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SOBRE CHAMAS E CRISTAIS A Linguagem Cotidiana e Cientifica mortimer

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21 lo:s
dos conheGimentos ditos cientfficos e na compreensao do
vfnculo desses conhecimentos com seu dia-a-dia.
Como professores e professoras, de que modo olhamos a
'1ela" na sala de aula e na escola com nossos alunos?
A reflexao que 0 professor Eduardo Mortimer propoe atraves
do seu texto intitulado "Sobre chamas e cristais: a linguagem
cotidiana, a linguagem Gientffica eo ensino de ciencias" e
atual e necessaria, pois nos ajuda a perceber, professores e
professoras, cada vez mais, que a tarefa de ensinar e tao
complexa, como complexa e a realidade. E s6 tendo mais
conhecimento e consciencia disso poderemos contribuir para
que nossos alunos e alunas vejam melhor a tela do mundo da
vida.
SOBRE CHAMAS E CRISTAIS:
A LINGUAGEM COTIDIANA,
A LINGUAGEM CIENTIFICA E 0
ENSINO DE CIENCIAS
Maurivan Guntzel Ramos e licenciado em Quimica pela PUCRS e •
mestre em Educayao pela UFRGS. Eo professor do Instituto de Quimica e da
Faculdade de Educayao da Pontificia Universidade Cat61ica do Rio Grande do
Sui e atualmente e doutorando em Educayao - PUCRS, desenvolvendo traba-
Iho de pesquisa relacionado il avaliayao institucional participativa com profes-
sores de Quimica de ensino superior, sob a orientayao do Professor Dr. Roque
Moraes. E.mail: mgramos@music.pucrs.br
A linguagem talvez seja 0 mais importante instru-
mento de trabalho que nos, professoras e professores,
utilizamos na prc'itica cotidiana da sala de aula. Lidamos
com a intera<;ao entre a lingua gem cientffica escolar e a
lingua gem cotidiana do aluno de forma tao automc'itica e
irrefletida que, as vezes, esquecemos-nos de que qualquer
fato cientifico, por mais objetivo que seja, so adquire sig-
nificado quando reconstrufdo no discurso cientffico esco-
lar.
A lingua gem cientifica escolar e a forma<;ao discursi-
va, 0 registro a que estamos irremediavelmente ligados
por for<;ada nossa profissao de professores e professor as.
Como essa linguagem resignifica 0 mundo ao qual tive-
mos acesso primeiramente por nossas experiencias e lin-
guagens cotidianas? Estara essa lingua gem, aparentemen-
te neutra, que constroi urn mundo asseptico, atemporal e
sem sujeitos, contribuindo para construir novos universos
para todos os cidadaos ou, ao contrario, para perpetuar as
rela<;6es de poder em nossa sociedade? Sera essa lingua-
gem incompatfvel com a lingua gem cotidiana? Sera essa
linguagem neutra e atemporal acima do bem e do mal,
com direito a ser livre de qualquer preocupac;ao etica?
Neste artigo, tentaremos apontar possfveis caminhos
para a analise dessas questoes. Vamos comec;ar par exami-
nar como certas noc;oes semelhantes, presentes em dife-
rentes estudiosos - genero de discurso, registro, c6digo,
lingua gem social - funcionam como mediadores entre 0
uso da linguagem pelos indivfduos e 0 discurso do grupos
sociais a que estes indivfduos pertencem. Posteriormente,
vamos discutir algumas caracterfsticas da linguagem cien-
tifica e da lingua gem comum e verificar como essas carac-
terfsticas podem ajudar a explicitar as dificuldades vivel1-
ciadas por alunos e alunas nas salas de aula. Analisaremos,
tambem, como 0 surgimento, neste fim de milenio, de uma
nova ciencia dos sistemas complexos tern forc;ado a lingua-
gem cientffica a evoluir em novas direc;oes, reaproximan-
do-se da linguagem cotidiana.
res entre 0 enunciado individual e as praticas sociais cole-
tivas comuns a esses grupos e comunidades. Halliday
trata dos diferentes registros que as diferentes comunida-
des constroem para usar a linguagem em diferentes fun-
c;oes, cada qual carregando suas pr6prias caracterfsticas
gramaticais e semanticas. Bernstein estabelece que mesmo
numa {mica atividade social, par exemplo a Escolarizac;ao
Basica, ha diferenc;as adicionais nas caracterfsticas grama-
ticais e semantic as que sac devido as diferentes formas
como cada classe social aprende a usar a lingua. Como 0
sistema educacional reflete 0 dominie das classes medias
e altas, as diferenc;as nos c6digos lingiifsticos levam ao
fracasso das classes pobres na escola e a sua permanencia
nos piores postos de trabalho e nas piores condic;oes de
vida da sociedade.
Esses diferentes auto res colocam em evidencia que
cada grupo social tern suas pr6prias formac;oes discursi-
vaSt seus pr6prios generos de discurso, em que os indivf-
duos buscam seus enunciados. 0 discurso e, dessa forma,
determinado e determinante das praticas sociais e nao
uma esfera de livre arbftrio de cada indivfduo. Nao toma-
mos nossas falas dos dicionarios ou das gramaticas, mas
das falas de outros indivfduos pertencentes ao mesmo
grupo social. Nesse processo, os enunciados dos outros
vao sendo transformados e convertidos em nossos pr6-
prios. Nossos enunciados sempre respondem a enuncia-
dos anteriores e, de alguma forma, antecipam e preparam
enunciados posteriores. Em cada esfera da vida social em
que estamos envolvidos, usamos diferentes repert6rios de
enunciados, diferentes registros, generos e c6digos.
A linguagem cientffica escolar e um desses registros
a que estamos irremediavelmente ligados por farc;a da
nossa profissao de professores e professoras. Por isso vale
a pena examinar mais de perto suas caracterfsticas e como
elas se relacionam a linguagem cotidiana, de modo a
ajudar a explicitar as dificuldades vivenciadas par alunos
nas salas de aula.
A analise da lingua gem e de seu funcionamento em
praticas discursivas concretas, entre os membros de uma
mesma comunidade, par exemplo os professores e profes-
soras, ou entre pessoas de uma mesma classe social ou
faixa eta ria, mostra que as pessoas nao constroem suas
falas a partir de unidades lingiifsticas tradicionais - pal a-
vras e sentenc;as encontradas nos dicionarios -/ mas a
partir de urn conjunto de enunciados pr6prios aquele
grupo. Bakhtin denominou generos de discurso a esse con-
junto de enunciados tfpicos de determinado grupo social,
os quais caracterizam as diferentes "vozes" ou lingua gens
sociais desses grupos. Outros lingiiistas e soci610gos, tra-
tando do mesmo problema de como a linguagem se reIa-
ciona com as praticas sociais dos diversos grupo e comu-
nidades em uma sociedade, chegaram a tipos bastante
semelhantes de conceitos que funcionam como media do-
Linguagem cientifica e linguagem
comum: a cristal e a chama
Segundo Prigogine, Premio Nobel de Quimica em
1977 e urn dos pioneiros no estudo de caos e sistemas
complexos, a ciencia cLissica se livrou do tempo na maio-
ria de suas descri<;6es e explica<;6es do mundo fisico. Essa
morte do tempo vai se traduzir na cria<;ao da imagem do
universo como uma maquina descrita por urn conjunto
imutavel de leis universais. Nesse rel6gio harmonioso, 0
tempo nao existe. Atomos e eletrons nao tern idade, nao
tern hist6ria ou individualidade. E impossivel disting.uir
entre os varios eletrons num Momo qualquer, como 0
Momo de oxigenio. Urn Momo nao conhece 0 tempo, nao
conhece a irreversibilidade. Se ele e levado a urn estado
excitado, por exemplo pela a<;ao de urn f6ton de luz, ele
rapidamente retorna ao estado original e qualquer "me-
moria" desse processo e perdida.
As marcas dessa ciencia classica, atemporal e a-histo-
rica, imprimiram-se em sua lingua gem, na sua nova ma-
neira de construir esse novo mundo, imutavel. A lingua-
gem cientffica tern, dessa forma, caracteristicas proprias
que a distinguem da linguagem com urn. Essas caracteris-
ticas nao foram inventadas em algum momenta determi-
nado. Ao contrario, foram sendo estabelecidas ao longo do
desenvolvimento cientifico, como forma de registrar e
ampliar 0 conhecimento. Essas caracteristicas, muitas ve-
zes, tornam a lingua gem cientifica estranha e dificil para
os alunos e alunas. Reconhecer essas diferen<;as implica
em admitir que a aprendizagem da ciencia e inseparavel
da aprendizagem da linguagem cientffica.
Enquanto na linguagem comum predominam narra-
tivas que relatamsequencias lineares de eventos, a lingua-
gem cientffica congela os processos, transformando-os em
grupos nominais que SaG entao ligados por verbos que
exprimem rela<;6es entre esses processos. A linguagem
cientffica e, portanto, predominantemente estrutural en-
quanta que a linguagem cotidiana e linear, apresentando
uma ordem sequencial que e estabelecida e mantida. Na
lingua gem cientifica, 0 agente normalmente esta ausente,
o que faz com que ela seja aparentemente descontextuali-
zada, ocultando a perspectiva de urn narrador. Na lingua-
gem cotidiana, 0 narrador esta sempre presente.
Para exemplificarmos essas distin<;6es, podemos to-
mar urn exemplo de como uma mesma frase poderia ser
expressa nurna e noutra linguagem. Deve-se observar que
a tradu<;ao entre urn e outro tipo nem sempre e possivet
pois as caracteristicas da lingua gem cientifica correspon-
dem a uma forma diferenciada de se pensar ever 0 mundo
que essa cultura construiu. Ao nos referirmos a como 0
aurnento de temperatura afeta a dissolu<;ao de sal de cozi-
nha em agua no nosso cotidiano, normalmente falamos:
quando colocamos sal em agua e aquecemos, conseguimos dis-
solver uma maior quantidade do que em agua fria. Na lingua-
gem cientifica, expressariamos esse mesmo fato de urna
forma diferente: 0 aumento de temperatura provoca um au-
mento da solubilidade do sal. Note-se que, na primeira frase,
o agente esta presente, os verb os designam a<;6esefetua-
das por esse agente, e os fatos SaG apresentados nurna
ordem sequencial que garante a linearidade do discurso.
Ja na segunda frase, 0 agente desapareceu em consequen-
cia da nominaliza<;ao dos processos. Dessa forma, as a<;6es
antes designadas por verbos estao embutidas nos grupos
nominais (aumento de temperatura e aumento da solubilidade
do sal). 0 verba (provoca) nao mais indica uma a<;ao,mas
uma rela<;ao entre os dois processos nominalizados.
A linguagem cotidiana e automatica e muito mais
proxima da fala. As pessoas nao tern necessidade de esta-
rem refletindo a todo 0 momenta sobre 0 que VaGdizer. Ja
a lingua gem cientffica exige uma reflexao consciente no
seu uso, e aproxima-se muito mais da linguagem escrita.
A gramatica cotidiana e muito mais complexa e intrincada
do que a gramatica cientffica, como detalharemos a seguir.
No entanto, 0 processo de nominaliza<;ao aurnenta a den-
sidade lexica da lingua gem cientifica, na qual quase todos
os termos usados carregam significados interligados
numa estrutura conceitual. A linguagem cotidiana apre-
senta um mundo dinamico, em que as coisas estao sempre
acontecendo, como numa chama ou numa onda. Ja na
linguagem cientifica, esses acontecimentos e processos
foram congelados pelo processo de nominaliza<;ao, pois 0
mais importante e coloca-los em estruturas, como num
cristal ou numa partfcula. .
Vale destacar que Halliday & Martin (1993) referem-
se ao processo de nominaliza<;ao como uma "metafora
gramatical", na qual, no lugar da substitui<;ao de um nome
por outro, como na metafora ordinaria, ocorre a substitui-
<;aode uma classe ou estrutura gramatical por outra. Ou
seja, a linguagem cientifica substitui os processos, expres-
sos normalmente por verbos, por grupos nominais.
"Quanto tempo uma rea<;ao quimica leva para completar-
se", transforma-se, atraves da nominaliz('cao, em "rapidez
de uma rea<;ao quimica". Isso pode constituir-se numa
dificuldade para 0 aluno, acostumado a designar seres e
coisas por nomes e processos por verbos. Ao usar a lingua-
gem cientifica, ele come<;a a habitar urn estranho mundo,
no qual os processos se transformaram em nomes ou
grupos nomina is e os verbos nao expressam mais a<;6ese
sim rela<;6es.
De acordo com Halliday, a metafora gramatical nao
e algo que foi inventado pelos cientistas em um momenta
determinado. Esse genero de discurso foi sendo construi-
do ao longo do desenvolvimento da pr6pria ciencia para
responder a uma necessidade do discurso cientifico de
progredir passo a passo, com urn movimento constante do
que ja se conhece em dire<;ao a uma nova informa<;ao. As
duas partes ("0 que ja se conhece" e a "nova informa<;ao")
tem que ser apresentadas de maneira que sua fun<;ao no
argumento fique clara. A melhor maneira de faze-lo e
agrupando essas duas partes numa linica frase. Para isso,
as duas partes devem ser transformadas em nomes ou em
grupos nominais e 0 verba que se coloca entre elas deve
mostrar como a segunda parte ("nova informa<;ao") se
relaciona com a primeira ("0 que ja se conhece").
Por exemplo, na frase:
"0 citomoabsorve e emite energia unicamente em quanta,
ou unidades discretas. Cada absor~iio caracteriza uma tran-
si~iio para um estado de maior energia e cada emissiio
caracteriza uma transi~iio para um estado de menor ener-
gia"
No segundo periodo (grifado), cada frase consiste:
1) Em uma parte "que ja se conhece", nominalizando 0
que havia sido dito antes:
o Momo absorve energia ~ cada absor<;ao
o Momo emite energia ~ cada emissao
2) Em uma parte que contem a "nova informar;ilo",
tambem nominalizada: a transi<;ao para urn estado de
maior energia/menor energia.
3) Em uma rela<;ao entre essas duas partes, na forma
de um verba: caracteriza ja na lingua gem cotidiana, de
acordo com Bruner (1991), os processos (a<;6es,eventos,
process os mentais) se expressam por verbos; os partici-
pantes (pessoas, animais, objetos concretos e abstratos)
desses processos se expressam por nomes e substantivos;
as circunstancias (tempo, lugar, modo, causa, condi<;ao) se
expressam por adverbios e 10cu<;6esadverbiais; e as reIa-
<;6esentre os process os se expressam por conjun<;6es. As
dificuldades dos alunos em transitarem entre essas carac-
teristicas da lingua gem cotidiana e aquelas descri tas para
a linguagem cientifica podem estar na origem de muitos
dos problemas de aprendizagem das disciplinas cientifi-
cas na Escola Basica.
Evidentemente que a lingua gem cientifica pode cau-
sar estranheza ao aluno que entre em conta to com a ciencia
pela primeira vez. Na linguagem cotidiana, nomes saG
usados para coisas, verb os para a<;6ese estados. Como em
grande parte das aulas de ciencias desse Brasil os fenome-
nos nao saG trabalhados atraves de atividades experimen-
tais, 0 aluno muitas vezes nao consegue reconhecer esse
estranho mundo onde as coisas ja nao sao mais coisas e as
a<;6esse transformaram em rela<;6es.
Uma outra caracterfstica da linguagem cientifica e
sua aparente neutralidade, assegurada por uma ausencia
aparente de sujeito, pel a presen<;a de uma "voz" universal,
a-sujeitada. Nao colocamos cinco gotas de reagente no
frasco; adicionam-se cinco gotas. Nao misturamos quanti-
dades iguais de reagentes; misturam-se essas quantida-
des. Nao determinamos a massa da amostra; determina-se
a massa. as relatos de experimentos, descri<;6es e defini-
<;6espresentes nos livros didaticos carregam essa marca
da neutralidade e da universalidade. Nos, sujeitos co-
muns, nao temos voz na ciencia. Esse privilegio esta reser-
vado a urn grupo seleto de grandes cientistas, esses sim,
os unicos sujeitos com direito a palavra nas catedrais do
saber relatadas em muitos livros didMicos. Newton "des-
cobriu" as leis da gravita<;ao universal, mas nos, meros
mortais, nao temos 0 direito de misturarmos os reagentes.
Esse recurso a voz passiva, analftica e sintetica e ainda
mais mandataria nos artigos cientificos. Este artigo, escrito
predominantemente na primeira pessoa do plural para
tentar compartilhar com voce, leitor ou leitora, essas refle-
x6es sobre a lingua gem cientifica, dificilmente seria aceito
em revista cientffica de prestfgio intemacional, mesmo na
area de Educa<;ao em Ciencias. as editores e revisores
certamente recomendariam a transforma<;ao dessa voz
ativa em passiva.
Essa aparente neutralidade e ausencia de "voz" soma-
se a nominaliza<;ao descrita anteriormente para dar urn
carater universal e, consequentemente,superior a ciencia
em rela<;ao as praticas e discursos cotidianos. Essas mes-
mas caracterfsticas vao justificar a reprova<;ao e a exclusao
dos "menos capazes", nao merecedores desse reino de
sabedoria e universalidade. Afinal, nossos alunos e alunas
vivem num mundo real, povoado por coisas, objetos e
seres que sao designados, na linguagem cotidiana, por
nomes. Esse mundo nao e estatico, estruturado e perfeita-
mente relacionado, como querem as aulas de ciencias. Ao
contrario, ele e dinamico, as vezes caotico; nele os verbos
designam, na sua maior parte, a<;6es e estados. Nele as
a<;6essao sempre realizadas por sujeitos reais, de carne e
osso. Nao entender a ciencia significa, muitas vezes, a
recusa implfcita em substituir esse mundo dinamico, im-
previsfvel, intricado, mas ao mesmo tempo familiar, irre-
fletido, gostoso, por um mundo estatico, atemporal, estru-
turado, previsfvel, mas ao mesmo tempo estranho, mono-
tono e sem atrativos. Valera a pena substituir a chama pelo
cristal, a onda pel a partfcula?
Esse discurso neutro e impessoal da ciencia come<;a
a ser questionado num outro discurso, 0 pos-moderno,
desse fim de milenio. A ciencia, atraves dos produtos
tecnologicos que possibilita, tern conferido aos pafses do
primeiro mundo, a frente da corrida cientifica e tecnologi-
ca, urn enorme poder de construir e tambem de destruir.
A enorme euforia que tomou conta do ocidente no pos-
guerra, com 0 advento de produtos e tecnologias a servi<;o
da maioria dos cidadaos do primeiro mundo e das elites e
classes medias, minoritarias, no terceiro mundo, vai aos
poucos dando lugar a uma perplexidade e ceticismo ante
aos enormes problemas ambientais e desigualdades so-
ciais que esse modelo gerou. Esse ceticismo da origem a
urn amplo espectro de rea<;6es, que vao da nega<;ao abso-
luta da racionalidade a recusa de compactuar com os
habitos de consumo geradores de toda essa crise social e
ambiental em myel planetario. A qufmica se toma a gran-
de vila ambiental e os fabric antes anunciam alimentos
naturais, "sem produtos qufmicos."
Nesse processo, a sociedade come<;a a aprender a
cobrar da ciencia a sua cara, os seus sujeitos. As ciencias
da natureza nao podem mais evitar 0 dialogo, entre si e
corn as ciencias humanas. Os cidadaos comuns passam a
cobrar 0 acesso a informa<;ao e a contestar a antes irrefuta-
vel autoridade dos cientistas para determinar 0 que e 0
melhor para 0 futuro de cada comunidade.
o ensino das ciencias que praticarnos ern nos so pais,
no entanto, esta ainda muito longe de ser atingido por essa
onda p6s-moderna. Continuamos a ensinar os modelos
como se fossem a realidade. Escrevemos equa<;6es quimi-
cas nos quadros-negros como se fossem as pr6prias rea-
<;6ese nao suas representa<;6es; desenhamos orbitais mo-
leculares como se fossem reais, e nao modelos, cria<;6es de
nossas teorias. Enos escondemos atras da lingua gem cien-
tffica, neutra e a-sujeitada, fria e atemporal, pretensamente
universal, para ensinarmos uma ciencia classica, na maio-
ria dos casos ja super ad a historicamente, como a verdade
imutavel. Nao damos voz aos nossos alunos, nao escuta-
mos como descrevem suas experiencias e seu mundo ern
sua linguagem cotidiana, as vezes irrefletida, lacunar. Tra-
tamos esse conhecimento corn desprezo, como algo infe-
rior, que nao tern 0 direito de cruzar os umbrais do saber
de nossas salas de aula.
Atraves desse ensino, perpetuamos as rela<;6es de
poder ern nossa sociedade, excluimos aqueles que se recu-
sam a entrar ern nosso universo discursivo. Entre os que
tern sucesso, na maioria das vezes por ja possuirem esses
c6digos e registros como urn bem cultural de sua classe
social, continuamos a ensinar uma ciencia neutra, livre de
qualquer compromisso etico corn a solu<;ao dos problemas
da humanidade. Uma ciencia "desinteressada" que, no
entanto, produzira bens e val ores segundo a l6gica dos
poderosos, perpetuando a domina<;ao, a explora<;ao sem
limites do homem e do ambiente.
A chama ilumina 0 cristal:
a linguagem dos sistemas complexos
o surgimento, neste fim de seculo, de novos paradig-
mas nas ciencias da natureza, ligados a novos campos de
investiga<;ao, aliado ao crescente numero de areas multi-
disciplinares, situadas na interface dos campos cientificos
tradicionais, representa urn enorme desafio para se repen~
sar a ciencia e seu ensino.
A introdu<;ao dos computadores ern todos os setores
da atividade human a representou, para a ciencia, a possi-
bilidade revolucionaria de estudar sistemas complexos
antes irredutfveis aos modelos simplificados que a ciencia
moderna havia construido desde Galileu. Sabemos que a
ciencia classic a sempre trabalhou corn modelos que apre-
sentam solu<;6es matematicas exatas apenas para sistemas
muito simples. Da mecanica newtoniana a mecanica quan-
tica, todo sistema de mais de dois corpos nao encontra
uma solu<;aomatematica exata. A ciencia sempre recorreu
ao artif:f~iode resolver os sistemas mais simples e, a partir
dos modelos construidos para esses sistemas, fazer infe-
rencias ern rela<;ao aos sistemas mais complexos. Essa
estrategia impedia que se estudasse cientificamente, atra-
yes de model os matematicos, muitos sistemas complexos.
Ja comentarnos que a ciencia classic a se livrou do
tempo na maioria de suas descri<;6es e explica<;6es do
mundo fisico. Atomos e eletrons nao tern idade, nao tern
hist6ria ou individualidade. E impossivel distinguir entre
os varios eletrons num Momo qualquer, como 0Momo de
oxigenio. Urn Momo nao conhece 0 tempo, nao conhece a
irreversibilidade. Nesse universo determinista e atempo-
ral, 0 homem, de acordo corn Prigogine, nao se reconhece.
Afinal, 0 tempo e a marca de nossas existencias como
sistemas complexos. Nascemos, crescemos, envelhecemos
e morremos. A seta do tempo determina 0 sentido do
desenvolvimento da nossa existencia, da vida na Terra, do
pr6prio planeta e de todo 0 universo. A grande maioria
dos processos com que lidamos ao longo de nossas vidas
carregam essas marcas da irreversibilidade no tempo. Urn
copo de vidro cai ao solo e se espatifa em pequenos peda-
<;:os;nunca assistiremos, na vida real, ao movimento con-
tra.rio, dos peda<;:osse juntando para formar novamente 0
copo. Uma vela se queima, produzindo gases e fuligem,
luz e calor. Nunca assistiremos ao movimento contrario,
luz, calor, gas carbonico, agua e fuligem se juntando para
produzir uma vela.
Essa flecha irreversivel do tempo foi farmulada pela
primeira vez na ciencia atraves da Segunda Lei da Termo-
dinamica: os sistemas fechados tendem para 0 estado de
equilibrio, 0 estado com os valores mais provaveis para
qualquer propriedade macroscopica do sistema. De acor-
do com a interpreta<;:ao de Boltzmann, 0 estado de equili-
brio corresponde a uma dentre 0 maiar numero possivel
de distribui<;:oes termodinamicamente equivalentes das
moleculas. Qualquer outro estado sera menos provavel
porque havera muito menos combina<;:oes moleculares
correspondentes a ele. 0 gas de botijao quando vaza, por
exemplo, sempre se distribui por toda a cozinha, porque
esse e 0 estado que corresponde ao maiar nlimero possivel
de distribui<;:oes termodinamicamente equivalentes das
moleculas. Mesmo que fosse possivel ao gas se concentrar
nurn dos cantos da cozinha (urn estado a que correspon-
dem urn menar nlimero de distribui<;:oes equivalentes en-
tre as moleculas), as colisoes ao acaso rapidamente 0 leva-
riam de volta ao estado de equilibrio. 0 equilibrio e, dessa
forma, 0 mais homogeneo, 0 mais simetrico, 0 menos
diverso, 0 estado demenor energia de urn sistema. As
mudan<;:as termodinamicas espontaneas movem do espe-
cializado, do energetico, do diferenciado para 0 uniforme,
o generico. De urn estado de ardem e organiza<;:ao - baixa
entropia - para outro de total desardem e desorganiza<;:ao
- alta entropia. Alem disso, os sistemas em equilibrio nao
tern nenhuma memoria das condi<;:oesiniciais,ou seja, nao
tern historia. Urn cristal e urn exemplo de sistema descrito
pela termodinamica de sistemas em equilibrio.
A maioria dos sistemas reais - sistemas complexos -
san abertos e nao se comportam dessa maneira. Urn em-
briao em desenvolvimento, par exemplo, passa de urn
estado de menor para urn de maiar diferencia<;:ao, distan-
ciando-se da homogeneidade. Esses sistemas existem em
condi<;:oesdistantes do equilibrio, nos quais 0 conceito de
distribui<;:ao mais provavel que e subjacente a interpreta-
<;:aode Boltzmann para a Segunda Lei perde sua validade.
As estruturas que existem em equilibrio, como os cristais,
podem ser descritas como 0 resultado da compensa<;:ao
estatistica da atividade de particulas microscopicas, como
os atomos e moleculas. Por defini<;:ao,eles san "inertes" em
nivel global. Por essa razao, eles san tambem "imortais",
pois uma vez que tenham sido farmados, eles podem ser
isolados e mantidos indefinidamente sem qualquer inte-
ra<;:aocom 0 ambiente. As estruturas que existem em con-
di<;:oesdrstantes do equilibrio, como uma celula, urn em-
briao ou uma cidade, nao apenas san sistemas abertos, mas
existem unicamente porque san abertos. Eles se aliment am
do fluxo de materia, informa<;:ao e energia que chega do
ambiente. Podemos isolar urn crista!, mas celulas, embrio-
es e cidades morrem se far em isoladas do ambiente em
que vivem. Eles formam uma parte integral do mundo do
qual tiram seu sustento e nao podem ser separados dos
fluxos que incessantemente transformam. No lugar das
estruturas de equilfbrio, descritas pela termodinamica clas-
sica, os sistemas complexos sao, segundo Prigogine, estru-
turas dissipativas.
o tempo meteorologico, as varia<;:oesnas popula<;:oes
de especies animais e vegetais, os fenomenos de turbulen-
cias em fluidos, a exemplo dos tornados, a difusao entre
liquidos, uma floresta tropical san apenas alguns dos
exemplos de sistemas complexos. 0 que torna esses siste-
mas dinamicamente complexos nao e simplesmente 0
grande nlimero de variaveis necessarias para descreve-lo,
mas como essas variaveis estao inter-relacionadas, como
elas dependem umas das outras. Quanto mais interconec-
tadas elas estao, tanto em numero como em intensidade
das interconec~6es, mais dificil se torna preyer 0 futuro
desse sistema.
Nosso planeta, como um sistema complexo, esta mui-
to mais diferenciado e distante do equilibrio do que ha 4
bilh6es de anos atras. A Terra, como todos outros exem-
plos de sistemas complexos, sao sistemas abertos. Todos
eles trocam, no minimo, energia e informa~ao com 0 am-
biente. Muitos trocam tambem materia. A Terra recebe urn
fluxo de energia do Sol, que e transformada pela vida e
retorna ao espa~o como calor irradiado. Urn embriao hu-
mana em desenvolvimento se alimenta de nutrientes e
informa~6es do ambiente externo (a mae) e interno (0
DNA), produzindo grande quantidade de residuos quimi-
cos e de calor residual que devem ser eliminados. Em
todos esses sistemas abertos, os process os de transforma-
~ao sao irreversiveis e geram entropia, ou seja, resultam
em materia e energia mais pr6ximas do equilibrio, em
maior desordem. Mas essa entropia e eliminada do siste-
ma e volta para 0 ambiente, possibilitando urn incremento
lfquido na ordem do sistema as custas do ambiente. Num
certo sentido, nossas grandes metr6poles tambem sao
exemplos de sistemas abertos, pois importam energia e
materia prima do ambiente, exportando calor e residuos
materia is em grande quantidade. Neste processo aumenta
a ordem na ocupa~ao do espa~o, principalmente para as
elites e classes medias - vias de circula~ao, moradias orga-
nizadas, espa~os comerciais cada vez mais assepticos - as
custas da desordem ambiental, da polui~ao e dos efeitos
imprevisiveis no clima.
A maioria desses sistemas complexos apresentam
tambem comportamento nao-linear. Isso significa que urn
aumento, digamos, de 20% numa determinada variavel,
por exemplo, na concentra~ao de substancias numa rea~ao
autocatalisada, provoca urn aumento maior que 20% na
concentra~ao de outras substancias. Esses sistemas nao-li-
neares nao permitiam 0 tratamento matematico exato de
sua evolu~ao no tempo. Por isso ficavam, na maioria das
vezes, a margem da investiga~ao cientffica. Com a entrada
dos computadores nos laborat6rios de pesquisa, esses
fenomenos come~aram a ser estudados, atraves da simu-
la~ao de sistemas de comportamento nao-linear e do tra-
tamento numerico desses tipos de equa~ao.
o estudo desses sistemas complexos tern provocado
uma revol u~ao na ciencia deste final de seculo. Lado a lado
com essa rev,olu~ao podera estar nascendo uma nova lin-
guagem. A linguagem cientffica, com processos congela-
dos sob a forma de nomes ou grupos nominais, formando
estruturas conceituais atraves de verbos de rela~6es, vai
tornando-se insuficiente para descrever toda essa classe
de sistemas complexos. Alem disso, nao e mais possivel
excluir 0 homem como sujeito de certos sistemas comple-
xos. Os problemas ambientais gerados pelas grandes con-
centra~6es urbanas tern 0 homem cada vez mais como
sujeito desse processo e, ao mesmo tempo, 0 u.nico capaz
de ser sujeito de uma nova tecnologia, mais limpa, mais
harmoniosa e menos entr6pica para com a natureza amea-
·~ada.
Tudo isso leva a ciencia a uma rota de reencontro com
os val ores e a lingua gem da vida cotidiana. A linguagem
cientffica nominalizada nao e a unica forma de descrever
a natureza, estrutural, estatica, imutavel. A lingua gem do
vir-a-ser das praticas cotidianas, dos processos e nao so-
mente dos produtos, da chama e nao somente dos cristais,
e necessaria para complementar a visao cientffica classica,
ate entao pretensiosamente a mais poderosa e mesmo a
unica forma correta de descrever 0 mundo. No entanto,
essa descri~ao tern se revelado cada vez mais incompleta,
mais parcial. Uma descri~ao mais adequada da realidade
devera dar-se segundo a mesma ideia de complementari-
dade de Neils Bohr. Uma unica forma de discurso, urn
unico registro, mesmo que seja 0 registro cientffico, abarca
apenas uma parte da realidade. Para uma visao menos
fragmentada emais completa dessa realidade, e necessario
recorrer a outras formas de discurso, a outros registros.
Nestes se incluem nao s6 as formas discursivas dinamicas
da nova ciencia dos sistemas complexos, mas tambem as
formas discursivas dinamicas da linguagem cotidiana.
Nao podemos sob reviver sem essa lingua gem cotidiana.
Sem ela, nosso mundo real se volatilizaria, nossas a<;:5es
cotidianas automaticas e irrefletidas se perderiam na com-
plexidade e alto custo cognitivo do pensamento critico e
cientifico. 0 mundo das rela<;:5eshumanas nao se constitui
apenas de a<;:5escrfticas e refletidas, de pensamento cien-
tifico e sistematizado. 0 fluxo dinamico e assistematico da
vida cotidiana, impresso em nossa lingua gem comum,
tambem e parte dessa soma de descri<;:5escomplementares
do mundo fisico e social.
Talvez a grande responsavel por esse estado de coisas
seja a ausencia de dialogo entre a lingua gem cientifica e a
linguagem cotidiana, entre a realidade criada pela ciencia
e a realidade da vida cotidiana, entre a teoria cientifica e a
pratica dos fenomenos, tanto os de laborat6rios quanto os
do dia-a-dia, entre os principios cientificos e os contextos
sociais e tecnol6gicos em que eles se materializam.
Bakhtin diz que todo entendimento e dial6gico.
Quando urn professor transmite as descri<;:5ese explica-
<;:5escientificas na sala de aula, 0 trabalho do allillo nao
consiste somente em decodifica-las. Se 0 aluno esta apren-
dendo essas explica<;:5es,ele ainda nao possui os c6digos
necessarios para decifrar a mensa gem do professor. 0
modelo de transmissao-recep<;:ao que esta sendo usado,
mesmo que inconscientemente, pelo professor ou pela
professora, nao e suficiente para explicar 0 que ocorre. 0
aluno s6 entende 0 novo significado que 0 professor eprofessora estao enunciando ao dialogar com ele, ao car-
rega-lo com suas pr6prias palavras, seus pr6prios signifi-
cados. Quanto maior for 0 numero de contrapalavras, de
"respostas" que 0 enunciado do professor e professora
produzir no aluno, mais profundo sera 0 seu entendimen-
to.
Esse "dialogo" sempre ocorrera na sala de aula, mes-
mo que nao haja espa<;:opara sua explicita<;:ao,mesmo que
ele ocorra apenas na mente do aluno. Essa e uma caracte-
ristica inevitavel da natureza dial6gica do entendimento.
Como a linguagem cientifica tern uma natureza bastante
diferente da linguagem cotidiana, a ausencia de explicita-
<;:aodesse dialogo pode levar 0 aluno a produzir uma
amalgama indiferenciada entre conceitos cientificos e co-
tidianos. Transformar a prMica de sala de aula numa
prMica dial6gica significa dar voz aos alunos e alunas, nao
apenas para que reproduzam as "respostas certas" do
professor ou da professora, mas para que expressem sua
pr6pria visao de mundo, sua pr6pria "voz", no sentido
Bakhtiniano do termo. Como a lingua gem cientifica esco-
Chamas e cristais:
por urn ensino de Ciencias dia16gico
o ensino de ciencias, de uma maneira geral, tern
refor<;:adoa visao da ciencia como algo estatico, como urn
conjunto de verdades imutaveis, de estruturas conceituais
congeladas no tempo. A pratica de urn ensino sem nenhu-
ma rela<;:aocom os contextos hist6ricos, socia is e tecno16-
gicos em que a ciencia e construida e aplicada, a ausencia
de fenomenos que possam mostrar a natureza das cons-
tru<;:5este6ricas e dos modelos cientificos como constru-
<;:5esmatematicas e discursivas para interpreta<;:ao e des-
cri<;:aode uma realidade muito mais complexa, tudo isso
torna a ciencia escolar algo desinteressante e sem sentido
ppa a grande maioria dos estudantes. Ao fracassarem nas
disciplinas de fisica, quimica e biologia na Escola Media,
os alunos internalizam a incapacidade e 0 discurso de que
a ciencia e para uns poucos iluminados.
lar e a linguagem cotidiana representam diferentes regis-
tros, correspondentes a diferentes grupos sociais, e funda-
mental que 0 aluno perceba que essa diferenc;a nao se
restringe a urn vocabulario tecnico, presente nurna lingua-
gem e ausente na outra, mas se traduz em formas radical-
mente diferentes de construir a realidade discursivamen-
te.
Trazer a linguagem cotidiana para a sala de aula,
atraves da voz do aluno ou aluna, nao com 0 objetivo de
destrui-la atraves da lingua gem cientifica, mais "podero-
sail, mas para mostrar que essas duas formas de conhecer
o mundo sao complementares, abre a possibilidade de que
o aluno ou aluna entendem que qualquer forma de conhe-
cimento e dinamica e ao mesmo tempo parcial. A medida
que 0 aluno e a aluna tomam consciencia de seu perfil
conceitual, mesmo que inicialmente esse perfil contenha
apenas urnas poucas formas diferenciadas de ver e cons-
truir 0 mundo discursivamente, eles estarao aptos a per-
ceber a dinamica do conhecimento e admitirem uma dife-
renciac;ao ainda maior desse perfil no futuro, com a apren-
dizagem de conceitos mais sofisticados. Se 0 aluno e a
aluna aprenderem que a descric;ao cientifica do calor como
energia, proporcional a diferenc;a de temperatura, e com-
plementar a sua ideia cotidiana de calor como substancia,
proporcional a temperatura, ele estara reconhecendo a
existencia de noc;6es complementares que constituem,
nesse momento, seu perfil para 0 conceito de calor. Se as
noc;6es sao complementares, existem contextos em que
uma das ideias e mais apropriadamente aplicavel. 0 con-
junto desses contextos diferenciados, que constituem a
realidade em seus multiplos niveis, s6 pode ser entendido
atraves dessa perspectiva complementar. Afinal, chegar
nurna loja e pedir urn blusa de la bem quente continuara
a ser mais apropriado do que pedir urn agasalho feito de
urn born isolante termico que impec;a que 0 corpo troque
calor com 0 ambiente. Por outro lado, se sabemos porque
esse II quente" da la nao significa que ela possa ser usada
para esquentar urn cafezinho, estamos expressando a
consciencia desse perfil conceitual de calor, usando as
ideias cientificas e cotidianas nurna perspectiva de com-
plementaridade.
Finalmente, implementar uma perspectiva dial6gica
em sala de aula nao significa apenas dar "voz" ao aluno e
a aluna. Significa, tambem, contemplar as vozes da lingua-
gem cotidiana e dos contextos sociais e tecnol6gicos onde
a ciencia se materializa, na construc;ao do discurso cientl-
fico escolar de sala de aula. Vma aula expositiva ou urn
texto tambem podem ser profundamente dial6gicos, des-
de que explicitamente contemplem essas outras vozes que
nao apenas as da linguagem cientifica. Essa perspectiva
tambem se aplica a atividade experimental, que pode,
dessa maneira, ser caracterizada como urn dialogo entre
teoria e pratica. Por fim, essa perspectiva deve incentivar
ao aluno e a aluna a buscarem na sua comunidade, nos
meios de informac;ao, nas indus trias e nas atividades pro-
dutivas em geral, vozes para alimentar esse constante
dialogo da sala de aula, entre as varias linguagens dos
diferentes grupos sociais e a linguagem cientifica escolar.
Atraves do dialogo, a chama podera dissolver a rigi-
dez do cristal sem destrui-lo. Infiltrando-se em seus inters-
ticios como luz e movimento, projetara as imagens de uma
nova sociedade, mais justa e mais pr6xima da natureza.
Este texto se inspira em trabalhos de Mikhail Bakhtin, Ilya Prigogine,
Michael Halliday e Jay Lemke, alem de alguns dos meus pr6prios trabalhos.
Bakhtin revolucionou a lingliistica e os estudos literarios com suas no~6es
de dialogia, linguagem social e generos de discurso. Ao mostrar que a lingliistica
estruturalista nao dava conta de explicar como as diferentes esferas da atividade
humana produziam diferentes linguagens sociais, ele criou a teoria da enuncia-
~ao, em que as unidades de analise deixam de ser as palavras e as frases e passam
a ser os enunciados completos. Bakhtin teve varios de seus trabalhos e de seus
colaboradores traduzidos para 0 portugues. Este texto se inspira particularmen-
te no seu EsWica da Cria~ao Verbal (Sao Paulo: Martins Fontes, 1992) e ern
Marxismo e Filosofia da Linguagem, de V. . Voloshinov (sao Paulo: Hucitec, 1981).
nya Prigogine, ganhador do premio Nobel de Quirnica ern 1977 pelo seu
trabalho ern estruturas dissipativas, publicou, junto corn Isabelle Stengers, 0
livro La nouvelle alliance, traduzido e publicado no Brasil pela Editora da UnB,
Brasilia, como A nova alian~a. Nesse livro, Prigogine se associa a quirnica e a
fil6sofa Isabelle Stengers para trac;ar urn belo panorama da crise da ciencia
cJassica e do surgimento da nova ciencia dos sistemas complexos.
Michael A. K. Halliday e urn lingliista britanico de grande expressao, que
estudou como as diferentes esferas da vida social caracterizam diferentes regis-
!ros, corn diferentes caracterfsticas semanticas e gramaticais. Halliday publicou
ern 1993, junto corn James R. Martin, uma colec;ao de ensaios intitulada Writing
Science: literacy and discursive power (Pittsburgh: University of Pittsburgh Press),
fonte inspiradora de muito 0 que foi escrito neste texto.
Jay L. Lemke e flsico e professor do Departamento de Educac;ao da Univer-
sidade de New York. E autor de Talking Science: language, learning and values
(Norwood, N], Ablex Publishing, 1990), 0 qual analisa a linguagem das salas de
aula de ciencias sob 0 ponto de vista da teoria semi6tica social, e de Textual
Politics: discourse and social dynamics (London, Taylor & Francis, 1995), 0 qual
tenta estabelecer as bases de uma teoria social para analise das politicas textuais.
Maria Quiroga Amoroso Anastacio dti ao
seu texto a titulo de um cltissico entre
professores e professoras, Matemcitica: a
arte de resolver problemas?, para
mostrar-nos quanta Educat;iio
matematica e os problemas /Ida vida
real", de Gelsa Knijnik,discute a temtitica
da resolw;ao de problemas e as processos de
avaliafaO.