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ESTATUTO DA CIDADE
Quem ganhou? Quem perdeu?
José Roberto Bassul*
*Arquiteto e urbanista, ex-presidente da Terracap - Cia. Imobiliária de Brasília,
empresa pública do Distrito Federal. Especialista em planejamento habitacional e
mestre em arquitetura e urbanismo pela UnB, é consultor legislativo do quadro
técnico do Senado Federal, desde 1993, na área de política urbana. 
Brasília-2004
A Pompeu de Sousa, in memoriam.
A meus pais.
A Ana Lúcia, por tudo.
A Marcela.
A Carolina.
2
Agradecimentos
As falhas, lacunas e imprecisões deste trabalho são de inteira e exclusiva
responsabilidade do autor. Seus acertos, contudo, devem ser creditados à contribuição 
de inúmeras instituições e pessoas, entre as quais, devo mencionar:
o professor Benny Schvasberg, 
pela orientação dedicada e exigente;
o professor Brasilmar Ferreira Nunes e Grazia de Grazia, 
pelas sugestões críticas ao projeto;
os professores Ricardo Farret, Edésio Fernandes e Fernanda Furtado, 
pelas contribuições teóricas e pela participação na banca examinadora;
a UnB, o Instituto de Arquitetos do Brasil e o Sindicado dos Arquitetos do DF, 
onde aprendi sobre a cidade e a cidadania;
o Lincoln Institute of Land Policy, 
pelo aporte crítico de suas publicações e pela bolsa de incentivo;
Ermínia Maricato, Raquel Rolnik, Eduardo Graeff, 
Vicente Amadei e Suely Mara Guimarães de Araújo, 
pela gentileza da concessão de esclarecedoras entrevistas;
Sérgio Penna, consultor geral legislativo do Senado Federal, pelo apoio não apenas à
realização da pesquisa, mas, sobretudo, ao propósito de transformá-la em livro;
Philippe Torelly, Orlando Cariello, Eliane Cruxên Maciel e Vera Americano, 
pela amizade incentivadora;
os professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação da FAU/UnB, 
3
pelo aprendizado, pela solicitude e pela convivência profícua.
 
As pessoas têm direito à igualdade quando a diferença significa discriminação. 
E têm direito à diferença quando a igualdade implica descaracterização.
Boaventura de Souza Santos
Ao deixarmos este mundo, não basta termos sido bons. 
É preciso tê-lo deixado melhor.
Bertolt Brecht
4
 
Sumário
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO 1 – REFERÊNCIAS CONCEITUAIS 17
1.1 Reforma urbana e direito à cidade 17
1.1.1 Características do processo de urbanização no Brasil
17
1.1.2 Origens e efeitos do planejamento urbano 20
1.1.3 O ideário da reforma urbana e os princípios do direito à cidade 22
1.2 Função social da propriedade
29
1.2.1 Contexto histórico do direito de propriedade 29
1.2.2 A propriedade no Estado democrático de direito 34
1.2.3 A função social da propriedade no Brasil 36
CAPÍTULO 2 - LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA E AÇÃO
ESTATAL NA CONFIGURAÇÃO DAS CIDADES BRASILEIRAS 39
2.1 Planejamento urbano: a lei e as políticas públicas como instrumentos
 de segregação 39
2.1.1 A quem serve a lei
39
2.1.2 O papel político da legislação urbanística: zoneamento e normas
 de uso e ocupação
41 
2.2 O poder público a serviço do capital privado 44
2.2.1 A formação dos preços imobiliários
44
2.2.2 A incorporação imobiliária e a propriedade do solo urbano
48
2.2.3 A “espoliação urbana” como aspecto do modelo nacional de desenvolvimento
53
CAPÍTULO 3 – CIDADE PLANEJADA E DIREITO CONQUISTADO 56
3.1 Planejamento e cidade: do modelo tecnocrático às propostas participativas
56 
3.1.1 O planejamento regulatório
56
3.1.2 Novas abordagens para o velho planejamento
61
5
3.1.3 O plano diretor na Constituição de 1988 64
3.1.4 A experimentação municipal pós-Constituição 69
3.2 O direito na cidade
74 
3.2.1 O direito achado na rua
74
3.2.2 Do privatismo do Código civil à cidade no âmbito do direito público
76
CAPÍTULO 4 – ESTATUTO DA CIDADE: DE ONDE VEIO ESTA LEI? 79
4.1 O caminho até a constitucionalização da política urbana
79
4.1.1 As primeiras iniciativas
79
4.1.2 O processo constituinte e a Emenda Popular da Reforma Urbana
86
4.1.3 O capítulo constitucional da política urbana
90 
4.2 A lei para fazer cumprir a Constituição
95
4.2.1 O projeto original do Estatuto da Cidade e as demais propostas legislativas
95
4.2.2 As críticas institucionais e a reação conservadora 101
CAPÍTULO 5 – TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA: DO CONFLITO À UNANIMIDADE 105
5.1 Os principais pontos polêmicos e as primeiras negociações
105
5.1.1 A proposta engavetada 105
5.1.2 O comboio em movimento
107
5.2 A articulação do consenso parlamentar
109
5.2.1 O debate mais importante
109
5.2.2 Os últimos movimentos na Câmara: recidivas da reação conservadora
110 
5.2.3 A volta à Casa de origem
112
5.3 O Estatuto da Cidade transformado em lei
113
5.3.1 As dificuldades para a sanção presidencial
113
5.3.2 O texto final: conteúdo e finalidades
117
5.3.3 Aspectos distributivos e redistributivos
120 
6
CAPÍTULO 6 – O CONTEÚDO EXPRESSO E O SIGNIFICADO
NÃO EXPLÍCITO DO ESTATUTO DA CIDADE 125
 
6.1 Comparação da legislação urbana com a Emenda Popular da Reforma Urbana
125
6.1.1 Elementos formais e quantitativos 125 
6.1.2 Conteúdo crítico 129
6.2 Os dois lados da mesma moeda
131
6.2.1 O consenso aparente 131 
6.2.2 O conflito latente 139
CONCLUSÃO
146 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 155
ANEXOS
1 - Seminário de Habitação e Reforma Urbana (IAB/IPASE) —
 Proposta de lei (1963) 167
2 - Projeto de lei de “reforma urbana” (1964)
173
3 - Projeto de lei nº 775, de 1983.
177
4 - Emenda Popular da Reforma Urbana (1987)
185
5 - Projeto original do Estatuto da Cidade (1989)
189 
6 - Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001.
200
7 - Medida Provisória n° 2.220, de 4 de setembro de 2001. 211
INTRODUÇÃO
Considerações iniciais
No dia 10 de julho de 2001, foi sancionada a Lei nº 10.257, denominada Estatuto da
Cidade — primeira norma federal brasileira de diretrizes para a política urbana. Se
considerarmos como pioneira nesse sentido a singela proposta, aprovada no III Congresso
Brasileiro de Arquitetos, realizado em 1953 na cidade de Belo Horizonte (MG), de que fosse
criado um órgão federal especializado em “habitação e urbanismo”,foi necessário quase meio
século para que a questão urbana lograsse um marco legal específico. No começo dessa
7
trajetória, a população urbana representava 36,1% do total. Quando o Estatuto da Cidade foi
aprovado, 81,2% dos brasileiros habitavam as cidades. 
Hoje, parece não haver mais dúvidas quanto à crescente importância dessa temática
na chamada agenda política nacional. Os efeitos das políticas públicas, que, nesse período,
demarcaram e caracterizaram o território urbano no Brasil, podem ser facilmente percebidos.
Grande parte dos brasileiros que vivem (ou sobrevivem) em cidades, enfrenta problemas
relativos à escassez de moradias, à precariedade dos sistemas de educação, de saúde e de
transportes, à insuficiência dos serviços de saneamento, ao crescimento dos índices de
desemprego e dos níveis de violência, ao lado de muitos outros fatores de desqualificação da
vida urbana. 
A concentração da população em núcleos urbanos passou a caracterizar o Brasil a
partir do segundo quarto do século XX, tornando-se especialmente aguda entre os anos 1960 e
70. Os municípios passaram a lidar com os efeitos da urbanização inteiramente
desapetrechados para tanto. Não havia recursos financeiros suficientes, meios administrativos
adequados nem instrumentos jurídicos específicos. Influenciado pelos setores dominantes na
economia urbana, o aparelho estatal dirigiu seus escassos recursos para investimentos de
interesse privado e adotou normas e padrões urbanísticos moldados pelos movimentos do
capital imobiliário. Tanto quanto ocorria com a renda econômica nacional, a “renda” urbana
concentrou-se. A cidade cindiu-se. Para poucos, os benefícios dos aportes tecnológicos e do
consumo afluente. Para muitos, a privação da cidadania e a escravidão da violência. 
O planejamento regulatório, fundado na crença de que a formulação da política
urbana deveria ocorrer no âmbito de uma esfera técnica da administração pública, ao contrário
de reverter esse quadro, acentuou os seus efeitos. Voluntária ou involuntariamente, a gestão
tecnocrática alimentou um processo caracterizado, de um lado, pela apropriação privada dos
investimentos públicos e, de outro, pela segregação de grandes massas populacionais, em
favelas, cortiços e loteamentos periféricos, excluídas do acesso a bens, serviços e
equipamentos urbanos essenciais. 
Crescentes, essas demandas sociais resultaram na organização popular de grupos de
pressão, que passaram a exigir iniciativas do poder público. No final dos anos 1970, essas
organizações, então conhecidas como movimentos sociais urbanos, aliadas a entidades
representativas de certas categorias profissionais, como arquitetos, engenheiros, geógrafos e
assistentes sociais, constituíram o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) com o
objetivo de lutar pela democratização do acesso a condições condignas de vida nas cidades
brasileiras. 
8
Com atuação em duas vertentes, a do território físico e político das cidades e a da
proposição de normas jurídicas especiais, o MNRU, embora em vários momentos enfatizasse
o aspecto legislativo de suas propostas, conduziu ambas as frentes de atuação de forma
complementar. Se, de um lado, os enfrentamentos havidos em torno das lutas pela moradia ou
pelo justo provimento de serviços públicos foram, e ainda são, contidos e represados por um
aparato legal e institucional conservador, de outro, esses mesmos conflitos têm levado o
aparelho de Estado à adoção de normas jurídicas e medidas administrativas mais permeáveis
aos direitos sociais.
Semeado desde os inícios da segunda metade do século XX, o ideário da reforma
urbana ganhou corpo conceitual e maior consistência política no âmbito da Assembléia
Nacional Constituinte, eleita em 1986, cujo Regimento admitiu a apresentação de propostas
de iniciativa popular. Desde então, suas proposições conviveram com “vitórias e derrotas”1,
até a comemorada aprovação do Estatuto da Cidade.
A despeito de um ambiente parlamentar majoritariamente refratário às proposições
do MNRU — especialmente em relação às que buscavam conferir efetividade à função social
da propriedade —, a Constituição de 1988, pela primeira vez na história do Brasil, incorporou
dispositivos que fizeram migrar, do território patrimonialista do direito privado para o âmbito
coletivo do direito público, as relações jurídicas pertinentes à propriedade urbana. 
A eficácia de grande parte desses mecanismos, contudo, dependia de uma lei federal
que regulasse sua aplicação. Por essa razão, após a promulgação constitucional, o MNRU
dirigiu seus esforços no sentido da aprovação de um projeto de lei formulado com esse
propósito: o Estatuto da Cidade. 
Apresentado em 1989 pelo senador Pompeu de Sousa (falecido dois anos depois),
mas aprovado somente em 2001, o Estatuto da Cidade oferece aos governos municipais e aos
movimentos sociais um conjunto expressivo de diretrizes e instrumentos que buscam
materializar os princípios constitucionais da função social da propriedade e da cidade. Seus
dispositivos se destinam, em síntese, a universalizar o “direito a cidades sustentáveis”,
definido na própria lei como “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à
infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
presentes e futuras gerações”. 
De início, o projeto de lei foi muito mal recebido pelos representantes do capital
imobiliário, que nele viam uma ameaça ao direito de propriedade e até à ordem constitucional.
Entretanto, decorridos doze anos de tramitação, que envolveram intermitentes debates e
1 Grazia, 2002, p. 15.
9
negociações, o texto foi aprovado por unanimidade. Quais foram as intercorrências técnicas e,
sobretudo, políticas nesse percurso? O consenso obtido, do ponto de vista da proposta da
reforma urbana, resultou em perda de substância? O que mudou: o projeto inicial, a posição
do empresariado ou ambos? Que fatores, ao longo desses doze anos, fizeram com que
posições inicialmente litigantes fossem aproximadas? 
Indagações dessa natureza são a motivação do presente trabalho, que resultou numa
dissertação de mestrado, defendida e aprovada, no dia 14 de maio de 2004, na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB). Na dupla condição de
assessor do parlamentar que apresentou o projeto de lei do Estatuto da Cidade e de dirigente
de entidades como o Instituto de Arquitetos do Brasil e o Sindicato dos Arquitetos do Distrito
Federal, o autor teve a oportunidade de vivenciar muitos dos episódios e circunstâncias
analisados, testemunhar o processo constituinte, bem como participar da elaboração do projeto
original da nova lei e acompanhar sua tramitação legislativa. 
Para o MNRU, o período da morosa tramitação congressual do Estatuto da Cidade
foi um processo ciclotímico. Ao entusiasmo inicial — que havia no contexto da
redemocratização política, da convocação da Constituinte e da efervescência da participação
popular —, sucederam períodos em que a perspectiva de aprovação dessa nova legislação
pareceu distante e improvável. 
Neste começo de século, contudo, vários elementos se combinaram no sentido de
novamente trazer à tona as proposições da reforma urbana: a aprovação do Estatuto da
Cidade; a eleição para a Presidência da República de um candidato do Partido dos
Trabalhadores (PT), programaticamente comprometido com o MNRU; e a criação do
Ministério das Cidades. Articulam-se nesta circunstância histórica, portanto, uma proposta
política de democracia participativa, quepela primeira vez assume o governo do País, e uma
legislação urbana inovadora, decorrente desses mesmos propósitos e fundada nos mesmos
princípios. 
Embora não sejam examinados os acontecimentos políticos em curso — quanto mais
não fosse porque, como lembrou Eric Hobsbawn (1995, p. 7), “ninguém pode escrever sobre
seu próprio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relação a uma época conhecida
apenas de fora, em segunda ou terceira mão” —, as circunstâncias presentes sugerem que
analisar o processo de elaboração do Estatuto da Cidade, saber em que medida a nova lei
incorporou os princípios da reforma urbana e quais os fatores que condicionaram sua longa
tramitação entre grupos de opinião conflitantes, significa de certo modo inferir as
10
possibilidades de êxito das políticas públicas que se poderão valer desse novo ordenamento
legal. 
Objeto e objetivos
Este trabalho, que tem por objeto o processo de elaboração legislativa do Estatuto da
Cidade, pretende relacionar seu conteúdo com o projeto político da reforma urbana. Tenta-se
aferir, fundamentalmente, em que medida o texto aprovado corresponde ao conjunto de
propostas construído no âmbito do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU). Em
paralelo, busca-se encontrar os fatores que teriam levado os segmentos representativos do
capital imobiliário no Congresso Nacional a superar uma atitude inicial de franca rejeição e,
ao final, aprovar, por unanimidade, uma lei considerada capaz de municiar a reforma urbana
em muitos de seus propósitos. 
A pesquisa procura acrescer ao campo temático ainda pouco explorado do Estatuto
da Cidade:
a) as principais proposições que o antecederam, inclusive o inteiro teor do projeto
de reforma urbana do governo João Goulart, escassamente conhecido; 
b) o detalhado registro analítico do debate/embate parlamentar (a configuração da
arena política constituída em relação ao tema da política urbana, durante e após
a Assembléia Nacional Constituinte, os projetos apresentados, as emendas
aprovadas, as rejeitadas e aquelas que decorreram de acordos, assim como a
caracterização do perfil parlamentar de seus autores);
c) o conteúdo expresso das proposições legislativas elaboradas no âmbito do
MNRU (em especial as contidas na Emenda Popular da Reforma Urbana), bem
como a verificação da medida em que foram ou não incorporadas à legislação
vigente; 
d) a análise exploratória das posições defendidas pelo empresariado e de como e
porque esse segmento de opinião teria transitado de uma atitude inicial de
rejeição para a de aceitação dos conceitos e princípios da nova lei.
Método e base documental
11
O texto se apóia nos fundamentos teóricos do ideário da reforma urbana, derivados,
por sua vez, dos conceitos jurídico-políticos de “direito à cidade” e “função social da
propriedade”. Esses referenciais são buscados em autores como, entre outros, Ana Amélia da
Silva, Ana Clara Torres Ribeiro, Ermínia Maricato, Grazia de Grazia, Luiz Cesar de Queiroz
Ribeiro, Marcelo Lopes de Souza, Miguel Baldez, Nelson Saule Jr. e Raquel Rolnik, para a
conceituação de “reforma urbana”; em David Harvey, Henri Lefebvre e Manuel Castells, no
âmbito da chamada “nova sociologia urbana”, para a noção de “direito à cidade”; e em
Alessandra Queiroga, Betânia Alfonsin, Boaventura de Souza Santos, Carlos Frederico Marés,
Celso Antonio Bandeira de Mello, Edésio Fernandes, José Afonso da Silva, Liana Portilho
Mattos, Nelson Saule Jr. e Sônia Rabello de Castro, com relação ao princípio da “função
social da propriedade”. 
A formação dos preços imobiliários e a ação estatal em proveito do capital
imobiliário foram estudadas, principalmente, em trabalhos de Benício Schmidt e Ricardo
Farret, Mark Gottdiener, Martim Smolka e Paul Singer. 
O papel desempenhado pela regulação urbanística e pelas práticas de planejamento
na configuração de nossas principais cidades provieram das análises de vários autores, com
ênfase nas obras de Raquel Rolnik, Ermínia Maricato e Marcelo Lopes de Souza, cujo livro-
texto (Souza, 2002, p. 29 e 34), em resumo, propõe uma evolução da “crítica ao planejamento
urbano” para uma atitude de “planejamento urbano crítico”, que, pela via democrática e
efetivamente participativa, “mesmo operando nos marcos de uma sociedade injusta, contribua
(...) para a superação da injustiça social”.
Para a pesquisa sobre a elaboração constitucional e, mais especificamente, sobre o
conteúdo e a tramitação legislativa do Estatuto da Cidade, foram utilizadas fontes primárias,
como os anais da Assembléia Nacional Constituinte, da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, constantes do Sistema de Informações do Congresso Nacional (SICON), em grande
parte disponível na internet, e secundárias, como as análises críticas de Edésio Fernandes,
Fernanda Furtado, Grazia de Grazia, Nelson Saule Jr., Paulo Sandroni e Raquel Rolnik, além
de outras constantes de coletâneas organizadas por Betânia Alfonsin e Edésio Fernandes, Luiz
César de Queiroz Ribeiro e Adauto Lucio Cardoso, Liana Portilho Mattos e Letícia Marques
Osório. 
No tocante às pressões da sociedade civil sobre o Congresso Nacional, também
foram buscadas fontes primárias, como documentos encaminhados ao Parlamento, tanto pelas
entidades integrantes do MNRU, quanto pelas associações empresariais, quase sempre
representadas pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) e pelo Sindicato das
12
Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais
de São Paulo (Secovi-SP). Também foram úteis os documentos, sempre contrários ao Estatuto
da Cidade, formulados pela organização civil Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP). 
No sentido de buscar responder às indagações que orientaram a pesquisa, bem como
no de verificar a pertinência das hipóteses suscitadas, foram também realizadas entrevistas
pessoais com atores relevantes desse processo. A partir de um roteiro prévio, formularam-se
questões abertas, respondidas por protagonistas das lutas históricas do MNRU, como as
professoras Ermínia Maricato e Raquel Rolnik, que desempenham atualmente relevantes
cargos e encargos no governo federal; pelo empresário Vicente Amadei, eficiente
representante do setor imobiliário no processo legislativo do Estatuto da Cidade; pela
arquiteta e advogada, consultora legislativa da Câmara dos Deputados, Suely Mara Vaz
Guimarães de Araújo, que assessorou, com reconhecida competência, toda a tramitação da
nova lei; e pelo sociólogo Eduardo Graeff, cuja respeitabilidade pessoal e profissional teve
grande influência na sanção do presidente da República ao projeto aprovado. 
O grau do atendimento das reivindicações legislativas do MNRU foi analisado a
partir da comparação direta do conteúdo da Emenda Popular da Reforma Urbana (considerado
o estuário dessas reivindicações), apresentada, em 1987, à Assembléia Nacional Constituinte,
com os dispositivos legais incorporados à Constituição Federal, ao Estatuto da Cidade
(considerada a Medida Provisória nº 2.220, de 2001, que o complementa) ou mesmo a outras
normas federais. Para tanto, a Emenda Popular foi decomposta em cinqüenta propostas
normativas, sendo verificada se houve ou não a inclusão, integral ou parcial, de cada uma
delas. A partir desse estudo comparativo, foi possível mensurar o campo de acolhimento que o
ideário da reforma urbana já encontrou no ordenamento legal brasileiro.
Confirmada a grande receptividade da legislação urbana às reivindicações do
MNRU, foram analisadas as possíveis causasda aceitação dessas teses por parte dos
representantes do capital imobiliário, dado que, em notório contraste com a reação inicial, a
última votação do Estatuto da Cidade obteve unanimidade. Nesse ponto, as seguintes
hipóteses, possivelmente complementares, foram investigadas:
a) a de que os efeitos da experimentação municipal, anterior à aprovação do
Estatuto da Cidade, na aplicação de certos instrumentos da reforma urbana
(como a outorga onerosa do direito de construir e as operações urbanas ou
interligadas, por exemplo) podem ter sido amplamente benéficos aos
empreendedores privados, os quais, por essa razão, teriam passado a apoiá-los; 
13
b) a de que a “perda de competitividade” das cidades brasileiras no âmbito da
economia globalizada, determinada pelas “deseconomias urbanas” e pela
degradação social e ambiental, possa ter incluído o tema da reforma urbana no
contexto das preocupações dos setores dominantes do capitalismo brasileiro;
c) a de que, por força dos compromissos assumidos pelo Brasil na Conferência
Habitat II, realizada pela ONU em 1996, cujos resultados foram cobrados no
encontro denominado Istambul+5, ocorrido em Nova York, em 2001, o governo
brasileiro tenha tomado interesse pela pronta aprovação da “lei de reforma
urbana”. 
Organização da exposição
A exposição se organiza em seis capítulos, ao longo dos quais é feita a revisão
bibliográfica do tema abordado.
No capítulo 1 — Referências conceituais —, são preenchidos os conceitos de
“reforma urbana”, “direito à cidade” e “função social da propriedade”, fundamentais para a
contextualização e a delimitação do trabalho. Abordam-se as características do processo de
urbanização no Brasil, assim como as origens e os efeitos do planejamento urbano, substratos
para a construção propositiva do direito à cidade como elemento estruturador do ideário da
reforma urbana. Contextualiza-se historicamente o direito de propriedade nas sociedades
ocidentais, assim como a evolução, no Brasil, do princípio da função social da propriedade,
fundamento do capítulo constitucional da política urbana e do Estatuto da Cidade.
No capítulo 2 — Legislação urbanística e ação estatal na configuração das cidades
brasileiras —, são examinados os efeitos das leis urbanísticas, em especial o zoneamento e as
normas de uso e ocupação do solo, bem como o papel da ação do aparelho estatal na formação
dos preços imobiliários e nos processos de segregação sócio-espacial. 
No capítulo 3 — Cidade planejada e direito conquistado —, com o objetivo de
contextualizar o significado atribuído pela Constituição de 1988 ao plano diretor, o qual, por
sua vez, deu ensejo à experimentação municipal que antecedeu a aprovação do Estatuto da
Cidade, analisa-se a evolução dos processos de planejamento urbano, desde os modelos
regulatórios, passando pelas diversas acepções do denominado “planejamento estratégico”, até
as práticas participativas, um dos pilares da reforma urbana. Em paralelo, são registrados os
14
esforços hermenêuticos e propositivos que levaram à consolidação do direito urbanístico
como ramo do direito público, dotado de autonomia.
No capítulo 4 — Estatuto da Cidade: de onde veio essa lei? —, são analiticamente
comentadas as primeiras iniciativas no sentido da institucionalização da problemática urbana,
a receptividade da Emenda Popular da Reforma Urbana no âmbito da Constituinte, bem como
a arena política que resultou no capítulo constitucional específico desse tema. São igualmente
apresentados o projeto original do Estatuto da Cidade e as demais propostas de
regulamentação constitucional, assim como analisadas as reações críticas ocorridas dentro e
fora do Congresso Nacional.
No capítulo 5 — Tramitação legislativa: do conflito à unanimidade —, são
examinados os principais pontos polêmicos da proposta, as negociações promovidas entre
representantes do MNRU e do empresariado, as marchas e contra-marchas do processo
legislativo até a formação do consenso, assim como as dificuldades surgidas no âmbito do
Poder Executivo, por ocasião da sanção do texto aprovado no Congresso. Ao final deste
capítulo, o conteúdo e a finalidade instrumental do projeto aprovado são sintetizados e
classificados à luz de seus princípios e propósitos, sejam eles de natureza distributiva ou
redistributiva, no sentido de auxiliar a análise crítica das circunstâncias que permitiram a
formação do consenso parlamentar. 
No capítulo 6 — O conteúdo expresso e o significado não explícito do Estatuto da
Cidade —, com o objetivo de aferir-se o grau de êxito da vertente legislativa do MNRU, é
feita a comparação formal, registrada numa tabela, das propostas contidas na Emenda Popular
da Reforma Urbana com a legislação aprovada. De outra parte, procura-se demonstrar que,
sob o aparente consenso que levou à aprovação unânime do Estatuto da Cidade, há um
conflito latente, sobretudo no que se refere aos instrumentos legais de potencial redistributivo,
voltados para a efetividade da função social da propriedade.
Na Conclusão, consolidam-se as respostas encontradas para as indagações que
orientaram a pesquisa e confirmam-se as hipóteses suscitadas. Enfatiza-se a dedução de que
os aspectos distributivos do Estatuto da Cidade tendem a ter melhor curso que seus propósitos
redistributivos. Afirma-se, por isso, que, tendo sido vitorioso em sua vertente legislativa, o
MNRU provavelmente precisará voltar seus esforços para ações concretas no território da
cidade, no sentido de assegurar efetividade aos preceitos legais conquistados. Nesse contexto,
considera-se que cabe aos planejadores urbanos, valendo-se da especificidade de sua formação
técnica, contribuir para a produção de um conhecimento crítico que venha a ser coletivamente
apropriado. 
15
1 – REFERÊNCIAS CONCEITUAIS
1.1 Reforma urbana e direito à cidade
1.1.1 Características do processo de urbanização no Brasil
A concentração progressiva e acentuada da população em núcleos urbanos
caracterizou o Brasil a partir da crise mundial de 1929, que alcançou o ciclo do café paulista e
empurrou grandes contingentes de desempregados em direção às cidades (Chaffun, 1996, p.
18-19). Até então, quase restritas ao litoral, ou a suas proximidades, e ainda expressando a
natureza colonial dos ciclos da exploração econômica do Brasil, as cidades haviam
16
desempenhado fundamentalmente as funções de ocupar, dominar e extrair o máximo proveito
econômico dos territórios em que se inseriam. Mesmo nos inícios do Brasil republicano, até o
primeiro quartel do século XX, predomina a atividade rural voltada para a exportação e, “não
por acaso, as cidades, verdadeiros enclaves, desenvolvem-se exatamente naquelas áreas onde
as atividades econômicas estão relacionadas ao dinamismo da demanda exterior” (Schmidt e
Farret, 1986, p. 7).
No contexto da Revolução de 19302, mas, sobretudo, impulsionados pela crise
econômica mundial, que afetou diretamente as atividades agromercantis, expressivos
contingentes populacionais se dispersaram em direção a novas fronteiras internas e aos então
ainda incipientes núcleos urbanos. Nesse período, “ocorre a emergência da burguesia
comercial e industrial, o crescimento do mercado urbano de bens e serviços e, com a
centralização das funções políticas e decisórias, a acentuada participação do Estado nas
esferas econômica e social” (Schmidt e Farret, op. cit., p. 7 e 8). É a “cidade do populismo”,
em que se regulamenta o uso da força de trabalho (no sentido de permitir o desenvolvimentodo capital industrial e comercial), se inicia uma “política habitacional de fato, cuja
incumbência era dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, das várias categorias de
trabalhadores” (Schmidt e Farret, op. cit., p. 13)3, enquanto a estrutura produtiva se orienta
para a “produção dos bens salariais de consumo (vestuário, têxtil, alimentos etc.)” (Ribeiro, L.
C. Q., 2003, p. 20). 
Após um período de convivência “pacífica” entre a oligarquia rural e a nascente
burguesia industrial, esta começa a predominar em relação àquela. As cidades que já estavam
voltadas para as atividades agro-exportadoras, nas quais havia concentração de serviços e
facilidades administrativas, propiciavam as condições mais adequadas à política de
industrialização por substituição de importações, que, ao valer-se dessas bases pré-existentes e
desenvolvê-las, promove a expansão não apenas da própria atividade industrial, mas também
dos setores de comércio e de serviços. 
2 Mesmo sem tocar diretamente nos interesses da oligarquia rural, a Revolução de 1930 rompeu com o modelo
agrário-exportador ao criar estímulos para a economia urbano-industrial.
3 Mais adiante, em 1964 e 1966, ambas as políticas, regulação das relações de trabalho e investimentos em
programas habitacionais, se combinariam mais explicitamente. O governo militar cria o Sistema Federal e o
Banco Nacional de Habitação (BNH) por meio da Lei nº 4.380/64 e institui o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS) nos termos da Lei nº 5.107/66. “Sob o sistema anterior, o trabalhador tinha direito a receber uma
indenização considerável ao ser despedido, e também à estabilidade depois de dez anos de emprego contínuo”
(Schmidt e Farret, 1983, p. 31). O FGTS, formado pelo depósito mensal de 8% da folha salarial, além de
desonerar os empregadores dos pesados custos e responsabilidades da regra anterior, criava condições de
financiamento do setor da construção civil e permitia o atendimento de parcela da demanda habitacional. Como
expressou a então secretária do governo de Carlos Lacerda no Estado do Rio de Janeiro e futura presidente do
BNH, Sandra Cavalcanti, em famosa carta dirigida ao primeiro presidente do regime militar, marechal Castello
Branco: “a Revolução necessita urgentemente agir em favor das massas urbanas”.
17
De outra parte, com a consolidação de um “mercado de âmbito nacional para a
indústria de transformação”, as unidades de produção que operavam em maior escala, ao
buscarem acesso “à parcela mais substancial” desse mercado, tenderam a localizar-se “nos
centros mais populosos do Sudeste”, destacadamente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo
Horizonte (Barat e Geiger, 1973, apud Schmidt e Farret, 1983, p. 17). 
A Segunda Guerra Mundial acelera a atividade industrial e, no pós-guerra, a
hegemonia do setor fabril enseja dois novos papéis para as cidades no processo de
desenvolvimento nacional: (i) absorver os crescentes contingentes populacionais que,
desempregados, ora pela recessão econômica, ora pela crescente capitalização da atividade
rural, passam a buscar trabalho nas áreas urbanas; e (ii) propiciar ao processo produtivo
industrial não apenas a infra-estrutura física para a sua expansão, mas as condições
necessárias à reprodução de sua força de trabalho, em especial, a implementação, para usar a
expressão hoje corrente, de um “marco regulatório” para as relações trabalhistas, expresso na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, ainda vigente. 
Embora o Brasil se caracterize por um processo de urbanização de perfil territorial,
funcional e populacional mais disperso que o ocorrido na maior parte da América Latina4 e,
para alguns autores, haja um distanciamento entre os processos de urbanização e
industrialização no Brasil, no sentido de que, “historicamente, somente uma pequena parte da
população brasileira concentrada nas áreas urbanas tem sua renda vinculada diretamente às
atividades industriais” (Schmidt e Farret, 1986, p. 8), o padrão assumido pela industrialização
no País, caracterizado por investimentos concentrados na região Centro-Sul, em especial a
região econômica dominada pela cidade de São Paulo, e pela produção de bens de consumo de
luxo, os chamados bens de “alto valor agregado”, constitui fator determinante da concentração
da renda e do acesso a bens e serviços urbanos, de um lado, e do estímulo à mobilidade
geográfica, de outro. 
Nas palavras de L. C. de Queiroz Ribeiro (2003, p. 20), “esta estrutura produtiva foi
o resultado daquilo que Celso Furtado chamou de ‘processo de modernização’, em vez de
desenvolvimento, através do qual se importou um modelo cultural dos países desenvolvidos.
Para viabilizar esta ‘modernização’ foi necessário realizar e manter uma estrutura de
desigualdade com forte concentração da renda e da riqueza”. 
Ainda segundo Celso Furtado (1963), a dinamização econômica do Centro-Sul foi
em grande medida subsidiada pelas demais regiões, especialmente o Nordeste, pois a política
4
 Com exceção do Brasil e da Colômbia, os sistemas urbanos na América Latina se caracterizam pela articulação
em torno de apenas uma grande cidade (região metropolitana), que acumula funções econômicas, administrativas,
políticas e simbólico-culturais, a par de concentrar até um terço de toda a população urbana nacional.
18
de substituição de importações forçava o restante do País a adquirir produtos do Sudeste,
ainda que a preços mais elevados que os dos importados. 
A par de promover a concentração social e regional da renda e da riqueza, o
dinamismo econômico, fomentado pelo aparato institucional e pelos investimentos públicos
no fortalecimento do parque industrial, estimulou movimentos migratórios em direção aos
núcleos urbanos. O número de cidades com mais de vinte mil habitantes “saltou de 51 em
1940 para 147 em 1960” (Martine, 1995, p. 4). Como também reconhecem Schmidt e Farret
(1986, p. 9), “tal processo, nos anos 60, gera um quadro de desequilíbrio no mercado de
trabalho, de distorções na distribuição da renda e, mais significativamente, de deficiências no
atendimento das crescentes demandas por bens e serviços de consumo coletivo,
principalmente no que se refere às camadas média e baixa da população”.
A partir de 1964, ano do golpe político-militar, os investimentos na melhoria da
infra-estrutura nacional, especialmente os sistemas de energia, transporte e comunicação, ao
facilitarem a circulação de bens e pessoas, aceleram a migração rural-urbana, que se combina
com elevadas taxas de crescimento demográfico. No chamado “período desenvolvimentista”,
a população brasileira passa a concentrar-se maciçamente em cidades e em cidades cada vez
maiores, conformando um perfil metropolitano no processo de urbanização5. 
Os principais municípios, surpreendidos pela rápida evolução desse processo — que
em apenas trinta anos transformou de rural para urbano o perfil demográfico do País —,
passaram a lidar com seus efeitos sem dispor de meios políticos, administrativos e financeiros
suficientes nem de instrumentos jurídicos adequados. Manietado em suas ações e
crescentemente influenciado pelos setores empresariais dominantes na economia urbana6, o
aparelho estatal dirigiu, em grande medida, seus escassos recursos para investimentos de
interesse privado e, sobretudo nas décadas de 1970 e 80, adotou normas e padrões
urbanísticos permeáveis aos movimentos do capital incorporador (Smolka, 1987)7. 
5 Enquanto, na década de 1940, as áreas rurais e localidades com menos de vinte mil habitantes responderam por
58% do crescimento populacional do País e as cidades com mais de quinhentosmil habitantes por 28%, na
década de 1970, o campo e as localidades pequenas representaram apenas 10% do chamado “crescimento
intercensitário”, cabendo às cidades com mais de quinhentos mil habitantes a responsabilidade por nada menos
que 58% do crescimento demográfico nacional (Martine, 1995, p. 4). 
6
 Segundo L. C. de Queiroz Ribeiro (2003, p. 21), três aspectos marcantes “estão na raiz de nossos problemas
urbanos: (I) a industrialização com a formação concomitante de uma ‘massa marginal’ constituída por um
excessivo exército industrial de reserva; (II) o bloqueio da formação da moderna cidadania; e (III) a constituição
de poderosos interesses mercantis ligados à acumulação urbana (...)”. Para esse último aspecto, Ribeiro utiliza a
expressão ‘poder urbano corporativo’, na tentativa de definir um estrato socioeconômico que se tem valido do
poder estatal nas cidades para criar ‘amplas possibilidades de ganhos patrimoniais”. 
7
 A atividade de incorporação imobiliária foi regulamentada no Brasil por meio da Lei nº 4.591, de 16 de
dezembro de 1964. 
19
A urbanização combinava a concentração econômica e regional com um elevado grau
de flexibilidade na expansão das fronteiras físicas e sociais do território urbano. A chamada
“urbanização por expansão de periferias”, decorrência da constituição de um pólo moderno na
estrutura produtiva, implicava, em contraponto, “a manutenção e expansão de pólos
‘atrasados’ — como mecanismos com a função de acomodar na cidade a ‘massa marginal’
produzida pelo dinamismo do desenvolvimento” (Ribeiro, L. C. Q., 2003, p. 21).
1.1.2 Origens e efeitos do planejamento urbano
Diante da configuração desse quadro, e no próprio âmbito do modelo
desenvolvimentista, consolidou-se a idéia de que a ocupação e a expansão do solo urbano
deveriam ocorrer sob a ótica de um processo de planejamento. Nesse sentido, a formulação de
uma política urbana, tanto no contexto estratégico nacional quanto em seus aspectos mais
estritamente locais, ocorreria sob o controle de uma esfera técnica da administração pública.
Segundo Raquel Rolnik (1997, p. 352), “a base desta concepção é uma visão que alia a
tradição do urbanismo higienista, em sua versão funcionalista pós-Carta de Atenas, a uma
Economia Política Desenvolvimentista com forte protagonismo do Estado”. Essa “crença nos
milagres do planejamento” (Rolnik, op. cit., p. 351), fundada no domínio de uma técnica
considerada capaz de impor racionalidade às ocupações urbanas, que desde os Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM)8 havia empolgado urbanistas, sobretudo entre
os filiados a correntes ideológicas de esquerda, encontrou, após o golpe de 1964, fértil
território, ainda que no campo oposto do cenário político. 
A crescente restrição aos canais de manifestação popular, inclusive os decorrentes da
representação parlamentar, deslocou o poder, no interior do aparelho estatal, dos estratos de
representação democrática para os centros técnico-burocráticos. “Conseqüentemente, a
política subordinou-se ao campo da administração pública e sujeitou-se a regras de
8 Em decorrência das conflituosas divergências entre arquitetos “acadêmicos” e “modernos”, que, em 1927,
integravam o júri do concurso de projetos para a sede da Sociedade (ou Liga) das Nações (antecessora da ONU)
em Genebra, na Suíça, deflagrou-se em Paris um movimento, “destinado a afirmar um sólido ponto de vista”
sobre os problemas da arquitetura e do urbanismo, que culminou na fundação dos Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna (CIAM). Já no Manifesto do 1º CIAM, realizado em La Sarraz, Espanha, evidenciaram-se
os aspectos funcionais a que o urbanismo moderno deveria adequadamente atender: habitar, trabalhar e recrear-se
(mais adiante acrescentou-se a função de circular), bem como os seus objetos: a ocupação do solo, a organização
da circulação e a legislação. Nos Congressos seguintes, realizados respectivamente em Frankfurt, Bruxelas,
Atenas e Paris (5º CIAM, em 1937), essa doutrina se aprofundou. No 4º CIAM, ocorrido em 1933 num navio de
cruzeiro entre “três mares”: o Egeu, o Adriático e o Mediterrâneo, elaborou-se a Carta de Atenas como “uma
resposta ao atual caos das cidades. Posta em mãos das autoridades, detalhada, comentada, iluminada por uma
explicação suficiente, é o instrumento pelo qual será conduzido o destino das cidades”. A Carta de Atenas,
inicialmente publicada apenas nos “anais técnicos”, foi tornada pública em 1941, com comentários explicativos
de Le Corbusier e de Jeanne de Villeneuve, baronesa de Aubigny (CIAM, La Carta de Atenas, 1950. Livre
tradução das citações e grifos nossos). 
20
racionalidade derivadas de sistemas finalistas, ao invés de basear-se em mecanismos para a
geração de consensos” (Schmidt e Farret, 1986, p. 25). 
Deliberadamente, quando vista sob a ótica da “dinâmica própria do setor imobiliário”
(Smolka, 1987, p. 41 e 55), ou involuntariamente, quando percebida no contexto racionalista e
bem intencionado do urbanismo dito “moderno”9, o fato é que o planejamento e a gestão
tecnocrática alimentaram o processo de “espoliação urbana”10, caracterizado, de um lado, pela
apropriação privada dos investimentos públicos em setores qualificados da cidade e, de outro,
pela segregação de grandes massas populacionais em favelas, cortiços e loteamentos
periféricos, excluídas do acesso a bens, serviços e equipamentos urbanos essenciais.
1.1.3 O ideário da reforma urbana e os princípios do direito à cidade
Cada vez mais agudas, essas carências sociais ensejaram a formação de grupos de
pressão organizados, que passaram a exigir providências do poder público. No final dos anos
1970, a partir “de iniciativas de setores da igreja católica, como a CPT — Comissão Pastoral
da Terra” (Maricato, 1997, p. 310), essas organizações, conhecidas como movimentos sociais
urbanos, aliadas a entidades profissionais de arquitetos, engenheiros, geógrafos e assistentes
sociais, constituíram o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU)11. Desde então, a
proposta da reforma urbana tem enfrentado reações, tanto no âmbito de interesses
patrimoniais contrariados quanto no contexto de posições ideológicas conservadoras.
Mas, afinal, o que é “reforma urbana”?
A expressão reforma urbana não é recente. Com significado oposto àquele que lhe é
hoje atribuído (o de ideário político de natureza transformadora das relações sociais vigentes),
“comumente recobriu (...) intervenções estatais autoritárias de conteúdo anti-popular, como a
Reforma Passos, no Rio de Janeiro (1902-1906)” (Souza, 2002, p. 155), no âmbito do
9
 Em sua última entrevista, concedida ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, o arquiteto Demétrio Ribeiro,
respeitado professor declaradamente modernista, falecido em 2003, ao responder a uma pergunta sobre como
avaliava seu trabalho de planejador urbano declarou: “Acho que desempenhei um papel útil (...) no sentido de
avançar a noção civilizada do que é uma cidade, [de] que ela deve ter uma legislação”. Na mesma entrevista,
Demétrio Ribeiro identifica e critica uma “tendência recente”, sintetizada, segundo ele, “por uma senhora que foi
guru do urbanismo da Erundina na primeira gestão do PT em São Paulo: ‘Passou a época do planejamento,
estamos na época do gerenciamento; passou a época da legislação, estamos na época da negociação” (Ribeiro,
D., 2003). 
10
 Na já clássica definição de Lúcio Kowarick (1979, p. 59), a “espoliação urbana” se expressa, entre outras
manifestações, pelo “somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade dos serviços de
consumo coletivo que — conjuntamente com o acesso à terra e à habitação — se apresentam como socialmente
necessários à subsistênciadas classes trabalhadoras”. 
11 Em outubro de 1988, em seguida à promulgação da nova Constituição e a partir da convocação do Seminário
Nacional pela Reforma Urbana, o Movimento organizou o primeiro Fórum Nacional de Reforma Urbana,
denominação que passou a caracterizar esse conjunto de entidades organizativas (Grazia, 2003, p. 54).
21
“urbanismo higienista”, inspirado no Plano Hausmann, implementado em Paris no final do
século XIX.
Nos anos 1960, no contexto das chamadas “reformas de base” que marcaram o
governo João Goulart (1961-1964), a expressão ressurge com outro conteúdo. Em 1963, o
Seminário de Habitação e Reforma Urbana, organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil
(IAB), no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ), que ficou conhecido como “Seminário do
Quitandinha”, do qual participaram “tanto políticos (como o deputado Rubens Paiva,
posteriormente assassinado durante o regime militar) quanto técnicos e intelectuais” (Souza,
2002, p. 156-157), resultou num documento que, embora marcado pela ênfase na luta pela
moradia, já defendia preceitos de maior justiça social no território das cidades. Esse
movimento inicial, contudo, a par de não incluir organizações populares, ou talvez por isso
mesmo, não encontrou repercussão que se comparasse, por exemplo, à bandeira da reforma
agrária. De outra parte, embora se voltasse para a idéia de que as cidades deveriam oferecer
condições de vida socialmente mais justas, predominava nos documentos produzidos nessa
época o enfoque do planejamento calcado na boa técnica urbanística, sem menção a processos
participativos que incorporassem, à formulação e à implementação das políticas públicas, as
demandas e opiniões dos diferentes segmentos da população urbana, princípios que
fundamentariam a proposta da reforma urbana vinte anos mais tarde. 
Com o golpe militar de 1964, a nascente bandeira da reforma urbana foi reprimida
pelo aparato autoritário. Ao relatar o caso de Brás de Pina, no Rio de Janeiro, onde moradores
da favela, reunidos numa Associação, resistiram com êxito à tentativa de remoção para
conjuntos distantes, como queria o governo de Carlos Lacerda, Carlos Nelson F. dos Santos
descreve a situação política da época, não sem alguma ironia, característica de seu texto: “Os
tempos não eram dos mais favoráveis a oposições. (...) A incerteza era muito grande e, ainda
que o autoritarismo que veio depois não se tivesse revelado com toda a sua força, as pessoas e
os grupos estavam bastante tímidos em relação a manifestações de opiniões contrárias às
oficiais” (Santos, C. N. F., 1981, p. 32).
Nesse período, o planejamento de viés tecnocrático passa a instrumentalizar a
política de desenvolvimento urbano, subordinada às exigências da racionalidade econômica,
por meio das quais “a distribuição dos equipamentos e serviços é, freqüentemente, realizada
conforme o lugar onde os critérios de rentabilidade e de retorno do capital investido são mais
atendidos” (Grazia, 2003, p. 54).
Para autores como Marcelo Lopes de Souza (2002, p. 157), a despeito desse período
de “hibernação” durante o regime militar (1964-1985), a semente da reforma urbana estava
22
plantada, tendo sido “ampliada” no âmbito dos movimentos sócio-políticos dos anos 1980. No
entanto, segundo muitos dos seus líderes, ao ressurgir no contexto da redemocratização
política e da convocação da Assembléia Nacional Constituinte, ocorrida em 1986, a proposta
da reforma urbana se modifica. Nas palavras de Grazia de Grazia (2003, p. 54), é uma
“formulação totalmente nova em relação à que foi realizada na década de 60 [do século XX]”.
Ampliado ou transformado em relação ao que se propunha nos anos 1960, em que
consiste o ideário da reforma urbana? 
Na tentativa de responder a essa questão, Ana Amélia da Silva (1991, p. 7) coletou
definições de alguns autores que se têm dedicado ao tema. Para Haroldo Abreu (1986):
“Reforma Urbana implica uma nova concepção intelectual e moral da sociedade (e uma nova
ética urbana) que condene a cidade como fonte de lucros para poucos e pauperização para
muitos”.
De forma similar, L. C. de Queiroz Ribeiro (1986) afirma:
“Trata-se de uma nova ética social (entendida enquanto valores básicos que
devem orientar a vida na cidade). Esta ética pretende politizar a discussão sobre a cidade e
ao mesmo tempo servir de plataforma política aos movimentos sociais urbanos fornecendo
um horizonte que ultrapasse as questões locais e específicas. A ética (...) se compõe de dois
elementos: o primeiro deve ser a condenação das práticas econômicas que tornam a cidade
um objeto de lucro; (...) por outro lado, o acesso à cidade deve ser um direito: direito de ir e
vir à cidade, sem que seja necessário pagar um tributo àqueles que mercantilizam o solo
urbano (...). Os que não podem pagar tributo urbano (na forma de aluguel, preço da terra,
prestação do BNH, tarifas de transporte etc.) são obrigados a habitar simulacros de cidade,
verdadeiros guetos sociais (...).” 
No mesmo passo, no entendimento de Luiz Paulo Teixeira Ferreira (1988): “Reforma
Urbana é mudar a forma de organização da cidade. É não fazer da cidade um grande gueto dos
trabalhadores e o paraíso dos ricos. O que é a cidade hoje? É o paraíso dos ricos, uma cidade
bonita, com recursos, e a periferia é o que está fora da cidade, o local onde moram os pobres.
É o apartheid.”
Nas palavras de Miguel Baldez (1989),
“é essa não-cidade, ou sobra de cidade — em que se amontoa sem qualquer resquício de
respeito à sua dignidade, a classe trabalhadora —, que precisa ser negada; e Reforma
Urbana significa precisamente negar esta não-cidade garantindo às camadas exploradas e
oprimidas da população brasileira estado de cidadania, ou, explicitamente, acesso aos bens
concretos de vida: habitação, saúde, educação, transportes etc.”. 
 
Como se depreende das citadas definições, ainda que ancorado em princípios de
justiça social, não se pode negar que as proposições da reforma urbana examinam “a cidade
sob o ângulo do consumo coletivo, isto é, com centro nas questões da apropriação social do
espaço e não nas questões ligadas às relações de produção” (Cariello Filho, 1999, p. 29). De
23
fato, no âmbito do que se convencionou chamar nova sociologia urbana12, abordagem crítica
da urbanização nas sociedades capitalistas, compreende-se que, nesse sistema econômico, “a
distribuição dos locais residenciais segue as leis gerais da distribuição dos produtos e, por
conseguinte, opera os reagrupamentos em função da capacidade social dos indivíduos, isto é,
(...) em função de suas rendas, de seus status profissionais, de nível de instrução, de filiação
étnica, da fase do ciclo de vida etc” (Castells, 2000, p. 249).
A segregação social no espaço seria, portanto, “a expressão específica dos processos
que visam à reprodução simples da força de trabalho, mas estes processos estão sempre
inseparavelmente articulados com o conjunto das instâncias da estrutura social” (Castells,
2000, op. cit., p. 266). Ainda para Manuel Castells (apud Cariello Filho, 1999, p. 33), os
diferenciados padrões de consumo dos bens e serviços urbanos são elementos fundamentais
na estruturação das cidades:
“o essencial dos problemas que se consideram urbanos estão, de fato, ligados aos processos
de ‘consumo coletivo’, ou ao que os marxistas chamam de organização dos meios coletivos
de reprodução da força de trabalho. Isto é, dos meios de consumo objetivamente
socializados e que, por razões históricas específicas, são essencialmente dependentes, por
sua produção, distribuição e gestão, da intervenção do Estado”. 
 
O papel do Estado nesse contexto passa a ser visto comoum instrumento de
manutenção e reprodução dessas condições de apropriação diferenciada do ambiente urbano e
o planejamento como meio técnico-político para operar esse propósito. Nos marcos da nova
sociologia urbana, a despeito de várias divergências que guardassem sobre outros temas, a
abordagem dos principais autores “era unificada na denúncia do planejamento como um
instrumento a serviço da manutenção do status quo capitalista” (Souza, 2002, p. 26). David
Harvey chega a afirmar que
“a tarefa do planejamento é contribuir para o processo de reprodução social e, ao fazê-lo, o
planejador adquire poderes em face da produção, manutenção e gestão do ambiente
construído que lhe permitem intervir no sentido de manter e criar condições para um
‘crescimento equilibrado’ e conter conflitos civis e disputas partidárias por meio de
repressão, cooptação ou integração”.13
No mesmo sentido, na definição de Castells, a planificação urbana é a
“intervenção do político sobre a articulação específica das diferentes instâncias de uma
formação social no âmago de uma unidade coletiva de reprodução da força de trabalho, com
a finalidade de assegurar sua reprodução ampliada, de regular as contradições não
antagônicas, assegurando assim os interesses da classe social no conjunto da formação
12 Precedidas das importantes publicações do filósofo francês Henri Lefebvre, como O direito à cidade e A
revolução urbana, nos anos 1970 foram publicadas “duas obras seminais” (Souza, 2003, p. 25), que marcaram
esse pensamento crítico de inspiração marxista: A questão urbana, de Manuel Castells, que já conta 22 edições
em 7 línguas, e A justiça social e a cidade, de David Harvey. 
13 Harvey, 1985, p. 175 e 176, apud Souza, 2002, p. 27 (livre tradução).
24
social e a reorganização do sistema urbano, de modo a garantir a reprodução estrutural do
modo de produção dominante” (Castells, 2000, p. 376-377). 
Desse ponto de vista, o planejamento urbano posto em prática no Brasil — já na
“cidade do populismo”, mas especialmente na fase “desenvolvimentista” pós-1964, que se
valia dos chamados Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado — passou a ser percebido
como expressão de um modelo tecnocrático, porque apoiado “em um saber técnico”, usado
politicamente para responder “aos interesses burgueses das classes dominantes na instituição
da sociedade do trabalho” (Silva, A. A., p. 10).
Ainda na expressão de Ana Amélia da Silva (op. cit., p. 10):
“Nos anos 60/70, os Planos Diretores acentuaram seus aspectos tecnocráticos e
autoritários acirrando os problemas de desigualdades sociais no espaço das cidades e
tornando-se avessos à perspectiva de participação popular nos destinos das cidades, pois,
com raras exceções, apareciam compromissados com ‘os interesses econômicos através de
instrumentos como cooptação, lobby, ou outras formas de pressão utilizadas pelos que
conseguiam ter acesso à mesa centralizada de decisões.”14 
Para a corrente de opinião que se articulava em torno da proposta de reforma urbana,
diferentemente do que afirmavam, e, em certa medida, ainda afirmam, profissionais e
pesquisadores mais vinculados ao modelo tecnocrático15, os problemas urbanos brasileiros não
decorrem da “falta de planejamento” ou do desrespeito às suas diretrizes e determinações, mas
do exato contrário: de uma atitude planejadora que teria propiciado os meios instrumentais,
técnicos e legislativos, para a reprodução, no espaço da cidade, dos elementos de
discriminação social, no sentido do acesso diferenciado aos bens e serviços urbanos. Em
outras palavras:
“O planejamento — principalmente por meio de Planos Diretores e de
zoneamentos — estabelece uma cidade virtual, que não se relaciona com as condições reais
de produção da cidade pelo mercado, ignorando que a maior parte da população tem
baixíssima renda e nula capacidade de investimento numa mercadoria cara: o espaço
construído. O planejamento urbano, e sobretudo o zoneamento, define padrões de ocupação
14
 Nessa passagem, ao lado de trazer à tona a expectativa da “participação popular” como núcleo do ideário da
reforma urbana, Ana Amélia adota análise de Raquel Rolnik (em Planejamento, cidade e cidadania, 1990,
mimeo.) e, de maneira ainda mais explícita, espelha a comentada abordagem de Castells e Harvey. 
15
 Ver, a respeito, dissertação de mestrado de Diana Meirelles da Motta (1998), que se dedica a identificar as
“principais deficiências institucionais e legais [com vistas a melhorar] a eficácia do planejamento e da gestão do
uso do solo urbano”. Deve-se observar, contudo, que importantes trabalhos recentemente publicados pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no campo da pesquisa urbana, como a Série “Caracterização e
Tendências da Rede Urbana do Brasil”, que avaliam instrumentos de planejamento e gestão do uso do solo
urbano em nove aglomerações urbanas (Belém, Natal, Recife, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas,
Curitiba e Porto Alegre), ainda que conservem a abordagem de viés tecnocrático de que a “desarticulação entre
os instrumentos (...) contribui para a ineficiência de cada um deles e do conjunto”, passaram a admitir a hipótese
de que “a ação pública na regulação do parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, restrita ao âmbito de uma
parcela minoritária da população (...), pode contribuir para a escassez de terra urbana acessível (...) para a
população pobre” (IPEA et al., 2002, p. 25, grifo nosso).
25
do solo baseados nas práticas e lógicas de investimento de classe média e de alta renda e
destina o território urbano para esses mercados. (...) Dessa forma, os zoneamentos acabam
por definir uma oferta potencial de espaço construído para os setores de classe média e alta
muito superior a sua dimensão, ao mesmo tempo em que geram uma enorme escassez de
localização para os mercados de baixa renda, já que praticamente ignora sua existência.”
(Rolnik, Saule et al., 2002, p. 25). 
A inconformidade com esse quadro de apropriação desigual do capital socialmente
produzido nas cidades ensejou o conjunto dos princípios e proposições que, ao longo do
tempo, vêm conformando os conceitos de “reforma urbana” e de “direito à cidade”. Entidades
populares, instituições religiosas, grupos políticos e associações profissionais passaram a se
articular em torno do objetivo de democratizar o território urbano, em contraposição aos
modelos de segregação prevalecentes nas cidades brasileiras. Nos termos da Carta de
Princípios do II Fórum Nacional de Reforma Urbana, realizado em 1989, as seguintes
premissas fundamentaram essa proposta:
“a) A função social da propriedade e da cidade, entendida como o uso socialmente
justo e ecologicamente equilibrado do espaço urbano;
b) O direito à cidadania, entendido em sua dimensão política de participação
ampla dos habitantes das cidades na condução de seus destinos, assim como o direito de
acesso às condições de vida urbana digna e ao usufruto de um espaço culturalmente rico e
diversificado.” 
Ainda no marco divisório entre o planejamento fundado no saber técnico e a gestão
urbana participativa, vários autores, como Miguel Baldez, Luiz Cesar Queiroz Ribeiro e
Raquel Rolnik, alertam para a necessidade de que não sejam confundidas as expressões
“reforma urbana” e “desenvolvimento urbano”. Ribeiro, por exemplo, afirma que
“o termo desenvolvimento urbano, tão usual entre nós, integra e veicula uma visão
ideológica que tecnifica a discussão sobre a nossa realidade urbana. Neste sentido, a
expressão reforma urbana pretende retirar a cidade das prisões ideológicas do discurso
competente(...) que, a partir dos anos 60 [do século XX], com o planejamento urbano como
um complexo aparato governamental, objetivava traduzir na cidade a ideologia do
desenvolvimentismo” (apud Silva, A. A., op. cit., p. 11). 
No âmbito da reforma urbana, “a noção de igualdade se amplia e não se reduz apenas
à demanda de igualdade perante a lei” (Silva, A. A., op. cit., p. 11) e de acesso democrático
aos bens e serviços urbanos, mas se expressa ainda na formulação legal do direito de
participação política, abrangendo, mais que a escolha dos governantes, a formulação das
políticas públicas e a própria gestão das cidades. Trata-se não mais de governar para as
pessoas, mas de administrar com as pessoas, no passo do que, por exemplo, percebeu Hannah
Arendt16, ao afirmar que “o debate público existe para lidar com aquelas coisas de interesse
16 Citada por Celso Lafer na Introdução à 1a edição brasileira da obra A condição humana. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1981.
26
coletivo que não são suscetíveis de serem regidas pelos rigores da cognição e que não se
subordinam, por isso mesmo, ao despotismo do caminho de mão única de uma só verdade”.
Atuante em dois pólos, o primeiro no âmbito do território físico e político das
cidades e o segundo no contexto da proposição de normas jurídicas especiais (Ribeiro, A. C.
T., 1993), o movimento político que se formava em torno da reforma urbana não propunha a
substituição do modo de produção capitalista por um projeto socialista17, mas a articulação de
uma luta pela participação na formulação e na implementação das políticas públicas e pela
distribuição mais eqüitativa dos bens e serviços produzidos coletivamente nas cidades, ainda
que nos marcos do regime de mercado.
Alguns partícipes da avaliação crítica do processo de urbanização nas sociedades
capitalistas — análise que fundamenta a proposta da reforma urbana — são céticos em relação
ao conteúdo propositivo do ideário “reformista”. Para esse segmento de opinião, “a luta por
uma nova cidade — igualitária — não pode ser dissociada da luta por uma sociedade
igualitária, livre da exploração de classe, das relações de produção e de propriedade e do
Estado capitalista” (Cariello Filho, 1999, p. 151). Para outros, contudo, a crítica ao
planejamento, ao contrário de conduzir à rejeição da idéia de uma ação política
transformadora nos limites da ordem econômica capitalista, deve ser traduzida por uma nova
atitude em relação a esse processo. Marcelo Lopes de Souza (2002, p. 28), por exemplo, ao
admitir “que a crítica marxista contra o planejamento usualmente conduzido nos marcos de
uma sociedade capitalista é, em si mesma, importante e reveladora”, questiona:
“Por que dever-se-ia presumir que toda atividade de planejamento precisa
enquadrar-se nos moldes descritos e condenados por essa crítica? Não se trata (...) apenas
de aventar a hipótese de uma eventual sociedade pós-revolucionária e pós-capitalista, na
qual, com a mais absoluta certeza, também existiria algum tipo de planejamento. Trata-se,
antes, partindo-se da premissa de que as sociedades capitalistas são contraditórias e não
monolíticas (negar isso equivaleria a abdicar do pensamento dialético e mesmo a negar a
possibilidade de uma mudança substancial a partir do interior da própria sociedade), de
indagar: por que dever-se-ia excluir, a priori, a possibilidade de um planejamento que,
mesmo operando nos marcos de uma sociedade injusta, contribua, material e político-
pedagogicamente, para a superação da injustiça social” (Souza, op. cit., p. 28-29). 
Parece ser esse o paradigma da reforma urbana. Nem as intervenções autoritárias, de
natureza estética, que marcaram o urbanismo higienista do início do século XX, nem o
desenvolvimentismo urbano-tecnocrático, caracterizado por normas elitistas de controle do
17 Ver, como exemplo de explicitação desse princípio, documento levado pelo IAB em 2003 à Conferência
Nacional das Cidades, em que se afirma: “É preciso lembrar o marco histórico, econômico e institucional onde se
situam tais propostas [de direito à Cidade Habitável, à Moradia e ao Crédito]: (...) a Nação pelo voto, e em
conseqüência o aparelho estatal brasileiro, pretendem viver um Governo Popular e Democrático com ampla
participação e discussão; vivemos num regime econômico capitalista; os direitos do consumidor, novos entre
nós, ainda não foram incorporados aos usuários e mutuários da moradia e da cidade” (grifos nossos). 
27
uso e ocupação do solo — ambas de natureza socialmente excludente —, mas um “conjunto
articulado de políticas públicas, de caráter redistributivista e universalista, voltado para o
atendimento do seguinte objetivo primário: reduzir os níveis de injustiça social no meio
urbano e promover uma maior democratização do planejamento e da gestão das cidades”
(Souza, op. cit., p. 158).
Ou, nas definições, agora como normas legais do Estatuto da Cidade, de que o
“direito a cidades sustentáveis” deve ser compreendido como o “direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (art. 2º, I) e que a
“gestão democrática” deve ocorrer por meio da “participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (art. 2º, II).
1.2 Função social da propriedade
1.2.1 Contexto histórico do direito de propriedade
Ainda que sem cometer a descabida ousadia de buscar percorrer o vasto campo
doutrinário relativo ao seu conteúdo, não é possível, para os objetivos deste trabalho,
desconhecer as raízes e a evolução da noção de “direito de propriedade” e, sobretudo, do
conceito de “função social da propriedade”, que, a par de constituir um dos princípios
constitucionais da própria ordem econômica no Brasil (CF, art.170, III), integra os
fundamentos em que se ancoram tanto as propostas da reforma urbana quanto o próprio
Estatuto da Cidade. 
Para Edésio Fernandes, a própria efetividade do Estatuto da Cidade depende da
compreensão do significado e alcance da concepção, dada pela Constituição Federal e
consolidada na nova lei, da função social da propriedade e da cidade:
“Trata-se de princípio que vem sendo nominalmente repetido por todas as
constituições brasileiras desde a de 1934, mas que somente na de 1988 encontrou uma
fórmula consistente, que pode ser assim sintetizada: o direito de propriedade imobiliária
urbana é assegurado desde que cumprida sua função social, que por sua vez é aquela
determinada pela legislação urbanística, sobretudo no contexto municipal. (...) Rompendo
de vez com a tradição civilista e com a concepção individualista do direito de propriedade
imobiliária, que têm orientado grande parte da doutrina jurídica e das interpretações dos
tribunais ao longo do processo de urbanização intensiva, e culminando assim um processo
de reforma jurídica que começou na década de 1930, o que a Constituição de 1988 e o
Estatuto da Cidade propõem é uma mudança do paradigma conceitual de reconhecimento e
interpretação desse direito” (Fernandes, E., 2002a, p. 8-9). 
28
 
Para compreender melhor essa assertiva, que contém relevante cunho pedagógico, é
preciso situar o direito de propriedade, ainda que sumariamente, em seu contexto histórico. 
Segundo Darcy Bessone18, a propriedade é “um dos primeiros instintos do homem e
dos seres em geral que,num primeiro momento, levados por necessidades biológicas,
buscaram apropriar-se de coisas que lhes garantissem a subsistência”. Nesse sentido, ao
decorrer da necessidade social de suprimento de bens, o direito de propriedade “não é um
direito natural”. 
No entanto, “na análise da linha evolutiva do conceito de propriedade, fica claro que
a tendência verificada foi a da passagem da propriedade coletiva para a individual, até se
chegar, hoje, a um redirecionamento para sua origem primitiva, no que diz respeito à
utilização voltada para o interesse da coletividade, em atendimento a uma função social”
(Mattos, 2003, p. 23).
Fustel de Coulanges ([1864] 2002, p. 65-67) afirma que, ao contrário das populações
da Grécia e da Itália, que “desde a mais remota antigüidade sempre reconheceram e
praticaram a propriedade privada”, muitos povos primitivos nunca admitiram a propriedade
individual e outros “só com o tempo e muito penosamente a admitiram”. Os tártaros e os
germanos, por exemplo, reconheciam a propriedade quanto aos rebanhos, mas nunca em
relação à terra. Já entre os gregos ocorria o oposto. Em algumas cidades da Grécia Antiga, os
frutos das colheitas eram de propriedade comum. Assim, “o indivíduo não era dono do trigo
por ele colhido, mas, por notável contradição, era proprietário absoluto do solo”. 
Coulanges destaca ainda que, entre os gregos, a idéia de propriedade privada estava
implícita na religião. O lar devia assentar-se sobre a terra; “uma vez construído, nunca mais
deveria mudar de lugar”. O deus da família ali se instala enquanto “dela restar alguém que
conserve a chama do sacrifício”. Assim, a família fixa-se ao solo, “agrupada em volta de seu
altar”. Daí porque, segundo Coulanges, não foram as leis, mas a religião que primeiramente
garantiu o direito de propriedade, pois cada domínio estava sob a proteção das divindades que,
em cada lar, velavam por ele. 
Na síntese de Liana Portilho Mattos (2003), podemos perceber como a noção do
direito de propriedade foi gradativamente se conformando desde a Roma Antiga; ao perpassar
o período feudal; no âmbito da Revolução Francesa; e, finalmente, como se configurou no
Estado socialista e no Estado democrático de direito.
18 Bessone, 1988, apud Mattos, 2003, p. 22.
29
Em Roma, embora a percepção do direito de propriedade tivesse percorrido distintas
conotações ao longo do tempo, quais sejam, a propriedade coletiva, a propriedade familial e a
propriedade individual, “essa última é que prevalecerá por mais tempo, tornando-se
paradigma da noção de direito de propriedade que por tanto tempo vigorou no Ocidente”
(Mattos, op. cit., p. 26). 
Na concepção romana, a propriedade era o cerne do direito. Absoluta e
individualista, estava à disposição do proprietário, que a podia utilizar, ou não, em razão de
sua exclusiva conveniência. Daí decorrem os chamados “atributos do domínio”: o jus utendi,
direito de usar o bem para a satisfação de suas necessidades (como edificar uma casa ou
cultivar a terra); o jus fruendi, direito de usar a propriedade para dela extrair frutos e produtos
(como colheitas e rendas); e o jus abutenti, direito irrestrito de dispor das coisas, inclusive
para destruí-las!
Entretanto, à medida que a complexidade das relações sociais se ampliava, esse
caráter absoluto e individualista do direito de propriedade “foi sendo gradativamente
atenuado, na perspectiva da proteção dos danos, não à coletividade, mas a outro indivíduo —
geralmente, proprietário” (Mattos, op. cit., p. 27). Sem perder seu traço marcadamente
individualista, o direito de propriedade romano passou a sofrer pequenas limitações,
referentes, por exemplo, a normas de vizinhança e ao recuo para as edificações relativamente
às vias públicas, normas que, em grande medida, inspirariam o direito brasileiro.
No período feudal, quando os proprietários de terras, atemorizados diante do risco
crescente de invasões, causadas, por sua vez, por profunda desigualdade social, submeteram
seus domínios aos soberanos em troca de proteção, o direito de propriedade cindiu-se em dois.
“As terras passaram para o domínio do soberano — o que se chamou de domínio eminente —
e a sua utilização — domínio útil — foi garantida aos antes proprietários, que passaram a
feudatários” (Mattos, op. cit., p. 28). 
O direito ocidental foi também amplamente influenciado por esse período. Institutos
como a enfiteuse (direito real fixado em contrato pelo qual o proprietário transfere a outrem o
domínio útil de um imóvel mediante pagamento de foro anual) ainda remanescem entre nós.19 
Ainda na Idade Média, deve-se ressaltar a influência do cristianismo, sobretudo no
âmbito das doutrinas filosóficas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que, ao
retomarem a discussão dos temas filosóficos da Antigüidade, trataram do direito de
propriedade. Conforme Liana Mattos (op. cit., p. 29-30), “o cerne dessa visão cristã de
19 Segundo Liana Mattos (2003), Clóvis Beviláqua, na obra O direito das coisas (Rio de Janeiro: Forense, 1956,
p. 104), considera as capitanias hereditárias no Brasil colonial como “categorias tipicamente dotadas de feição
feudal, por terem aproveitado em grande medida a forma de desdobramento do domínio”.
30
propriedade assentava-se na convicção de que a propriedade da terra era um meio injusto de
poder”. Para essa autora, São Tomás de Aquino, em sua Summa Theologica, condenava o
caráter individualista da propriedade, legado do Império Romano, e, embora não professasse a
noção de “coletivização” da propriedade, a doutrina tomista “defendia a idéia de uma
propriedade individual que atendesse aos interesses coletivos”, conceito embrionário do que,
séculos depois, consubstanciaria o princípio da função social da propriedade. 
Ainda no século XVIII, mais de trinta anos antes da eclosão da Revolução Francesa,
Jean-Jacques Rousseau (1989, p. 84) definia a importância da terra como fator de injustiça
social: 
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, e
encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao
gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado a
seus semelhantes: ‘Fugi às palavras desse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os
frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém.”20
 
No entanto, a crescente concentração de poder e propriedade nas mãos do soberano e
uma estrutura social marcada por privilégios e opressão, características do Estado absolutista,
alimentadas pela insatisfação burguesa, “dos detentores de riqueza que tinham posses, mas
não tinham poder”, fizeram com que, diferentemente da idéia de despersonalização da
propriedade da terra que Rousseau professara, “a propriedade se tornasse uma questão central
entre os anseios revolucionários” (Mattos, op. cit., p. 30-31). 
Nesse sentido, o ideário iluminista de “liberdade, igualdade e fraternidade”, ao
consagrar o direito à propriedade privada como conquista civil que se contrapunha ao
absolutismo do Estado monárquico, intensificou seu conteúdo individualista. Na expressão de
Carlos Frederico Marés (2003, p. 18), o Estado moderno, fruto da Revolução Francesa,
exacerbava a propriedade como uma espécie de estuário de seus outros atributos constitutivos:
“a função do Estado (...) era garantir a propriedade, que necessita da liberdade e igualdade
para existir. Só homens livres podem ser proprietários (...) porque faz parte da idéia da
propriedade