com o paciente internado em quartos especialmente projetados e disponíveis no Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Durante a internação, o paciente deve receber medicações que controlam os sintomas e efeitos colaterais agudos da ingestão de iodo radioativo, dentre os quais destacam-se o uso de inibidores da bomba de prótons (Omeprazol) para evitar a ocorrência de gastrites, antieméticos (Metoclopramida), e medicação anti-inflamatória em situações de necessidade. Prescreve-se hidratação oral (3-4 litros/dia), e estimula-se o bochecho com suco de limão pelo menos 3 vezes ao dia para estimular a salivação e a redução do tempo de residência do iodo-131 nas glândulas salivares. Quanto mais tempo o iodo-131 age no interior das glândulas salivares, maior a incidência de sialoadenite, a qual pode causar desconforto, dor e até mesmo perda transitória de paladar. Deve-se ao máximo restringir o contato de médicos e enfermeiros com o paciente nas primeiras 24 horas, sendo essa restrição válida até que o nível de exposição atinja níveis de segurança para o público em geral. Usualmente, com boa hidratação oral, e caso o paciente não apresente grande massa tumoral sistêmica, a liberação para alta ocorre entre 24 e 48 horas após ingestão da dose de radioiodo. vi. PÓs-ALTA hOsPiTALAR Uma vez que tenha reduzido seus níveis de exposição aos limites de segurança aceitáveis para circulação normal na sociedade, o paciente recebe alta hospitalar e radiológica. Em casa e no trabalho, é orientado para continuar com processo de hidratação oral e ficar distante de gestantes e crianças com idade inferior a 13 anos, por período aproximado de 7 a 10 dias. O paciente é orientado para realizar uma pesquisa de corpo inteiro entre 5 e 7 dias após a ingestão da dose terapêutica, utilizando a mesma dose empregada para o tratamento. Este exame permitirá registrar como o iodo-131 se depositou no organismo, para efeito de comparação com exames realizados no período de seguimento ambulatorial. Inicia-se a reposição hormonal no dia seguinte à alta hospitalar, para evitar ou atenuar os efeitos indesejáveis do hipotiroidismo induzido, e o paciente é reencaminhado para o seu clínico para seguimento e conduta. vii. Referências bibliográficas 1. Kamel N, Corapcioglu D, Sahin M, Gürsoy A, Küçük O, Aras G. I-131 therapy for thyroglobulin positive patients without anatomical evidence of persistent disease. J Endocrinol Invest; 27(10):949-53, 2004. 2. Mazzaferri EL, Jhiang SM. Long-term impact of initial surgical and medical therapy on papillary and follicular thyroid cancer. Am J Med.;97(5):418-28, 1994. 3. DeGroot LJ, Kaplan EL, McCormick M, Straus FH. Natural history, treatment, and course of papillary thyroid carcinoma. J Clin Endocrinol Metab; 71(2):414-24,1990. 4. American Thyroid Association (ATA) Guidelines Taskforce on Thyroid Nodules and Differentiated Thyroid Cancer, Cooper DS, Doherty GM, Haugen BR, Kloos RT, Lee SL, Mandel SJ, Mazzaferri EL, McIver B, Pacini F, Schlumberger M, Sherman SI, Steward DL, Tuttle RM. Revised American Thyroid Association management guidelines for patients with thyroid nodules and differentiated thyroid cancer. Thyroid.;19(11):1167-214, 2009. M É TO D O S D IA G N ó S T IC O S | C o m o e u t ra to 132 Acupuntura: principais indicações A acupuntura é uma técnica milenar na qual o efeito terapêutico é obtido ao se estimular o organismopor meio da inserção de agulhas em determinados pontos do corpo. O nome deriva das palavras latinas acus (agulha) e punctio (punção). O mecanismo de ação mais conhecido dessa terapia é no tratamento da dor. Vários trabalhos mostram que a inserção da agulha desencadeia a liberação de neurotransmissores e ativa o sistema supressor da dor. Estudos com neuroimagem funcional também evidenciam ativação de áreas da matriz nociceptiva com o agulhamento. A acupuntura também atua no sistema simpático e parassimpático, auxiliando na regularização das funções neurovegetativas, cardiovasculares e genitourinárias. Há também inúmeras publicações em trabalhos experimentais sobre os efeitos da agulha no sistema imunológico. indiCAÇõEs Em 1997, o National Institute of Health organizou o primeiro consenso sobre acupuntura e concluiu que esta modalidade terapêutica é eficaz para o tratamento de dor no pós-operatório, da náusea e vômito provocados pela quimioterapia e da odontalgia pós-operatória. Porém havia outras condições em que a acupuntura poderia ser indicada como terapia alternativa ou complementar, entre elas: acidente vascular cerebral (reabilitação), cefaleia, cólica menstrual, epicondilite, fibromialgia, dor miofascial, osteoartrite, lombalgia, síndrome do túnel do carpo e asma. Com o reconhecimento e maior aceitação desta terapia no Ocidente e crescente número de publicações na literatura sobre a acupuntura, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou, em 2002, uma lista de doenças em que o tratamento com a acupuntura tem eficácia comprovada em ensaios clínicos controlados, como artralgia, lombalgia, cervicalgia, cefaleia, rinite, dismenorreia primária e depressão. As pesquisas também apontam que cada vez mais pacientes buscam acupuntura por não estarem satisfeitos com a terapia convencional ou porque querem um incremento no seu tratamento. Mao e Kapur (2011) relataram dra. Chien hsin Fen (Crm 73677) dr. andre Wan Wen tsai (Crm 97344) dr. Chin an lin (Crm 62041) dr. Juang horng Chau (Crm 62923) dra. liliana lourenço Jorge (Crm 97563) dr. maurício hoshino (Crm 78685) dra. miriam akemi komatsu (Crm 62591) dra. Paola maria ricci (Crm 51873) dra. Yolanda maria garcia (Crm 48096) A C U P U N T U R A | C o m o e u t ra to 133 que 46% e 26% dos pacientes submetidos ao procedimento obtiveram, respectivamente, melhora importante ou alguma melhora dos seus sintomas. As maiores causas para a procura da acupuntura nos Estados Unidos são: lombalgia, cervicalgia, artralgia e cefaleia. Somente em 2007, cerca de três milhões de adultos americanos foram tratados com essa terapia. A acupuntura é, atualmente, uma terapia reconhecida em vários países ocidentais. Na Alemanha, os planos de saúde reembolsam a acupuntura no tratamento da lombalgia e artralgia de joelho. Na Inglaterra, é uma das terapias recomendadas para o tratamento de lombalgia crônica pelo protocolo de saúde do governo (NICE - National Institute for Health and Clinical Excellence). Uma revisão de 2009 da American Family Physician (revista da American Academy of Family Physicians – EUA) mostra os seguintes níveis de evidência para o tratamento de patologias álgicas com acupuntura. Nível de evidência A: cervicalgia, cefaleia (migrânea ou idiopática crônica) e lombalgia. Nível de evidência B: dor em ombro, osteoartrite de joelho, fibromialgia, dor temporomandibular e dor pós-operatória. vAnTAGEns Devido à sua eficácia, e por não promover interações medicamentosas, a acupuntura pode ser indicada para indivíduos com doenças crônicas e em uso de diversos medicamentos. Desta forma, grávidas, idosos, imunossuprimidos e pacientes com alergia medicamentosa ou insuficiência renal crônica podem ser submetidos a este tratamento com mínimos riscos de reações adversas. Na prática clínica, recomenda-se acupuntura para pacientes com alguma patologia listada pela OMS. É importante que os mesmos tenham realizado investigação prévia para confirmação diagnóstica, pois a acupuntura pode mascarar sintomas clínicos pelos efeitos proporcionados. O intervalo e o tempo das sessões dependerão de caso para caso; entretanto, a maioria dos pacientes que se beneficiam do agulhamento tem alguma resposta ao tratamento nas primeiras sessões. É comum que haja pequenos sangramentos em alguns pontos da punção e, portanto, pacientes em uso de anticoagulantes podem ter hematomas leves e passageiros. É importante ressaltar que a acupuntura é um método terapêutico e coadjuvante no tratamento de qualquer patologia. A medicação para a doença de base não deve ser suspensa pelo profissional que realiza este procedimento sem a anuência do médico responsável. Além disso, ela pode e deve ser associada a outras terapias, quando necessário, entre as quais a fisioterapia, terapia ocupacional e a psicoterapia. Referências: Han JS. Acupuncture: neuropeptide release produced by electrical stimulation of different frequencies. Trends Neurosci; 26: 17-22, 2003. Kelly RB. Acupuncture for pain. Am Fam Physician; 80: 481-4, 2009. Lund I, Näslund J, Lundeberg T. Minimal acupuncture is not a valid placebo control in randomised controlled trials of acupuncture: a physiologist’s perspective. Chin Med; 4: 1-9, 2009. Mao JJ, Kapur R. Acupuncture in primary care. Prim Care; 37: 105-17, 2010. Pai HJ. Acupuntura: de terapia alternativa a especialidade médica. 1ª ed. São Paulo: Ceimec, 2005, p. 192. A C U P U N T U R A | C o m o e u t ra to 134 Avaliação pré-anestésica dra. ClaUdia marqUez simões (Crm 104993) O objetivo da avaliação pré-anestésica é preparar o paciente, com vistas à otimização do resultado cirúrgico, identificando e tratando doenças desconhecidas ou descompensadas, identificando potenciais dificuldades anestésicas, identificando e quantificando potenciais riscos e permitindo, assim, um planejamento perioperatório. Além disso, oferece a oportunidade de explicar e discutir o procedimento anestésico a ser realizado com o próprio paciente, reduzindo a ansiedade e estabelecendo uma melhor relação médico-paciente. Uma avaliação pré-operatória criteriosa pode reduzir custos e otimizar o movimento cirúrgico do hospital, com o objetivo de eliminar cancelamentos de cirurgia. Alguns exames subsidiários poderão ser solicitados de acordo com a idade e comorbidades - além do porte cirúrgico - devendo sempre ser avaliados de maneira individual. EsTAdO FísiCO sOCiEdAdE AMERiCAnA dE AnEsTEsiOLOGiA ESTADO FÍSICO p1 p2 p3 p4 p5 DEFINIÇÃO Paciente hígido, sem comorbidades Doença sistêmica, compensada Doença sistêmica com sinais de descompensação leve Doença sistêmica com sinais de descompensação grave Morte encefálica, doador de órgãos A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 135 A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to CARACTERizAÇãO dO EsTAdO FísiCO P2 E P3 PARA As PRinCiPAis dOEnÇAs Doença / condição física Cardiovascular Angina Tolerância ao exercício Hipertensão Diabetes Revascularização miocárdica Respiratório DPOC Asma Renal ASA p2 Uso ocasional de nitrato (2 – 3 vezes/mês)* Não limitante Controlada com um medicamento Bem controlada, sem lesão de órgãos alvo aparente Dependerá dos sintomas* Tosse produtiva, sibilos controlados por medicação inalatória, infecções respiratórias ocasionais Controlada por medicações VO/ inalatórias Não limita exercícios Creatinina entre 1,0 e 2,0 Alguma restrição alimentar ASA p3 Angina instável* Uso regular de nitrato* Limitante Não controlada ou controlada com múltiplos medicamentos Não controlada ou com lesãoes de órgão alvo, ex.: claudicação, lesão renal, lesão ocular Dependerá dos sintomas* Dispneia aos exercíciosdiários, sibilos constantes e mal controlados, infecções respiratórias repetidas Mal controlada Limita atividade física Internações por descompensação Altas doses de corticoides inalatórios ou VO Creatinina > 2 Diálise peritoneal ou hemodiálise PORTE CIRÚRGICO Alto Intermediário Baixo TIPO DE CIRURGIA - cirurgia de emergência, principalmente em paciente idoso - cirurgias arteriais e ramos da cirurgia vascular periférica - cirurgias prolongadas com grande perda de fluido e de sangue - endarterectomia de carótida - cirurgia de cabeça e pescoço e otorrinolaringológicas - cirurgia neurológica - cirurgia intraperitoneal e intratorácica - cirurgia ortopédica - cirurgias uroginecológicas - procedimentos endoscópicos - procedimentos superficiais - cirurgia de mama - cirurgias oftalmológicas % RISCO CARDÍACO >5% <5% < 1% 136 AvALiAÇãO dAs viAs AÉREAs: AChAdOs sUGEsTivOs dE UMA viA AÉREA diFíCiL ACHADO Tosse seca Sangramento fácil Refluxo gastroesofágico Diabetes mellitus Ronco Trauma Radioterapia prévia Craniotomia temporal Tabagismo IMPLICAÇõES Possível compressão traqueobrônquica Risco de epistaxe ou sangramentos de via aérea superior Risco de aspiração pulmonar Possível alteração articular com redução da extensão cervical Obstrução da via aérea superior por tecidos moles Necessidade de estabilização cervical e ausência de extensão Fibrose, alteração da anatomia, estruturas friáveis, edema Limitada mobilidade mandibular Salivação, tosse, laringoespasmo CLASSIFICAÇÃO DE MALLAMPATI MODIFICADA POR SAMSOON E YOUNG Classe I Classe II Classe III Classe IV palato mole, fauce, úvula e pilares amigdalianos visíveis palato mole, fauce e úvula visíveis palato mole e base da úvula visíveis palato mole totalmente não visível AvALiAÇãO CARdiOvAsCULAR: RECOMEndAÇõEs dA i diRETRiz bRAsiLEiRA dE AvALiAÇãO PRÉ-OPERATÓRiA dA sOCiEdAdE bRAsiLEiRA dE CARdiOLOGiA A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 137 Referências bibliográficas 1. Caramelli, Bruno et al. I Diretriz de Avaliação Perioperatória. Arq. Bras. Cardiol., 2007, 88;5:e139-e178. 2. Priebe HJ. [Perioperative cardiac care for non-cardiac surgery : 2009 Guidelines of the European Society of Cardiology]. Anaesthesist 2010;59:443-52. A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 138 Anestesia para cirurgia robótica A cirurgia robótica é uma importante evolução na cirurgia e traz vantagens para o paciente em relação à cirurgia aberta, como rápido retorno à atividade com menor tempo de internação, menos dor e, por isso, menor utilização de analgésicos, diminuindo a possibilidade de efeitos colaterais relacionados a eles, como náuseas e vômitos. Esse tipo de cirurgia oferece também melhores resultados cosméticos, menor sangramento e, para o cirurgião, melhor visualização do campo operatório por meio de imagem tridimensional, além de permitir o uso de instrumentos com grande mobilidade, que mimetizam os movimentos da mão humana e filtram o tremor. Vários tipos de cirurgias podem ser feitas com o robô: cardíacas, torácicas, urológicas, ginecológicas, entre outras e, com o avanço da tecnologia, novos conhecimentos relacionados ao manuseio de pacientes submetidos a tais cirurgias devem também ser implementados pelo anestesiologista. Todos os pacientes recebem avaliação pré-anestésica – pela qual é obtida a história completa do paciente –, avaliação das comorbidades e de exames pré-operatórios, e eles são orientados a respeito do jejum, medicações de uso contínuo, e esclarecidos quanto às técnicas anestésicas, recebendo medicação pré-anestésica. Os pacientes são monitorados de acordo com as comorbidades presentes e complexidade da cirurgia, anestesiados e posicionados. Em todas as cirurgias, cuidado especial deve ser tomado com relação ao posicionamento do paciente na mesa cirúrgica para evitar lesões, principalmente nos braços: na maioria das vezes, ambos os braços ficam ao longo do corpo, portanto deve-se prestar atenção particular à proteção dos cabos de monitorização e equipos de soro para não machucar a pele do paciente e observar-se a posição das mãos. Em alguns casos, o paciente fica de lado, com o braço erguido para melhor visualização do campo; dessa forma, o braço pode ficar hiperabduzido, causando lesão de plexo braquial. Além dos braços, atenção deve ser dada à proteção do rosto do paciente, para que nada fique apoiado sobre ele – isso pode provocar lesões de face e olhos. Pacientes colocados em Trendelemburg acentuado devem ser posicionados na mesa cirúrgica com cuidado para não escorregarem cefalicamente. Alguns cirurgiões usam ombreiras e outros fixam o tórax na mesa cirúrgica. Qualquer que seja a técnica, é necessária precaução quanto a lesões de ombro, tórax, braços e plexo braquial. Deve-se observar também se os braços do robô não tocarão o paciente, para evitar lesões. dra. denise qUinto (Crm 90933) A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 139 Duas punções venosas são sugeridas, pois, após o posicionamento, o anestesiologista não tem mais acesso ao paciente, que estará totalmente coberto, com o robô em posição para a cirurgia. A técnica anestésica escolhida está a critério do anestesiologista, mas é necessário promover o relaxamento muscular para propiciar um pneumoperitônio e campo cirúrgico adequados. O paciente não pode apresentar nenhum tipo de movimentação, pois são colocados trocáteres que estão encaixados no robô e o movimento do paciente provocaria lesões em órgãos internos, além de diminuir o campo visual do cirurgião. Em algumas cirurgias, faz-se necessário o uso de pneumoperitônio e Trendelemburg acentuado, que causam alterações cardiovasculares, pulmonares e cerebrais importantes, o que é bem tolerado pela maioria dos pacientes, visto que os parâmetros ficam dentro de limites fisiológicos, mas deve-se ter cuidado em pacientes limítrofes. O Trendelemburg acentuado também coloca o paciente em risco de cegueira, pelo aumento da pressão intraocular. Os pacientes podem apresentar, em decorrência do Trendelemburg acentuado, edema de face, olhos e vias aéreas, que piora com o uso de grandes volumes de soro em tal posição. Caso o paciente apresente edema de face considerável, a extubação deve ser muito cautelosa. Nas cirurgias torácicas e cardiovasculares, há também insuflação de CO2, além do uso de intubação seletiva (ventilação monopulmonar), levando a alterações hemodinâmicas importantes. Em todos esses casos, os pacientes devem receber punção arterial. Em prostatectomias, existem ainda algumas particularidades relacionadas ao volume administrado. Tais pacientes são posicionados em Trendelemburg acentuado (45 graus), e deve-se administrar o mínimo de volume possível nessa posição, restabelecendo-se a volemia após a horizontalização da mesa. Em prostatectomia radical, a orientação é pouco volume durante o Trendelemburg. Há maior experiência em cirurgias robóticas urológicas, nas quais induzimos os pacientes com propofol, usado depois para manutenção. A intubação é realizada com o auxilio de cisatracúrio, utilizado continuamente para relaxamento muscular; para analgesia, usamos fentanil intermitentemente e dexmedetomidina de modo contínuo, que auxilia na analgesia transoperatória e permite o uso de menores quantidades de analgésicos no pós-operatório. Referências: Baltayian S.: A brief review: anesthesia for robotic surgery. J.Robotic Surg (2008); 2:59-66. Nishanian E.V.,Mets B. Anesthesia for Robotic surgery.In Miller´s Anesthesia. 6th ed. Philadelphia: Elsevier, Churchill Livigstone, 2005. A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 140 Dor pós-operatória inTROdUÇãO: Observa-se que muitos pacientes chegam aoquarto com dor de intensidade variável. Sendo assim, é muito difícil estabelecer um protocolo para tratamento imediato de dor pós-operatória, principalmente para cirurgiões, frente à diversidade de condutas adotadas no tratamento e das respostas individuais dos pacientes. O mais importante é aprimorar e agilizar o tratamento da dor, levando mais conforto, tranquilidade e segurança aos pacientes. A dor deixa uma lembrança muito negativa da instituição de saúde e da experiência cirúrgica quando o paciente recebe alta hospitalar. Assim, o tratamento adequado da dor assume cada vez mais destaque. METAs A sEREM ATinGidAs: Paciente calmo, consciente, sem dor e com o mínimo de efeitos colaterais medicamentosos. Quando o paciente chega ao quarto, a enfermeira faz a avaliação da dor de acordo com a escala de dor padronizada. Ela delega a alguém a administração do analgésico, seguindo orientação da prescrição médica. Dessa forma, o paciente deverá ser prontamente medicado contra dor. ObsERvAÇãO iMPORTAnTE: Verificar histórico de reação alérgica antes de prescrever e aplicar o analgésico. siTUAÇãO 1: Paciente no quarto com escore de dor entre 2 e 6, já tendo recebido dipirona, anti-inflamatório, tramadol ou morfina. Se o paciente não recebeu dipirona ou apenas 1 g, completar sempre com 2 g por via intravenosa. Atenção especial com relação ao uso de anti-inflamatórios (toradol ou bextra). TRAMADOL: 1 ampola intravenosa de 8/8 horas. dr. maUriCio nUnes nogUeira (Crm 25401) A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 141 Se o paciente pode fazer uso da via oral e tiver escore de dor entre 2 e 6, prescrever: • ULTRACET – 1 comprimido via oral de 8/8 horas ou • TRAMAL – 50 mg via oral de 8/8 horas Se houver persistência da dor, suspender as medicações supracitadas e administrar: • OXYCONTIN – 10 mg via oral, 8/8 ou 12/12 horas e morfina, 1 a 2 mg, por via intravenosa, nos intervalos do oxycontin para o resgate de dor, ajudando na titulação da dose ideal do oxycontin para o paciente em questão. siTUAÇãO 2: Paciente com escore de dor entre 7 e 10, já recebeu dipirona, anti-inflamatório, tramadol ou morfina. Se o paciente não recebeu dipirona ou apenas 1 g, completar sempre com 2 g por via intravenosa. Atenção especial com relação ao uso de anti-inflamatórios (toradol ou bextra). Administrar 3 a 4 mg de morfina por via intravenosa a cada 15 minutos até boa melhora do quadro álgico. Repetir quando necessário. Nesta situação, se o paciente estiver em condições de fazer uso da via oral, prescrever: • OXYCONTIN – 20 mg via oral, 8/8 ou 12/12 horas e manter morfina nos intervalos do oxycontin para o resgate de dor, ajudando na titulação da dose ideal desse fármaco para o paciente. siTUAÇõEs EsPECiAis: Em paciente agitado, confuso e sem obedecer a comando verbal, com aparência de dor e com sonda vesical de demora, observar: • Desconforto gerado pela sonda vesical, como espasmo: medicar com buscopan composto, 1 ampola diluída em 10 ml de água destilada ou soro fisiológico 0,9%. Presença de dor não relacionada com sonda vesical: observar o escore de dor e medicar com morfina, 1 a 2 mg ou 3 a 4 mg a cada 15 minutos, até melhora adequada da dor. Posteriormente, manter prescrição por via intravenosa ou oral. Em paciente com escore de dor de 2 a 10 sem sonda vesical, deve-se descartar, primeiramente, a presença de “bexigoma”, que pode levar a erro de interpretação na avaliação da dor. Na ausência de retenção urinária, aplicar a dose do analgésico de acordo com o escore da dor e, posteriormente, manter prescrição intravenosa ou por via oral. • Paciente com escore de dor de 7 a 10, após receber morfina 15 mg: medicar com ketamina 10 mg intravenosa diluída em uma solução de 10 ml de água destilada ou soro fisiológico 0,9%. Uma observação muito importante é que nem sempre a prescrição analgésica deixada pelo cirurgião é suficiente para o tratamento adequado de um paciente do qual não conhecemos o perfil de sensibilidade à dor. A maioria das prescrições deve ser feita com regularidade de horário, poucas se necessário (s/n). Uma solução analgésica de 10 mg de morfina diluída em 10 ml de água destilada pode ser usada fracionadamente como resgate para dor em pacientes que já receberam todas as medicações analgésicas prescritas e continuam doloridos. Em todas as situações especiais é necessário comunicar ao cirurgião ou pedir a presença de um anestesiologista para validar a aplicação do analgésico. Referências bibliográficas: 1. Bhavani-Shankar Kodali, MD, Jasmeet S Oberoi, MD Management of postoperative pain. Last literature review version 19.1: Janeiro 2011. 2. Woolf CJ, Chong MS. Preemptive analgesia - treating postoperative pain by preventing the establishment of central sensitization. Anesth Analg 1993; 77: 362. 3. Kehlet H, Dahl JB. The value of “multimodal” or “balanced analgesia” in postoperative pain treatment. Anesth Analg 1993; 77: 1048. A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 142 Via aérea difícil A incapacidade de manutenção de uma via aérea pérvia, ou mesmo a perda do seu controle, pode trazer consequências dramáticas ao paciente, visto que uma condição de hipoxemia grave é capaz evoluir para lesão neurológica irreversível ou mesmo óbito. Chamamos de Via Aérea Difícil – VAD – quando um profissional experiente encontra dificuldade de aplicar ventilação sob máscara, dificuldade de intubação ou ambos. Há situações que podem antecipar uma VAD, como, por exemplo, trauma de face ou vias aéreas superiores, obesidade, síndromes congênitas, malformações e sequelas de queimaduras. Em outros casos, a dificuldade pode não estar explícita, sendo necessário pesquisá-la de forma dirigida; são os chamados fatores preditivos. Estudos correlacionam características anatômicas com dificuldade de intubação, além de mostrarem que a elaboração de alguns testes pode pressupor a ocorrência de intubação difícil. Quanto maior o número de testes realizados e sinais identificados, maior a acurácia da avaliação. Costumava-se considerar intubação traqueal difícil quando se realizava três tentativas ou se gastava mais que dez minutos para completar a manobra de intubação, utilizando-se a laringoscopia convencional. Porém, a definição se mostrava imprecisa e arriscada, uma vez que várias tentativas de laringoscopia podem levar a sangramento e edema das vias aéreas, dificultando a ventilação manual, trazendo sérias complicações. Este diagnóstico deverá ser feito já na primeira tentativa de laringoscopia, devendo-se buscar as condições ideais; caso não seja possível realizar a intubação traqueal, a intubação é considerada com difícil (com apenas uma tentativa e menos de 30 segundos). O sucesso de uma intubação depende de um grupo de medidas que proporciona condição ótima de laringoscopia, que consiste em: laringoscopista experiente, ausência de hipertonia muscular, posição olfativa apropriada, compressão laríngea externa e lâminas de laringoscópio de tamanho adequado. Indicadores de dificuldade de intubação: história pregressa: - história prévia de intubação difícil e cirurgia em região do pescoço. dr. milton Carlos dantonio (Crm 69684) A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 143 Exame físico: - distância tireomentoniana curta, mobilidade cervical reduzida, abertura bucal pequena, macroglossia, pescoço curto, incisivos centrais superiores grandes, mobilidade de mandíbula diminuída, obesidade, retrognatismo, conformação do palato em ogiva, classificação de Mallampati, etc. É importante buscar a identificação de uma VAD antes do procedimento, permitindo um adequado manuseio e utilização de materiais próprios como fibroscopia flexível ou rígida, fast track, máscara laríngea, etc. Caso a VAD não seja identificada,os mesmos materiais poderão ser utilizados considerando-se as condições do paciente. É sabido que a dificuldade de ventilação é uma condição ainda mais preocupante do que a própria dificuldade de intubação. Isto pode levar à condição crítica de “não intubo, não ventilo”, necessitando, às vezes, de intervenção invasiva, como a cricotireoidostomia ou traqueostomia de urgência. Essa dificuldade pode ser rastreada por histórias de apneia do sono, ronco, pescoço curto, retrognatismo, presença de barba e ausência de dentes. Caso haja sinais de provável ventilação difícil, deve-se aventar a possibilidade de intubação traqueal com o paciente acordado e a melhor estratégia para isso é manter ventilação espontânea, evitar drogas depressoras da ventilação, evitar bloqueadores neuromusculares e posicionar de forma ideal. Notas: 1. Estas técnicas têm complicações graves: usar somente em situações de risco iminente de vida 2. Estabelecer via aérea definitiva assim que possível 3. Manejo pós-operatório – cuidados na extubação Traduzido e adaptado pelo Núcleo de Educação Serviços Médicos de Anestesia Ltda. Referência: Practice guidelines for management of the difficult airway: an updated report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Management of the Difficult Airway. Anesthesiology 2003; 98: 1269-77. A N E S T E S IA | C o m o e u t ra to 144 TÉCniCAs dE REsGATE PARA A siTUAÇãO “nãO inTUbO, nãO vEnTiLO” Falha na intubação e dificuldade na ventilação Máscara facial Oxigenar e ventilar o paciente Extensão da cabeça Tracionar mandíbula Vedar máscara facial Cânula oro ou nasofaríngea Reduzir pressão cricoide, se necessário Falha na oxigenação com mascara facial (ex. SpO2 < 90% com FiO2 100) ChAMAR AjUdA LMATM Oxigenar e ventilar o paciente No máximo duas tentativas Reduzir pressão cricoide na inserção Oxigenação satisfatória e estável: manter oxigenação e despertar o paciente “não intubo, não ventilo” com hipoxemia Plano D: Técnicas de resgate para “não intubo, não ventilo” CRICOTIREOIDOSTOMIA POR PUNÇÃO Equipamento: cânula resistente à curvatura. Ex.: Patil (Cook) Sistema de ventilação transtraqueal. Ex.: Manujet III TÉCNICA: 1. Inserir cânula através da membrana cricotireóidea 2. Manter posição da cânula 3. Confirme posição na traqueia pela aspiração de ar com uma seringa 4. Conectar o sistema de ventilação à cânula 5. Iniciar ventilação a jato com cautela 6. Confirmar oxigenação e exalação de ar pela via aérea superior 7. Se a ventilação/oxigenação falhar ou surgir enfisema subcutâneo ou qualquer outra complicação, realizar cricotireoidostomia cirúrgica CRICOTIREOIDOSTOMIA CIRÚRGICA Equipamento: cânula traqueal número 5,0 1. Identificar membrana cricotireóidea 2. Incisão vertical na pele e membrana cricotireóidea. Aumentar a incisão por meio de dissecção com Kelly curvo 3. Tração caudal da cartilagem cricoide 4. Inserir tubo e inflar o “cuff” Ventilar com baixa pressão e verificar o posicionamento do tubo traqueal e ventilação pulmonar SUCESSO 145 Orientação farmacêutica a pacientes em uso de Varfarina A adesão ao tratamento conota uma relação interativa e colaborativa entre o farmacêutico e o paciente, respeitando o papel do paciente como corresponsável pelas consequências do tratamento farmacológico.1 São determinantes da adesão fatores sociais, econômicos, clínicos e comportamentais, estando estes diretamente relacionados à compreensão do uso adequado dos medicamentos por parte do paciente.1 A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a adesão a tratamentos de longo prazo para doenças crônicas atinge em torno de 50%, com expectativa de diminuição.1 Neste contexto, a adesão ao tratamento com varfarina torna-se fundamental para o sucesso terapêutico com risco mínimo à saúde do paciente, uma vez que o anticoagulante possui difícil ajuste de dose, monitoramento delicado, múltiplas interações medicamentosas e alimentares e reações adversas de risco potencial.2,3 A orientação farmacêutica também pode contribuir para o alcance mais rápido do INR desejado e a manutenção deste por mais tempo, contribuindo para a melhoria da qualidade do tratamento.4 A orientação de alta de varfarina é oferecida pelo Serviço de Farmácia para qualquer paciente em uso do medicamento, em concordância prévia com o médico responsável, com o propósito de estimular a adesão ao tratamento por meio da conscientização e participação ativa do paciente em sua terapia medicamentosa. Durante a orientação, o farmacêutico conversa com o paciente, acompanhante ou cuidador a respeito do medicamento, suas indicações, sua ação esperada, seus efeitos indesejados e a influência da dieta e bebidas alcoólicas no tratamento. São esclarecidos ao paciente, em linguagem acessível, os seguintes pontos: • A varfarina evita a formação de coágulos/trombos que podem ocorrer no estado clínico em que o paciente se encontra.2 • Evitando estes coágulos, o sangue torna-se mais fluido e, por este motivo, se administrada em excesso, pode causar sangramentos indesejados e hematomas em diversas partes do corpo. Cortes e ferimentos simples podem demorar mais tempo para cicatrizar e, nestes casos, é fundamental que o médico seja procurado.2,3 • O mecanismo de ação da varfarina é influenciado pela quantidade de vitamina K contida na dieta. A vitamina K (encontrada principalmente em vegetais folhosos verde-escuros) deve ser ingerida em quantidade constante todos os dias, ficando a critério médico a suspensão ou alteração da quantidade destes alimentos na dieta.2,3 • A ação da varfarina também pode ser influenciada por outros medicamentos, inclusive os de venda sem prescrição médica, como analgésicos, antiácidos e anticoncepcionais. Qualquer medicamento, de uso crônico ou Farmª alessandra Pineda a. gUrgel (CrF 17774) Farmª daniela Ferreira Brandão (CrF 16218) Farmª Priscila shoji (CrF 60670) C A R D IO L O G IA E D O E N Ç A S C IR C U L A T ó R IA S | C o m o e u t ra to 146 não, não deve ser utilizado sem que antes se consulte o médico. O uso da varfarina deve ser informado a qualquer médico ou dentista com quem o paciente se consulte.2,3 • Bebidas alcoólicas e ervas medicinais, como ginseng, ginkgo biloba e erva de São João, também podem interferir no tratamento, devendo ser evitadas.2,3 • Como qualquer excesso do medicamento pode ocasionar sangramentos indesejados, é fundamental tomar as doses no mesmo horário todos os dias, a fim de evitar esquecimentos, e nunca tomar uma dose esquecida junto à do próximo horário. Por esta razão, também é fundamental fazer exames periódicos para o monitoramento do medicamento, sempre informando o médico dos resultados.2 • A varfarina pode causar náuseas, vômitos e alterações do paladar. No aparecimento de hematomas pelo corpo, febre, náusea persistente e dores nas articulações, o médico deve ser imediatamente procurado.3 O médico é sempre consultado previamente pelo farmacêutico sobre a concordância em se realizar a orientação e para melhor compreensão do caso do paciente, contribuindo também para uma abordagem mais adequada para cada situação. A orientação farmacêutica é realizada preferencialmente nos dias anteriores à alta hospitalar, tendo em vista a grande quantidade de informações que o paciente recebe por parte de toda a equipe multiprofissional envolvida em seu plano de cuidados, e que podem ser esquecidas ou confundidas, impactando o processo de adesão. O entendimento das informações pelo paciente e a existência de dúvidas sobre o assunto são avaliados durante e ao final da orientação, e a evolução farmacêutica e avaliação da orientação multiprofissional são registradas em prontuário. Ainda