Logo Passei Direto
Buscar

Envelhecer Com Sabedoria

User badge image

Enviado por josivaldoeokara Bezerra em

páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

Sonia Bufarah Tommasi
Graciela Ormezzano
(orgs.)
 
ENVELHECER COM
SABEDORIA
 
 
www.paulinas.org.br
editora@paulinas.com.br
http://www.paulinas.org.br/
mailto:editora%40paulinas.com.br?subject=contato
A
Prefácio
 
 
 
questão do envelhecer com sabedoria, proposta já no título da obra
organizada pelas doutoras Sonia Bufarah Tommasi e Graciela
Ormezzano, está ligada direta ou indiretamente a visões paradigmáticas
sobre o ser humano e o seu processo de envelhecer. Embora seja algo já
considerado ao longo do pensamento ocidental, esse tema é relevante. Ele
se faz pertinente à sua reapresentação para a discussão dentro de uma
sociedade local-global que vive esse problema ainda de forma bastante
despreparada e preconceituosa.
Esta problemática remete a grandes questionamentos nos dias atuais:
como envelhecer com sabedoria diante de estruturas e relações sociais,
familiares, cada vez mais superficiais, provisórias, competitivas e
agressivas? Como despertar para um envelhecer saudável e sábio, quando o
ser humano vive a ameaça de sua identidade e de sua dignidade por
situações cotidianas marcadas pela falta de respeito e de autenticidade na
relação Eu-Outro? Serão estes questionamentos legítimos? Ou esta
percepção sobre o cotidiano está desfocada?
Ao refletir sobre esta ideia, entendeu-se que o convite para escrever este
prefácio era deveras provocador e complexo. Primeiro, porque demandaria
ter um profundo conhecimento sobre o tema, de acordo com os processos
do entendimento humano sobre o conhecimento do seu envelhecer;
segundo, porque esse assunto atravessa várias áreas do saber filosófico e
científico e aí se forja uma complexidade, nada tão simples de adentrar
devido à variação de conceitos e paradigmas. No entanto, com o espírito
livre e criativo, percebeu-se que, com humildade científica, se poderia
contribuir com esta obra, pois ela em si não tem a pretensão de trazer
verdades fechadas e prontas. Com efeito, esse foi um acento forte nas falas
que perpassam o texto.
Os seus diversos autores, nos seus discursos, dentro de diferentes
abordagens e variantes temáticas sobre o objeto central, buscam apresentar
uma reflexão sobre o envelhecer, como um processo criativo de tomada de
consciência de vários aspectos que podem envolver o desenvolvimento do
ser humano no mundo.
Para mostrar essa ideia, a obra, na sua estrutura organizativa, apresenta
vários subtemas correlatos à questão do envelhecer com sabedoria,
discutindo sobre a importância da ternura e a velhice; sobre o cuidado
gerontológico, com base na arteterapia como um processo terapêutico de
ajuda às crises e sofrimentos; sobre a interferência da tecnologia para a
interação no ciberespaço e a comunicação nos relacionamentos; sobre a
memória histórica como determinante para o envelhecer; sobre a arte de
Picasso como possibilidade de autorreflexão a respeito do envelhecer. E por
último resgata a ideia do primeiro capítulo, que trata sobre os mitos e os
arquétipos constitutivos da psique humana como expressões legítimas que
abrem caminhos para que o ser humano possa fazer o seu percurso de
envelhecimento com sabedoria.
Estes subtemas que constituem a obra vêm, de uma forma ou outra, nas
suas construções textuais, implícita ou explicitamente, tocando uma
concepção de ser humano, que na sua estrutura e organização vive o
envelhecer biológico, psicológico e sociocultural, e este lhe traz desafios os
mais diversos.
Sem ter a pretensão de alongar o discurso, pois aqui não se trata disso,
contextualiza-se o mundo da ciência nas visões sobre o fenômeno do
envelhecer. Esse fenômeno habita e perpassa uma sociedade contemporânea
complexa e dinamizada pela criatividade da vida. Esta se manifesta nos
diferentes olhares, saberes e seres, que se criam e se recriam, buscando
defender e elevar a vida pela sabedoria como última instância da
racionalidade subjetivo-objetiva, que caracteriza o pensar e o agir humano.
A psicoesfera humana, contemporânea, vive uma crise na sua saúde e no
reconhecimento autêntico do natural processo do envelhecer. Ser idoso é,
muitas vezes, sentir a discriminação, o enfrentamento com olhares que
excluem a pessoa como alguém ultrapassado, que já não serve mais para
produzir, que não tem conhecimento sobre os modismos da atualidade;
logo, é alguém que pode ser descartado de várias relações e momentos
sociais. Embora vários avanços já tenham ocorrido no sentido de respeitar a
pessoa idosa nas suas necessidades e ações, ainda se têm preconceitos
quanto à sexualidade, estética, política, economia etc.
Esta obra tem a sua beleza e importância justamente por tocar um tema de
alta relevância social, política, cultural e psicológica. Falar do envelhecer
com sabedoria aponta para uma visão de ser humano integral, holística,
inclusiva, de amorosidade e ternura.
O mundo globalizado, nas suas políticas públicas educacionais e culturais,
necessita urgentemente acolher o ser humano como pessoa única, criativa,
que grita por respeito ao seu ser e ao verdadeiro espaço social que lhe é
devido. A pessoa humana tem em si o valor da vida. Ela conclama cuidado
e oportunidade digna para viver um envelhecer com sabedoria e respeito à
vida, que se manifesta de forma ímpar em cada um e, por suposto, traz um
sentido para o mundo elevar-se humanitariamente na sua psicoecoesfera. Os
seres vivos, o humano especialmente, já não aguentam mais a dor da
exclusão, do desrespeito, da expropriação, do desamparo e do grito de
abandono, miséria e morte.
Quando o ser humano constrói relações autoritárias e discriminadoras,
essas eliminam a possibilidade de vivências autênticas e de respeito entre
um Eu e um Outro. A resultante disso aparece na existência fragilizada pela
provisoriedade do saber e do ser no conviver. Diante das profundas
mudanças que estão ocorrendo nos padrões culturais da saúde e da cultura,
é preciso pensar a longevidade. Cada vez mais ela se expande, trazendo
novos desafios psicossociais sobre o processo do envelhecimento.
Essas mudanças, nas práticas político-sociais, demandam elaborar e
oportunizar espaços para novas maneiras de ser, saber, agir e conviver.
Parece que os conceitos obsoletos da “impotência da velhice” já se
enfraquecem nas suas estruturas epistemológicas e vivências sociais. Isso
causa impacto nas práticas e na formação humana, no sentido mesmo de se
preparar para vivenciar envelhecer com sabedoria. Ou seja, compartilhar
responsavelmente um processo natural-relacional de amadurecimento em
que se encontra beleza, encantamento, amorosidade, autenticidade nas
pequenas e grandes relações e coisas.
Essa ideia implica aquele processo ecoformativo em que o ser humano
determina o sentido de seu viver na vivência criativa do fluxo da própria
vida, que perpassa o seu ser como um corpo-criante, que está em constante
processo de transformação na relação consigo mesmo, com o outro, com o
mundo e com Deus.
Nesse fervilhar de perplexidades, envelhecer com sabedoria demanda
saber conviver com situações em que o horizonte da vida aparece no
sentimento de finitude e infinitude, de segurança e insegurança, de
tolerância e intolerância, de amor e desamor, de paz e violência, de vida e
morte, de abundância e miséria, de saúde e doença, de inclusão e exclusão e
assim por diante.
A pergunta que se faz é a seguinte: Estará o ser humano contemporâneo,
dentro da formação educacional que forma para a competitividade,
preparado para envelhecer com sabedoria? Maturana, na sua teoria sobre a
autopoiese do ser vivo, mostra que o desenvolvimento do espírito de
competição é excludente e aniquilador. Pois, na relação social, educacional
entre um Eu e um Outro, não ocorre o reconhecimento autêntico, respeitoso
e amoroso do valor da pessoa. Na maioria das vezes, o que acontecerá é o
suprimento de necessidades de um eu em detrimento de um outro, e isto é
negação, exclusão e desrespeito à vida que se manifesta como processo
criativo, espiritual, em tudo e em todos e tem razão de ser em si mesma.
Com base nesse raciocínio se pergunta:e
longevo. A labilidade das mudanças, o ritmo acelerado dos acontecimentos,
a facilidade dos rompimentos, a predominância da existência sobre
orientações absolutas, a ética relativista, a saliência do indivíduo nas
instituições, a guinada linguística, revelando a força das falas coletivas e
provisórias, a vulgarização e exaltação da sexualidade, transformaram o
casamento longevo em uma realidade pouco considerada. Quando desejado,
porém, muitas vezes a rotina, a incapacidade criativa e as mediações
empobrecedoras fazem com que as relações do casamento longevo se
mostrem pouco interessantes, senão, apenas suportáveis e/ou violentas.
Especialmente nessa etapa, embora também seja característico a outras
fases da vida, a sexualidade humana torna-se bem mais reativa à
afetividade, entendida no presente texto como o cultivo à ternura nas
relações conjugais. Para Norgren et al. (2004), a intimidade no
relacionamento conjugal longevo está diretamente associada à saúde física e
mental e à qualidade de vida dos indivíduos, embora se considere que o fato
de um casamento durar até a velhice não implique, necessariamente, ser
uma relação satisfatória para os cônjuges.
Por outro lado, deve-se levar em conta que nem todas as pessoas que
vivem maritalmente parecem estar sexualmente satisfeitas. Alie-se a isso o
fato de a maior prevalência de problemas psicossexuais da terceira idade
não ter origem biológica, mas decorrerem, principalmente, de fatores
ligados ao parceiro, tais como falta de ternura e empatia. Assim, quando a
relação afetiva do casal é satisfatória, a frequência das relações permanece
estável, diminuindo significativamente a ocorrência da disfunção sexual em
qualquer idade (VASCONCELLOS et al., 2004). Independentemente da
idade dos cônjuges, uma das maiores tragédias da vida de casado é que
muitos maridos e mulheres, mesmo depois de vários anos de vida comum,
ainda se encontrem em um nível de comunicação que reflita relações
meramente convencionais (DEECKEN, 1998), prejudicando a satisfação
conjugal.
Satisfação conjugal é, sem dúvida, um conceito subjetivo, implicando ter suas próprias
necessidades e desejos satisfeitos, assim como corresponder, em maior ou menor escala, ao que o
outro espera, definindo um dar e receber recíproco e espontâneo. Relaciona-se com sensações e
sentimentos de bem-estar, contentamento, companheirismo, afeição e segurança, fatores que
propiciam intimidade no relacionamento, decorrendo da congruência entre expectativas e
aspirações que os cônjuges têm, em comparação à realidade vivenciada no casamento
(NORGREN et al., 2004, p. 576).
A conjugalidade como meio de felicidade possui certas condições de
funcionamento independentemente da heterogeneidade das formas de
realizar a união e as cumplicidades. A complementaridade é, sem dúvida,
uma categoria fundamental, e pode ser em termos sexuais, intelectuais,
temperamentais, afetivos, sociais, estéticos. De alguma forma, o casal, em
sua reciprocidade, avalia o grau de seu bem-estar pelos resultados mais ou
menos permanentes dos benefícios biopsicossociais, bem como a
qualificação sobre as relações praticadas na conjugalidade ou fora dela. É
possível, então, dizer que a complementaridade pode ser avaliada pelo
poder que possui no desenvolvimento proximal. A solidão seria seu inverso.
O casamento é capaz de explicitar os potenciais que cada um dos
parceiros sozinho não teria condições de desenvolver. O casamento bem
construído e com base em projetos significativos pode produzir efeitos
positivos na construção da personalidade. Cada um dos parceiros possui, é
verdade, a sua identidade, mas o sentido da complementaridade faz com
que a conjugalidade seja um meio de apoio e de reinvenção que a solidão
não poderia produzir.
Uma visão otimista e humana é proposta por Norgren et al. (2004), no
sentido de resgatar o valor das relações conjugais da terceira idade.
As relações duradouras e satisfatórias permitem que o sistema conjugal se torne um refúgio em
relação aos estressores externos, bem como a matriz para o contato com os outros sistemas
sociais, o que é bastante relevante ante à longevidade crescente da população idosa. Desse modo,
a relação conjugal pode se transformar em fonte de crescimento e aprendizagem, se houver
espaço para as diferenças e trocas pessoais (p. 576).
A desqualificação social da velhice e, sobretudo, do casal longevo e de
suas possibilidades de manifestação sexual, muitas vezes, perturba a
estabilidade socioemocional ou conduz ao desgaste do casal. Bursztyn
(apud OLIVEIRA, 2002) aponta para o processo de violência social mais
ou menos encoberta, através da elaboração de um discurso ideológico da
desqualificação. Grupos humanos, de diversas maneiras, padecem da
influência perniciosa de um discurso socialmente gerado, o qual acaba por
inseri-los numa formatação pouco adequada ao desenvolvimento
satisfatório. Os membros desses grupos passam a assumir as formas
impostas do discurso, e a isso se ajustam como se fosse algo natural,
tornando comprometido seu desenvolvimento. O processo do discurso da
desqualificação tem por finalidade desvincular os envolvidos e eliminá-los
de uma inserção social mais interessante. Os casais longevos sofrem, assim,
de diversas maneiras, mas a principal reside em infligir-lhes a incapacidade
de mobilidade social, afetiva e intelectual, desprezando seu potencial de
realização de um casamento denso de realizações.
A família, sendo um dos espaços preferenciais de organização da
personalidade, em razão do pensamento cultural, nem sempre oferece à
díade inspirações e ações capazes de significar e/ou de ressignificar a vida
dos cônjuges. Os casais, por sua vez, presos às linguagens culturais,
assumem os condicionamentos do macro e do mesossistema, ineficazes
para imprimir significado e valor à conjugalidade longeva.
No caso dos idosos e, em especial, em sua conjugalidade longeva, existem
clamores pendentes que expressam a dominação e a exclusão, mostrando
que o seu universo não é cultural e socialmente relevante. O velho que
ensurdece, a boca escondida, o silêncio dos tios e pais em abandono, as
dores escondidas para não incomodar, as falas e olhares pacienciosos
revelam algumas formas pelas quais se inscrevem os costumes de uma ética
escravizante. A velhice, portanto, está inserida numa relação hierarquizada,
onde quem tem o poder da força, do dinheiro, da produção e da política
constrói a gestão das relações sociais, autorizando o ser de alguns a ser mais
que outros. Na verdade, a questão de existir e ser não depende somente do
sentido voluntarista de cada um. As instituições representam as formas
sociais de dizer da constituição humana. Seus conteúdos é que vão dizer do
desenvolvimento e das maneiras de realizar a vida. A vida dos mais velhos e
de sua conjugalidade está perpassada pela autorização e pelas outorgas
constituintes das idades. A personalidade do ser idoso e as formas do afeto
obedecem às inscrições sociais.
Assim, o cotidiano das instituições não pode ser entendido como arranjos
ingênuos, mas como instrumento de reprodução dos interesses
historicamente constituídos. Eles estão inseridos nas dobras das palavras,
dos gestos, dos interditos, dos olhares e, mesmo, das legislações e dos
costumes inscritos no silêncio recorrente.
Os arranjos da velhice dependem dos olhares e significados concedidos.
As representações sociais, portanto, são a fonte primária para entender os
caminhos de superação dos preconceitos e das tipificações aprisionantes em
que são detidas a personalidade e a existência dos mais velhos. O cotidiano
busca orientar o corpo e as funções mentais superiores e primárias, isto é,
fundamentalmente, como os mais velhos devem pensar e amar. Diz-lhes
sobre suas habilidades e capacidades, seus sonhos e suas direções.
A família, especialmente, é o lugar onde residem os desejos sociais pelos
quais a sociedade diz das formas como seus membros devem encaminhar os
seus projetos e os passos para seu cumprimento. Dessa maneira, a
conjugalidade é moldadae a díade vai expressando no decurso de seu ciclo
vital os comportamentos esperados. As representações sociais contidas
dentro das famílias sutilmente escalam procedimentos e, quando ainda não
foram organizadas, em razão da novidade de eventos, como no caso do
casamento longevo, ocorrem transferências generalizantes.
Alguns casais, apesar das generalizações de fragilização do casamento e
da velhice, conseguem obter lucro e autoridade para desempenhar sua
existência de forma generosa, porquanto obtêm dos filhos e netos
substancial apoio e, de si mesmos, mediações para a realização de suas
identidades. Outros, porém, conseguem realizar-se, fugindo dos esquemas
tradicionais da composição da díade, ou maximizando os recursos
disponíveis.
De modo especial, em face da conjugalidade, percebe-se que as
conquistas sociais pouco revelam de interessante para o casal longevo. As
construções éticas, com seus costumes, não permitem espaços afirmativos
de identidades felizes, ficando os casais à mercê de sua própria sorte. Aí
ficam como se já tivessem esgotado a sorte conjugal e a sorte humana. É
nesse sentido que se propõe uma renovação dos estoques culturais para a
melhoria das condições e situações de vida para os idosos em sua
conjugalidade, que Restrepo (2000) chama de direito à ternura.
Estamos acostumados a opinar sobre os grandes direitos públicos, aqueles que figuram em
códigos e constituições, fazendo parte dos discursos políticos e promessas eleitorais. Fala-se do
direito ao emprego, da habitação, do direito à educação, ao sufrágio, enfim, de todos aqueles
direitos que podem figurar como reivindicações sociais de transparência inquestionável. Mas
parece suspeito e até ridículo falar daqueles direitos da vida cotidiana que permanecem
confinados à esfera do íntimo, sem que ninguém ouse pronunciar seus nomes nas reuniões em que
se debatem com grandiloquência os problemas políticos da época. A esta categoria de direitos
domésticos, relegados e vergonhosos, pertence o direito à ternura (p. 9).
Dentro desse contexto, insere-se a questão do direito dos mais velhos a
redefinirem o sentido de uma gestão política da conjugalidade,
problematizando as rotinas do cotidiano das famílias. Nesse contexto, a
conjugalidade deixaria de lado as funções sociais normatizadas que levam
ao torpor afetivo, para a reprodução e a produção, e menos para a
descoberta de caminhos alternativos de um casamento existencial
significativo.
Basta lançar um olhar à família para darmos conta do montante de sofrimento que carregamos e
constatar que aquilo que por definição deveria ser um ninho de amor se converte frequentemente
em foco de violência. Basta “farejar” a relação de um casal para perceber os maus-tratos e a dor
que se aninham na convivência diária. Dor e entorpecimento de que ninguém escapa em nossa
cultura, pois, se alguma coisa está democraticamente distribuída na sociedade contemporânea, é o
torpor afetivo (RESTREPO, 2000, p. 20).
O estado de pobreza afetiva ou de analfabetismo emocional,
inegavelmente, é um fator redutor do afeto e da generosidade nas relações
conjugais. O grau de pobreza pode evidenciar o nível de sofrimento nas
relações do casamento longevo com a diminuição da ternura.
O pressuposto básico da conjugalidade é o de entendê-la como uma
instituição também paciente da lei da entropia, necessitando, em face dessa
tendência, de fatores positivos concorrentes para a preservação e o
desenvolvimento ou desqualificação de sua estrutura. Concorrem, para sua
preservação e desenvolvimento ou desqualificação: as condições
biopsicossociais, isto é, aqueles fatores que falam ou contribuem através de
experiências físicas, afetivas, intelectuais e sociais para a significação ou
desestruturação dos parceiros; as situações — aqueles fatores temporais e
geográficos que são expressos por eventos e espaços diversos que podem
condicionar a ambos, porquanto conjuntamente vivenciados, densificando-
se ou não as identidades dos sujeitos interlocutores das condições e das
situações. Se, de fato, as disposições, as condições e as situações foram ou
tornam-se empobrecidas, fragiliza-se a conjugalidade, e podem-se precipitar
rupturas mais ou menos dramáticas e, mesmo, fatais para a sobrevivência da
estrutura do casamento.
As perdas dos atributos sociais qualificadores da vida do casal limitam a
admiração mútua, tornando-se o outro uma espécie de velho desconhecido.
Assim, a perda do papel protetivo e de comportamentos centrados nas ações
socialmente admiradas redunda em minimização do encantamento dentro
da díade.
As dificuldades na conjugalidade parecem se expressar semelhantemente
às limitações de estilos psíquicos de sujeitos que adoecem. Se é verdade que
se pode afirmar que o casal compõe uma pessoa que se funde e, ao mesmo
tempo, delineia as individualidades, também pode ser verdade que essa
pessoa, imaginariamente constituída, igualmente pode adoecer e
comprometer o desenvolvimento dos parceiros. “O surgir da patologia é
considerado um momento crítico na evolução de um grupo que parece
incapaz de usar de recursos num determinado estágio de seu
desenvolvimento” (GROISMAN, 1996, p. 49). Essa ideia pode indicar a
possibilidade de haver um bloqueio no qual os parceiros não apresentam
disponibilidade afetiva, nem compreensão capaz e vontade para sair da
circularidade, ou falta-lhes mediação adequada. A busca de novas opções
para um futuro mais denso de significados para ambos necessita de
mediações, pois a visão ecológica do desenvolvimento humano faz
acreditar que os estreitamentos comunicativos parecem constituir o maior
limite na superação das patologias da conjugalidade.
O olhar sobre as perspectivas da conjugalidade longeva passa pela
problematização de algumas questões que regularmente são vistas como
normais ou naturais, mas poderiam ser diferentes se avaliadas pelo olhar da
institucionalização dos eventos. Isso significa que, pela construção social
dos eventos e das representações, são definidos ontologicamente os seres e
as instituições. Assim, a problematização qualificar-se-ia pelo
questionamento de alguns conceitos de casamento.
O conceito sobre o casamento não foge às promulgações históricas e
culturais, muitas vezes apresentando constrangimentos humanos. As
perspectivas de um casamento obrigatoriamente indissolúvel, marcado pela
crença de que a díade realiza uma união feliz para sempre ou que o amor
deve vencer qualquer barreira, podem não ser positivas. A reflexão que se
pretende não é negar a magia do sonho dos nubentes nem afastar as bênçãos
sagradas, mas avaliar a possibilidade de que o cotidiano, com suas
circunstâncias, e as pessoas, com seus potenciais e renovação de
influências, podem cumprir melhor a história da conjugalidade.
Se não houver atenção constante aos objetivos que movem a
conjugalidade, é possível que haja esvaziamento da identidade dos
parceiros. A identidade existencial da díade alimenta-se pela reciprocidade
de interesses, mas pode, com o tempo, cada um localizar-se em si mesmo,
perdendo a conjugalidade seu desempenho e significado.
O par inicial lembra fusão, apaixonamento, e sua imagem revela pouco espaço para a
individualidade e um espaço imenso para a conjugalidade. “Nós” torna-se, assim, muito maior
que o “eu” e o “tu” (ANTON, 2002, p. 58).
Em defesa da ternura no casamento longevo:
intervenções possíveis
Ao contrário do que se pensa, o casamento pode, também, tomar um rumo
diferente na idade avançada. Para Deecken (1998), a reflexão benéfica
nessa etapa da vida poderia abrir novas possibilidades em direção de um
amor mais profundo e mais íntimo, com base na comunicação e no
desenvolvimento interpessoal de maneira plena na conjugalidade.
A capacidade de renovação dos estoques reguladores de ternura não
depende somente do potencial dos indivíduos ou das díades. As relações
sociais e sua forma de interagir com as pessoas de um grupo social
determinam fortemente os potenciais de desenvolvimento, sendo por elas
modulados os impactos. Assim como afirma Vigotsky (1993),ao mesmo
tempo que existem as possibilidades de mediações simbólicas para o
desenvolvimento cognitivo, também pode haver mediações para aquisição
de novas formas de arranjos afetivos. Simplificando, é possível afirmar que
ao menos duas formas podem ser constituídas e constituidoras de novos
arranjos afetivos. Quando os indivíduos, a díade ou os grupos não
conseguem expressar adequadamente a forma estética de ser em conjunto,
há tanto a probabilidade de intervir para corrigir a trajetória da expressão
afetiva quanto a de provocar com novos estímulos para alterar
positivamente o estado afetivo. Ambas as maneiras podem ser levadas a
efeito de maneira autoritária ou democrática, sendo as formas autônomas
sempre mais positivas que as heterônomas na constituição de atitudes.
Piaget (1996) enfatiza isso de maneira convincente.
Em primeiro lugar, há o respeito que chamaremos unilateral, porque ele implica uma desigualdade
entre aquele que respeita e aquele que é respeitado: é o respeito do pequeno pelo grande, da
criança pelo adulto, do caçula pelo irmão mais velho. Este respeito, o único em que normalmente
se pensa e no qual Bovet tem insistido muito especialmente, implica uma coação inevitável do
superior sobre o inferior; é, pois, característico de uma primeira forma de relação social, que nós
chamaremos de relação de coação. Mas existe, em segundo lugar, o respeito que podemos
qualificar de mútuo, porque os indivíduos que estão em contato se consideram como iguais e se
respeitam reciprocamente. Este respeito não implica, assim, nenhuma coação e caracteriza um
segundo tipo de relação social, que nós chamaremos de relação de cooperação (pp. 4-5).
Significa, assim, que para terem efeitos duradouros e recíprocos, as
interferências não podem ser realizadas sem uma ativa participação dos
indivíduos ou dos parceiros envolvidos. As intercessões conscientemente
assumidas pelo indivíduo ou pela díade podem, portanto, modificar
positivamente a trajetória das relações afetivas. Nesse sentido, a
manutenção do amor e do matrimônio em casais longevos pode representar
uma efetiva estratégia de intervenção em prol do prolongamento da vida
autônoma, bem como da transformação da imagem negativa da velhice. O
casamento longevo, desde que baseado em uma relação de apoio mútuo e
felicidade, pode implicar efeitos favoráveis à saúde física e mental dos
idosos, contribuindo para a manutenção do seu bem-estar e qualidade de
vida (VERA; DÍAZ, 2006).
Daí vem a questão do que fazer. Uma das possibilidades é o casal realizar
uma terapia conjugal para arejar a relação que está em processo de
deterioração. Outra alternativa mais simples reside no fato de a díade buscar
por conta própria os meios para criar situações e condições de maior
plenificação da conjugalidade. A terceira possibilidade, mais complexa, não
exclui as duas primeiras: implica a possibilidade de o casal buscar apoio de
outras fontes do mesossistema.
Independentemente da alternativa escolhida, na prática, somente a
reflexão sobre o próprio pensamento pode iniciar o processo de
emancipação. A dúvida sobre os comportamentos, o estranhamento sobre as
ideias, o debate e o estudo envolvido com uma espécie de abdução, ou seja,
uma releitura imediata sobre falas constrangidas ou sobre silêncios e atos
falhos, a revisão dos desconfortos, podem dar início a uma rede que põe em
suspenso o que deve ser mudado. Mas quando as possibilidades são
limitadas, parecem ser necessários ensaios e ainda mais outros que
consigam responder melhor aos costumes dados como verdadeiros. Assim,
a obediência feminina diante dos comportamentos repetitivos e sem graça
do companheiro, os olhares vazios de sentido existentes na díade, os
descuidos insuportáveis podem estar acompanhados de uma redefinição. Os
corpos envelhecidos e não tocados, o sexo abandonado, a repetição sem
alma podem ser entendidos como condenações projetadas por hegemonias
que desqualificam desejos. Somente um espírito aventureiro pode revisitar
esses demônios históricos e exorcizá-los, povoando corpos e casas com
decisões carregadas de sensibilidade e motivação.
Nesse sentido, a reflexão profunda possibilita que o macrossistema possa
ser examinado para ser não só reconstruído através de novas inscrições,
como também superado pela crítica ao discurso tradicional sobre o
casamento. Para Bronfenbrener (apud KREBS, 1995), o macrossistema se
manifesta na continuidade de formas e conteúdos encontrados em toda a
extensão da cultura. Dos sistemas em análise, este é o que mais dificilmente
pode ser redefinido, pois nos preexiste e foi formulado historicamente,
traduzindo as representações e expectativas das realidades comungadas
numa determinada comunidade. O macrossistema, de certa maneira, é o
pensar que está presente na corrente sanguínea de um espaço territorial e
que determina os consensos e a moral tida como normal e normatizadora de
comportamentos. O macrossistema é constituído das linguagens que
disciplinam os afetos, os corpos e a sociedade e que, mais ou menos,
controlam os seres humanos em sua dependência. Existe uma espécie de
amordaçamento oculto presidindo a todos.
O lugar para tanto começa no mesossistema e no microssistema, uma vez
que não é possível lutar contra os moinhos de vento, ou melhor, contra o
espírito do tempo e do espaço de uma forma abstrata. Os espaços de luta
devem ocorrer lá onde as verdades históricas são institucionalizadas e
reificadas e, muitas vezes, consagradas.
O mesossistema compreende as inter-relações entre dois ou mais
ambientes em que a díade está ou necessitaria estar envolvida para
aperfeiçoar seu desenvolvimento. É nesses ambientes e, de modo especial,
nas instituições que o casal vai levar adiante suas projeções e sonhos. No
mesossistema, a conjugalidade necessita de uma rede de apoios pelos quais
as atividades vão revelar o grau de densidade social e amorosa pelo qual a
díade pode se ressignificar. As famílias dos filhos casados ou não, a Igreja,
os movimentos sociais, as escolas e mesmo o lugar de trabalho são os
espaços onde são produzidas as atividades molares, isto é, aquelas
atividades que, conforme Bronfenbrenner, possuem certa persistência
temporal e uma significância para o casal. Nesse universo, assim como no
microssistema, acontecem também as estruturas interpessoais e os papéis. O
significado das identidades estabelecidas no microssistema, por certo, não
dá conta da conjugalidade, uma vez que a identidade existencial necessita
da comunhão social mais aberta para ampliar socialmente o sentido do
casamento longevo. As situações sociais provocam vigor no microssistema
da conjugalidade, quando existe mútua admiração nas relações com as
instituições com as quais a díade se ocupa e se preocupa.
Poucos ainda duvidam de que a capacidade humana de existir e
desenvolver-se depende do grau de comunicação que se estabelece com o
espaço social onde se vive e da obtenção de reconhecimento por sua
existência. A quem compete a responsabilidade de firmar vínculos e criar
condições para a fixação de laços importantes para os mais velhos? Os
laços que permitem a sensação de pertencimento ainda são constituídos pela
família e pelas instituições. Quando os mais velhos diminuírem as
probabilidades dos vínculos, em razão de perdas ou afastamentos dos filhos
ou dos companheiros de trabalho, da vizinhança e de outros lugares de
encontro sistemático, podem estar ameaçados em suas possibilidades de
laços de ternura. A certeza do valor e a sensação de pertencimento não
podem ficar sem o devido cuidado, sob pena de esvaziarmos o sentido da
vida dos mais velhos. Por estas razões o casal, os filhos, parentes, e as
instituições públicas e privadas não se podem furtar à preocupação de
atender vigorosamente os laços de significação e ressignificação dos idosos,
perguntando-se constantemente a quem pertencem e como pertencem.
Concluindo
As diversas situações do tempo podem oferecer variadas condições para a
promoção do desenvolvimento da conjugalidade tardia. Ao se limitarem as
possibilidadestradicionais de generatividade, ou seja, as condições próprias
da reprodução e da produção, o casal, muitas vezes, por falta de discursos
sociais e outorgas, começa uma relação depauperada com interesses
individuais não comuns à díade. Os diálogos e ações conjuntas da díade
alimentavam externamente o casal. A casa, os filhos, o trabalho, os convites
sociais, as realidades políticas, a vida vicinal exigiam uma presença
qualificada e intensa. Essas realidades, com seu potencial afetivo, aos
poucos, podem tornar-se limitadas, em razão dos costumes históricos; a
díade acaba se depreciando, e os sujeitos envolvidos perdem sua qualidade.
Por outro lado, diz Norgren et al. (2004, p. 583):
Talvez o ser humano deseje coisas semelhantes para si mesmo, ou seja, ser amado, respeitado,
sentir-se seguro, compartilhar desejos e sonhos, ter suas necessidades físicas, emocionais e
espirituais satisfeitas, bem como ter a possibilidade de dividir tudo isso com alguém especial ao
longo da vida.
A conjugalidade na velhice necessita, pois, de mediações para representar-
se melhor e, na reciprocidade dos parceiros, oferecer amor, palavras, ações
e caminhos mais adequados para a formação da identidade. De gestos
toscos em torno do corpo, da mente e da sexualidade, poderiam surgir
movimentos de reconhecimento público e particular. Os benefícios sociais
de novas aprendizagens fariam com que se promovesse não somente o
casal, mas todos os que estão próximos.
A transformação dos laços sociais de compromissos socialmente impostos
em compromissos de um tempo social para si próprio pode constituir uma
oportunidade de redefinição de identidade nos desejos livremente tomados.
O casal, diante da diminuição dos compromissos sociais do trabalho para o
tempo pessoalmente administrado, pode auferir vantagens para a díade.
Tanto as escolhas do fazer individual como as do fazer do casal podem
constituir-se em motivo de admiração mútua e renovação de laços afetivos.
Nesse sentido, a idade avançada parece oferecer tanto a possibilidade de
compreender a necessidade de tais relações profundas quanto o tempo de ir-
lhes ao encalço, de desenvolvê-las. Assim, o casamento poderia ser mais
proveitoso, se homens e mulheres estivessem conscientes dos diferentes
níveis de relações pessoais e da imensa possibilidade de comunicação
existencial que representa a vivência da conjugalidade.
Na comunicação existencial, nenhuma outra finalidade está em jogo, a não ser o verdadeiro bem
de ambas as partes: despertam mutuamente as energias latentes e levam-nas a um
desenvolvimento total. Deste modo, cada uma dessas pessoas, por assim dizer, “cria” a outra
(DEECKEN, 1998, p. 71).
Referências bibliográficas
ANTON, C. L. Homem e mulher, seus vínculos secretos. Porto Alegre: Artmed, 2002.
BENINCÁ, C. R. Idoso e morte; qualificação da experiência de finitude. In: BOTH, A; BARBOSA,
M. H. S.; BENINCÁ, C. R. (Org.) Envelhecimento humano; múltiplos olhares. Passo Fundo:
EDIUPF, 2003. pp. 82-95.
BOTH. A. O casamento longevo. Erechim: São Cristóvão, 2003.
DEECKEN, A. Saber envelhecer. Petrópolis: Vozes, 1998.
DUMAZEDIER, J. A revolução cultural do tempo livre. São Paulo: SESC, 1994.
GROISSMAN, M. et alii. Histórias dramáticas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.
IACUB, R. Erótica y vejez. Buenos Aires: Paidós, 2006.
KREBS, J. R. Urie Bronfenbrenner e a ecologia do desenvolvimento humano. Santa Maria: Casa
Editorial, 1995.
LOPES, G. Sexualidade na terceira idade. In: Revista Terapia Sexual, v. 11, n. l, pp. 115-122, 1999.
NORGREN, M. B. P.; SOUZA, R. M.; KASLOW, F.; HAMMERSCHMIDT, H.; SHARLIN, S. A.
Satisfação conjugal em casamentos de longa duração; uma construção possível. In: Estudos de
Psicologia, v. 9, n. 3, pp. 575-584, 2004.
OLIVEIRA, J. L. A vida cotidiana do velho morador de rua; as estratégias de sobrevivência da
infância à velhice — um círculo da pobreza a ser rompido. (Dissertação de mestrado, PUC/POÁ,
2002.)
PIAGET, J. Os procedimentos da educação moral. In. MENIN, M. ARAÚJO, U. Cinco estudos de
educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
RESTREPO, L. C. O direito à ternura. Petrópolis: Vozes, 2000.
SCLIAR, M. A celebração do velho safado. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, abr. 2007.
STUART-HAMILTON, I. A psicologia do envelhecimento; uma introdução. Porto Alegre: Artmed,
2002.
VASCONCELLOS, D.; NOVO, R. F.; CASTRO, O. P.; VION-DURY, K.; RUSCHEL, A.; COUTO,
M. C. P. P.; COLOMBY, P.; GIAMI, A. A sexua lidade no processo do envelhecimento; novas
perspectivas — comparação transcultural. Estudos de Psicologia, v. 9, n. 3, pp. 413-419, 2004.
VERA, P. S.; DÍAZ, M. A. B. Actitudes de las personas eidosas em Espana apostar um nuevo
matrimonial. In: Revista Brasileira de Ciencias do Envelhecimento Humano, Passo Fundo, v. 3, n. 2,
pp. 22-34, jul-dez 2006.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
O
CAPÍTULO 3
Arteterapia no cuidado
gerontológico: algumas reflexões
sobre vivências criativas na velhice
e a educação do cuidador
Marilene Rodrigues Portella5 e Graciela Ormezzano6
À guisa de introdução
crescimento da população idosa no Brasil vem ocorrendo de forma
bastante acelerada. Dados estatísticos informam que em 2025
seremos a sexta população com o maior número de idosos do mundo e, por
projeções feitas, estaremos com mais de 32 milhões de pessoas acima de
sessenta anos. Além disso, a proporção de pessoas com mais de oitenta anos
também apresenta um aumento significativo (IBGE, 2002).
O aumento da expectativa de vida — mais de trinta anos no último século
— deveria estar acompanhado de uma evolução também na expectativa de
saúde, afinal são inúmeros os avanços na área tecnológica, tanto quanto no
campo das ciências da saúde. A realidade, porém, nos impõe um grande
desafio, que é transformar esses ganhos em benefício para a sociedade,
superando estigmas, exclusão e descaso. Isso exigirá profundas mudanças
na forma como conduzimos nossas relações e nossa maneira de viver; é
imprescindível que se revise o conceito de cuidar daqueles que necessitam
ser cuidados em razão da fragilidade, doença ou senilidade.
Envelhecer não significa, necessariamente, adoecer, mas na idade
avançada o desenvolvimento de agravos é mais frequente, como o aumento
de doenças crônicas, que podem levar a deficiências físicas, funcionais e
psicológicas. O idoso poderá desenvolver graus variados de incapacidade,
principalmente se estiver associada a multipatologias. Essa situação poderá
ocasionar diversos transtornos ao idoso, aos familiares, à sociedade e,
também, às instituições prestadoras de cuidados de saúde, as quais
poderiam estar mais bem preparadas para um cuidado mais humanizado
(LITVOC; DERNTL, 2002).
Embora a maioria das pessoas envelheça sem grande comprometimento, é
importante considerar que a frequência das doenças crônicas e a
longevidade são consideradas as duas principais causas do crescimento das
taxas de idosos portadores de incapacidades. Para muitas famílias, ter um
idoso sem independência e autonomia pode ser uma situação mantida no
âmbito familiar dos domicílios ou nas instituições asilares, também
conhecidas como “instituições de longa permanência para idosos” (ILPI).
Cuidar de um idoso no lar requer a disponibilidade de um membro da
família para o exercício deste papel ou a contratação de um cuidador, o que
demanda recursos financeiros, nem sempre compatíveis com a situação
familiar. A indicação da permanência dos idosos incapacitados sob os
cuidados de seus familiares ainda é a tendência atual em muitos países e no
Brasil. Todavia, as estruturas familiares, no mundo inteiro, estão sofrendo
modificações e, quando ocorrem de modo concomitante velhice e doença,
muitas famílias não conseguem assumir as atividades cuidativas de seu ente
querido no meio familiar. Ainda, cuidar de alguém em situação de doença
ou fragilidade durante as 24 horas do dia, sem descanso ou folga, não é
tarefa fácil. Assim é que muitas famílias não se sentem em condições de
assumir este cuidado, e a opção, então, é colocaro idoso numa ILPI. Às
vezes, a própria pessoa não tem familiares e escolhe a internação como
única possibilidade diante do medo de ficar doente e sozinha.
A procura por instituições prestadoras de serviços a esta clientela, em
termos de internação e atendimento prolongado, tende a aumentar. Essa
realidade conduz a que outras formas de atenção e cuidado sejam pensadas,
visto que, nesses ambientes, muitas vezes as práticas de cuidado aos idosos
acabam por criar um cotidiano esvaziado de significado e bastante
empobrecido. Como exemplo, há pessoas que passam os dias sentadas
diante de um aparelho de televisão ou inertes num leito sem qualquer
ocupação. A não existência de atividades empobrece a vida desse idoso; ao
contrário do sujeito ativo e criativo, que age sobre o mundo em que vive.
Segundo Boff (1999), cuidar é mais que um ato; é uma atitude de
compromisso, de responsabilidade e de interesse genuíno pelo outro. Nesse
sentido, o cuidar pressupõe colocar-se ao lado do sujeito, interessar-se pelo
seu desconforto, sua fragilidade e seu sofrimento. O cuidado com o outro,
com os pobres, oprimidos e excluídos; o cuidado com o nosso corpo, na
saúde e na doença; o cuidado com nossa alma, seus anjos e demônios
interiores; o cuidado com nossos sonhos... Tudo isso implica uma atitude
ética fundamental e uma convivência em solidariedade, compreensão,
compaixão e amor.
Em suma, cuidar acarreta uma relação ética. Nessa direção, parece-nos
imperativo salientar o pensamento de Asmann e Mo Sung (2000), que
entendem a ética como o saber situar-se no mundo como ser solidário. Não
é essa uma tarefa das mais fáceis, tendo em vista que para cuidar do outro
precisamos admitir que não existe um sentido único, nem uma verdade
única das coisas, o que significa, ainda, fazer uma leitura mais holística
acerca da pessoa e dos resultados de suas interações com o meio
(URRUTIGARAY, 2004).
Todo ser humano busca se tratar pela própria vontade de sobreviver, e se
cuidará segundo os seus valores de vida e amor-próprio; contudo, em alguns
casos, fica também na dependência da vontade de que outra pessoa faça isso
por ele. A atitude de cuidar surge da criatividade humana, da sensibilidade
diante das trocas com outrem e das condições naturais da capacidade
pessoal não só de gerar novas situações, mas também de executar uma ação
de acordo com seu estilo ou modo de ser, fazer e interagir, e de sua própria
forma de apresentar ou representar o produto ou acontecimento de tal ação.
Cuidar pode ser entendido, de acordo com Ostrower (1996), como um
processo criativo que abrange a capacidade de compreender, relacionar,
ordenar, configurar e significar, ou, ainda, conforme Lahorgue (2004), de
repensar nossas relações para além do imediatamente perceptível, de modo
a redimensionar nossas consciências.
Cuidado e conforto fazem parte, originalmente, do discurso do sagrado e
também estão inseridos no discurso da vida. Se a vida é eminentemente
uma manifestação do sagrado, quando as ações são somente de cuidado
para com o corpo, e não para com a alma, pode-se dizer que não há cuidado
e que essas ações tampouco são oferecedoras de conforto (SANTIN, 1998).
Na perspectiva daquele que sofre, o cuidado precisa ser coerente com o
nível de conforto desejado. De acordo com Boykin (1998), promove
conforto quem está presente em sua totalidade perante a inteireza da pessoa
atendida; para o outro, essa experiência do conforto só é vivenciada em
relações fundamentadas no respeito. Tal concepção se contrapõe, e muito,
ao que vemos hoje, quando o modelo predominante de relação é analítico e
reducionista. É o momento em que observamos um certo “endeusamento”
da tecnociência. Cabe-nos, porém, perguntar: De que vale um ambiente
tecnicamente adequado, se o ser humano muitas vezes é entendido como
um produto descartável? (PORTELLA; BETTINELLI, 2004).
Os profissionais da saúde e da educação, por meio da arte, têm a
possibilidade de auxiliar os outros seres humanos, que é o objetivo primeiro
das profissões de ajuda. Pela arte desenvolvem-se os valores essenciais da
pessoa, é possível conhecê-la melhor para poder cuidar dela de maneira
adequada. Desse modo, ressaltamos a importância da ligação entre arte,
educação e saúde.
Ocupar-se do idoso requer novos investimentos em termos de estudos e de
proposições de alternativas para o seu cuidado no âmbito das ILPI. Nesse
contexto surge a arteterapia, como proposta terapêutica apropriada para a
intervenção junto ao idoso; portanto, trata-se de uma alternativa de cuidado.
Cuidado e conforto sempre fizeram parte da atividade da saúde e da
educação, porém, geralmente, a atuação dessas áreas centra-se no modelo
de intervenção tradicional, altamente tecnicista e fundamentado na proposta
assistencialista.
Como processo de cuidado, a arteterapia, pela essência de sua ação
terapêutica, pode possibilitar atividades de conforto ao ser humano idoso
que se encontra em condição de fragilidade e sofrimento. A utilização dessa
arteterapia está direcionada a todos aqueles que se interessam pela busca do
bem-estar, como uma reflexão do desenvolvimento da personalidade, das
relações sociais e da solução de conflitos (URRUTIGARAY, 2004).
Ela pode ser utilizada em geriatria e gerontologia como suporte
terapêutico para pessoas idosas, a fim de estimular a criatividade,
permitindo a descoberta de uma nova socialização e o restabelecimento da
confiança. A arte facilita a expressão de alguns processos internos pela
presença do material entre o terapeuta e o idoso. O uso da arteterapia no
trabalho com pessoas da terceira idade tem sido registrado por Costa
(2003), quando relata as transformações ocorridas em idosos
institucionalizados, visto que a pessoa sai da posição incômoda de perceber-
se como um inútil e passa a se ver como alguém que cria. Esse tipo de
terapia leva ao autoconhecimento e à autoconfiança, aspectos essenciais
para a pessoa idosa aproveitar ao máximo o próprio potencial (SOUZA,
2002).
A arteterapia também encontra na ludicidade uma contribuição para a
promoção da saúde e do bem-estar. Segundo Saviani (2003), existem pontos
comuns entre elas, pois ambas exploram a criação. O exercício da arte num
espaço-tempo terapêutico e lúdico facilita múltiplos modos de expressar e
comunicar, transforma o ambiente e o humor da pessoa, ajudando na
recuperação de sua saúde. Arteterapia e ludicidade, portanto, podem atuar
juntas no tratamento da dor, do desconforto, da rigidez, da inércia,
promovendo qualidade de vida, espontaneidade e conforto, acolhendo o
ritmo de cada um ao manifestar seus conteúdos internos.
Estudos desenvolvidos por Filipetto (1999) e Acosta (1999) apontam os
benefícios físicos e mentais do uso da ludicidade no trabalho com idosos,
envolvendo atividades físicas, recreativas e socioculturais. Dentre esses
benefícios se destacam uma vida com mais qualidade e autonomia, aumento
no nível de percepção da corporeidade, melhora da autoestima e da
autoconfiança, maior agilidade nas tarefas diárias, redução do uso de
medicamentos, proporcionando alegria e restituindo a motivação pela vida.
A atividade lúdica é eminentemente alegre, lembra a brincadeira, propicia
a plenitude da experiência, ou seja, o ser humano, quando age ludicamente,
vivencia uma experiência plena e saudável. O lúdico também traz um
potencial de cura e conforto. A dor interna que a atividade lúdica elicia
numa prática não é lúdica por si, no sentido que vimos compreendendo a
ludicidade; todavia, viver essa experiência que mobiliza a dor pode ser um
ponto de partida para externá-la, bem como para transformar uma
experiência interna fragmentada numa vivência plena. Nesse sentido, as
atividades que são objetivamente tomadas como lúdicas e que, por alguma
razão, possam fazer emergir alguma dor, limite ou dificuldade, possibilitam
ao sujeito uma solução para a cura desse sofrimento. Entendemos, pois, a
cura como uma oportunidade de fazer contato com um aspecto doloroso de
sua vida, mas que também aponta para um aspecto saudável de si mesmo —ao resgatar a alegria, o prazer, a convivência, a não rigidez, o perdão
(LUCKESI, 2000, 2004).
Fundamentadas neste marco teórico, consideramos necessário efetivar
uma investigação que compreendesse as significações de idosos residentes
numa ILPI, diante da vivência de uma prática arteterapêutica.
Recursos metodológicos
A pesquisa configurou-se como um estudo qualitativo, que se caracterizou
como aquele que leva em conta o universo de significados, aspirações,
crenças, valores e atitudes dos usuários. Para operacionalizar esse estudo,
foi utilizado o método criativo e sensível proposto por Cabral (1998), que se
efetiva por meio de oficinas. Esse método conjuga técnicas consolidadas de
coleta de dados, como entrevista, discussão de grupo e observação
participante, com as dinâmicas de criatividade e sensibilidade; tem no
processo de criação e sensação a força produtora de dados para a pesquisa e
associa ciência e arte, de modo que os participantes, espontaneamente,
criem e reflitam sobre situações existenciais concretas.
Os sujeitos do estudo constroem, individual ou coletivamente, o
significado de suas produções artísticas, gerando temas que poderiam
facilitar a organização dos dados para sua compreensão. Validar os achados
da pesquisa foi possível porque o próprio grupo confirmou o que era
comum e particularizou o incomum.
As oficinas foram desenvolvidas ao provocarmos a produção artística com
uma finalidade arteterapêutica. Dentre os recursos expressivos, destacamos:
colagem, desenho, pintura, modelagem e atividades lúdicas. Para seu
desenvolvimento, utilizamos uma sala designada pela gerência da
instituição. Foram realizados dez encontros, com a duração média de duas
horas, sempre às sextas-feiras, no turno da tarde. O período de coleta
estendeu-se de maio a agosto de 2006. Os horários para realização das
oficinas foram determinados em conjunto com a direção da instituição a fim
de observar o que seria mais apropriado aos sujeitos, de modo que não
viesse a comprometer o bom andamento das atividades habituais da
instituição.
As oficinas constituíram-se no espaço específico em que ocorreu o
processo arteterapêutico com os sujeitos do estudo. Em geral, todas as
oficinas foram organizadas em quatro fases, que se adequavam à nossa
proposta e, sobretudo, às necessidades dos idosos, assim denominadas:
acolhida, momento lúdico, momento criativo e encerramento da oficina.
• Acolhida: também entendida como aquecimento. Nesse momento eram
utilizadas, de forma associada, atividades de distensão, musicalidade,
dinâmicas grupais e verbalização dos conteúdos emergentes. Dessa forma,
estabelecíamos um ambiente descontraído e aprazível para iniciar o
trabalho, explicando a nossa proposta para o encontro e retomando
alguma questão que o grupo considerasse necessário sobre as
repercussões do encontro anterior.
• Momento lúdico: foi planejado com o intuito de trazer ao grupo atividades
lúdicas na forma de exercícios ou jogos, por entendermos que, para
adultos, essas atividades podem ser um caminho real tanto para o
inconsciente se exprimir como para a criatividade desabrochar e,
consequentemente, para o desenvolvimento de uma singularidade mais
saudável. Para os adultos, as atividades lúdicas podem ser catárticas, ou
seja, liberadoras das fixações do passado e construtoras das alegrias do
presente e do futuro. Nosso intuito foi proporcionar aos idosos momentos
agradáveis de brincadeiras vividas coletivamente, tendo o lúdico como
mais um recurso arteterapêutico.
• Momento criativo: correspondeu à utilização de recursos artísticos. Essa
fase teve como meta ativar o potencial criador e transformador, abrindo
mais espaço para a manifestação das emoções. Recorremos a uma
variedade de linguagens expressivas para aumentar as opões de cada
participante. No nosso entendimento, dispor de mais de uma linguagem
favorece e atende melhor às necessidades de cada idoso.
• Encerramento: fase final, entendida como um espaço de reflexão da
vivência, no qual avaliávamos as atividades desenvolvidas, sua
aplicabilidade no cuidado de si, do outro e as manifestações espontâneas
dos participantes. Para estimular a fala dos idosos, em cada oficina, após
o momento criativo colocávamos uma questão norteadora: “Como foi o
encontro de hoje?”, ou “Como estão se sentindo?”. Consideramos essa
etapa fundamental, tendo em vista que nem sempre a mensagem não
verbal pode possuir diversos significados, o que exige uma validação
verbal para auxiliar na compreensão dos signos e símbolos não verbais.
O desenvolvimento das oficinas seguindo essa organização permitiu
corroborar as intervenções no cuidado gerontológico, bem como
oportunizou evidenciar nessa proposta o que estava adequado e o que, na
nossa avaliação, ainda merecia certos ajustes.
Uma ILPI localizada no sul do Brasil e mantida pela iniciativa privada foi
o cenário deste estudo. Como sujeitos da pesquisa selecionamos um grupo
de cinco idosos, sendo a amostragem caracterizada como proposital. De
acordo com Turato (2003), a amostragem proposital, intencional ou
deliberada é entendida como um grupo selecionado para o estudo científico,
cuja escolha dos respondentes é deliberada de modo a trazer informações
substanciosas sobre o assunto. Para inclusão dos sujeitos no estudo, os
idosos deveriam atender aos seguintes critérios: ter sessenta anos ou mais,
demanda espontânea, adesão mediante termo de consentimento
formalizado, assiduidade. Respeitando as diretrizes da resolução n. 196/96
do Conselho Nacional de Saúde — Ministério da Saúde, que delibera sobre
pesquisa com seres humanos, o estudo foi submetido ao Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade de Passo Fundo e obteve parecer favorável para
sua execução. Foi realizada uma pré-seleção de onze idosos com
características definidas nos critérios, todavia, à medida que realizávamos
as oficinas, a frequência dos participantes variava, de modo que cinco deles
foram eleitos sujeitos do estudo. Respeitando o princípio do anonimato, os
participantes do grupo receberam pseudônimos com a denominação de
árvores.
A caracterização dos sujeitos, apresentada a seguir, foi construída com
base em seus relatos e em informações colhidas junto aos funcionários da
instituição durante o período do estudo.
• Pinheiro: setenta anos, divorciado, aposentado, procedente de um
município vizinho, nasceu e criou-se no meio rural; na vida adulta passou
a morar na cidade, pois as condições no interior eram desfavoráveis;
obteve um emprego na prefeitura para trabalhar em serviços gerais e
aposentou-se como servidor público municipal; teve dois filhos, que
constituíram famílias e moram em outro estado. Está na instituição por
decisão deles. Há mais ou menos dois anos teve um acidente vascular
cerebral; passado o período de internação hospitalar, por ocasião da alta,
os filhos providenciaram a internação na ILPI, onde se encontra até o
momento. Sofre de depressão e tem história de alcoolismo.
• Cedro: oitenta anos, viúvo, aposentado, natural e procedente do município
sede. Contando sua história, informa que foi comerciário e motorista;
tendo viajado pelo Brasil, conheceu muitos estados, passou por muitas
cidades e atravessou também a fronteira do Paraguai, Uruguai e
Argentina, sempre na boleia de um caminhão. Foi internado pela família
com o diagnóstico de doença de Alzheimer.
• Canela: setenta e três anos, divorciada, dois filhos, foi casada com
Pinheiro por mais de vinte anos; na instituição viviam como dois
estranhos, não se conversavam nem mantinham qualquer tipo de vínculo.
Trabalhou para Jacarandá por muitos anos. Também foi internada pelos
filhos e sofre de depressão.
• Grevilha: sessenta e cinco anos, divorciada, aposentada, natural e
procedente de um município distante 150 km da instituição; dois filhos,
três netos, cuja falta lamenta muito. Relatou que estava internada na
instituição porque precisava de cuidados e que os filhos eram pessoas
muito ocupadas, que não dispunham de tempo para cuidar dela. Sofre de
transtorno bipolar.
• Jacarandá:oitenta e cinco anos, viúva, aposentada, cinco filhos, natural e
procedente de um município vizinho. Foi patroa por muitos anos de
Canela, a qual considera uma grande companheira; relatou fragmentos da
história do casal com muita propriedade. Já no primeiro dia avisou que
estava ali por pouco tempo, pois os filhos viriam buscá-la logo; em suas
falas sempre se referia à saída da instituição. Tem problemas de saúde
mental.
As informações coletadas foram compreendidas qualitativamente, visando
à descrição e significação do conteúdo abstraído do material de estudo, e
permitiram a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção dos significados. Para atingir o significado manifesto e
determinar os temas, utilizamos a análise temática proposta por Minayo
(1996).
Vivências possíveis: reinventando o processo de ser e
estar numa ILPI
No espaço das ILPI muitos idosos não se sentem integrados ao fluxo da
vida e acabam sucumbindo ao retraimento, à angústia e à depressão. Não
conseguem tolerar o mundo da forma como se apresenta, o passado parece
um refúgio distante, o futuro é incerto e o presente mostra-se muitas vezes
sombrio e desinteressante.
A institucionalização pode ser uma das situações estressantes e
desencadeadoras de depressão, levando os idosos a passarem por diversas
mudanças, considerando que se apresenta como uma das formas judiciosas
de isolamento social. Essa condição leva à perda da identidade, da
liberdade, da autoestima, bem como ao estado de solidão e, muitas vezes, à
recusa da própria vida, o que determina a alta prevalência de doenças
mentais nos asilos (CARVALHO, FERNANDEZ, 1996; PIZARRO, 2004).
A participação nessa proposta de estudo parece ter levado os idosos a
exercitarem as habilidades de recriar-se, reinventar o momento e recriar o
contexto, confirmando a chancela da principal característica dos seres
vivos, a criatividade. Tais habilidades também nos envolveram em nosso
trabalho de pesquisadoras, pois, para cuidar do idoso mediante essa
proposta, foi necessário sair do nosso próprio círculo e entrar na galáxia do
outro, um outro que nos obriga a tomar posição porque fala, provoca, evoca
e convoca (BOFF, 1999).
Estar presente no mundo como sujeito criativo tem sido o maior desafio
enfrentado pelos idosos, os quais têm pouco espaço de expressão. Desse
modo, os achados apontam que a vivência de uma prática arteterapêutica
oportunizou o reinvestimento na realidade possível, na medida em que
utilizamos regras e conteúdos do campo da arteterapia, proporcionando um
cuidado criativo.
Para cuidar criativamente, no entendimento de Tavares (2002), é mister
buscar a essência da pessoa, que jamais adoece, compreendendo o sentido
de seu sintoma, escutando sua dor sem repressão, resgatando sua cidadania
e inteireza. Foi na anuência desta certeza que cada oficina foi planejada e
implementada. Observamos que, ao longo dos encontros, alguns idosos
possuíam limitações reais ou potenciais e, outros, embora não as tivessem,
as imaginavam.
No quadro 1 apresentamos uma sequência de cenas envolvendo dois
sujeitos, cuja situação reflete as vivências possíveis, seguindo um
compasso, na forma de reinventar seu modo de ser e estar na ILPI.
Quadro 1 – Recorte de cenas de um processo de ser e estar numa
ILPI
Sujeitos Cenas Expressões e vivências
Pinheiro
Cena
1
Eu sou muito novo para estar aqui, esse aqui não é um lugar para uma pessoa
como eu. Tenho só sessenta e um anos, eu ainda posso trabalhar. Estou a
contragosto aqui. Me botaram aqui, mas eu não quero ficar aqui... Já faz dois
anos que eu estou aqui (primeiro dia, ao se apresentar).
Cena
2
Olha que eu nunca tinha feito nada disso aqui. Gostei muito... Vou ficar
esperando vocês, sexta-feira, aqui (primeiro dia, ao final da oficina).
Cena
3
Eu fiz as coisas da minha morada […] a gente começa a se lembrar das coisas, e
vai fazendo […] Aqui a gente não tem nada para fazer, então isso é muito bom,
pois o tempo passa que a gente nem vê (segundo encontro).
Cena
4
Quando eu começo a desenhar, me vem na cabeça as coisas lá do interio... Eu
me lembro de um pé de jabuticaba, ele é tão grande, mais tão grande, e sempre
carregadinho de fruta (quarto encontro).
Cena
5
Sabe que essas brincadeiras animam a gente; a gente fica até mais esperto
(sétimo encontro).
Cena
6
Quando faço isso (referindo-se ao momento criativo-desenho), eu me animo
muito. A gente começa a lembrá do tempo antigo... Foi um tempo tão bom, pena
que hoje a gente tenha que ficar num lugar desses. Se a gente pudesse sair de vez
em quando pra passeá, vê outras coisas, mais não dá... Fazê o quê! Ainda bem
que tem vocês aqui que fazem esses divertimentos com a gente, seria bom se
pudesse ser sempre assim (nono encontro).
Grevilha
Cena
1
Aquela música me tocou lá no fundo da minha alma, me fez lembrá das minhas
netas […] da saudade que eu tenho […] me trouxe tanta coisa na lembrança...
Chorei que me lavei toda, mas me fez tão bem, gostei tanto (relatando os
acontecimentos do dia – terceiro encontro).
Cena
2
O outro dia eu não pude fazer parte do grupo, fiquei sentida […] eu tava meio
atacada, daí a gente toma aqueles remédios e só dorme. Eu gosto assim de ficar
aqui... A gente vai fazendo as coisas, a gente brinca e daí o tempo passa ligeiro
que a gente nem vê. É um dia que a gente fica mais leve, tem até mais
disposição (quinto encontro).
Cena
3
Me faz tão bem esse divertimento, o jogo, as brincadeiras, assim de bola... Me
deixa mais esperta, eu até pareço outra (sétimo encontro).
Cena
4
Eu gosto das músicas, eu me lembro do tempo de moça, das coisas boas da vida,
dos namoros. Sabe que aqui até fica mais divertido quando a gente brinca desse
jeito (oitavo encontro).
Por meio do fazer lúdico e criativo, o idoso adquire novas formas de
percepção e ação que podem provocar importantes mudanças no seu estilo
de vida na esfera de uma ILPI. Ele pode reinventar a sua presença no
mundo. Desvelaram-se nas cenas os sentimentos de cada um diante do
tempo-espaço da oficina e, também, da ociosidade e da solidão. No
desenrolar do processo arteterapêutico, os idosos foram resgatando sua
identidade nas reminiscências dos fatos de outrora, aspecto que percebemos
ao serem interpretadas as falas e observações.
Como se intui da leitura de mundo dos idosos, o impasse da
institucionalização apresentou-se como uma fatalidade, expressa mais
dolorosamente no início do processo arteterapêutico, até como uma perda
de vida, mas, com o passar do tempo e o andamento dos encontros, algumas
mudanças ocorreram. Os sujeitos tiveram reconhecidas suas subjetividades,
puderam afirmar-se como parte de um contexto determinado e, ainda,
comunicaram suas frustrações, desejos, interesses e questionamentos.
Alguns demonstraram estar vivendo sentimentos profundos evocados pela
música, como no caso de Grevilha. A música produz, de fato, reações
fisiológicas cuja amplitude parece depender do conteúdo afetivo; exerce,
ainda, grande poder sobre a pessoa — mesmo que o ouvinte não esteja
necessariamente consciente do efeito que ela exerce sobre ele — e, desse
modo, ajuda a conectar experiências perceptivas e emocionais
(VIEILLARD, 2005; LELIS, 2000).
Essa relação significativa, verdadeira, curadora, foi sendo construída por
meio da brincadeira, do desenho, da pintura, da música, recursos que
facilitaram o contato com a história de vida de cada um, com suas
sensações, pensamentos e sentimentos, bastante reprimidos nesse ambiente.
Provavelmente, por mais esforços que envidássemos, como pesquisadoras
e cuidadoras, não poderíamos propiciar aquilo que a música oferecera a
Grevilha ou que o desenho proporcionara a Pinheiro. Todavia, percebemos
que a participação nas oficinas e o encontro com os recursos expressivos
determinaram a evolução do estado de ambos. Então, exercitar a
criatividade pode ser uma poderosa modalidade para a realização pessoal do
idoso institucionalizado e a reconquista de um espaço alegre, divertido e
vital.
No quadro 2, apresentamos as cenas protagonizadas por Jacarandá,que é
uma demonstração efetiva de sua inserção na proposta arteterapêutica. Essa
conjuntura possibilita averiguar a cadência do processo de ser e estar na
ILPI.
Quadro 2 – Recorte de cenas da vivência arteterapêutica
experienciada por Jacarandá
Cenas Expressões e vivências
Cena
1
Eu já vou sair, não posso ficar muito aqui. As minhas filhas já vêm me buscar, por isso que
eu não vou poder ficar mais aqui (primeiro encontro — permanência na oficina,
aproximadamente, 20 minutos).
Cena
2
Eu gostei do joguinho, mas acho que eu já vou subir... as minhas filhas vão vir me buscar,
daí elas não vão me encontrar lá. Pode ser até que no outro dia que vocês venham aqui eu
não esteja mais aqui (segundo encontro — permanência na oficina, aproximadamente 50
minutos).
Cena
3
Agora que já tá terminando, eu já vou subindo... eu vou pra lá, vou lá para a sala, as
minhas filhas disseram que vêm me buscar. Vou falar pra elas dos meus desenhos que eu
fiz (quinto encontro).
Cena
4
Oi! Que bom que vocês estão aqui! Eu já estava com saudades. O que nós vamos fazer
hoje? (sétimo encontro).
A utilização de diferentes modalidades expressivas no processo
arteterapêutico com idosos pode provocar no sujeito uma dupla experiência
interior-exterior, reorganizando conteúdos existentes em sua história pessoal
das imagens e na história icônica da humanidade, o que faz aflorar
sentimentos e emoções até então velados (ORMEZZANO; ARRUDA,
2005).
O cuidar, no entendimento de Volich (2004), pressupõe um exercício
permanente de liberdade que permita ao cuidador entrar em contato com as
sensações, fantasias e emoções do outro e, também, com aquelas
mobilizadas em si pelo sujeito cuidado, para compreendê-las como
informações importantes a respeito daquilo que ocorre no setting
arteterapêutico. Portanto, é necessário, na atividade cuidativa gerontológica,
além dos protocolos e procedimentos específicos, reservar um espaço para
utilização dos recursos expressivos, no qual um encontro de outra ordem
possa vir a acontecer.
Experienciando a ludicidade no contexto da
institucionalização
Os idosos surpreenderam-nos a cada encontro pelo avanço, pela entrega
total às atividades lúdicas, pelo entusiasmo com as brincadeiras, pelo sopro
de vida demonstrado e, acima de tudo, pelas transformações evidenciadas
nas vivências arteterapêuticas.
No quadro 3, apresentamos uma sequência de cenas protagonizadas por
Canela, cuja situação reflete as experiências vividas no contato com o
lúdico.
Quadro 3 – Recorte de cenas mostrando o potencial da
ludicidade no processo arteterapêutico
Cenas Expressões e vivências
Cena
1
Me botaram aqui, eu não pedi pra vir pra cá, foram minhas filhas que fizeram isso comigo
[…] eu vou ficar aqui, não sei se eu quero ficar, não sei se eu vou gostar disso
(apresentação – primeiro encontro).
Cena
2
Mas gostei muito de ouvir as músicas... Eu tô meia lerda, eu nem conseguia quase pegá os
balão, mas foi bom (final do primeiro encontro).
Cena
3 Eu tô meio atacada hoje, acho que eu não quero fazer nada (início do terceiro encontro).
Cena
4
Gostei muito, achei até que eu fiz uma coisa bonita! Olha só como ficou bonito! Tá tudo
tão cheio de flor. Mas não é que fui eu mesmo que fiz [risos e satisfação ao contemplar sua
criação] (final do terceiro encontro).
Cena
5
Fazer isso me lembra o tempo da escola, das brincadeiras que a gente fazia, eu gosto
muito. Eu queria ficar mais tempo aqui, fazer mais coisa, é tão bom (quarto encontro).
Cena
6 Sabe, o jogo me ajuda pra minhas mãos, elas não ficam tão encarangadas (sexto encontro).
Cena
7
Eu me animo tanto quanto eu posso dançar. Eu gosto muito. Tu viu, no começo eu nem
conseguia pegar as bolas direito? Agora, já fiz tudo. Vendo essas coisas, fazendo essas
brincadeiras, eu não paro de rir... Parece que dá uma felicidade na gente (oitavo encontro).
O lúdico provoca e desperta a expressão artística adormecida em cada
pessoa idosa, na medida em que o jogo é divertido e dinâmico e restabelece
o sentido do prazer e da alegria; dessa maneira, enquanto se divertem, os
idosos expressam e trabalham suas emoções. Luckesi (2000) destaca que a
atividade lúdica é aquela que dá plenitude e, por isso, prazer ao ser humano,
seja como exercício, seja como jogo simbólico ou de regra. Os jogos
apresentam múltiplas possibilidades de interação consigo mesmo e com o
outro.
O programa do momento lúdico incluía o uso de música folclórica,
cantigas de roda e cirandas, algo apropriado para cada ocasião. À medida
que eram apresentadas as canções, percebíamos como isso nos aproximava
do desafio de possibilitar aos participantes uma prática cuidativa grupal e,
ao mesmo tempo, trabalhar individualmente memória, coordenação motora,
atenção, concentração, ritmo e consciência corporal.
A participação nessa atividade parece ter levado os idosos a uma viagem
ao passado distante. Falavam sobre a infância, sobre sentimentos do
passado, destacando mais os momentos felizes que os sofridos. A
apreciação desse instante era evidenciada em cada relato, falando sobre as
vivências e trazendo à tona as recordações. Eles revelavam suas
preferências: alguns gostavam de ouvir música instrumental, outros de
cantigas de roda e canções de ninar; também lembravam as histórias
contadas. Falavam sobre as músicas, muitas conhecidas desde a infância,
outras nunca ouvidas. Referiam que os momentos das práticas eram
reconfortantes, fazendo-os se sentirem muito bem no restante do período.
Quando o idoso traz as músicas do “seu tempo”, elas vêm carregadas de
sentidos anteriores e também atuais, pois a música consegue transcender o
tempo cronológico. O processo de recordação é provocado e não possui o
intuito de levar o idoso a se isolar no passado, na nostalgia dos “tempos
bons”. No entendimento de Tourinho (2007), trata-se de resgatar do passado
os aspectos saudáveis para que possam ser reaproveitados no presente.
É preciso considerar que esses idosos têm uma história de vida e que,
portanto, seu cotidiano é permeado de significados, lembranças, desejos e
expressões dessa história, revividos a cada atividade realizada, no modo de
fazer uma brincadeira, de jogar a bola, de seguir as regras do jogo, de falar,
olhar, ouvir e gesticular.
O uso de atividades lúdicas, brincadeiras e jogos também se mostrou
favorável na intervenção do idoso portador de síndrome demencial. No
quadro 4, apresentamos uma sequência de cenas construídas com base nas
nossas observações registradas no diário de campo, que apresentam a
evolução manifestada por Cedro, cujo comprometimento se refere à saúde
mental.
Quadro 4 – Recorte de cenas mostrando o potencial da
ludicidade no processo arteterapêutico junto ao idoso portador
de síndrome demencial
Cenas Expressões e vivências
Cena
1
Acho que não vai adiantar trabalhar com o seu Cedro, pois ele tem Alzheimer... vive
sempre pra lá e pra cá, não para quieto em lugar nenhum (impressões de um técnico de
enfermagem, no primeiro dia).
Cena
2
Permaneceu na oficina por aproximadamente dez minutos... Insistiu: “quero ir pra lá”
(primeiro encontro).
Cena
3
Permaneceu na oficina por quinze minutos, e iniciou as atividades lúdicas. Levantou-se e
saiu (segundo encontro).
Cena
4 Participou das atividades lúdicas até o fim (quarto encontro).
Cena
5
Participou das atividades lúdicas e acompanhou o início do momento criativo, mas não
demonstrou interesse e se retirou (quinto encontro).
Cena
6
Participou das atividades lúdicas; no momento criativo observou os demais fazendo as
atividades, mas não se interessou e retirou-se em seguida (sétimo encontro).
Cena
7
Participou das atividades lúdicas; no momento criativo, permaneceu mais tempo na sala,
conversou e depois se retirou (oitavo encontro).
Cena
8
Permaneceu todo o tempo na sala, até o final do encontro, mas participou só do momento
lúdico (décimo encontro).
Segundo informações colhidas junto aos membros da equipe de
enfermagem, Cedro era portador da doença de Alzheimer (DA) e, de fato,
apresentava as manifestações e sinais compatíveis coma enfermidade.
Todavia, o diagnóstico definitivo da DA somente é possível no post
mortem, pelo estudo histopatológico. O que ampara tal definição, norteando
o diagnóstico médico e a intervenção da terapêutica, é o curso de
deterioração progressiva e irreversível que o paciente apresenta. Cedro
alternava períodos de lucidez com desorientação, algo característico desse
estado patológico. Contudo, isso não impediu que ele fosse,
gradativamente, demonstrando mais interesse e integrando-se nas
atividades, talvez pela rotinização que se mantinha dentro das oficinas.
A proposta de um trabalho com ludicidade para idosos exige uma rotina
diária a ser implementada e respeitada, pois a repetição é vista como um
recurso que lhes fornece segurança, mantendo-os bem situados no tempo e
no espaço e, no caso de jogos, facilita a aprendizagem das regras (JESUS;
JORGE, 1999).
Hoje a demência é reconhecida como uma síndrome caracterizada pela
deterioração intelectual que ocorre no adulto ou no idoso. Caldas (2002)
enfatiza que, à medida que a pessoa vai demenciando, o desempenho social
fica comprometido: ocorrem alterações mentais que incluem distúrbios de
memória, de linguagem, de pensamento abstrato, de percepção e práxis,
falta de habilidade para desempenhar o cuidado de si e incapacidade para
solucionar problemas do cotidiano.
Embora a dinâmica de atenção ao idoso que vive um processo de
demência tenha toda uma estrutura específica, que difere da assistência ao
sujeito sem comprometimento de saúde mental, os estudos de Tavares
(2002) e Caldas (2002) apontam que podemos observar, no âmbito das
instituições, o despreparo profissional aliado ao medo do desconhecido, de
tal modo que essa situação gera muita insegurança no trabalho dos técnicos
de enfermagem com o paciente doente mental.
Muitas vezes, há uma certa indisposição e, em outras, falta de
investimento dos profissionais para com os pacientes demenciados,
principalmente em se tratando de idosos asilados. Da descrição das cenas
que envolvem o caso de Cedro depreende-se que alguns profissionais
ignoram o potencial do ser humano, bem como os benefícios das atividades
lúdicas na atenção aos idosos, mesmo daqueles que apresentam síndrome
demencial. Em tais situações, é bem provável que numa ILPI cuja equipe
partilhe dessa conduta nenhum investimento seja perpetrado. Nesse sentido,
Merhy (1998) considera que, nos modelos técnico-assistenciais
predominantes hoje no Brasil, as relações entre usuários e trabalhadores dos
serviços de saúde produzem espaços intercessores preenchidos pela “voz”
do trabalhador e pela “mudez” do usuário, como se o processo de relação
trabalhador-usuário fosse mais do tipo da “intersecção objetal”, ou seja,
aquela em que o sujeito está ausente no processo e quem toma as decisões
totais e plenas é o trabalhador.
Entretanto, cabe salientar que esse distanciamento nas relações entre
sujeito cuidado e cuidador também é atribuído ao tecnicismo, carregado
pela modernidade que preza por velocidade e eficiência, transformando,
assim, a pessoa num sujeito apagado da relação (GUARESCHI, 1998;
MACHADO, COLVERO, 2003). Ousaríamos asseverar que isso se aplica
ao contexto das ILPI, pois observamos que alguns profissionais desses
ambientes, na sua práxis diária, estabelecem uma atmosfera em que o centro
do cuidado é o paciente, porém o cuidado resume-se à higiene, alimentação
e medicação.
O olhar da instituição sobre o trabalho arteterapêutico
Para abordar este tema, remetemo-nos a uma lenda que traz em si uma
reflexão sobre a ideia de norma, padrão e rotina, cujos resquícios trazem
consequências às práticas cuidativas das instituições que não consideram o
ser humano como o centro da atenção. Uma antiga lenda nos conta sobre
um homem rico, poderoso, obsequioso e cortês, de nome Procusto, que
tinha por hábito convidar estranhos para visitarem seu palácio. O hóspede
era recebido com requinte: túnicas primorosamente talhadas, vinhos muito
especiais, iguarias inesquecíveis e… um leito suntuoso. Ao visitante,
porém, um único problema se apresentava: encaixar-se perfeitamente no
leito. Se houvesse qualquer discrepância entre o tamanho da cama e o do
convidado, este era cortado ou esticado para que se adequasse às
proporções devidas. A morte era quase certa! Só poucos e raros convidados
absolutamente adequados à dimensão preestabelecida alcançavam a velhice.
Adentrar numa ILPI, mesmo com uma proposta esclarecida e firmada em
contrato por meio do projeto de pesquisa, gerou desconfiança, insegurança
e cenas inusitadas, tais como: alguém (funcionário) espiando atrás da porta
durante a realização das oficinas, ou, ainda, esforço excessivo ao proferir
uma espécie de elogio às criações dos idosos, seguido de uma ação na qual
se mostrava total indiferença e, por vezes, até mesmo descaso para com o
processo. Tais atitudes podem ilustrar a lenda nos seus aspectos mais sutis e
cotidianos.
O Procusto, na atualidade, saiu do recinto do seu palácio e habita nos mais
variados locais, inclusive nas ILPI. Assim, “cabeças podem rolar” se
ousarem interferir ou averiguar algo tão velado como o modo de ser e
cuidar de algumas desses lugares. A maior parte das instituições de cuidado
prolongado preocupa-se em preencher os regulamentos que descrevem os
padrões mínimos que a instituição deve perfazer para cumprir a lei.
Eliopoulos (2005) destaca que as necessidades dos residentes são avaliadas
de acordo com a sobrevivência econômica. A isso podemos acrescentar o
fato de que muitas instituições têm na sua equipe funcionários não
habilitados, uma alta rotatividade de pessoal e interesses que, às vezes,
parecem atender mais aos desejos dos familiares do que aos anseios dos
internos.
Nessa perspectiva, nossa tentativa de deslocar o olhar dos dirigentes e
cuidadores asilares para as múltiplas possibilidades de cuidado integral e
humanizado talvez fique mais no plano da produção de conhecimento e da
exposição de uma proposta de cuidado gerontológico que valoriza o sujeito
como um ser humano multidimensional, com um potencial criativo ávido.
Resta saber se aqueles que virem a conhecer a nossa sugestão vão realmente
conseguir enxergá-la.
Reflexões finais
Ao avaliar os achados do estudo, consideramos que os idosos
participantes do trabalho arteterapêutico encontraram oportunidades de
reinventar seu modo de ser e estar no contexto de uma ILPI. No encontro
com as atividades expressivas, eles acharam formas de comunicar seus
anseios, sentimentos e emoções, muitas vezes sufocados por uma internação
forçosa.
É importante tentar, por meio dessas possibilidades múltiplas,
compreender mais profundamente o processo de cuidar o idoso com uma
visão mais integradora das diversas ciências que estudam o assunto.
Percebemos que tais estudos são, às vezes, estanques, observando a pessoa
de uma única perspectiva; hoje se fala até em transdisciplinaridade, porém
não conseguimos atingir sequer a mínima integração entre as áreas
envolvidas no processo.
Esperamos, com nossos achados, sugerir os diversos caminhos que podem
ser seguidos para o avanço na construção do conhecimento e no cuidado
gerontológico, como também colaborar com outros estudos que entendam o
trabalho arteterapêutico como transdisciplinar e como processo inscrito na
possibilidade de atender o ser humano integrado no ambiente, levando em
conta suas dimensões física, psíquica, emocional e espiritual.
Quando falamos de cuidado do idoso em ILPI, podemos afirmar que se
fazem necessários espaços arteterapêuticos com recursos apropriados.
Todavia, precisamos ressaltar os componentes fundamentais para que essa
ideia inovadora triunfe: por um lado, os recursos humanos que vão
implementá-la, ou melhor, torná-la uma realidade; por outro, a vontade dos
gestores em querer melhorar a qualidade de vida dos asilados.
Tarefas dessa dimensão cuidativa requerem uma formação consistente.
Assim, atrevemo-nos a enfatizar a necessidade da inserção da arteterapia na
qualificação dos recursos humanos, em especial de gerontologia. Com isso,não queremos dizer que em outras faixas etárias se possam ter profissionais
menos qualificados, mas, sim, chamar a atenção para a educação de um
profissional para o cuidado gerontológico, adotando a arteterapia como
proposta terapêutica.
Os desafios que emergem da problemática em questão não se limitam ao
campo da investigação (ciências) ou ao contexto da dimensão cuidativa,
pois têm uma forte incidência no campo da educação. De que modo os
cursos da área de saúde podem trabalhar o cuidado humano integrando no
seu currículo a arteterapia? Como integrar, efetivamente, no cuidado e no
conforto, os procedimentos técnicos com a arteterapia? Para enfrentar esses
desafios, o arteterapeuta necessita desenvolver uma percepção crítica do
saber-ser e do saber-fazer. É notório que os paradigmas vigentes não estão
mais atendendo às reais necessidades do segmento idoso; logo, é preciso ir
além do que está posto.
Assim, procuramos oferecer alguns subsídios que possam auxiliar as
pessoas que trabalham direta ou indiretamente com idosos no âmbito das
ILPI. Tentamos também mostrar outras alternativas de cuidado
gerontológico, além dos procedimentos técnicos específicos já
mencionados. Estamos cientes de que ainda há muito a ser feito para que as
ILPI deixem de replicar o estilo dos hospitais e passem a considerar a
população que estão atendendo, bem como suas necessidades peculiares.
Sabemos que a arteterapia não oferece a panaceia para todos os males, mas
temos certeza de que sua contribuição é inegável. Se o leitor ainda tiver
dúvidas, basta experimentar!
Referências bibliográficas
ACOSTA, M. A. F. Jogos de integração do idoso de Santa Maria; atividades e atitudes lúdicas.
Caderno Adulto, Santa Maria, n. 3, pp. 125-129, [s.m.] 1999.
ASMANN, H.; MO SUNG, J. Competência e sensibilidade solidária; educar para a esperança.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
BOFF. L. Saber cuidar; ética do humano — compaixão da Terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
BOYKIN, Ane. A enfermagem como conforto: o artístico no cuidado. Texto & Contexto –
Enfermagem. Florianópolis, v. 7, n. 2, pp. 36-51, maio/ago. 1998.
CABRAL, I. E. Método criativo e sensível. In: GAUTHIER, J. H. M; CABRAL, I. E.; SANTOS, I.
Pesquisa em enfermagem; novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998.
pp. 177-203.
CALDAS, C. P. Contribuindo para a construção da rede de cuidados; trabalhando com a família do
idoso portador de síndrome demencial. Textos Envelhecimento, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 39-56,
2002.
CARVALHO, V. F. C.; FERNANDEZ, M. E. D. Depressão no idoso. In: PAPALÉO NETTO, M.
(Org.) Gerontologia. São Paulo: Atheneu, 1996. pp. 155-169.
COSTA, V. C. Algumas reflexões sobre o trabalho arte terapêutico com um grupo de terceira idade.
Imagens da Transformação, Rio de Janeiro, v. 10, n. 10, pp. 183-186, 2003.
ELIOPOULOS, C. Enfermagem gerontológica. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
FILIPETTO, M. C. Novas dimensões da velhice despertas pela ludicidade. Caderno Adulto, Santa
Maria, n. 3, pp. 121-124, [s.m.] 1999.
GUARESCHI, P. Alteridade e relação; uma perspectiva crítica. In: ARRUDA, A. Representando a
alteridade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. pp. 149-161.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA — IBGE. Projeção da expectativa
de vida para 2050. 2002. Disponível em: . Acesso
em: 17 ago. 2006.
JESUS, L.; JORGE, M. M. Jogos e atividades lúdicas na idade avançada. Cadernos de Psicologia,
Ribeirão Preto, São Paulo, v. 6, n. 8, pp. 66-73, jul. 1999.
LAHORGUE, C. T. Suponhamos que a natureza fale. In: ORMEZZANO G. R. (Org.). Questões da
arteterapia. Passo Fundo: UPF, 2004. pp. 27-37.
LELIS, C. M. C. A educação musical especial e a musicoterapia. In: ENCONTRO DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 9, Belém, Anais da ABEM… [s.l.]:
ABEM, 2000. p. 112.
http://ibge.gov.br/estatistica/popula%C3%A7%C3%A3o/proje%C3%A7%C3%A3o
LITVOC, J.; DERNTL, A. M. Capacidade funcional do idoso; significado e aplicações. In:
CIANCIARULLO, T. I. et al. (Org.). Saúde na família e na comunidade. São Paulo: Robe, 2002. pp.
268-318.
LUCKESI, C. C. Educação, ludicidade e prevenção das neuroses futuras; uma proposta pedagógica a
partir da biossíntese. In: LUCKESI, C. C. (Org.). Educação e ludicidade. Salvador: FACED/UFBA,
2000. pp. 9-42.
____. Ludicidade e atividades lúdicas; uma abordagem a partir da experiência interna, 2004.
Disponível em: . Acesso
em: 3 set. 2006.
MACHADO, A. L.; COLVERO, L. A. O cuidado de enfermagem; o sujeito do cuidado como sujeito
da relação. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 18, n. 1/2, pp. 51-55, jan./ago. 2003.
MERHY, E. E. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde; uma discussão do modelo
assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: CAMPOS, C. R. et al.
Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte; reescrevendo o público. São Paulo: Xamã, 1998. pp.
103-120.
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento; pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de
Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1996.
ORMEZZANO, G., ARRUDA L. Z. Intervenção arteterapêutica com uma paciente oncológica idosa.
Revista Brasileira de Ciências do Envelhecimento Humano, Passo Fundo, v. 2, n. 2, pp. 16-27, dez.
2005.
OSTROWER, F. Criatividade e processo de criação. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
PIZARRO, R. A. D. S. A importância da atuação do profissional enfermeiro na qualidade de vida
dos idosos institucionalizados; uma avaliação qualitativa nas casas de repouso da cidade de São
Paulo. 2004. Dissertação — (Mestrado em Engenharia de Produção), Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2004.
PORTELLA. M. R.; BETTINELLI, L. A. Humanização da velhice; reflexões acerca do
envelhecimento e do sentido da vida. In: PESSINI, L.; BERTACHINI, L. Humanização e cuidados
paliativos. São Paulo: Loyola, 2004, pp. 101-112.
SANTIN, S. Cuidado e/ou conforto; um paradigma para a enfermagem. Texto & Contexto-
Enfermagem, Florianópolis, v. 7, n. 2, pp. 111-132, maio-ago. 1998.
SAVIANI, I. Arte terapia, ludicidade e saúde. Imagens da Transformação, Rio de Janeiro, v. 10, n.
10, pp. 96-101, 2003.
SOUZA, S. R. Pintura e o inconsciente. In: MONTEIRO, D. M. R. Depressão e envelhecimento;
saídas criativas. Rio de Janeiro: Revinter, 2002. pp. 61-70.
TAVARES, C. M. M. Prática criativa da enfermagem psiquiátrica; fatores intervenientes no seu
desenvolvimento. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, pp. 107-117,
abr. 2002.
TOURINHO, L. M. C. Musicoterapia e a terceira idade ou musicoterapia; corpo sonoro. Disponível
em: . Acesso em: 14 mar. 2007.
http://www.luckesi.com.br/textos/ludicidade_e_atividades_%20ludicas.doc
http://www.musicaeadoracao.com.br/efeitos/musicoterapia.htm
TURATO, E. R. Tratado de metodologia da pesquisa clínico-qualitativa; construção teórica
epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2003.
URRUTIGARAY, M. C. Arteterapia; a transformação pessoal pelas imagens. 2. ed. Rio de Janeiro:
WAK, 2004.
VIEILLARD, S. O estudo das reações emocionais moduladas por andamento e modo indica que é
possível identificar raiva, alegria, tristeza e serenidade ligadas à música. Viver Mente & Cérebro, São
Paulo, v. XIII, n. 149, pp. 52-56, jun. 2005.
VOLICH, R. M. O cuidar e o sonhar; por uma outra visão da ação terapêutica e do ato educativo. In:
PESSINI, L.; BERTACHINI, L. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola, 2004. pp.
71-85.
A
CAPÍTULO 4
Idosos em rede: interface entre
interação no ciberespaço,
tecnologias de comunicação e
relacionamento
Adriano Pasqualotti7 Liliana Maria Passerino8 e Paulo Roberto Pasqualotti9
Tecnologias de informação e comunicação promovendo a
interação
s tecnologias de informação e comunicação disponíveis na internet
tornam-se mais atraentes na medida em que contribuem para a
construção deDiante da discriminação da pessoa
idosa nas várias sociedades, estará o ser humano produzindo e vivendo uma
cultura para a morte? Estarão os currículos universitários corroborando para
essa crise existencial? Afinal, quem é esse ser humano no mundo e qual é o
mundo desse ser humano que implica diretamente o processo do envelhecer
com sabedoria?
Este livro se dispõe a falar sobre essas e outras questões. Vale a pena lê-lo
dentro de um espírito, mesmo, de busca de novas reflexões que possibilitem
novas ideias para pensar e viver o envelhecer com sabedoria. A sabedoria se
sustenta na criatividade que referenda uma espiritualidade sábia, no sentido
de perceber a beleza da gênese da vida no ser humano, dentro de seu
contexto cultural, e que começa ontologicamente já no momento de seu
nascimento.
MARIA GLÓRIA DITTRICH Doutora em Teologia pelo Escola Superior de Teologia. É professora e
diretora acadêmica da Faculdade São Luiz e professora titular da Universidade do Vale do Itajaí.
Atual presidente da Associação Catarinense de Arteterapia – ACAT
E
Introdução
 
 
 
screver sobre o envelhecer não foi fácil, mas com certeza foi uma
tarefa que nos enriqueceu.
Escrever sobre o envelhecer com sabedoria foi ainda mais difícil, porém
nos conduziu ao autoconhecimento, e quem sabe avançamos alguns passos
no nosso processo de individuação.
Todo tema escolhido para escrever, pintar, esculpir, dançar, musicalizar,
ou até mesmo para pesquisar cientificamente, sai das entranhas de seu autor.
O pensar criativo envolve o criador, e cada partícula de seu ser se
movimenta para a realização da criação artística ou investigativa. Para Jung
o nosso modo de ver as coisas é condicionado pelo que somos. Não somos
apenas testemunhas passivas e sofredoras de nossa época, das mudanças
culturais, sociais e espirituais, mas sim construtores de nossa época, de
nossas vidas e do nosso tempo. A responsabilidade e a ação pessoal
trabalham direta e indiretamente sobre o coletivo.
A elaboração deste livro não foi diferente, o tema surgiu ante a
necessidade de suprirmos algumas carências teórico-práticas que
percebemos em nossa profissão docente, em nossas atividades acadêmicas,
ao formar outros profissionais que atuarão junto ao idoso. Ao mesmo
tempo, falamos de nossos anseios, angústias e realizações interiores
enquanto seres humanos em processo de envelhecimento. Portanto, cada um
dos autores que produziu o conhecimento desta obra fez uma reflexão sobre
o fato de ser idoso no mundo contemporâneo.
Idoso, mas quem é idoso? O que é ser idoso? Como é o idoso? Mil
perguntas e reflexões surgiram. Porém o número de respostas não foi o
mesmo das questões. Pois a cada resposta surgia uma nova questão. E
dentro de cada um de nós surgiam comparações entre o Eu e o Outro, e a
própria visão de idoso que temos internalizada.
E o tema ampliou-se. Encontramos conceitos, pré-conceitos, novas formas
de se referir ao idoso, tais como terceira idade, melhor idade, idade de ouro
e outras. E verificamos que a palavra velho/velha havia sido descartada do
vocabulário, ou apenas era empregada no sentido pejorativo.
Não foi somente a palavra que foi banida do vocabulário, mas também a
pessoa, pois não há mais lugar para o velho/velha na cultura e na sociedade
brasileira. O corpo envelhecido deve buscar rejuvenescimento. Mas e o
conteúdo, a essência, o conhecimento que esta pessoa acumulou durante
toda a sua vida, envelheceram também? Se fizermos uma comparação com
a aquisição tecnológica, pode ser que sim, que esteja desatualizada. Mas, se
modificarmos o ângulo de avaliação, direcionarmos o olhar sob outro
prisma, descobriremos a essência profunda da sabedoria de cada um.
A essência da sabedoria não consiste somente em conhecimento
científico, teórico, artístico. A profunda essência da sabedoria encontra-se
na arte de amar e de se relacionar com equilíbrio e harmonia. Que não é
tarefa fácil.
Não temos a pretensão de exaurir este tema nem de dar diretrizes exatas
que finalizem as reflexões. Mas temos o objetivo de estimular o
pensamento sobre as pessoas que estão vivendo mais e que merecem viver
com qualidade de vida e serem respeitadas pelo que são. Quem sabe
amanhã seremos uma delas.
Os capítulos foram elaborados de acordo com as emoções e anseios de
seus autores, que, diante de suas necessidades profissionais, buscaram
respostas teóricas, psíquicas, emocionais, artísticas e espirituais. Essas
respostas apontam para várias direções, porém conduzem a um único ponto,
para a libertação do ser humano digno e íntegro, ou seja, para além de todos
os conceitos e pré-conceitos culturais e sociais. Para isso, é necessário que o
ser humano desenvolva a consciência da autovisão, do autoconhecimento, e
que seja dono de si mesmo e aprenda a amar-se. Para Jung, o Si-mesmo
atua como uma fonte inconsciente de vida em comunhão, do sujeito com ele
mesmo e com o coletivo.
A consciência do Si-mesmo afeta profundamente todas as relações,
endógenas e exógenas, e leva a pessoa a apreciar o mundo a sua volta com
mais interesse e com gratidão renovada. Isso faz com que outra dinâmica
substitua e revitalize a que está em vigência e em estado passivo, levando o
ser humano a ver o mundo de outro ângulo, descobrindo novas
possibilidades e oportunidades de interagir consigo mesmo e com o outro.
A vida torna-se mais leve e saudável.
SONIA BUFARAH TOMMASI
A
CAPÍTULO 1
Sabedoria do envelhecer
Sonia Bufarah Tommasi1 e José Jorge de Morais Zacharias2
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia. Fernando Pessoa
madurecer e envelhecer são condições tão naturais da vida quanto
nascer e morrer, no entanto as diversas sociedades abordam esta
questão de maneiras diferentes, em função de aspectos ideológicos ou
culturais.
As culturas tribais geralmente atribuem ao ancião e à anciã características
de sabedoria e responsabilidade no ensino dos valores culturais do grupo.
Podem ser conselheiros ou místicos que têm o dom de acessar o mundo dos
ancestrais.
Nas sociedades modernas, principalmente após a industrialização, a
questão do envelhecer passou a ser considerada sob outro prisma, uma vez
que o foco cultural deslocou-se para a produção, abandonando as tradições
monárquicas e religiosas. Passou-se a dar importância ao cidadão capaz de
sustentar a produção por meio de sua força física. Obviamente os anciãos e
anciãs ficaram à margem desse novo estilo de vida, pois suas debilidades
físicas muitas vezes os impediam de trabalhar numa fábrica.
Com o passar do tempo, a população mais velha tendeu a suplantar em
número o contingente de jovens, principalmente nos países do primeiro
mundo, e este fato acarretou mudanças necessárias no modo de a sociedade
lidar com a questão do envelhecer.
Uma população cada vez mais numerosa de idosos exigiu que o Estado e
as instituições se adaptassem para garantir a esses cidadãos condições
adequadas de vida.
No entanto, mesmo que as ofertas de serviços e suporte para os idosos
tenham sido implementadas, as concepções acerca do que é envelhecer
ainda permanecem imbuídas de valores depreciativos, advindos de épocas
anteriores em que jovialidade, força e vigor físico eram fundamentais para a
inserção social.
As repercussões sociais decorrentes do envelhecimento foram
historicamente registradas em países mais desenvolvidos — onde a
população idosa cresceu mais neste último século –, tornando-se um
fenômeno global somente a partir dos anos 1980.
O envelhecer em si, como fenômeno de natureza bio-psico-social-
espiritual complexo, repercute profundamente no ser humano, e reconhecê-
lo é estritamente necessário. Somente com o reconhecimento e
compreensão desse fenômeno, processo, fase da vida, é possível envelhecer
com sabedoria.
Apesar de se acreditar que os estudos sobre o envelhecimento são
recentes, o tema já foi preocupação de muitos filósofos gregos. Para a
filosofia o envelhecimento encontra-se dentro do paradoxo dos contrários
juventude e velhice, que habitam e coexistem num só corpo e em uma só
alma. Em um diálogo intensoambientes e ferramentas de interação. A grande rede tem se
apresentado como um meio propício para o desenvolvimento de ambientes
interacionistas ricos em recursos que propiciem a troca de informações
entre indivíduos. Nesse sentido, é possível descrever alguns aspectos que a
tornam mais interessante que os outros meios (CASTANHO; LOYOLLA;
PRATES, 1999):
• Independência de formato: os dados podem ser encapsulados segundo
padrões específicos e transmitidos por meio da rede. Para a sua
visualização correta, é necessário que o usuário possua programas para
realizar a decodificação correta desses dados. Como a transmissão é
padronizada por organizações independentes, não se corre o risco de
dependência de um formato proprietário;
• Sistema dinâmico e incremental: é um meio de transmissão no qual há
uma atualização constante do conteúdo facilitada pela arquitetura cliente-
servidor. Essa arquitetura permite que a informação original fique
armazenada no servidor e que os clientes utilizem a mesma fonte; logo
após a atualização, os clientes já têm acesso aos novos dados;
• Independência geográfica: a distância entre usuário e servidor não afeta
em nada o acesso aos dados. As únicas restrições são a ligação desse à
internet e a disponibilidade de um aplicativo de navegação;
• Independência temporal: o usuário não é obrigado a acessar os dados em
determinado horário, mas sim realiza essa atividade de acordo com a sua
necessidade e disponibilidade;
• Integração com o ambiente computacional: como os aplicativos têm a
interface quase que independente da plataforma, existe a possibilidade de
execução de diferentes aplicativos a partir deste. Isso auxilia os novos
usuários, que não necessitariam aprender a utilizar uma nova interface
para cada plataforma;
• Criação: a criação de materiais para a web ainda sofre alguns problemas,
como o desconhecimento da própria web. A solução virá com o tempo e
com a familiarização do mediador a ela e, também, por meio de
ferramentas a serem desenvolvidas;
• Comunicação: a utilização de www como nova tecnologia em interação
deve-se, em grande parte, à comunicação possibilitada pela web, que
permite diversos graus de interação entre pessoas, fator fundamental para
a educação. A web permite diversas formas de comunicação, e com
vantagens sobre a comunicação face a face.
Apesar dos avanços tecnológicos, conseguir implementar um ambiente
digital que não só favoreça a participação ativa do sujeito no processo de
interação, a troca de ideias e as experiências entre os participantes, mas
também torne possível a discussão em grupo e o trabalho cooperativo,
continua sendo um desafio para as equipes de desenvolvimento desses
ambientes. Um ambiente digital orientado à comunicação e à interação é,
quase sempre, em primeiro lugar, um desafio lúdico que gera, naturalmente,
motivação, o que é fundamental para que se efetue a comunicação. A
interatividade, a manipulação e o controle do ambiente por parte do sujeito
reforçam ainda mais a motivação referida e permitem-lhe sentir-se à
vontade, dominando um universo que compreende e apreende mais
facilmente. Por outro lado, em um ambiente como esse, a aprendizagem é
realizada pelo sujeito, embora sempre com o apoio do mediador
(GOUVEIA; CAMACHO, 1998). Também se pode afirmar que as
dificuldades de aprendizagem são, nesses ambientes, mais fáceis de
ultrapassar, já que a interatividade, a manipulação e o controle sobre o
ambiente permitem uma adaptação ao tipo e ao ritmo de aprendizagem, que,
associada à visualização de informação complexa de uma forma simples,
facilita a superação de dificuldades de uso e acesso às tecnologias.
Em um ambiente de interação, deseja-se que o sujeito esteja no centro do
processo de comunicação. Cunningham, Duffy e Knuth (1993) definiram as
finalidades dos ambientes para possibilitar o processo de interação-ensino-
aprendizagem:
• oferecer múltiplas representações dos fenômenos e problemas estudados,
possibilitando que os participantes avaliem soluções alternativas e testem
suas decisões;
• possibilitar ao sujeito a decisão sobre tópicos do domínio a serem
explorados, além dos métodos de estudo e das estratégias para a solução
de problemas;
• envolver a aprendizagem em contextos realistas e relevantes, isto é, mais
autênticos em relação às tarefas da aprendizagem;
• colocar o mediador no papel de um consultor que auxilia os participantes
a organizarem seus objetivos e caminhos na aprendizagem;
• envolver a aprendizagem em experiências sociais que reflitam a
colaboração entre os sujeitos;
• encorajar a meta-aprendizagem.
De acordo com Passerino (2005), os principais requisitos para a existência
de interação em ambientes computacionais interativos são:
• percepção: requisito necessário para a existência de interação, exige do
ambiente mecanismos que permitam “perceber” o outro no ambiente;
• relação de copresença: a percepção é um requisito necessário, porém, não
suficiente, isto é, além de perceber o outro é importante que seja possível
detectar a copresença, ou seja, estabelecer uma relação de forma a
compartilhar um contexto diluído no tempo/espaço comum entre os
sujeitos;
• relação de reciprocidade: estabelece-se na bidirecionalidade, na
comunicação entre os participantes;
• meio cultural compartilhado: com a finalidade de permitir a construção de
um contexto de significados compartilhados;10
• Instrumentos de comunicação: dado que a interação acontece sempre
dentro de um processo de comunicação, então a existência de ferramentas
ou mecanismos que promovam a linguagem são fundamentais para
permitir a interação.
Um ambiente deve permitir a interação do aprendiz com o objeto de
estudo, e isso não significa apenas apertar teclas ou escolher entre opções
de navegação. A interação, ao ultrapassar essa barreira “tecnicista”, permite
a integração do objeto de estudo à realidade do sujeito, isto é, às suas
condições cognitivas, psicológicas e emocionais, desafiando-o na busca de
novas possibilidades de interação e imergindo em situações que propiciam o
seu desenvolvimento. A verdadeira interação em ambientes
computacionais11 extrapola o universo sujeito/computador, ao transpô-la
para o âmbito sujeito/sujeitos, com características diferenciadas das
interações face a face amplamente estudadas pela literatura (GOFFMAN,
1981; GUMPERZ, 1982; FORMAN e CAZDEN, 1985; ERICKSON, 1991;
RIBEIRO e GARCEZ, 1998; SINCLAIR e COULTHARD, 1975).
Idosos, sociedade e as tecnologias de informação e
comunicação
A relação da imagem do idoso na sociedade vem se transformando
lentamente, porém há ainda preconceito e exclusão. O termo “idoso”
associa-se a aposentado, inativo e não produtivo. A sociedade propicia ao
idoso uma situação cômoda, mas, ao mesmo tempo, reforça valores
depressivos quando os considera desocupados e impossibilitados de realizar
tarefas. De acordo com Kachar (2000, p. 97)
[…] a geração que nasceu e foi educada em uma época em que o tempo transcorria em outra
velocidade e as tendências das situações eram a estabilidade, hoje não consegue acompanhar as
modificações sociais e tecnológicas. Para a maioria das pessoas da terceira idade, o uso do
computador estaria totalmente fora do seu alcance. Não envolvendo apenas motivos financeiros,
mas motivos emocionais. O uso dessa tecnologia traz certas dificuldades que para nós passam
despercebidas. Tudo é muito desconhecido: os ícones, o mouse, a velocidade, a dificuldade em ler
na tela, o peso dos dedos sobre o teclado, a memória, a coordenação visomotora, a visão frágil
para visualizar os ícones pequenos.
As informações disponíveis na internet para as pessoas idosas vêm ao
encontro das necessidades e expectativas de inclusão, auxiliando e
possibilitando-lhes, ao mesmo tempo, construir conhecimentos e vivenciar
o agora, sem desprezar as experiências e os sentimentos já vivenciados.
Dessa forma, a aprendizagem não ocorre desvinculada e descontextualizada
das experiências do idoso. Mais do que disponibilizar informações, a
sociedade e suas instituiçõesprecisam pensar em alternativas e
oportunidades para que idosos possam se apropriar desse universo
tecnológico, apropriação com a finalidade de incorporação numa cultura,
como domínio de modos culturais de agir, de pensar e de se relacionar
(SMOLKA, 2000), uma vez que cada inovação tecnológica abre novas
possibilidades de criar, relacionar-se e posicionar-se perante os outros. O
não acesso à rede mundial de computadores impede que as pessoas idosas
descubram as variedades de mídias disponibilizadas, como, por exemplo,
sites de pesquisa, listas de discussão e programas de bate-papo. A moderna
tecnologia computacional para a terceira idade é tanto desejada quanto
rejeitada, pois sentimentos ambíguos se instalam na relação com a máquina.
Em muitos casos, são depositadas nela angústias, ansiedades e esperanças.
Quem não acompanha os avanços tecnológicos e sociais fica para trás,
correndo o risco de ser ultrapassado e marginalizado pela modernidade,
pelo tempo e pelos movimentos atuais. No entanto, Kachar (2000, p. 5)
ressalta que
[…] dominar o computador é um ritual de passagem para a modernidade… Há uma busca muito
forte de inserção no movimento do mundo e de estabelecer diálogo com as gerações mais novas,
representadas pelos netos que sentam para ensinar a vovó a mexer no computador e pelos filhos
que sentem orgulho das mães que avançam no desempenho com a máquina.
Acompanhar a globalização do uso das novas tecnologias de comunicação
e interação — era da informação em rede — é fácil para os jovens, porém,
com as pessoas idosas esse processo é mais lento. Muitos têm grandes doses
de persistência para a superação de obstáculos, vinculando a busca do
conhecimento com a expectativa em conhecer e compreender o novo. Por
outro lado, quando o estímulo cerebral do idoso perde a rapidez, criam-se
novas dificuldades e torna-se difícil acompanhar o ritmo acelerado das
mudanças. Por isso, para quem faz parte da terceira idade, preencher o
tempo ocioso de uma forma útil e inteligente é uma preocupação. Os idosos
estão partindo para o campo tecnológico, o caminho da informática, pois a
sociedade moderna exige constante reciclagem e rapidez de raciocínio. A
idade não é fator definidor das possibilidades de acesso ao computador. O
ambiente educacional das aulas e das oficinas para as pessoas idosas é
diferente do que frequentaram quando eram jovens. Educados numa época
em que o ensino se dava pela autoridade, pela disciplina, no sequencial e no
direcionamento, o jeito de resolver um problema era único, e o erro era
castigado. Nesse sentido, o computador permite um leque de caminhos para
lidar com uma mesma situação. Cabem ao indivíduo a descoberta e a
escolha da forma de resolução por meio do tentar, errar e acertar. De acordo
com Kachar (2000), a apropriação dos símbolos do computador envolve a
articulação dos aspectos operacionais do equipamento, da linguagem da
máquina e de uma abordagem pedagógica adequada:
• Aspecto operacional: aprender a operar o computador; desenvolver a
habilidade e a destreza visomotora com o mouse, as teclas e os recursos
de hardware e software.
• Aspecto da linguagem: leitura, interpretação e compreensão da nova
linguagem tecnológica da comunicação. Trabalhar a semântica dos
menus, a tradução da palavra, o contexto de origem e o conceito
subjacente;
• Abordagem pedagógica: utilização de um aplicativo para a promoção da
comunicação/interação e para a construção do conhecimento.
Num outro enfoque, Passerino e Pasqualotti (2006, p. 256) propõem
outras dimensões para compreender o processo de apropriação tecnológico:
• Usabilidade: termo multidimensional que se refere aos atributos
necessários a um sistema para que possa ser “utilizado” adequadamente,
isto é, ser fácil de aprender, eficiente, tolerante a falhas e erros e,
principalmente, satisfazer o usuário com relação aos resultados obtidos a
partir da utilização dessa tecnologia.
• Acessibilidade: representa a facilidade de aproximação do usuário à
interface, ao programa, à tela, enfim, aos recursos disponíveis no processo
de interação. Enquanto a usabilidade é orientada para as expectativas e
para a capacidade do usuário em entender e perceber as estratégias de
utilização dessa tecnologia, a acessibilidade foca-se nas condições de uso,
principalmente, em como se dá o acesso do usuário às informações
disponíveis.
• Conhecimento construído: dimensão focada mais na questão do indivíduo
e do seu contexto social. Diz respeito à forma como as pessoas constroem
conhecimento e como o adaptam a novas situações.12
Além disso, os autores destacam também que além das dimensões
apontadas é possível identificar outras variáveis relacionadas com o
indivíduo biopsicossocial em interação, como memória, pensamento e
linguagem. Ao interagir com o computador, o idoso pode depurar o seu
pensamento sobre uma situação-problema. A criação de um desenho ou a
digitação e formatação de um texto são elaboradas até satisfazerem o
usuário. De acordo com Valente (1993), ao aprender por meio da descoberta
há uma construção e apropriação do aprendido pelo aprendiz que o
modifica. Esse descobrir é também a descoberta de si próprio, sentindo-se
capaz de atingir seu objetivo, revelando suas potencialidades individuais e
singulares. Já Rocha (1993) descreve que um ciclo de interação com o
computador leva o sujeito a depurar o seu pensamento em relação à
situação-problema: descrição-execução-reflexão-depuração.
Na terceira idade, a aprendizagem é compartilhada: todos verbalizam
dúvidas, experiências, conhecimentos, conquistas e dificuldades. É o
aprender superando-se por meio de desafios significativos, desvelando
limites e possibilidades, rompendo fronteiras e desconstruindo ideias
equivocadas sobre o computador e sobre si próprio. De acordo com
Monteiro (2002), para as novas gerações do terceiro milênio não foi preciso
a adaptação à informática, porém isso não se aplica para os mais velhos.
Não se pode pensar que as novas ferramentas são exclusivas dos jovens,
pois nunca é tarde para experimentar, conhecer e descobrir o novo. A partir
do momento em que as pessoas idosas tomam contato com as tecnologias
de comunicação, abre-se um universo de possibilidades para o
desenvolvimento dos processos de interação. Esse contato muitas vezes
ocorre de forma obrigatória e sem dar opção ou oportunidade ao idoso de
escolhas, pois o desenvolvimento, as criações da sociedade são elaboradas e
impostas sob a bandeira do progresso, dos avanços e das melhorias, porém
essa não é uma visão globalizada, uma busca “de” e “para” todos.
Mecanismos tecnológicos são criados para “ajudar e agilizar”, mas
desconsideram-se questões de adaptação e adequação, de usabilidade e
acessibilidade. Por exemplo, caixas eletrônicos substituem pessoas no
atendimento bancário, mas não substituem a comunicação, a interação e os
significados vinculados à linguagem humana.
Dessa forma, a velhice não constitui um marco isolado no
desenvolvimento vital humano, tampouco é fenômeno acidental dentro da
existência. A partir da terceira idade de vida, a felicidade depende mais de
como se utiliza o tempo do que de qualquer outra condição. O idoso pode se
dar o luxo de fazer só aquilo de que gosta, que é agradável, confortável e
importante para viver bem. Entretanto, a disponibilidade de tempo e o
interesse não podem ser superados pela falta de estímulos, pelo medo do
novo ou pela vergonha. Em decorrência dessas observações, ressalta-se a
necessidade de promover junto às pessoas idosas estimulação constante a
fim de levá-las à consciência do quanto pode ser ampliada sua capacidade
não só de receber e avaliar novas situações e desafios, como também de
integração e ressignificação do momento presente e de real participação no
contexto sociocultural em que vivem. Assim, a educação está ligada a
outros processos, como formação cultural, pessoal e cidadã. É, portanto, um
conjunto de ações educativas que proporciona às pessoas idosas condições
para que vivenciem e construam estruturas cognitivas, bem comodesenvolvam habilidades práticas e políticas, participando ativamente da
sociedade, ao mesmo tempo que têm suas expectativas atendidas. O que se
precisa é ensinar juntamente com incluir, é aprender com o construir e
atender a expectativas de uma forma e com uma metodologia que realmente
coloque o idoso diante das tecnologias e da realidade dinâmica e mutável
que o cerca. Para promover a inclusão social ou digital, as instituições de
ensino não podem dissociar o idoso de sua realidade e de suas relações com
a sociedade e a família, isto é, devem promover a aprendizagem e a
construção de novas relações, ou aproximar e estreitar as já existentes.
O aprendizado é uma via de mão dupla pela qual os idosos têm a
oportunidade de crescimento educacional e social, descobrindo o verdadeiro
valor da educação, visto que aprendem e ensinam. Hoje, computadores e
sistemas de comunicação são instrumentos úteis para a obtenção de
informações de uma forma rápida e nunca antes experimentada pelo ser
humano. Na internet esse acesso é obtido de maneira interativa e fácil, com
recursos multimídias, como, por exemplo, som, vídeos, imagens e
animações. Para as pessoas idosas, ela não é apenas mais uma fonte de
pesquisa, pois para esse público o processo de comunicação e interação
possibilita a criação de novas relações, seja pelo resgate do passado, seja
pelas relações advindas da socialização no ciberespaço. Mais que uma
ligação com o mundo, a web torna-se um lugar legítimo de socialização. A
rede mundial que liga os computadores de qualquer parte do mundo oferece
serviços, informações, diversão e possibilidade de conhecer pessoas e
culturas de todos os lugares. Dessa forma, a aprendizagem cooperativa
mediada por computador para as pessoas idosas encontra no cenário
tecnológico atual condições propícias de instalação e desenvolvimento. O
ambiente de comunicação e interação, para que se constitua como tal,
cooperativo e interativo, pressupõe a presença de diversos atores, entre os
quais o caring digital13 e a pessoa idosa/grupo de idosos.
O caring digital faz a mediação, preparando o campo e o ambiente para
tal, dispondo e propondo o acesso e a interação da pessoa idosa, seja com o
computador, seja com outros idosos ou outras tecnologias, provocando e
facilitando o desenvolvimento das atividades propostas. Além disso, busca
interagir, estimular e reorientar a atividade de aprendizagem. Esses
ambientes precisam contribuir para o enriquecimento do processo educativo
como gerador de interações, e não só como indicador de caminhos. Para
isso, deve-se permitir e privilegiar o debate, sugerir inovações, apresentar
tecnologias que possam influir positivamente no processo de comunicação
(REIS, REZENDE; BARROS, 2001).
Idosos construindo relações socioafetivas no ciberespaço
A velhice é uma fase natural da vida de qualquer indivíduo, e que poderia
ser vivida com mais tranquilidade, preservando-se a sua autonomia. Porém,
a preocupação de depender dos outros ou necessitar ser asilado acentua-se
quando aliada aos problemas físicos, financeiros e à falta de apoio
sociofamiliar. As questões que envolvem as pessoas idosas estão enraizadas
na cultura dos povos.
Com relação à educação, é preciso ter consciência de que ninguém
adquiriu na juventude uma bagagem de conhecimentos que lhe baste para a
vida toda, porque a rápida evolução do mundo exige a atualização contínua
dos saberes. O processo científico e tecnológico e a transformação dos
métodos de produção resultantes da busca de maior competitividade fazem
com que o saber adquirido numa forma inicial se torne rapidamente
obsoleto. No entanto, a educação ao longo da vida desafia cada indivíduo a
saber autoconduzir o seu destino, num mundo onde a rapidez das mudanças
se conjuga com o fenômeno da globalização e da criatividade; já os
institutos de educação permanente para as pessoas idosas devem propor
uma educação participativa que estabeleça o vínculo entre docentes e
participantes, alternando os papéis de educando e educador. Assim, os
programas oferecidos deveriam ter uma preocupação comum: atender à
demanda dessa classe social.
Para envelhecer com qualidade de vida, alguns aspectos devem ser
considerados: situação econômica do idoso, condições que permitam o
desenvolvimento e a adaptação da pessoa por meio da educação contínua e,
ainda, plasticidade individual e social quanto às questões da velhice. Dessa
forma, a educação é um dos meios para vencer os desafios impostos aos
idosos pela idade e pela sociedade, proporcionando-lhes o aprendizado de
novos conhecimentos e oportunidades para que busquem seu bem-estar
físico e emocional. A ideia de que a velhice é uma fase de perdas tem sido
substituída pela consideração de que os estágios mais avançados da vida são
momentos propícios a novas conquistas, orientadas pela busca do prazer,
pela realização de projetos adiados e de satisfação pessoal. As experiências
vividas e os saberes acumulados são vistos como ganhos que oferecem
elementos para se buscar novas identidades, para realizar sonhos e
estabelecer boas relações intergeracionais. Os idosos, em termos numéricos,
constituem hoje uma parcela da população cada vez mais representativa.
Pode-se entender, então, que, por um lado, a longevidade dos indivíduos
decorre do sucesso de conquistas no campo social e de saúde (STUART-
HAMILTON, 2002) e, por outro, o envelhecimento, como um processo,
representa novas demandas por serviços, benefícios e atenções que
constituem desafios do presente e do futuro (WHO, 1998).
A teoria da modernização proposta por Cowgill e Holmes (1972) descreve
a relação entre o mundo moderno e as mudanças nos papéis sociais e no
status das pessoas idosas. A sociedade contemporânea tem como
característica a crença na racionalidade e no seu poder de libertar o sujeito
de seus temores diante da insegurança da vida na terra, proporcionando-lhe
uma existência mais feliz. O argumento central da teoria contextualiza que
o status do idoso — definido histórico e culturalmente — está diretamente
relacionado ao grau de industrialização da sociedade. De acordo com
Cowgill (1974), a educação, a urbanização, a tecnologia científica aplicada
à produção econômica e as tecnologias de saúde interferem nas condições
do idoso numa sociedade em processo de modernização. Em relação à
educação, as universidades devem propor currículos não somente para
atender as demandas concretas de hoje, mas também, sobretudo, o princípio
da liberdade acadêmica e da diversidade de visões, de temas, na produção
do conhecimento e na capacitação de recursos humanos para satisfazer as
necessidades do envelhecimento populacional. Por sua vez, o avanço da
tecnologia, somado às dificuldades de acesso às novas técnicas e
teorizações, causa impacto em todas as gerações e, em especial, na velhice.
Por exemplo, como os jovens representam o progresso, os recursos
educacionais são preferencialmente direcionados para esse segmento da
população, acentuando o declínio no status dos idosos. Além disso, os bens
tecnológicos de última geração contrastam com a miséria, pois o não acesso
a esses bens remete à exclusão e ao isolamento social. O sistema econômico
impõe-se no contexto brasileiro de uma forma mais concentrada para as
pessoas que envelhecem. O idoso, por não constituir mão de obra adequada
para o trabalho, é desvalorizado e abandonado pelo Estado e pela sociedade.
A miséria e a exclusão que acompanham vastos segmentos da população
brasileira intensificam-se na velhice. Entretanto, a mídia já consegue
identificar o envelhecimento como um novo mercado de consumo. Criam-
se e divulgam-se novos mecanismos de educação/atualização e
comunicação/interação na internet, capazes de oferecer respostas criativas
ao conjunto de mudanças sociais que redefinam a experiência do
envelhecimento como uma fase de conquista coletiva.
Ao justificar a importância da educação permanente, Lengrand (1970)
pondera que a noção de que, na vida, ao homem lhe basta uma determinada
bagagem intelectual e técnica está sendosuperada com incrível rapidez. De
fato, as dimensões globalizadoras desses avanços ultrapassam as fronteiras
e desafiam a educação ou a comunicação e oferecerem novas estratégias
educativas ou interativas, capazes de desenvolver um processo de interação-
ensino-aprendizagem em qualquer fase da vida. Segundo Ludojoski (1990),
fica evidente que não se aprende na infância e na adolescência tudo aquilo
de que se vai necessitar ao longo da existência, tampouco se podem adquirir
ao acaso, sem a ajuda de um ensino formal, as novas e complexas formas de
conhecimentos e de atitudes exigidas durante a vida. Para acompanhar a
complexidade dos novos tempos, é necessário que haja uma educação
contínua, permanente, que se prolongue ao longo de toda a existência
humana, sem limites cronológicos e que remeta a uma nova concepção de
sujeito, perseguindo, em última instância, o aperfeiçoamento integral e
integrado do sujeito por meio de todas as etapas do desenvolvimento de sua
personalidade.
Apesar de, nos últimos anos, ter ocorrido uma disseminação do uso do
computador em instituições de educação para pessoas idosas, a fim de que a
informática possa auxiliar no processo de ensino-aprendizagem é preciso
desenvolver ambientes digitais de comunicação que possibilitem interações
entre os sujeitos envolvidos, resultando em troca de valores e modificando
o indivíduo de uma maneira durável (PASQUALOTTI, 2003).
Nesse sentido, com o desenvolvimento da infraestrutura da
telecomunicação mundial, a internet tem sido utilizada como uma
tecnologia de interação. Conforme Cerceau (1998), muitos ambientes têm
sido desenvolvidos para facilitar o trabalho do caring digital em organizar e
disponibilizar oficinas na web. Porém, esses ambientes consistem,
basicamente, em ferramentas para tornar disponíveis conteúdos e
possibilitar a comunicação entre os participantes. Oeiras e Rocha (2001)
descrevem que, ao acompanhar o desenvolvimento desses ambientes, pode-
se notar que eles têm facilitado a tarefa de disponibilizar conteúdos. No
entanto, existem outras necessidades importantes, como as sociais e
afetivas, que precisam ser supridas para o bom andamento de uma oficina
de interação na qual se deseje que todos participem de forma ativa,
contribuindo colaborativamente com a comunicação pretendida. Pode-se
dizer que um dos objetivos de uma oficina de interação é criar uma
comunidade em que todos se sintam parte e, dessa forma, tenham satisfação
e o sentimento de comprometimento com o processo de interação do grupo
como um todo.
Segundo Haythornthwaite (1998), os elos existentes entre as pessoas têm
influência sobre a formação de um senso de comunidade, os quais são
fortalecidos por meio da frequência e do estabelecimento de novas relações.
Em um ambiente informatizado, as pessoas podem estabelecer relações, em
parte, por meio da interação que ocorre pelas ferramentas de comunicação.
Entretanto, muitas vezes elas não são adequadas a um objetivo, como, por
exemplo, nas discussões em tempo real por meio de bate-papo. Por um
lado, o usuário não busca no computador oportunidades para programação
ou para inferir nos mecanismos de comportamento das interfaces
computacionais. Não há o desejo em programar o computador. Por outro
lado, a busca ocorre no campo das conexões, na capacidade que as redes
computacionais têm em promover a comunicação, externalizando intenções,
desejos, emoções e sensações. A criação de uma rede de relações, de troca,
de aprendizagem e de colaboração, integra e conecta o idoso naquilo que
realmente é o seu objetivo como um ser social que vive das suas relações
com o outro e com o meio, que é o de fazer parte, de interagir, de relacionar
e comunicar-se. Para Lévy (1993, p. 135), “o pensamento se dá em uma
rede na qual neurônios, módulos, cognitivos, humanos, instituições de
ensino, línguas, sistemas de escrita, livros e computadores se interconectam,
transformam e traduzem as representações”. De acordo com Kollock
(1998), na literatura da área de sociologia, um dos resultados mais
consistentes e fortes é o efeito positivo que a comunicação tem sobre a
cooperação e a confiança. Quando as pessoas são capazes de se comunicar
de forma adequada, a cooperação entre elas pode crescer
significativamente. Para que isso se torne realidade, a procura de novos
modelos e tecnologias de comunicação para apoio à interação deve ser
orientada à construção de relações socioafetivas.
Ferramenta colaborativa de interação e comunicação no
ciberespaço
Com relação aos sujeitos envolvidos no processo, a modo como a
comunicação ocorre por meio das tecnologias apresenta-se de duas formas:
síncrona e assíncrona. A primeira ocorre quando as pessoas envolvidas na
interação estão simultaneamente conectadas. Essa maneira é mais comum
em ambientes de bate-papo, sistemas de áudio e videoconferência. Nesse
caso a troca de mensagens ocorre em duas vias, ou seja, os sujeitos podem
enviar e receber ao mesmo tempo — interação “ao vivo”. Na outra forma
de comunicação os sujeitos não estão conectados entre si, mas interagem
por meio de ferramentas de comunicação que têm como principal
característica a troca de mensagens de forma “off-line”.
Entretanto, o processo de colaboração é mais do que trocar mensagens
síncrona ou assincronamente. A partir do momento em que a internet
propiciou o desenvolvimento de ferramentas de comunicação, a
aprendizagem pela colaboração tem sido amplamente estudada por
diferentes autores sob paradigmas educacionais diversos, como Perret-
Clermont (1984), Mugny e Doise (1983), Vigotsky (2001), Wertsch (1988),
Rogoff e Lave (1984), entre outros. No entanto, os aspectos que levam à
aprendizagem pela colaboração em ambientes digitais de interação ainda
estão num patamar de pesquisa. Sabe-se que a interação mediada por
computador assume características diferentes das interações face a face
(BERGE e COLLINS, 1995; LÉVY, 1999). Para compreender essa
diferença, é necessário considerar a interação social como ponto principal
para a aprendizagem colaborativa (PASSERINO, 2005). Conforme Rogoff
e Lave (1984), o indivíduo vive numa comunidade em virtude do que tem
em comum com os outros, o que é possibilitado pela comunicação, que é o
meio pelo qual participa dessa comunidade, isto é, os sujeitos cognitivos se
complementam a partir da interação social e da troca de ideias e
experiências. Nesse contexto, os cinco sentidos de percepção estão a
serviço da comunicação e da geração de novos conhecimentos, surgidos a
partir de uma inteligência coletiva. Conforme Levy (1993), as técnicas de
transmissão e tratamento das mensagens transformam os ritmos e as
modalidades da comunicação de modo mais direto, contribuindo para a
redefinição das organizações. De acordo com Vigotsky (1998), a habilidade
cognitiva do ser humano é um “produto” gerado por uma variedade de
processos históricos e ontogenéticos — processos que se originam numa
linha sociobiológica de desenvolvimento. Em outras palavras, o
desenvolvimento cognitivo surge a partir das mudanças de estado que
ocorrem natural (biológica e de maturação) e culturalmente, pois os
mecanismos utilizados pelo sujeito para operar as informações,
determinados historicamente e organizados socialmente, influenciam a
geração de conhecimento.
Procura-se, por meio da utilização de multimídias integradas numa rede
social na internet, a promoção das competências teórico-práticas,
vinculando num ambiente digital de interação e comunicação os processos
de saber, fazer, ser e conviver. Dessa forma, em relação aos pressupostos
teóricos sobre comunicação e interação, o apoio é feito em Lévy (1993) e,
além disso, busca-se referência em Vigotsky (1998), Habermas (2003) e
Morin (2005). Propõem-se ações para contemplar as dimensões de
interatividade, cooperação, promoção de autonomia, cognição e
metacognição. Em relação à usabilidade, empregam-se os modelos mentais
voltados para as expectativas e para a capacidade do sujeito em entender e
perceber as estratégias de utilização de um software, isto é, o modo deconhecimento trazido pela cibercultura de Lévy (1999, p. 165):
[…] trata-se de uma tecnologia intelectual que amplifica a imaginação individual (aumento de
inteligência) e permite aos grupos que compartilhem, negociem e refinem modelos mentais
comuns, qualquer que seja a complexidade deles (aumento da inteligência coletiva).
Com base nesse pressuposto de Lévy – conceito de “ecologia cognitiva”14
–, os idosos, as tecnologias intelectuais e as instituições são visualizados
como nodes15 de um hipertexto e atuam como verdadeiros sujeitos, não
apenas como meios ou ambientes para o pensamento. Além disso, apoia-se
na teoria da reorganização de Tikhomirov, citado por Bicudo (1999, p. 286),
sobre a forma como os computadores afetam a cognição humana:
A informática exerce papel semelhante àquele desenvolvido pela linguagem na teoria
vigotskiniana, sustentando que o computador regula a atividade humana e apresenta diferenças
fundamentais em relação à linguagem. O computador pode dar feedback a passos intermediários
da atividade humana, os quais seriam impossíveis a observadores externos.
Segundo Lee, citado por Byrne (1993, p. 2), as instruções e conteúdos
passados com o auxílio do computador podem levar os idosos a “entrarem”
em mundos por meio das imagens no monitor e a aprenderem com essas
experiências. As informações podem ser apresentadas às pessoas idosas
num formato interessante, que permite a sua participação ativa e, ao mesmo
tempo, reflete sobre os próximos passos de trabalho e ajusta-se aos níveis
de suas habilidades. O autor afirma ainda que os ambientes oferecem
oportunidades de o idoso expressar a sua criatividade, pois ele pode analisar
as experiências de sua própria vida real, conseguindo, dessa forma, produzir
uma entidade abstrata que represente essa experiência no computador. Além
disso, buscam-se em Papert (1985) os princípios de uso de computador para
aprender com a geometria não formal da linguagem Logo:16
• continuidade: a criação de uma obra de arte deve ter relação de
continuidade com o conhecimento pessoal estabelecido de cada um, do
qual possa herdar um sentido de afeição e valor, bem como de
competência cognitiva;
• poder: tem de motivar o sujeito a executar tarefas significativas e que não
podem ser efetuadas sem o uso do computador;
• ressonância cultural: o tópico de estudo deve fazer sentido em termos de
um contexto social mais amplo.
Para aplicação desses critérios, os idosos devem levar em conta as suas
próprias experiências de mundo, isto é, o julgamento muitas vezes está
baseado em crenças e na cultura em que se está inserido. Situações já
experimentadas passam a ter uma pré-formatação, isto é, há uma tendência
de voltarem a ocorrer da mesma forma como já aconteceram. Dessa forma,
poder-se-ia dizer que existe uma estrutura de decisão: as pessoas buscam na
memória os fatos e processam-nos levando em conta os mecanismos da
experiência e da consciência, isto é, o cérebro funcionaria, nesse caso, como
uma arquitetura computacional. Dessa forma, segundo Polanyi, citado por
Winn (1993), as pessoas idosas conhecem o mundo de duas maneiras: a
primeira, por meio do resultado de suas interações cotidianas, conhecimento
esse que é frequentemente direto, pessoal, subjetivo e tácito; a segunda, por
meio da descrição que outra pessoa faz do mundo, conhecimento dito
“delegado”, “comunal”, “objetivo” e “explícito”, ou seja, é o tipo de
conhecimento ensinado por alguém.
De acordo com Clancey e Searle, também citados por Winn (1993), as
experiências que conduzem ao primeiro tipo de conhecimento são
denominadas de “primeira pessoa” e as do segundo tipo, de “terceira
pessoa”. As experiências e ações que surgem do conhecimento de primeira
pessoa são geralmente caracterizadas por ausência de reflexão, o que
significa que a ação flui diretamente para fora da percepção do mundo, sem
a intervenção do pensamento consciente. A maior parte daquilo que as
pessoas idosas realizam em suas vidas diárias é alcançada deliberadamente,
isto é, sem um pensamento reflexivo. Experiências de primeira pessoa são,
então, naturais, não refletidas, privadas, e predominam nas interações
cotidianas da pessoa idosa com o mundo. Nessa visão, interagir com um
computador por uma interface é uma experiência de terceira pessoa. Por
exemplo, embora seja possível dominar o teclado ou o mouse num nível de
habilidade em que os sujeitos já os usam automaticamente, a informação
que a máquina apresenta sempre requer deles reflexão antes das respostas,
ou seja, experimentam o computador como um objeto no mundo.
A distinção entre a experiência de primeira pessoa e a de terceira pessoa
está no fato de a primeira ser simbólica e a segunda, geralmente, não. De
qualquer modo, o computador tem seu próprio sistema de símbolos, sem o
qual não se pode obter qualquer informação. Segundo Salomon, citado por
Winn (1993), lêem-se textos e ícones pictóricos na tela; mostram-se dados
como quadros e gráficos; ouve-se algo sobre como está o estado do sistema
ou como dirigir-se ao próximo passo da interação. Todos esses símbolos são
convencionais e têm de ser aprendidos em algum momento. Se o domínio
de um sistema de símbolos é necessário, não é, entretanto, condição
suficiente para aprender em experiências de terceira pessoa. Por exemplo, é
perfeitamente possível que os idosos criem obras de arte abstratas sem
aprenderem os seus símbolos convencionais, contanto que a experiência de
aprendizagem seja direta, pessoal e implícita. Para que isso ocorra, as
pessoas idosas devem utilizar o ambiente como um mecanismo de
cognição. De acordo com Winn e Bricken (1992), a capacidade de
programação das tecnologias de multimídia possibilita que isso ocorra, pois
os programadores podem desenvolver estratégias pedagógicas para o
“comportamento” de cada objeto no ambiente.
Algumas experiências: idosos em rede
A proposta “Atelier digital”,17 promovida pelo programa da terceira idade
da Feevale,18 busca atender à população idosa no domínio da tecnologia.
Essa proposta inovadora surgiu das percepções dos pesquisadores da
instituição em relação ao motivo da procura pelo idoso dos cursos de
informática. Em primeiro lugar, constatou-se que a busca do conhecimento
propiciava uma atualização em relação às novas tecnologias, bem como
desencadeava nesses sujeitos uma sensação de inclusão no convívio com a
sociedade. A segunda percepção vincula-se à necessidade do resgate do
espaço perdido perante a família, principalmente com relação às novas
gerações — filhos e netos — e, em algumas situações, com colegas de
trabalho. Apesar da idade, esses sujeitos mostram-se muito mais capazes e
ágeis no manuseio do computador. Entendem a linguagem simbólica de
janelas e botões e, ao mesmo tempo, compreendem e interagem com uma
lógica computacional e algorítmica que se pode apresentar confusa e
diferente daquilo que era conhecido até então. Relatos de idosos que
participam de oficinas de informática demonstram que a linguagem
simbólica nem sempre caracteriza um entendimento correto do seu real
significado: “Quando eu aperto um botão do aparelho de TV, eu sei que ele
mudará de canal, aumentará ou diminuirá o volume, ligará ou desligará.
Mas no computador os botões não têm significado e não são coerentes com
o que fazem. E muitas vezes não dizem o que fazem”.
Compreende-se essa dificuldade, pois, ao contrário do que ocorre com
uma criança no início do processo de interação com um computador, que
não tem dificuldade em relacionar o botão, contendo a figura de um
disquete, com a ação “salvar um arquivo”, independentemente do que
signifique “salvar”, a experiência de uma pessoa idosa que não teve o
mesmo contato com essa forma de representação, ou seja, a imagem do
disquete, gera conflito. Relatos do tipo: “Por que então não é uma figura de
um CD? O micro lá de casa grava no CD e não no disquete” são constantes
durante as aulas de informática. Para que haja a compreensão do que
realmente uma imagem significa em uma linguagem simbólica, significados
do dia a dia doidoso precisam ser desconstruídos e entendidos de outra
forma. Termos como salvar, abrir, colar, recortar, copiar, mover, configurar,
salto ou quebra de página, arrastar, muitas vezes não apresentam um
paralelo à vivência e experiência do idoso, o que se torna ainda mais
perceptível pelo fato de cada um ter sua própria “bagagem” de
conhecimentos prévios e construídos.
O “Atelier digital” tem como objetivo oportunizar ao idoso a conquista do
seu espaço como agente de transformação. Oriundo de uma geração que
sempre deteve o poder, esse sujeito passou a conviver com uma tecnologia
que não faz diferença à sua vida. Em outras palavras, o sujeito se afasta da
tecnologia por motivos próprios de repúdio à inovação ou pelo
entendimento das gerações mais novas que o caracterizam como alguém
que não possui conhecimento e habilidade para usar toda a parafernália
tecnológica disponível. Portanto, a proposta de educação para idosos,
incluindo-se especialmente a informática, deve considerar essa busca das
pessoas pelo conhecimento, pelo domínio e pela necessidade em buscar seu
espaço de evoluir junto com as demais gerações.
O que o idoso busca não é conhecer computadores e dominar sua lógica,
mas apropriar-se, integrar-se, incluir-se como parte ativa e motivada em
fazer acontecer na sociedade. Para Passerino e Pasqualotti (2006, p. 256):
Esse público é tão exigente quanto a sociedade moderna lhe exige que seja um sujeito ativo, ou
muitas vezes dentro de uma situação paradoxal, essa mesma sociedade vê o idoso como um
sujeito experiente pelos processos e ações vivenciadas, mas carente de habilidades e
conhecimentos inovadores. E dentro dessa realidade as tecnologias, vistas como inovação e
avanço na forma de fazer, tornam-se recursos e técnicas procuradas e demandadas para
proporcionarem a esses sujeitos, uma forma de se mostrarem necessários, úteis e atuantes.
Outra experiência é a ferramenta InterDigital Arte,19 desenvolvida na
Universidade de Passo Fundo,20 cujo objetivo é permitir o acesso, a
intermediação, o acompanhamento e a alteração de desenhos abstratos
criados por idosos numa rede social na internet. A característica interativa
da ferramenta permite ao idoso ser autor ou coautor de uma obra de arte
abstrata, isto é, a interação possibilita a criação, de forma colaborativa, de
um objeto que será incorporado ao ambiente num movimento contínuo e
recursivo. O relacionamento múltiplo e as conexões na rede social
permitem que o idoso vivencie, num processo bidirecional e dialógico, sua
condição ativa de ator do processo de comunicação e interação no
ciberespaço.
Referências bibliográficas
BERGE, Z. L.; COLLINS, M. P. Computer mediated communication and the online classroom;
distance learning. Cresskill: Hampton Press, 1995.
BICUDO, M. A. V. Pesquisa em educação matemática: concepções e perspectivas. In: BORBA, M.
C. Tecnologias informáticas na educação matemática e reorganização do pensamento. São Paulo:
Unesp, 1999. pp. 285-295.
BYRNE, C. Virtual reality and education. 1993. Disponível em:
. Acesso em: 21 set. 2004.
CASTANHO, J.; LOYOLLA, W.; PRATES, M. Ambiente de apoio a cursos de educação à distância
mediada por computador. Revista Tecnologia da Informação, Brasília, v. 1, n. 1, pp. 33-38, ago.
1999.
CERCEAU, A. D. Formação à distância de recursos humanos para a informática educativa. 1998.
Dissertação — (Mestrado em Ciência da Computação.) Campinas: Universidade Estadual de
Campinas, 1998.
COWGILL, D. O. The aging of populations and societies. Annals of the American Academy of
Political and Social Science, Philadelphia, v. 415, pp. 1-18, set. 1974.
_____; HOLMES, L. D. Aging and modernization. New York: Appleton Century Crofts, 1972.
CUNNINGHAM, D. J.; DUFFY, T. M.; KNUTH, R. A. The textbook of the future. In: MCKNIGHT
C.; DILLON A.; RICHARDSON J. (Eds.). Hypertext; a psychological perspective. New York: Ellis
Horwood, 1993. Disponível em: . Acesso em: 15 mar.
2006.
ERICKSON, F. Ethnographic microanalysis of interaction. Philadelphia (mimeo.), 1991.
FORMAN, E.; CAZDEN, C. Exploring vygotskyan perspectives in education; the cognitive value of
peer interaction. In: WERTSCH, J. V. (Ed.) Culture, communication and cognition. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985. pp. 273-305.
GOFFMAN, E. Forms of talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981.
GOUVEIA, L. M. B.; CAMACHO, M. L. Criação de espaços de informação interactivo; ambiente
de aprendizagem para a cadeira de sistemas de informação. 1998. Disponível em:
. Acesso em: 19 jan. 2006.
GUMPERZ, J. Discourse strategies. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
HABERMAS, J. Direito e democracia; entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003.
HAYTHORNTHWAITE, C. A social network study of the growth of community among distance
learners. Information Research, v. 4, n. 1, pp. 1-32, jul. 1998. Disponível em:
. Acesso em: 14 mar. 2006.
KACHAR, V. A terceira idade e o computador; interação e transformações significativas. A Terceira
Idade, São Paulo, v. 11, n. 19, pp. 5-21, abr. 2000.
KOLLOCK, P. Social dilemmas; the anatomy of cooperation. Annual Review of Sociology, Palo Alto,
v. 24, pp. 183-214, 1998.
LENGRAND, P. Introduction al’education permanente. [s.l.]: Unesco, 1970.
LÉVY, P. As tecnologias da inteligência; o futuro do pensamento na era da informática. Trad. Carlos
Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
____. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu Costa. São Paulo: Editora 34, 1999.
LUDOJOSKI, R. L. Antropologia; educación permanente del hombre. Buenos Aires: Guadalupe,
1990.
http://www.hitl.washington.edu/publications/r-93-6/
http://telecaster.lboro.ac.uk/HaPP/happ.html
http://www2.ufp.pt/~lmbg/com/pdfs/simp98_esp-info.pdf
http://informationr.net/ir/4-1/paper49.html
MONTEIRO, M. De braços dados com as novas tecnologias; nunca é tarde para aprender. 2002.
Disponível em: . Acesso em: 9 mar. 2006.
MORIN, E. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre, Maria Alice Sampaio Dória. 8. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
MUGNY, G.; DOISE, W. La construcción social de la inteligencia. México: Trillas, 1983.
OEIRAS, J. Y. Y.; ROCHA, H. V. Aspectos sociais em design de ambientes colaborativos de
aprendizagem. 2001. Disponível em: .
Acesso em: 23 jan. 2006.
PAPERT, S. Logo; computadores e educação. Trad. José Armando Valente, Beatriz Bitelman, Afira
Vianna Ripper. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PASQUALOTTI, A. Desenvolvimento dos aspectos sociais na velhice; experimentação de ambientes
informatizados. In: BOTH, A.; BARBOSA, M. H. S.; BENINCÁ, C. R S. (Org.), Envelhecimento
humano; múltiplos olhares. Passo Fundo: UPF, 2003, pp. 39-56.
_____. Pessoas com autismo em ambientes digitais de aprendizagem; estudo dos processos de
interação social e mediação. 2005. Tese — (Doutorado em Informática na Educação.) Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.
PASSERINO, L.; PASQUALOTTI, P. A inclusão digital como prática social; uma visão sócio-
histórica da apropriação tecnológica em idosos. In: PORTELLA, M. R.; PASQUALOTTI, A.;
GAGLIETTI, M. (Org.), Envelhecimento humano; saberes e fazeres. Passo Fundo: UPF, 2006, pp.
246-260.
PERRET-CLERMONT, A. N. La construcción de la inteligencia en la interacción social;
aprendiendo con los compañeros. Madri: Visor, 1984.
REIS, E. M.; REZENDE, F.; BARROS, S. S. Desenvolvimento e avaliação de um ambiente
construtivista de aprendizagem à distância para a formação continuada de professores de física do
norte-fluminense. 2001. Disponível em:
. Acesso em:
15 mar. 2006.
RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. (Org.). Sociolinguística interacional;antropologia, linguística e
sociologia em análise do discurso. Porto Alegre: AGE, 1998.
ROCHA, H. V. Representações computacionais auxiliares ao entendimento de conceitos de
programação. In: VALENTE, J. A. (Org.), Computadores e conhecimento; repensando a educação.
Campinas: Unicamp, 1993. Disponível em:
. Acesso em: 15 mar. 2006.
ROGOFF, B. Children’s guided participation and participatory appropriation in sociocultural activity.
In: WOZNIAK, R. H.; FISCHER, K. W. (Eds.), Development in context; acting and thinking in
specific environments. Hillsdale: Erlbaum, 1993. pp. 121-154.
ROGOFF, B.; LAVE, J. Everyday cognition; its development in social context. Cambridge: Harvard
University Press, 1984.
SINCLAIR, J. McH.; COULTHARD, M. Towards an analysis of discourse; the English used by
teachers and pupils. Oxford: OUP, 1975.
http://ajudaemocional.tripod.com/rep/id12.html
http://www.dcc.unicamp.br/~janne/joeiras_infouni2001.pdf
http://www.abed.org.br/antiga/htdocs/paper_visem/ernesto/ernesto_macedo_reis.htm
http://www.nied.unicamp.br/publicacoes/separatas/Sep16.pdf
SMOLKA, A. L. B. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos
CEDES, ano XX, n. 50, pp. 26-40, abr. 2000.
STUART-HAMILTON, I. A psicologia do envelhecimento; uma introdução. Porto Alegre: Artmed,
2002.
VALENTE, J. A. Diferentes usos do computador na educação. In: VALENTE, J. A. (Org.)
Computadores e conhecimento; repensando a educação. Campinas: Unicamp, 1993. Disponível em:
. Acesso em: 15 mar. 2006.
VIGOTSKY, L. S. Formação social da mente; o desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores. Trad. José Cipolla Neto et al. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
____. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
WERTSCH, J. Vygotsky y la formación social de la mente. Barcelona: Paidós, 1988.
WINN, W. D. A conceptual basis for educational applications of virtual reality. 1993. Disponível
em: . Acesso em: 1 out. 2006.
_____; BRICKEN, W. Designing virtual worlds for use in mathematics education; the example of
experiential algebra. Educational Technology, v. 32, n. 12, pp. 12-19, dez. 1992.
WORLD HEALTH ORGANIZATION — WHO. Women, ageing and health; achieving health across
the life span. Global Commission on Women’s Health. Geneva: WHO, 1998
http://www.nied.unicamp.br/publicacoes/separatas/Sep1.pdf
http://www.hitl.washington.edu/publications/r-93-9/
É
CAPÍTULO 5
Da memória acorrentada à
publicização do exílio
Márcia Helena S. Barbosa21 e Mauro Gaglietti22
possível apontar relações entre o funcionamento da memória em
idosos intelectualizados e as marcas do (res)sentimento.23 Para tanto, é
preciso identificar os sentimentos de rancor passivo e indefinidamente
insaciado, prisioneiro da inveja e do ciúme, da raiva impotente ou da alegria
nefasta, que dominam o ser humano. Nessa condição, o indivíduo se vê
devorado por uma memória intestina, que o invade mesmo a contragosto.
Entretanto, o recalque do ressentimento pode se transmutar na recusa do
esquecimento humilhante da exclusão que obriga ao exílio — físico ou
psicológico —, e o ser humano que vivencia tal situação pode fazer da
fraqueza e da marginalidade sua fonte de força e estímulo ao desafio.
Com o intuito de levar adiante a investigação proposta, examina-se a obra
Memórias de um pobre homem,24 de autoria de Dyonelio Machado.25 O
livro, que possui caráter autobiográfico, como indica o próprio título, foi
escrito na década de 1970 e publicado em 1990, cinco anos após a morte do
autor.26 Chama atenção, em primeiro lugar, na leitura dessas “Imagens
fugitivas” (MACHADO, 1990, pp. 15-24), o fato de Dyonelio Machado
apresentar, no parágrafo de abertura da obra, uma justificativa para a escrita
de suas memórias, dirigindo uma resposta antecipada a qualquer censura
possível por parte da posteridade. A crítica temida pelo autor, conforme sua
própria declaração, é a mesma que João Pinto da Silva, um dos primeiros
historiadores da literatura do Rio Grande do Sul, endereçara ao escritor
Aquiles Porto Alegre: a de não produzir reminiscências, mesmo “tendo a
seu dispor um grande canal de divulgação” — o Correio do Povo — e
embora fosse “testemunha pessoal” de um grupo de escritores — na
condição de seu integrante — que fez parte da “vida literária” do estado
(MACHADO, 1990, pp. 15-16). Como se trata de alguém que — tendo sido
um ativo participante da vida política do Brasil e um ficcionista inovador —
se tornou vítima da repressão por parte do Estado e, durante um longo
período, viu a sua obra permanecer no ostracismo, não deve surpreender
essa antecipação a uma provável censura.
É de se perguntar, entretanto, se a espécie de censura de que o escritor
procurava esquivar-se e contra a qual resolveu precaver-se não seria — ao
contrário do que afirma — aquela que viesse a condenar a imodéstia ou
vaidade pretensamente contida em seu desejo de autoria. O autor, que agora
ousava fazer uso da palavra não para proferir discursos no palanque, ou
para debater grandes temas na imprensa, e nem mesmo para contar a
história de personagens fictícios, mas para falar de si próprio, era egresso
do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e do Partido Comunista do
Brasil (PCB), agremiações cujos ideários pautavam-se pelo investimento no
bem da coletividade, em detrimento dos interesses individuais. Esses
deviam anular-se em nome de causas que favorecessem a maioria.
Avançando na leitura do texto, é possível perscrutar com mais segurança
as intenções e os impulsos, conscientes ou não, que levam Dyonelio
Machado a escrever, para além daquela motivação que ele mesmo revela.
No segundo parágrafo, o autor menciona a escassa “vida literária” entre os
gaúchos — informação que seria, no seu entender, de domínio público.
Logo a seguir, há uma afirmação ambígua que faz surgir no leitor do
mencionado livro a seguinte pergunta: o “mal crônico” constatado pelo
escritor — e que, até então, não teria “recebido uma reparação adequada”
— era a “vida literária” quase nula no Rio Grande do Sul ou a falta de
registro e divulgação de “certa atividade nessa matéria”, que, embora sendo
pouca, existia e não podia ser “excluída”? A segunda hipótese surge como a
mais provável quando, no mesmo parágrafo, o autor esclarece que essa
atividade “consiste na formação de grupos de escritores, ocasionalmente
lembrados, e mesmo de alguma produção literária merecedora da atenção
dos demais patrícios nossos” (MACHADO, 1990, p. 15). Talvez a
reparação reivindicada por Dyonelio Machado seja a de que tais grupos
passem a ser lembrados de forma mais sistemática e menos ocasional, e a
de que a publicidade garanta à produção literária dos gaúchos a atenção —
merecida — dos seus compatriotas.
Nos próximos parágrafos, o autor confessa que, a propósito da “queixa”
de João Pinto da Silva em relação ao silêncio de Aquiles Porto Alegre,
naquela circunstância se irmanara ao historiador, mesmo sendo “ainda novo
para semelhantes lamúrias”. Dyonelio Machado diz que lamentou com João
Pinto da Silva o fato de Aquiles Porto Alegre, um dos últimos
remanescentes da Sociedade Partenon Literário, haver decidido manter-se
como um “manancial fechado”, como uma “fonte selada”, guardando
apenas para si as experiências que vivenciara junto ao grupo (MACHADO,
1990, p. 15).
Depois de caracterizar Aquiles Porto Alegre, Dyonelio Machado informa
o nome do veículo no qual aquele publicava suas crônicas — o Correio do
Povo — e, logo em seguida, faz conjecturas acerca dos motivos que haviam
levado o representante do Partenon Literário a se calar, a não falar de si
mesmo, não dando, assim, o seu testemunho sobre esse grupo, “para sempre
ligado às origens do regionalismo rio-grandense”. A primeira suposição
levantada pelo autor das Memórias é a de que a Aquiles Porto Alegre nem
ocorrera a ideia de produzirreminiscências, pelo fato de ter subestimado o
cenáculo literário de que participara, uma vez que se tratava de “uma coisa
que havia sido ordinária para ele” (MACHADO, 1990, p. 16). A outra
hipótese é a de que esse escritor, no seu íntimo, considerando tal tarefa um
trabalho “terminal”, acabasse sempre por adiá-lo. Dyonelio Machado
reincide, então, na ambiguidade que, pelo menos nessa passagem, parece
ser intencional em sua escrita: o autor não esclarece se, a seu ver, a
protelação da referida tarefa por parte de Aquiles Porto Alegre expressava o
desejo do cronista de adiar o seu próprio fim ou se a crença de que ainda
havia tempo é que o afastava do registro de suas lembranças.
Dyonelio Machado contrapõe a sua posição de autor — e de velho,
portanto — à opinião que ele e seus companheiros — alguns “rapazes mais
ou menos poetas”, conforme esclarece adiante — tinham de si mesmos
quando eram jovens e formavam o grupo que se autointitulou República do
Império. Verifica-se, porém, que, embora afirme não haver qualquer modo
de estabelecer uma correlação entre o grupo ao qual pertencera na mocidade
e o cenáculo de que fizera parte Aquiles Porto Alegre, o autor acha diversas
maneiras de demonstrar o contrário do que declara. Aliás, o raciocínio
desenvolvido até esse trecho não faz outra coisa senão conduzir — ou
induzir — a uma comparação e, até mesmo, a uma associação entre ele e o
cronista.
Como se mencionou, no período em que escreve esse texto autobiográfico
o escritor se encontra na mesma faixa etária em que estava Aquiles Porto
Alegre, quando deste era exigida a “produção de reminiscências”. Portanto,
ambos têm de semelhante a idade cronológica e de comum o ofício — a
escrita — e a pertença a um grupo. A seguir, o autor das Memórias informa
que é um sobrevivente da República do Império, assim como o cronista era
o último remanescente do Partenon Literário. Dyonelio Machado sugere
que a única diferença marcante a separá-lo de Aquiles Porto Alegre é a alta
qualidade do trabalho do cronista, mas a alusão a uma segunda diferença
existente entre ambos — aquela referente à atitude tomada perante as
próprias lembranças — anula ou, pelo menos, leva a questionar a primeira
distinção. Caso Dyonelio Machado, de fato, pensasse dessa forma, caso não
se julgasse portador de um “manancial” digno de ser exposto, por que faria
questão de registrar as imagens que reteve do passado, “tarefa” a que não se
propôs nem mesmo um cronista já consagrado, como Aquiles Porto Alegre?
Talvez aquilo que o pudor impeça o autor das Memórias de confessar é
que, na sua opinião, o fator real a distanciá-lo do integrante do Partenon
Literário é o reconhecimento que teve o trabalho de Aquiles Porto Alegre
como homem de Letras, repercussão essa que a sua obra, naquela altura —
início da década de 1970 —, ainda não conhecera. As demonstrações de
modéstia por parte do escritor, porque insistentes e exageradas, acabam
soando falsas, como se pedissem a seus potenciais interlocutores uma
retificação. Pode ser essa a verdadeira reparação que, conscientemente ou
não, o “pobre homem” deseja, do fundo do ressentimento que mantém
entremeado com suas lembranças. Talvez, a escrita das Memórias seja a
forma — quem sabe a única — que Dyonelio vislumbrou de fazer justiça
com as próprias mãos e, por isso, suas palavras saíam hesitantes,
contraditórias, acometidas que estão de pruridos e mágoas.
As vacilações e desvios estão inscritos na fala do autor. Por um lado,
Dyonelio utiliza as expressões “entende-se naturalmente” e “entende-se
com facilidade”, a fim de evidenciar a impossibilidade de estabelecer uma
correlação entre a República do Império e o Partenon Literário, portanto,
entre si próprio e Aquiles Porto Alegre. Por outro lado, aponta, de modo
indireto, para a real possibilidade de se efetuar tal comparação. A tal ponto
as indicações nesse sentido são recorrentes, que o paralelo se torna
inevitável para o leitor mais ou menos atento. Além disso, ao falar da
República do Império, Dyonelio Machado afirma: “Saiu-me o nome quase
sem sentir” (MACHADO, 1990, p. 16). A menção à República do Império,
cercada de cuidados, mostra: ou que o autor diz tal nome “sem querer”, por
entender que o grupo — e ele próprio — devia ser lembrado por outro
(provavelmente, um crítico ou historiador da literatura sul-rio-grandense)
que não o protagonista da ação; ou que ele o cita de forma intencional e por
desejar, com todas as suas forças, fazê-lo, embora não queira que seus
leitores percebam que se trata de uma atitude deliberada de sua parte; ou,
ainda, que esses dois sentimentos lutavam no íntimo do escritor.
Pode ser que esse conflito, aliado à autocensura, que advinha do temor da
censura alheia e a ela se antecipava, tenha levado Dyonelio Machado —
estudioso de Freud — a simular uma manifestação da memória involuntária
(“Saiu-me o nome quase sem sentir”). Esse artifício talvez não se tornasse
perceptível se a frase fosse pronunciada oralmente; não há, contudo, como
deixar de especular sobre uma possível simulação quando se pensa que,
sendo essa uma frase registrada por escrito, bem poderia ter sido
“corrigida” ou suprimida e que, não havendo sido, acaba por grifar não só
as marcas que o autor decidiu manter e exibir, como também a decisão que
tomou de não apagá-las, oportunidade da qual podia se valer se assim o
quisesse.
Nos próximos parágrafos, ele comenta que era comum, nos idos de 1912
— época em que os membros da posteriormente chamada República do
Império começaram a se agregar —, a existência de grupos “de rapazes
mais ou menos poetas” que se reuniam, com o intuito de se cotizarem e,
desse modo, “poderem atender às despesas de alojamento e alimentação”;
muitos eram os que montavam uma “república”. A palavra aparece assim,
grafada entre aspas e acompanhada de seu significado — “‘República’…
conjunto de estudantes que vivem em comum na mesma casa” —, uma vez
que o escritor, conforme explica, está “a lembrar costumes de mais de meio
século atrás” (MACHADO, 1990, pp. 16-17). A seguir, informa o autor que
o grupo depois intitulado República do Império era constituído, a princípio,
por João Leopoldino Santana, Hermínio Freitas e por ele próprio, todos
alunos da escola de Afonso Emílio Meyer (tio do escritor Augusto Meyer),
situada em Porto Alegre, no Centro, precisamente na Praça da Matriz. Mais
tarde, agregaram-se a esses Celestino Prunes, De Souza Júnior e Alceu
Wamosy.
Logo após, Dyonelio acrescenta que tanto ele próprio quanto João
Leopoldino Santana, nesse momento, acabavam de chegar à capital e que
um dado, o local de onde vinham, tem a sua importância. Segundo o
depoimento do escritor, a “circunstância importante é que esses quatro
rapazes (adolescentes de menos de dezessete anos) provínhamos da
fronteira: Celestino Prunes e Hermínio Freitas de Alegrete, Santana de
Uruguaiana, eu de Quaraí” (MACHADO, 1990, p. 17). Mais adiante, vai
destacar o fato de que também Wamosy vinha da fronteira.
A circunstância referida por Dyonelio constitui mais um elo entre a
maioria dos membros do grupo, já unido por interesses semelhantes e pela
situação financeira desfavorável de, pelo menos, alguns de seus integrantes.
Além disso, tal circunstância enfileira mais um obstáculo na série de
dificuldades enfrentadas por ele: o autor não pertence ao centro; deixara a
fronteira muito jovem para buscar um “lugar” na capital e, sobretudo, na
história da literatura do Rio Grande do Sul. O escritor, que já havia passado
pela prisão em diferentes ocasiões e já publicara inúmeros livros — alguns
deles por conta própria — sem ter alcançado o merecido reconhecimento,
nessa fase de sua vida, ainda parece sentir-se empurrado para as margens,
para as fronteiras, pelos “demais frios”, que não o minuano, dentre os quais
o ostracismo, a que responde com o autoisolamento e um aparente descaso
pela opinião alheia.
É curioso que, ao falar de uma região distante do centro do estado e do
País, Dyonelio ressalte as semelhanças que o lugar possui com o triângulo
mineiro, uma árearica e economicamente ativa, situada no centro do Brasil.
Talvez o que esteja por trás desse paralelo seja uma insinuação ou uma
crença — a de que a fronteira, não sendo pródiga como a região de Uberaba
e Uberlândia, dispõe de outro tipo de riqueza, o talento de seus habitantes.
O que vem depois da caracterização da fronteira parece confirmar essa
conjectura. Trata-se de elogios à inteligência, à sensibilidade estética, ao
engenho e/ou ao caráter dos membros do grupo.
Dyonelio não enaltece a si próprio, ao menos diretamente, dando voltas
quando se trata de comparar-se a Aquiles Porto Alegre e de justificar o
registro das suas lembranças em livro, como já foi comentado. O mesmo
não ocorre, todavia, nas passagens em que fala de seus companheiros,
trechos nos quais predomina um tom laudatário e/ou saudosista. Talvez,
com tal atitude, deseje ampliar o seu poder de “reparação”, assinalando não
apenas o “lugar” que cabe a si e a seu grupo, de um modo geral, na história
da literatura sul-rio-grandense, como também a posição individualmente
ocupada, na “escassa vida literária” do estado, por seus companheiros,
citados um a um. Esse destaque é conferido, inclusive, àqueles que
permaneceram no ineditismo, algo compreensível, tendo-se em vista a
amizade, a admiração que Dyonelio nutria por todos eles, mas, sobretudo,
levando-se em conta que o autor das Memórias combatera contra o
ineditismo de sua própria obra, contra a falta de oportunidades de reeditar
seus primeiros livros e contra o descaso por parte da crítica literária,
rompido, até o início da década de 1970, somente por alguns de seus
contemporâneos.
Logo após, conta aquilo que já havia anunciado: a circunstância que
garantiu ao grupo de jovens a sua “sede própria”, o que ocorreu no início da
Primeira Guerra Mundial, e a origem da denominação que essa sede — e,
consequentemente, o grupo — viria a receber. O escritor esclarece que a
razão que os levou, a ele e a Celestino Prunes, a alugar “uma casinha de
porta e duas janelas numa rua, àquela época meio esquecida”, foi a
necessidade de desfrutar um “mínimo de conforto” (MACHADO, 1990, p.
20). Esse “conforto”, que então lhes faltava, consistia em ter luz, água e
esgoto. A “casinha” ficava numa “ruazinha”, e o diminutivo aqui não
apenas acentua a modéstia de ambas, mas traduz, também, a afeição do
autor por tais espaços.
Trata-se aí da Rua Espírito Santo, que, “apesar de um tanto relegada pelos
homens, descia […] numa íngreme ladeira sob a proteção divina do Espírito
Santo”, cujo templo — a capela do Divino —, conhecido pelo nome de
Império, ficava no começo da referida via pública. Ocorre que, naquele
tempo, a Rua Espírito Santo era chamada, espontaneamente, de Beco do
Império, uma vez que beco, conforme explica Dyonelio, “é o nome que se
dá a uma rua estreita”. O Beco do Império, contrariando a tradição, não se
transformou numa “sub-rua”, não se degradou, “como acontece com tudo
que é pequeno”. Era uma rua “familiar”, que manifestava um enorme
“espírito de complacência” com jovens cujo comportamento, condicionado
“pela força do próprio ideal” e “pela carga do ideal que sobre eles pesava”
— este último constituindo-se, possivelmente, na consciência que possuíam
os moços da “missão” que lhes era atribuída, das expectativas que neles
eram depositadas —, revelava-se “muitas vezes um tanto fora dos padrões
habituais na zona” (MACHADO, 1990, p. 20).
Prova “expressiva” dessa atitude assumida pelos jovens é, na opinião do
autor, “o próprio surgimento do nome com que o grupo já tem seu
pequenino lugar assegurado na história da literatura doméstica”
(MACHADO, 1990, p. 21). Observe-se que, quando Dyonelio reivindica
diretamente um “lugar” na posteridade para o grupo que integra, ele o faz
cheio de pudores, diminuindo tanto a importância desse cenáculo e da
posição que ocupa como a relevância da literatura em cuja história se
insere. Porém, de modo implícito, promove uma associação entre os
membros do grupo e a rua onde ficava sua sede: as informações sobre os
personagens e o espaço, ao surgirem encadeadas, sugerem que — tal como
a Rua Espírito Santo — esse “lugar” conquistado pelo cenáculo, ainda que
“pequenino” e circunscrito ao âmbito da “literatura doméstica”, é
respeitável.
No que se refere aos episódios contados acerca da República do Império,
cabe ressaltar não só aquilo que é recordado como também os aspectos
esquecidos por tal autor. Ele se lembra, por exemplo, de que “era um tanto
responsável pela casa perante o senhorio” e de que a chave a ser devolvida
ao proprietário havia desaparecido porque não era usada — “a república
não se fechava nunca” (MACHADO, 1990, p. 21). Parece sintomático o
fato de alguém tão atento aos detalhes e dono de uma memória tão
prodigiosa ter, simplesmente, apagado de suas lembranças um dado relativo
ao aluguel da casa. “Creio que a casa havia sido alugada em meu nome.
Disso não me lembro” (MACHADO, 1990, p. 21) — diz o autor.
Talvez não seja mera coincidência a maneira como se exerceu, em relação
a tais episódios, a ação da memória, que filtrou, justamente, o fator com o
qual Dyonelio e seu companheiro, Celestino Prunes, tiveram, ao que tudo
indica, maior dificuldade de lidar: a parte da operação que envolve uma
transação financeira. Imagine-se o transtorno que o aluguel pode haver
provocado na vida daqueles que, antes, não dispunham de um “mínimo de
conforto” e, particularmente, na vida de Dyonelio, que vendia suas roupas
usadas, por “umas pratinhas”, a fim de adquirir “um lugar no poleiro do
teatro” (MACHADO, 1990, p. 20). Não se pode negar que as experiências
relacionadas à aquisição de um “lugar” — no teatro ou na literatura sul-rio-
grandense — foram sempre dolorosas, talvez até traumáticas, para o autor.
Mais marcantes devem ter sido aquelas situações em que se tratava de
garantir para si condições básicas de subsistência, como é o caso do aluguel
da casa.
Como o escritor esclarece em “Um pobre homem”, o terceiro capítulo de
seu relato autobiográfico, esse é o título do mais antigo de seus livros de
ficção, publicado em 1927, e deriva “de certa passagem, repetida até a
estereotipia, de uma comédia que provocou a quem lhe assistiu um gozo só
comparável em intensidade aos desgostos sofridos por quem a escreveu”. A
comédia é Tartuffe e seu autor, Molière, um “pobre cômico, que, todavia,
faz sua linhagem remontar ao que há de mais corajoso no racionalismo da
antiguidade”. Dyonelio lembra que o assunto dessa peça “se encontra
inteiro em Lucrécio”, o qual traçou, num só verso, a divisa le pauvre
homme, frase que é “o programa, sempre condenado e sempre redivivo, dos
que lutam contra a mentira” (MACHADO, 1990, pp. 53-54). A escolha da
mesma divisa, por parte do autor, para compor o título de seu relato —
Memórias de um pobre homem —, acaba gerando uma contradição, a
exemplo daquela que marcava o nome República do Império: como se
justifica que “um pobre homem” escreva suas memórias?
Entretanto, o depoimento, de forma indireta, traz em si a justificativa para
o relato autobiográfico por parte do escritor e demonstra que o paradoxo
contido no título do livro é apenas aparente. Justamente em virtude das
vicissitudes pelas quais passara (tal como Molière) — que lhe davam
matéria para uma boa intriga — e por ser, ele próprio, nesse relato, uma
encarnação do “programa, sempre condenado e sempre redivivo, dos que
lutam contra a mentira”, é que se apresenta — em geral, por vias tortuosas
— como alguém digno de ter memórias e de “produzir reminiscências”. O
fato de demonstrar o contrário do que declara sugere, mais uma vez, o
temor que nutre de ser censurado por falar de si mesmo, mas, talvez,
também denuncie a forma pela qual a falta de reconhecimento por parte da
crítica, dos editores e, consequentemente, do grande público acaba por
corroer sua autoestima, levando-o a duvidar do talento que, no seu íntimo,
acredita possuir.
Após deter-se na contradição expressa no nome República do Império,
Dyonelio ressalta que essa sede dera “territorialidade” ao grupo, o qual,assim como a geração que o precedera, já possuía “um espaço privativo”: a
Praça da Harmonia. E, alguns parágrafos à frente, adota um tom que, até
esse momento, só de leve havia marcado as páginas do livro. A saudade e a
melancolia tomam conta do relato quando fala do desaparecimento dessa
praça e do distanciamento de todos os elementos que compunham a
paisagem da “academia literária daquele tempo” — do rio, que “se retraiu
pra mais longe, por obra dum aterro e dum cais”, da lua, que mal podia ser
visualizada por detrás de um casario —, bem como da morte dos amigos.
Nesse instante, o “quadro” que guarda na lembrança, um “flagrante de seres
humanos ladrando à lua, às vistas de um rio — que também fugia!”, é
considerado “pouco” pelo escritor, que lamenta: “Mas foi tudo o que ficou”
(MACHADO, 1990, pp. 22-23).
Depois dessa passagem, dedicada a fixar “imagens fugitivas”, Dyonelio
afirma que ele e seus companheiros formavam “um grupo de literatos” e
revela: “E se ninguém o há de ver com os dados que forneço, posso
assegurar que nós o víamos. Mais: e que não víamos outra coisa”. Ocorre,
porém, que eles eram, de acordo com a classificação do próprio autor, “uns
literatos improdutivos”. “Ou melhor”, corrige, “autoprodutivos”, pois, “em
matéria de arte e literatura”, realizavam “o ideal autárquico perfeito”, sendo
“os fabricantes e os consumidores”, o que, atesta ele, “terá acontecido com
os poetas jovens de todas as épocas e todos os lugares”. Segundo ele,
possivelmente, tal atitude fosse motivada pela “consciência de que a
‘publicidade’ demorava muito” e estava longe de seu alcance (MACHADO,
1990, p. 23). É difícil dizer, entretanto, se essa era, de fato, a consciência
dos jovens ou se tal interpretação é imposta, num lance retroativo, pelo
escritor, que, na hora de registrar suas memórias em livro, ainda se debate
contra a falta de divulgação do seu trabalho.
Dyonelio constata que, quando de sua dissolução, “o grupo nada tinha a
apresentar de produção sua”. Lembra, porém, que, cinco ou seis anos após a
desintegração do cenáculo, De Souza Júnior publicara Águas fortes, livro
que, pelo próprio título, já se fazia “ligar […] ao ambiente de cândido
devaneio estético que reinava na República do Império”. De acordo com
ele, não se pode dizer que esse livro, declaradamente, “recorda tempo ou
lugar com as coisas, as pessoas, os sucessos que dão consistência a noções
tão vagas como essas de tempo e lugar”. Ele confessa, no entanto, não ser
capaz de reler as páginas de Águas fortes sem “sentir o coração confrangido
de saudade” (MACHADO, 1990, p. 23).
A vontade do escritor, ao que parece, é conferir a suas Memórias a
capacidade que reconhecera na obra de seu colega de ofício — a de reviver
aquilo que a República do Império possuía de inefável, o seu “ambiente”, e
revivê-lo da forma mais completa possível. A observação acerca da obra de
seu companheiro, bem como do efeito provocado por ela pode, ainda,
servir-lhe como defesa — algo em que esse homem, habituado à censura e à
repressão, sempre está a pensar —, no caso de vir a sofrer qualquer
acusação de falta de precisão ou de fidelidade aos fatos narrados, por parte
dos futuros leitores. Afinal, De Souza Júnior provara que o texto capaz de
“reviver” o passado é aquele que não se sente constrangido a respeitar
determinados limites.
Por fim, no último parágrafo do texto, o autor mostra que o ser humano
está fadado à condição de caminhante, como se o seu andar fosse o motor a
empurrar e fazer girar a roda da vida. Representando metaforicamente
aqueles que o ajudam no cumprimento dessa tarefa, estão os animais de
tiro. É de se perguntar quem seriam esses “animais” que imitam o ser
humano para com ele melhor se irmanarem. Talvez se possa dizer que tais
“animais”, os quais têm nos seres humanos “seus iguais e seus senhores”,
constituem aí uma imagem transfigurada dos “fantasmas” que habitam o
universo das memórias e da fantasia, fantasmas esses que são idênticos às
pessoas e, ao mesmo tempo, submissos a elas ou delas dependentes,
enquanto “criaturas” que não possuem uma existência autônoma. Seu poder
de imitação consiste em fazer valer a força de tração que possuem, e isso
remete à ideia de que essas criaturas projetadas pela mente humana é que
ajudam as pessoas a carregarem o seu fardo, repleto de lembranças,
ressentimentos, mágoas, frustrações, tristeza e saudade.
Na tentativa de interpretar a ação recíproca aludida pelo autor ao final do
parágrafo, é possível dizer que a forma por meio da qual o ser humano
alivia, parcialmente, essa carga transportada por seus fantasmas, em
retribuição ao auxílio que deles recebe, é desfazendo-se em parte do peso
que ele próprio carrega. Isso se concretiza quando ele confere vida a tais
fantasmas no plano ficcional, transformando-os em personagens. Quem
sabe Dyonelio, ao final dessa primeira parte do relato no qual se torna um
personagem de si mesmo, esteja a expor, conscientemente ou não, a força e
o efeito terapêutico que atribui à “produção de reminiscências”, processo
que parece ser capaz de auxiliá-lo na superação da dor e na elaboração das
perdas. A exteriorização, por intermédio da escrita, dos ressentimentos
guardados pelo autor seria, de acordo com esse raciocínio, um ato de
liberação de sua parte.
As ideias de Pierre Ansart (2001, p. 16) acerca do ressentimento parecem
autorizar essa interpretação. O ensaísta cita Nietzsche, que elabora o
conceito de ressentimento pelo cruzamento de três abordagens
complementares: a histórica, a psicológica e a sociopolítica.
Historicamente, explica Ansart, “o ressentimento seria o resultado
longínquo de um conflito, de uma ação conduzida, no início da nossa era,
pela religião judeo-cristã contra os guerreiros aristocratas”, os quais
“possuíam o privilégio de poder exprimir livremente e realizar sua vontade
de poder no exercício de sua dominação”. Várias “configurações idênticas”
dessa guerra civil, que posteriormente se foram sucedendo no decorrer da
história, também são evocadas pelo filósofo alemão. Segundo ele, dessa
longa história, Nietzsche “retém sobretudo a história dos sentimentos e,
essencialmente, a história do ódio”.
Por outro lado, acrescenta Ansart, Nietzsche apresenta o ressentimento
assim compreendido como uma “verdadeira configuração psíquica e
cultural, um habitus próprio à civilização judeo-cristã, a sua pretensa
moral”, cujas consequências sociais e políticas seriam “múltiplas e
socialmente decisivas” (2001, p. 17). Após proceder a essa síntese do
pensamento do filósofo alemão, chama atenção para o fato de que as
descrições de Nietzsche são “hesitantes”, pois “insistem ora na ruminação,
na incapacidade do indivíduo de manifestar seu ressentimento, ora na
extensão dos signos, dos sintomas e das manifestações abertas ou desviadas
dos ressentimentos”. Desse modo, o ensaísta conclui que “dificilmente se
pode aceitar a hipótese de que um sentimento, do qual sublinhamos a
intensidade e a força, não tenha consequências nem manifestações nas
condutas dos indivíduos”. Portanto, o “ódio recalcado” ao qual Nietzsche se
refere “é dinâmico, indissociável de certas aspirações, particularmente dos
desejos de vingança” (2001, p. 21).
No que respeita a Dyonelio Machado, é possível reconhecer em suas
Memórias a interiorização do ódio, a ruminação do indivíduo, que diz
identificar-se com os animais de tiro, por andar sempre em círculos na “gira
da vida”, remoendo e tentando digerir os mesmos sentimentos. Também se
pode verificar nesse texto e numa das entrevistas antes citadas a conversão
da inferioridade em “humildade resignada” e do “ódio recalcado” em ódio
de si mesmo. Expressam tais transformações a denominação que Dyonelio
atribui a si mesmo — “um pobre homem” — e o fato de, em determinados
momentos, julgar-se não merecedor de assinar um livro de memórias. No
entanto, a incapacidade do autor de manifestar seu ressentimento não é
total. Por essa razão, o “ódio recalcado” que carrega consigo, em diversas
passagens, emerge e clama por vingança ou reparação.
A dificuldadee profundo, no qual o início e o fim
permanecem unidos, tendo o corpo como palco.
Para o filósofo grego Alcebíades, o momento de se ocupar de si mesmo
era a idade da passagem da adolescência à fase adulta, em que o moço
deveria passar do erótico ao político. Para ele o indivíduo adulto deve se
preocupar com os valores da sociedade, da cultura e da política.
Já para o filósofo Platão, o pensar sobre as responsabilidades do bem-estar
da pólis está nas mãos de todos. Então, a boa educação das crianças
garantiria uma pólis ética e, portanto, o cuidado deveria ser permanente.
Mesmo antes do século I, Epicuro escreveu:
Quando se é jovem, não se pode evitar filosofar e, quando se é velho, não se deve cansar de
filosofar. Nunca é muito cedo ou muito tarde para cuidar de sua alma. Aquele que diz que não é
ainda, ou que não é mais tempo de filosofar, parece àquele que diz que não é ainda, ou não é mais
tempo de atingir a felicidade. Deve-se, então, filosofar quando se é jovem e quando se é velho, no
segundo caso […] para rejuvenescer ao contato do bem, pelas lembranças dos dias passados, e no
primeiro caso […] a fim de ser, ainda que jovem, tão firme quanto um velho diante do futuro.
Para Epicuro, filosofar é o grande segredo para manter a juventude eterna.
Ao filosofar sobre o envelhecimento descobre-se que a vida não finda, e
que a alma transcende o corpo, como em um eterno retorno, impulsionando
o indivíduo para a vida, para o futuro da humanidade. Ao filosofar sobre o
envelhecimento o pensamento é livre, percorre as alamedas da vida e atinge
a verdade, sendo resolvidas muitas das questões sobre o mais velho e sobre
o mais novo. Aprende-se a valorizar tanto um como o outro. Ambos
revelam o caminho percorrido e, também, determinam o caminho a ser
percorrido.
O arquétipo da Velha é um dos mais conhecidos, presente nas histórias de
criação, contos de fada, lendas e folclore. Por meio dessas narrativas
compreendemos a beleza do envelhecer, principalmente do envelhecer com
sabedoria.
Dentre os muitos contos de fada, “La Loba”, a Mulher-lobo, destacou-se e
se fez presente na elaboração deste texto; por isso a opção de transcrevê-lo
como Estés (1996, p. 43) o apresenta em seu livro Mulheres que correm
com os lobos:
Existe uma velha que vive num lugar oculto de que todos sabem, mas que poucos já viram. Como
nos contos de fada da Europa oriental, ela parece esperar que cheguem até ali pessoas que se
perderam, que estão vagueando ou à procura de algo.
Ela é circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda, e demonstra especialmente
querer evitar a maioria das pessoas. Ela sabe crocitar e cacarejar, apresentando geralmente mais
sons animais do que humanos.
Dizem que ela vive entre os declines de granito decomposto no território dos índios tarahumara.
Dizem que está enterrada na periferia de Phoenix, perto de um poço […]. Dizem que foi vista
indo para a feira acima de Oxaca, com galhos de lenha de estranhos formatos nas costas. Ela é
conhecida por muitos nomes: La Huesera, a Mulher dos Ossos; La Trapera, a Trapeira; e La
Loba, a Mulher-lobo.
O único trabalho de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva
especialmente o que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia dos ossos de
todos os tipos de criaturas do deserto: o veado, a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua
especialidade reside nos lobos.
Ela se arrasta sorrateira e esquadrinha as montañas e os arroyos, leitos secos de rios, à procura de
ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no
lugar e a bela escultura branca da criatura estão dispostos à sua frente, ela senta junto ao fogo e
pensa na canção que irá cantar.
Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e
começa a cantar. É aí que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne,
e que a criatura começa a se cobrir de pelos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção
maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado.
La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar.
E La Loba ainda canta com tanta intensidade, que o chão do deserto estremece e, enquanto canta,
o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro.
Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer
pela incidência de um raio de sol ou de luar sobre o flanco, o lobo de repente é transformado
numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte.
Por isso, diz-se que, se você estiver perambulando pelo deserto, por volta do pôr do sol, e quem
sabe esteja um pouco perdido, cansado, sem dúvida você tem sorte, porque La Loba pode
simpatizar com você e lhe ensinar algo, algo da Alma.
La Loba trabalha muito, recolhendo ossos, principalmente aqueles que
correm o risco de se perderem pelo mundo. Ela recolhe aqueles ossos que
foram deixados pelo caminho ao longo de nossa vida. Recolhe os ossos que
às vezes foram perdidos sem serem percebidos, aqueles que foram
dolorosamente arrancados e jogados longe, aqueles que caíram depois de
uma dor intensa.
Ela guarda a parte essencial do esqueleto, o osso, que é relativamente
permanente, simbolicamente representando a firmeza, a força e a virtude.
Quando reúne todos os ossos de um esqueleto, La Loba monta a estrutura e
a observa sentada ao lado do fogo. “A contemplação do esqueleto pelos
xamãs é uma espécie de retorno ao estado primordial, pelo despojamento
dos elementos perecíveis do corpo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998,
p. 666).
Junto ao fogo observa o esqueleto e pensa que, dentre as muitas canções
que conhece, deve fazer uma escolha, pois para cada esqueleto há uma
canção, para cada ser há um som primordial, um mantra que lhe trará vida,
que o fará renascer. O som é força divina. Ao lado do fogo — Agni, o fogo
terrestre — e aquecida por ele, La Loba se eleva, sente a chama celeste
Surya. E o fogo Vaishvanara, que é da penetração, da absorção, faz com que
neste momento ela sinta o fogo do espírito, da paixão e da emoção, então se
faz presente à canção que é entoada e o esqueleto começa a ganhar carne.
Com o cantar cada vez mais intenso, a criatura se forma por inteiro e sai
correndo. No conto a criatura lobo se transforma em mulher. Em uma
mulher que corre para uma nova vida.
La Loba representa o arquétipo da Velha Sábia, encontra-se em todos os
lugares e em lugar algum. Todos a conhecem sem nem mesmo tê-la visto.
La Loba vive no deserto, em que a vida se apresenta condensada, intensa.
Em um primeiro momento o deserto parece estéril, a vida parece não existir,
e tudo que ali existe está em estado latente, ou abaixo do solo. A maioria de
seus habitantes tem vida noturna. As formas de vida do deserto revelam sua
beleza misteriosa. Ela transita entre dois mundos — o racional e o mítico –,
faz a articulação entre eles. Esse espaço entre os mundos é aquele lugar
inexplicável que todos reconhecemos, uma vez que passamos por ele.
Porém suas nuanças se esvaem e têm a forma alterada. Se quisermos defini-
lo, podemos recorrer à poesia, à música, à dança, à arte ou às histórias
(ESTÉS, 1996). La Loba vive no deserto de nossa alma. Principalmente da
alma feminina.
Estés dirige seus estudos para a mulher, mas acrescentamos que La Loba
também existe no homem, escondida em sua anima, e muito tem a dizer-lhe
sobre a vida criativa, sobre a renovação espiritual. “Mesmo no melhor dos
mundos, a alma precisa de uma renovação ocasional” (ESTÉS, 1996, p. 54).
Em algum momento da vida o deserto se faz presente, tanto para mulher
quanto para o homem, e é necessário renovar. Geralmente esse momento
ocorre na metanoia, entre os quarenta e sessenta anos. Nesse período da
vida o deserto se apresenta como uma indiferenciação inicial, no sentido de
que nada existe. No deserto o sujeito analisa sua vida e verifica se alcançou
ou não seus objetivos. Se tiver maturidade analisa a extensão superficial,
estéril sobre a qual viveu, e aprofundaque possui de exteriorizar esse ressentimento se evidencia
no plano linguístico: nos desvios, nas ambiguidades, nos períodos truncados
e longos. Tais marcas, que talvez não chamassem a atenção se empregadas
por outro escritor, em Dyonelio Machado — escritor de estilo enxuto,
linguagem direta e objetiva, e precisão vocabular — destacam-se como se
houvessem sido grifadas. Todavia, por detrás desses torneios e hesitações,
surge, em certos trechos, a imagem do “Doutor Dyonelio”, que usa termos
em francês e exibe a erudição, a coragem e o talento que pontuam sua
atuação política e intelectual, além de converter em autoridade a sua
experiência e, até mesmo, a idade avançada em que se encontra.
É, portanto, o “Doutor” que reivindica, por meio de manifestações
abertas, um lugar para si na história da literatura sul-rio-grandense — e até
do País —, buscando a sua legitimação como escritor, algo que viria
somente na passagem da década de 1970 para a de 1980. Essa
reivindicação, circunscrita em “Imagens fugitivas” ao âmbito literário,
alcançaria também, nos demais capítulos de sua obra, outros terrenos,
principalmente o da política. Percebe-se, assim, nessas manifestações
diretas do autor, o fenômeno a que se referem Bresciani e Naxara (2001, p.
9): a presença da “memória voluntária construída como estratégia de luta
política, afirmação positiva de identidade pelos que se veem excluídos dos
direitos à cidadania”.
Por fim, cabe ressaltar que, em “Imagens fugitivas”, o ato de relatar as
próprias memórias é visto, sobretudo, como um privilégio dos velhos,
porque só eles acumularam vivências e lembranças suficientes, em número
e intensidade, para ter o que contar. Para o escritor, o ato de “produzir
reminiscências” deixa, contudo, de ser uma prerrogativa e passa a ser uma
“tarefa”, quando o idoso em questão exerceu uma função social relevante.
Também é preciso enfatizar que, no fragmento das Memórias de Dyonelio
aqui analisado, a velhice perde o sinal negativo, de inferioridade, que a
princípio o autor parece atribuir-lhe, para tornar-se, em algumas passagens,
uma vantagem, constituindo-se, inclusive, em expressão de autoridade.
Além disso, faz-se necessário assinalar, a título de conclusão, que o
próprio escritor se apresenta, ao longo do relato, como um manancial de
informações, ideias, opiniões e conflitos. Dessa forma, opõe à imagem
estereotipada do velho inepto, conformado e passivo, a figura de um idoso
em plena atividade intelectual, com vontade própria e sempre disposto a
rebelar-se contra aquilo que contraria o seu senso de justiça. Contar para
reviver o passado, mas também, e acima de tudo, para “corrigir”, de
antemão, a versão da história a ser contada pelo futuro ou para minar o
silêncio que foi construído em torno do seu nome e da sua obra — esse
talvez seja o lema do escritor “maldito”, que arrastou a(s) fronteira(s) para o
centro, editando a si mesmo.
Referências bibliográficas
ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA,
Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento; indagações sobre uma questão sensível. Campinas:
Unicamp, 2001. pp. 15-36.
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. Apresentação. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia
(Org.). Memória e (res)sentimento; indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. da
Unicamp, 2001. pp. 9-13.
GRAWUNDER, Maria Zenilda (Org.). Dyonelio Machado; o cheiro de coisa viva — entrevistas,
reflexões dispersas e um romance inédito: O Estadista. Rio de Janeiro: Graphia, 1995.
MACHADO, Dyonelio. Memórias de um pobre homem. Pesquisa, apresentação e notas de Maria
Zenilda Grawunder. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1990.
P
CAPÍTULO 6
Picasso como intérprete de si
mesmo: afetos, ação e
aprendizagem
Graciela Ormezzano27
Al principio, el autorretrato es un aprendizaje, y luego se vuelve una
representación; he aquí como me veo, he aquí como pienso que me vi.
Picasso
Considerações iniciais
icasso dispensa apresentações. Foi o artista mais genial e mais bem
divulgado do século XX, cuja trajetória de vida começou em Málaga,
cidade meridional da Espanha, em 1881. Na adolescência mudou-se com
sua família para o norte do País; depois, realizou estudos em nível superior
em Madri, mas não os concluiu. Até ali é possível afirmar que havia uma
grande influência paterna nos trabalhos deste artista, pois seu pai era
professor de desenho e restaurador, tendo-o iniciado na formação artística
acadêmica. Mais tarde, voltou a Barcelona, onde viveu uma fase
intermediária entre o academicismo e o modernismo, afastando-se, então,
dos ensinamentos do pai na procura de um modelo pessoal. Ainda jovem,
emigrou para França, que foi sua segunda pátria, morando na capital e
noutras cidades da costa francesa.
Apresentam-se aqui sete autorretratos de Picasso, que foram selecionados
para este estudo por terem sido realizados em diversos períodos,
principiando por sua vida entre Barcelona e Paris, onde o contato com
outros artistas e intelectuais de vanguarda foi decisivo na evolução de sua
arte, e concluindo com o autorretrato pintado um ano antes de morrer, em
1973, em Mougins, um povoado perto de Cannes. Isso não significa que sua
imagem não aparecesse noutros trabalhos, mas foi necessário selecionar
aqueles que ele mesmo intitulou como “autorretratos” para poder ler não
somente o aspecto simbólico, senão também o que o aspecto físico das
imagens revelava.
Esta investigação buscou desvendar o significado desses autorretratos de
Pablo Ruiz Picasso, na tentativa de mostrar os afetos vividos
cotidianamente, a ação artística e o processo de aprendizagem para a vida,
assim como as transformações pessoais na trajetória de envelhecimento
segundo sua própria visão. A esse respeito, Bernardet afirma: “Pintar seu
próprio rosto, assim como escrever uma autobiografia, é um ato de
confissão pelo qual o artista revela voluntariamente a parte mais íntima do
seu mundo e do seu ser” (2007, p. 1).
Diante da vasta produção artística, a seleção de tais autorretratos
encontra-se de acordo com os modos de ver e as ideias da época que
influenciaram o pintor, fazendo-se uma leitura iconográfica e iconológica
das imagens, à luz das teorias do imaginário. O itinerário de leitura começa
pelo tempo-espaço em que cada obra foi elaborada; seguem-se uma
descrição breve, aspectos simbólicos e arquetípicos da imagem e, por
último, uma interpretação pessoal fundamentada na experiência estética:
poiesis, aisthesis e katharsis.
Para Mèlich (1994), as duas primeiras categorias básicas exercem a
função de tese e antítese. A poiesis é o momento da criação. A ação
comunicativa é basicamente uma ação social ativa, produtiva de construção
e reconstrução. Os autorretratos de Picasso surgem como uma maneira de
ver-se. Contudo, a poiesis não pode existir à margem da aisthesis, que é o
espaço da recepção. Na aisthesis percebe-se que o artista espanhol arrasta
os contempladores até sua intimidade; o rosto aparece com toda a força da
subjetividade e seduz com seu olhar intenso, profundo, cativante. Porém,
falta a terceira categoria, a katharsis, síntese entre poiesis e aisthesis, ação
comunicativa em nível estético. A katharsis possui uma ação ativa e passiva
ao mesmo tempo, uma mediação criadora e receptiva. É fundamentalmente
comunicação afetiva, sensível, racional; conserva o caráter espontâneo que
caracteriza as ações comunicativas na vida cotidiana. Se era possível que
alguém sentisse a angústia de Picasso, é porque existia nessa pessoa
determinada ideia ou sensação anterior acerca de tal sentimento. Os a priori
afetivos acontecem antes de toda experiência estética, não se captam, mas é
preciso conhecê-los, vivê-los.
Na obra dele aparecem afetos que se repetem ao longo de toda a seu
história, como os temas retomados, uma e outra vez, com o passar dos anos:
o pintor e sua modelo, os infinitos retratos de suas mulheres, os
personagens mitológicos com os quais se identifica, a releitura dos grandes
mestres. Apesar de o autorretrato não ter sido uma temática muitoaproveitada, a presença do artista em cada um dos personagens que criou é
gritante, roubando a alma dos retratados reais ou imaginários e fundindo-se
simbioticamente com eles. Também se observa que num mesmo período
histórico convivem estilos, temas e linguagens expressivas diversas, razão
pela qual não se pode considerar seu trabalho dividido somente em épocas
ou tendências, mas como expressões cíclicas de sua alma irrequieta e de seu
profundo conhecimento sobre arte. Assim, orienta-se a reflexão segundo
dois grandes ciclos, o da juventude e o da maturidade, pessoais e artísticos.
O adulto jovem: afirmação das ambições artísticas
Nos começos do século XX, Picasso viveu em Barcelona, Paris e Madri,
na efervescência que se vinha gerando entre artistas, literatos, marchands e
intelectuais. Na Catalunha surgiu um movimento modernista culturalmente
ligado ao simbolismo francês e a novas teorias estéticas dominadas por
ideias anarcossindicalistas. Ele morava em Barcelona quando um dos seus
quadros foi selecionado para integrar a Exposição Mundial de 1900, em
Paris, motivo que o levou a viajar pela primeira vez a essa cidade, centro
europeu da vanguarda artística. Picasso colaborava com revistas
vanguardistas e, ao retornar da capital francesa, viajou para Madri para
fundar, junto com Francisco Asís Soler, a revista Arte Joven, como diretor
artístico. Esta revista foi criada para instaurar em Madri o modernismo
catalão, mas alguns meses depois fracassava, o que provocou seu retorno a
Barcelona. Vivia, então, uma época marcada pela inquietude e viagens.
Nesse clima de grandes transformações artísticas e separação dos velhos
padrões acadêmicos, o artista andaluz pintou, entre 1901 e 1902, seu
“Autorretrato com sobretudo”, marcando o início de uma fase de
reorientação artística e pessoal. Foi nesse período que omitiu o sobrenome
paterno Ruiz e passou a utilizar somente o sobrenome materno, sendo, a
partir de então, conhecido como Pablo Picasso. Os motivos que podem tê-lo
levado a fazer esta escolha oscilam entre o sentimento de fracasso em
relação à figura do pai e a fé cega da mãe na capacidade que o filho tinha
para atingir o sucesso (IZQUIERDO, 2003).
Trata-se de uma composição de forma quase quadrada, monocromática,
em tons azuis, de grande sintetismo e beleza pictórica. A figura emerge
solitária; o rosto, extremamente pálido, viril e magro, apresenta o jovem
artista de barba e bigode; as feições são marcadas por sombras azuladas; na
boca, fechada, convergem as oposições, os contrários, abertura pela qual
passa a força da fala e as palavras que não podem ser ditas. O olhar
assimétrico em cor, forma e expressão, centrado num ponto fora do quadro,
fixa o observador, desvelando os sentimentos que o atormentam.
As metamorfoses do olhar não revelam somente quem olha; revelam também quem é olhado,
tanto a si mesmo como ao observador. É, com efeito, curioso observar as reações do fitado sob o
olhar do outro e observar-se a si mesmo sob olhares estranhos. O olhar aparece como símbolo e
instrumento de uma revelação. Mais ainda, é um reator e um revelador recíproco de quem olha e
de quem é olhado. O olhar de outrem é um espelho que reflete duas almas (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2002, p. 653).
O autorretrato mostra um homem profundamente abatido, mas com ar
imponente e distante. A forma é fechada, recortada num fundo vazio; seu
torso, coberto por um pesado casacão de inverno. A roupa pode ser vista
como um símbolo do próprio ser do artista, a forma visível da sua
interioridade. A veste escura e fechada fala de um tempo invernal, período
azul, cores frias. Frios são os momentos de angústia e dificuldades
econômicas em que exuberam o patético e a melancolia. Picasso diria a
Brassaï muitos anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial:
Quanto a mim, sofri com o frio em minha vida mais que muitos outros! Em Barcelona, queimava
meus desenhos para me aquecer… Em Madri, que inverno! Que frio na minha água-furada da
calle Zurbano. Nem fogo nem luz… Jamais passei tanto frio… E no Bateau-Lavoir! Uma fornalha
no verão, uma geleira no inverno… A água congelava… […] Pois bem, posso lhe dizer uma
coisa: o frio nos estimula… Mantém o espírito desperto (BRASSAÏ, 2000, p. 145).
Outra experiência decisiva, além do frio, foi para Picasso a morte de seu
amigo Casagemas. Tornou-se o tema oculto em todos os quadros da época,
inclusive neste autorretrato, através do uso da cor e da forma. Por um lado,
o alongamento exagerado do corpo parecia desejar reter a figura que se
elevava, como se estivesse ainda ligada à terra, mas, por outro, a mostrava
fora do mundo, excluída pela miséria, o frio e a morte. Esta fase apresenta
personagens marginalizados, indicando as preocupações sociais do artista e
suas próprias desventuras.
A cor é considerada, na teoria do imaginário de Durand (2001), um
arquétipo. Azul pesado e denso, a cor adotada pelo pintor para seus estudos
monocromáticos, tornou-se o tom adequado para exprimir os seus
sentimentos de luto e de dor. Gerador de um clima de irrealidade, imóvel,
impávido, indiferente, o azul não expressa o real e sugere uma ideia de
eternidade; seu movimento atrai o ser humano para o infinito e lhe desperta
a sede do sobrenatural.
Era sua forma de expressar a agonia, a angústia e a desolação diante do
suicídio do amigo; também uma profunda dor pela perda, sofrimento que
lhe exigiu uma energia que pode ter sido expressa como raiva ou culpa.
Segundo Izquierdo (2003), Picasso tentou ajudá-lo fazendo juntos uma
viagem até Málaga, na intenção de que Casagemas esquecesse uma
prostituta francesa por quem estava apaixonado. Contudo, as loucuras do
amigo foram tantas que o pintor pediu que voltasse a Barcelona. Casagemas
decidiu ir a Paris para conquistar a mulher que tanto desejava e, diante da
rejeição dela, foi até um café em que sua amada se encontrava e, ali mesmo,
matou-se com um tiro na testa. Essa lembrança atormentava Picasso, que
confessou pintar em azul ao pensar na fria e trágica morte do seu melhor
amigo.
A dor mais difícil de suportar é aquela em que somente cabe a aceitação.
Quando se perde alguém a quem se ama, não há como voltar atrás. Durante
o luto pela morte de Casagemas, foi preciso lidar com a sensação de
abandono do companheiro de aventuras, de raiva contra as prostitutas ou as
mulheres, de um modo geral, e de culpa por tê-lo mandado de volta a
Barcelona, embora não estivesse mais suportando suas loucuras.
O artista resolveu sua tristeza a seu modo, ou seja, pintando e vingando-se
das prostitutas ao retratá-las sujas, doentes, feias. Essa transformação
caracterizada pela monocromia em azuis apareceu no estágio em que o
artista andaluz começava a se afirmar nos círculos de artistas modernistas,
atitude que lhe deu um lugar na pintura europeia. A crítica fez elogios ao
simbolismo expressivo, mas criticou a tristeza. Com base na monocromia,
Picasso criou um modo particular de expressão que acumulava a soma das
tendências do momento e apreendia as infinitas possibilidades do azul —
em suas tonalidades violetas e esverdeadas. A temática rondava o
submundo, havendo um sentimento de identificação com os marginais
retratados por ser um imigrante sem recursos, porém essas frustrações não o
abateram, pois sua determinação e a imersão por longas horas no ateliê
levaram a que, lentamente, deixasse o azul para o plano de fundo e, em vez
dele, surgissem rosas, ocres, alaranjados, terrosos.
Apesar das longas estadas na capital da França, ele só se fixou na cidade
em 1904. Instalou-se num barracão de madeira, o Bateau-Lavoir, local onde
conviveu com sua primeira mulher, Fernande Olivier, e outros artistas com
quem fez grandes amizades, como Georges Braque e Max Jacob. Para
Izquierdo, ela foi a responsável pela sua mudança cromática: “Quando
Fernande entrou em sua vida, Picasso abandonou sua restringida palheta de
tons azuis e verdes e iniciou uma nova etapa, a rosa” (2003, p. 34).
As revistas artístico-literárias da época auxiliavam a divulgar as novas
tendências. Toulouse-Lautrec eApollinaire foram grandes colaboradores
desse gênero, buscando inspiração na vida do teatro, do cabaré e do circo. O
circo Medrano, no sopé de Montmartre, ficava próximo do ateliê e era
frequentado por Picasso e seus amigos. O pintor produziu as primeiras
obras da fase rosa inspirado nos temas circenses e no sentimento de
amizade entre seus personagens. Saltimbancos, clowns e arlequins
substituíram os representantes do submundo, sendo apresentados em
situações cotidianas, nos bastidores, mostrando sua fragilidade humana, não
o glamour do palco. A pobreza e a depressão cederam lugar a uma tristeza
adocicada e, de certo modo, até agradável. Sente-se, ainda, um sopro de
melancolia, porém a dor, se ainda o incomodava, não parecia ser tão
amarga.
A partir de então, Picasso não se sentia mais como um imigrante
desvalido, porque estava desfrutando de um pouco de prestígio graças ao
seu marchand Daniel-Henry Kahnweiler e a sua amiga e colecionadora de
arte Gertrude Stein; experimentou novas técnicas gravando uma coleção de
águas-fortes, pintando e desenhando. As frequentes idas ao Louvre
tornaram-se também visíveis nas telas de 1906, ano em que pintou o
“Autorretrato com paleta”; mostrando sensíveis características desta nova
fase.
Essa pintura, de forma retangular, apresenta a imagem do artista
centralizada, o corpo forte e grande pintado de forma simétrica, o rosto em
três quartos de perfil. A figura aparece um pouco mais integrada ao fundo
que no autorretrato anterior; afina o traço, tornando-o mais sutil. O pintor
veste uma camisa branca com decote V, as mangas arregaçadas, indicando
uma temperatura mais amena e certo desleixo durante o trabalho. As calças
que está vestindo são pretas. A ausência de cor nas roupas e o estilo podem
significar despojamento ou luto, que ainda permanece, mas que se vai
tornando mais luminoso, um indício da consciência de si mesmo num
tempo mais vital. Os artistas do circo pintados por ele levam as roupas dos
personagens que representam, o que os diferencia das pessoas comuns.
Picasso retrata-se como artista plástico, com a paleta na mão, usando roupas
adequadas a sua tarefa de pintor. Ele se considerava fazendo parte do grupo
de artistas ambulantes, um grupo de seres livres com sentimentos sinceros e
solidários. Segundo o historiador de arte Vitali Suslov (1980), foi nessa
época que se estabeleceram os princípios fundamentais de sua arte, os
ideais humanistas e as temáticas essenciais.
O artista andaluz compreendia as contradições e os conflitos do seu tempo
revelando em novas nuanças a incerteza da espera para dar um novo salto
criativo. O olhar do autorretrato se dirige ao ponto inferior esquerdo da
obra. De acordo com a simbologia espacial, este ponto simboliza o que foi
superado, a criatividade (ZIMMERMANN, 1992). Há um novo tratamento
plástico no olhar, um retorno ao primitivo, talvez indicando a angústia
superada pelas dificuldades e perdas da fase anterior por meio da criação,
aparentando serenidade e concentração.
A ruptura com o período azul foi lenta, mas profunda. Não se limitou à
cor, já que, como mencionado anteriormente, os motivos também sofreram
uma alteração fundamental. O cabelo continua preto, mas o corte é bem
mais curto, emoldurando o crânio. Ele parece mais corado, saudável. A cor
é modelada e no pescoço deixa sobressair a estrutura óssea. Os tons
terrosos, ocres e alaranjados aparecem não só na pele de Picasso, mas na
paleta que segura na mão esquerda, e também misturados ao azul do fundo.
As camadas coloridas foram colocadas muito finas e líquidas para sugerir
suavidade.
Na escolha das cores, as relações dos tons cinza e azulado são, de certa maneira, austeras, mas
não possuem a unicidade da cor de um sentimento único, predominante. No lugar disso, há um
equilíbrio, uma oposição de forças, e uma busca do contorno para obter força e elegância em vez
da ondulação melódica, recorrente e emocional da linha (SCHAPIRO, 2002, p. 28).
Essa época esboça a reversão de valores estéticos, embora traga a herança
do simbolismo e do art nouveau. Picasso experimentou também uma
reversão de valores humanos, expressa nos afetos sexuais, nos impulsos,
nos desejos, na curiosidade. A atração sexual que sentia por Fernande
continha os rudimentos do gosto e do gozo. Sua vida estava orientada aos
prazeres, a um modo de vida desenvolvido a partir das tensões afetivas
criadas sobre os impulsos sexuais. Queria viver perigosamente.
Izquierdo (2003) afirma que, nesse período, experimentar drogas teve
grande importância para o artista, que seduziu sua companheira graças ao
ópio. Contudo, depois de quatro anos se apartou definitivamente dessas
experiências. Outro suicídio marcou a vida de Picasso: o pintor alemão
Wiegels enforcou-se no ateliê. Daí em diante seus únicos vícios voltaram a
ser o trabalho, o sexo e o tabaco. Com o passar do tempo, seu afeto por
Fernande transformou-se num desejo de posse, tendo atitudes doentias,
como trancá-la dentro da casa e não deixá-la nunca sozinha, até que ela se
cansou de ser mulher-objeto e ambos tiveram relacionamentos com outras
pessoas até acabar a paixão que os envolvia.
É interessante mencionar a possível sublimação da energia sexual na força
de trabalho que emerge neste autorretrato, assim como a intensa ideia de
atividade, poder e dominação que sugere o braço direito. A mão direita
significa autoridade; fechada, indica o segredo. Que terrível mistério
Picasso quer guardar só para si? Que saber escondido há na mão com que
pinta? Um enigma que oculta também a estilização do próprio rosto,
convertido em quase uma máscara. Existe certa semelhança entre sua
imagem neste quadro, o Retrato de Gertrude Stein, pintado no mesmo ano,
e as duas figuras centrais retratadas em Les Demoiselles d’Avignon, a
primeira pintura cubista que realizaria no ano seguinte.
Ele agora está determinado a ser um artista em um novo sentido, não um artista que projeta no
quadro seus sonhos e paixões, fantasias, anseios, autopiedade e tristezas, mas que quer mostrar
sua verdadeira força como a de um artista que pode construir, manipular, distribuir, que conhece a
precisão de cada elemento no todo, num sentido arquitetônico. Isso lhe foi inspirado pelo exemplo
de Cézanne, sem obedecer à cor ou ao pincel desse pintor (SCHAPIRO, 2002, p. 32).
As mudanças da fase rosa prenunciaram o tratamento diferenciado da
superfície que o aproximava de Cézanne, o qual recomendava expressar a
natureza por meio do cilindro, da esfera e do cone, em perspectiva, para que
cada lado dos objetos se dirigisse a um ponto de fuga central. Esta pintura
parece anunciar o salto dado pelo cubismo, caracterizado pelas deformações
geométricas sob a provável influência da escultura africana, embora Picasso
negasse alguma relação entre a arte negra e a proposta estética criada por
ele e Braque.
De acordo com Gullar (2000), é difícil identificar a data exata de qualquer
movimento artístico, uma vez que se trata de um processo, de vários fatores
convergentes, que, lentamente, se vão definindo. Até o momento, admitem-
se dois aspectos fundamentais: por um lado, a obra de Cézanne conhecida
por Picasso e Braque; por outro, a visita de Picasso a uma exposição de
escultura africana no Museu de Chaillot. A esses dois fatos se somou o
esgotamento do modelo impressionista. O crítico e poeta brasileiro dá
crédito a Picasso no sentido de que a influência da escultura negra pode ter
sido incidental, pelo estranhamento que ela produz em relação à tradição
artística europeia. Contudo, não se pode dizer o mesmo da forte presença de
Cézanne no cenário da arte francesa.
Entretanto, é mister considerar também uma transformação paradigmática
no campo da ciência e da arte ocidentais. Apesar de não haver nenhuma
intenção de descrever nas obras cubistas os princípios da matemática
moderna, da geometria não euclidiana ou da nova física, é possível
perceber, sim, uma visão de totalidade que invadiu os dois campos do saber
com suas inovações radicais. A geometria pictórica orientada pela
percepção darealidade foi acrescida de uma estrutura autônoma. O cubismo
foi, na época, um outro modo de percepção do real ou até de reinventar o
mundo, quebrando as regras da geometrização que antes apreendiam
objetos simples, na sua forma típica, para facilitar a identificação. Todavia,
a proposta cubista, em toda sua complexidade, dificulta em lugar de
favorecer a identificação da figura. Onde estariam as convergências entre
ciência e arte, então? Schapiro (2002) aponta que há uma relação com a
teoria de Einstein sobre a relatividade do espaço e do tempo, expressa no
cubismo pela quebra da perspectiva renascentista como representação das
três dimensões, e a apresentação de todas as partes constitutivas do objeto,
além de uma inferência de Panofsky sobre a suposta percepção dos cubistas
de uma quarta dimensão, que indicaria a ordem temporal em sua
continuidade sucessiva. Em estudo anterior, sobre os retratos de Picasso,
Ormezzano (2002) percebe no Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler uma
desaparição da perspectiva; a figura se superpõe em planos, o corpo se
dissolve no espaço pictórico e atemporal; o simbolismo da morte material e
do acorpóreo surge na composição caótica como espelho da ordem
labiríntica que o olho procura organizar e tornar holos.
No Autorretrato de estilo pré-cubista, pintado na primavera de 1907,
Picasso buscava criar uma nova imagem pessoal. Foi a linha o meio
dominante de realização. As formas geométricas diluíram os contornos
apoderando-se de resíduos realistas. Faltavam longas experiências até se
chegar à ideia de cubismo mencionada anteriormente. Diga-se de passagem,
este autorretrato foi uma das primeiras tentativas de aproximação à
tendência que marcou a história da arte universal. Os largos e rápidos traços
de pincel desenharam as feições, delimitando as superfícies do quadro,
preenchidas de cor e pouco modeladas. Em várias zonas a tela ficou sem
pintar. Não somente o modo rápido de produzir a obra, mas o olhar de
Picasso também se transformou. Há apenas poucos meses de diferença entre
o autorretrato de 1906 e o de 1907, mas, enquanto o primeiro mostra-o
ainda jovem, o outro revela o Picasso amadurecido e mais ousado.
O pintor não se retrata como promotor de sua individualidade, mas como
realizador de uma construção abstrata no espaço pictórico composto de uma
grade estrutural.
Isto não significava apenas “desvendar” o objeto, mostrando sua face não visível, mas recriá-lo a
partir do “interior” da arte. Não se visava à representação do objeto como apreendido no “real”;
ao contrário, buscava-se figurá-lo através de um procedimento pictórico que, por um caminho
todo diferente da percepção habitual, fornecesse uma intuição similar à daquele objeto
(FAGUNDES JUNIOR, 1996, p. 29).
A paleta de Picasso aqueceu-se e adensou-se; as cores ficaram mais
quentes e escuras que nos autorretratos anteriores. Emerge uma indicação
de que o cubismo utilizaria futuramente os tons da terra, em lugar dos azuis
e dos rosados. Para Portal (1996), a cor brônzea simboliza o ser que está em
pecado, rodeado dos demônios apoderados de sua alma em tentação, a
degradação moral, mas, ao mesmo tempo, a regeneração e o ser que luta
contra o inferno. Esta cor, junto ao preto das íris e do cabelo, pode indicar a
tristeza que continuava acompanhando o pintor; junto ao branco das
escleróticas e da camisa, pode significar o talento. O artista perfura o
público com seu olhar, pois os olhos enfrentam, dilaceram, atraem. O
fotógrafo Brassaï escreve sobre esses olhos arrebatadores:
Contrariamente ao que se diz, ao que se pensa, constatei então, eles não são nem anormalmente
grandes nem anormalmente escuros. Se parecem enormes, é porque têm a curiosa faculdade de se
abrirem amplamente, descobrindo a esclerótica branca — às vezes até mesmo acima da íris — na
qual a luz pode se refletir e brilhar em relâmpagos. É a abertura das pálpebras que faz seu olhar
fixo, louco, alucinado… Daí também que, nas pupilas amplamente dilatadas, a íris, normalmente
castanho-escura, pareça tão negra. É o olho de um artista feito para um perpétuo espanto (2000, p.
32).
O olho, órgão da visão, é associado à luz. Não se pode separar a imagem
do olho do simbolismo do olhar — olho e olhar estão sempre vinculados à
transcendência. No ato de ver há também compreendido um saber,
considerando que olho é luz, a visão pode significar o fato de trazer à luz
um conhecimento. A mitologia confirma o isomorfismo do olho, da visão e
da transcendência; em diversas culturas encontram-se associações entre o
olho de Deus que tudo vê e tudo sabe (DURAND, 2001).
Uma antevisão parece mostrar-lhe que, apesar de encontrar-se numa
situação financeira pouco confortável, logo mudaria para dias mais
prósperos. Nesta obra não aparece o pintor em roupas de trabalho, mas em
traje social, seguindo, provavelmente, os mandatos da moda de época.
Picasso se veste com elegância, insistindo nos contrastes de cores e
ressaltando o colarinho branco sobre fundo escuro; usa a indumentária
como provocação, expressando um estilo singular, revelando suas intenções
(BERNARDET, 2007). A roupa como reflexo da autoconsciência é
reveladora de uma personalidade influenciável e do desejo de prevalecer
sobre os outros, de ser pioneiro nas mutações da época, conjugando
sensualidade, beleza e desejo de fortuna.
Predomina no Autorretrato de 1907 um sentimento de orientação que,
segundo Heller (1982), é um sentimento afirmativo de probabilidade
relacionado à ação direta do trabalho e do conhecimento, que se faz de guia
na maior parte das atividades cotidianas. Picasso pode ter pensado: “Sinto
que agora estou no caminho certo…”. O caminho que o conduziu ao
cubismo não está prescrito completamente nesta pintura, mas se percebem
aproximações, que seriam desenvolvidas mais adiante no cubismo analítico
e no sintético, com base na experiência prévia. Esse conhecimento, voltado
à geometrização, teve Cézanne por mestre, com o qual aprendeu a abolir o
não essencial. Acumulou saberes captados com seu olhar usurpador sobre a
escultura africana, que elimina o detalhe pela exaltação das formas simples,
ou, talvez, sobre a escultura ibérica pré-romana, cuja redução formal tende
à abstração.
Uma viagem a Gòsol, povoado dos Pirineus espanhóis onde passou suas
férias com Fernande, marcou o início de uma nova fase, influenciada pela
arte de povos antigos e pré-históricos. A cada ruptura, um autorretrato com
um novo tratamento no rosto. De qualquer modo, independentemente das
intertextualidades possíveis nesta pintura, pode-se inferir que sua
criatividade artística teve um efeito tão perturbador e desconcertante que
revolucionou a arte do século XX, influenciando movimentos posteriores.
Picasso e Braque trabalhavam juntos, experimentando novos materiais
depois de o cubismo se afirmar dentro e fora da França. A Primeira Guerra
Mundial desintegrou o trabalho do grupo interessado nesta tendência
porque os amigos de Picasso tiveram de se dirigir ao campo de batalha.
Apesar das baixas sofridas, a proposta perdurou como tendência estética.
Grandes transformações profissionais e pessoais na vida de Picasso
revelaram-se na busca de experiências no mundo do teatro. Ele viajou com
Cocteau para a Itália, em 1917, onde fez cenários e figurinos para o balé
Parade, de Sergey Diaghilev. Conheceu a bailarina russa Olga Kokhlova.
Durante a primeira época de namoro com Olga, “o corpo leve e flexível da
bailarina e sua beleza algo crispada foram o veículo perfeito para expressar
a nova etapa na que entrava Picasso […]” (IZQUIERDO, 2003, p. 80).
Nesse ano desenhou outro autorretrato, que demonstra uma opção pela
figura realista na sua aparência concreta, o que não implica uma recusa à
distorção orientada do cubismo — as obras deste ciclo contêm ambos os
aspectos. A experimentação cubista vai até 1920 de forma mais estilizada;
às vezes, intercala uma pintura semiabstrata, outras, diferentes ensaios que
retornam a um estágio decorativo e neoclassicista. É a expressão de uma
capacidade vital de mudança contínua de um padrãoalcançado, oscilando à
procura de novas formas expressivas entre os dois polos, reproduzindo a
aparência imediata e o olhar sob a superfície.
O Autorretrato de 1917 é um desenho a lápis sobre papel. O rosto
encontra-se em posição de três quartos, perfil esquerdo. Seguindo os
padrões clássicos, Picasso utilizou a proporção áurea, talvez
inconscientemente, para dividir o retângulo na vertical e na horizontal. Na
intersecção de ambas as linhas imaginárias encontra-se o olho esquerdo,
que corresponde à lua — ele mira o futuro. A orelha parece um pouco
grande em relação ao rosto, situando-se no ponto central da margem direita
da imagem. O simbolismo da orelha está associado ao pênis (pavilhão) e à
vagina (conduto auditivo). A analogia indica que a palavra do homem é tão
importante para a fecundação da mulher como o líquido seminal. A
sexualidade aparece reiteradamente na obra de Picasso. De acordo com a
simbologia espacial, este ponto indica a realidade exterior, a extroversão, o
masculino, o tu. O desejo de Picasso está voltado à conquista de Olga
(ZIMMERMANN, 1992; CHEVALIER e GHEERBRANT, 2000).
Picasso, que sempre dominou as mulheres, submeteu-se às exigências da
bailarina e casou-se com ela. Olga decidiu transformar seu marido num
pintor da sociedade parisiense. Picasso passou a retratar socialites. Ambos
levavam uma vida de festa e luxo. Izquierdo comenta que se Olga
introduziu o pintor nas altas esferas sociais, isso foi algo que sempre
produziu uma forte atração em Picasso, “era uma inclinação burguesa
herdada do seu pai, Dom José, que tinha sido um homem conservador”
(2003, p. 82).
A linha sempre foi muito valorizada por Picasso. Nesse autorretrato
esboça suavemente o contorno da figura, sugerindo pouco volume. Uma
linha modulada mais escura realça a silhueta, linhas mais claras se
entrecruzam, configurando a sombra por meio da textura. O olho esquerdo
foi enfatizado em um jogo de texturas sombreadas que relembra a
experiência cubista de criar planos abertos. O desenho é extremamente
sóbrio, procura reproduzir a imagem natural. Em relação ao método
utilizado, provavelmente, ele tenha se baseado numa fotografia sua, uma
vez que nesta fase utilizava-se da imagem fotográfica como recurso para
obter maior objetividade possível tanto nos desenhos como nas pinturas.
Buscava, com isso, uma análise da linha e a descoberta do volume e da
proporção, que seriam muito úteis para futuros trabalhos (BUCHHOLZ;
ZIMMERMANN, 2001).
Distanciamento, técnica e neutralidade parecem ser as características
principais desse ciclo, que se espelha nas figuras da Antiguidade clássica,
do Renascimento e do Neoclassicismo, sem deixar de lado a experiência
cubista. Os dois estilos apresentavam problemas plásticos diferentes que ele
resolvia de maneiras diversas e que faziam parte de dois aspectos de sua
personalidade. Enquanto, no primeiro, procurava o virtuosismo da forma,
no segundo, a destruía. Pugnam, quiçá, nessa época, o pensamento e a
emoção. O problema poderia estar numa tentativa de libertar-se dos
sentimentos de maneira tal que, ao não se deixar afetar muito por eles,
garantisse mais racionalidade e desenvolvimento intelectual. Mas também
conhecer sem sentir, sem se emocionar, poderia vir a atuar de forma
contrária, ou seja, negando o saber que tanto desejava.
Nos anos que seguiram à guerra, Picasso permaneceu na dupla fórmula.
Seus temas oscilaram entre a natureza morta e as artes do circo, da dança,
da música e do teatro. Em 1925 participou da primeira exposição do grupo
surrealista. Embora não aderisse completamente à filosofia do grupo,
reconheceu uma grande força estética nesse movimento que o acolhia.
Encerra-se o ciclo com um Picasso amadurecido em sua trajetória
profissional, que já não buscava os círculos de artistas dos quais se
aproximar. Ele era a figura requisitada para acrescentar valor às estéticas
vanguardistas.
O adulto maduro: tête-à-tête com o espelho
Nas três primeiras décadas do século XX Picasso expressou-se em vários
campos artísticos e numerosos estilos. A audácia do surrealismo estimulava-
o a confrontar o que existe com o que pode vir a existir. Todavia, pode ser
um erro vê-lo como pintor surrealista, apesar de Breton reivindicar a sua
presença no movimento. Segundo o próprio Picasso: “Não se delimita a
natureza, não se a copia mais; deixam-se os objetos imaginados adquirir
aparências reais…” (BRASSAÏ, 2000, p. 53). E, mais adiante, acrescenta:
“Procuro sempre observar a natureza. Insisto na semelhança, numa
semelhança mais profunda, mais real do que o real, que atinge o surreal. É
assim que eu concebia o surrealismo, mas a palavra era empregada de um
modo bem diferente…” (BRASSAÏ, 2000, p. 54).
No período surrealista, o artista continuou insistindo na separação entre
forma e conteúdo, transferindo para o plano bidimensional da tela formas
palpáveis, com volume. São composições afastadas da realidade que
proporcionam espaço para o imaginário, mostrando a sintonia das obras
com a tendência da época, embora, para ele, não fosse importante tornar as
experiências interiores visíveis, mas mostrar o processo artístico tradutor da
realidade, fácil de identificar e numa linguagem pictórica abstrata.
O “surrealismo” picasseano nasceu quando o cubismo pretendeu ir além do real criando uma
síntese que levasse a uma percepção similar à do objeto, mas por um caminho totalmente
diferente da sua figuração direta, assim desnudando nele algo de outra maneira inapreensível,
“inconsciente”. Um “inconsciente” não tanto psicológico, mas físico, relacionado às faces ocultas
do objeto (FAGUNDES JUNIOR, 1996, p. 32).
Picasso faz o Autorretrato de perfil, fotografia clicada em 1927, na qual se
observa que a sombra do pintor é projetada sobre um quadro em que se
autorretratara anteriormente. Será esta uma imagem de sua face oculta? Se
Picasso procurava uma semelhança profunda e surreal, seria o autorretrato
pendurado na parede a máscara, e a sombra projetada sobre ele, sua
sombra? A persona (máscara) e a sombra são duas estruturas descritas por
Jung (1990) na personalidade adulta. Os conteúdos pessoais conscientes
constituem a persona e têm a função de integração social. Mas a natureza
humana não é só luz; há nela bastante sombra, que abriga símbolos de
difícil aceitação pela consciência. Ambas as estruturas se complementam e
formam uma polaridade.
A sombra ocupa grande parte da metade direita da fotografia, assim como
cobre a metade do autorretrato na zona de luz, significando, provavelmente,
que a polaridade entre luz e sombra está na busca de equilíbrio, o que o
artista espanhol procurava por meio de uma atividade profissional
compulsiva. O preto e o branco da fotografia aumentam a sensação de
dramatismo. Algo de teatral permaneceu nesse período, além de Olga. Os
jogos luminosos que acontecem em cena têm estreita relação com o jogo de
teatro de sombras que Picasso estabelece nesta obra. De acordo com
Buchholz e Zimmermann:
Assim, o “eu” irreal — a sombra — aparece vindo da margem da pintura, indo inscrever-se na
imagem da mesma pessoa, ao mesmo tempo que a verdadeira pessoa fotografa esta encenação.
Como em muitos quadros surrealistas, trata-se de uma obra conceptual, em que o testemunho —
neste caso, uma fantasia inquietante — se sobrepõe ao aspecto técnico […] (2001, p. 77).
A função estética contribui entre várias funções na elaboração simbólica.
A vida é inseparável da experiência artística, e percebe-se em Picasso uma
vida conduzida por uma personalidade artística que, provavelmente, possuía
algumas psicopatologias, as quais não cabem, neste obra, diagnosticar,
discutir ou julgar. No entanto, considerando o tipo de relação amorosa que
estabeleceu, nesse período, considera-se oportuno abordar as funções de
afetividade e agressividade, assim como a ligação entre amor e poder.
No mesmo ano do Autorretrato de perfil, Picasso conhece Marie Thérèse
Walter, que foi a maior paixão sexual da vida do pintor — tiveram um
relacionamento sem fronteiras nem tabus. Ela era contra qualquer
convencionalismo.O pintor a iniciou em práticas sadomasoquistas, em todo
tipo de experiências sexuais e prazeres extravagantes, que acrescentavam à
relação algo de surrealista. Os encontros mantiveram-se em segredo porque
ela era menor de idade e este tipo de relação poderia ser punido com o
cárcere (IZQUIERDO, 2003).
Compreende-se como parte importante da defesa sadomasoquista uma
interação que fez Picasso, a miúdo, ter afetividade pelo que rejeitava e
aceitação pelo que o desagradava. Em relação aos sentimentos de amor e
poder, escreve Byington:
Quando a polaridade do amor e do poder sofre uma fixação e passa a atuar na sombra, forma-se a
defesa sadomasoquista, que pode então ser compreendida como a conjunção defensiva entre o
amor e o poder e incluir formas defensivas as mais variadas nos relacionamentos humanos (2004,
p. 89).
Para Picasso a fotografia era uma arte menor, pela qual, apesar de
menosprezá-la, se sentia atraído. Ele tinha muitas fotografias guardadas que
o auxiliavam no estudo do corpo e das feições. Procurava encontrar novos
caminhos artísticos e, por meio dessa tecnologia, descobrir diversas funções
com jogos de luz e sombra, sobreposições e recursos compositivos, que lhe
permitiriam expressar-se esteticamente e ser material de reflexões para
novas formas expressionistas.
No início da Segunda Guerra Mundial, ele trabalhava em Royan, onde
permaneceu por um ano. Por três vezes voltou a Paris para procurar tintas,
pincéis, telas e papéis. No verão seguinte, as tropas alemãs entraram em
Royan. Em agosto de 1940, retornou à capital e presenciou a ocupação
alemã retirado no trabalho de seu ateliê. Nessa época de terror, marcada por
violência, medo e morte, expressou seu testemunho de horror. Após
experiências realizadas em papel fotossensível, junto com o fotógrafo Man
Ray, ele parece ter diminuído as fronteiras entre o desenho, a pintura e a
fotografia.
A criação o manteve numa atmosfera quase mística, convidando-o à visão
introspectiva e à auto-observação, o que pode ser apreciado na fotografia de
caráter expressionista, Autorretrato ao espelho, produzida em 1940. Nela,
Picasso se retratou no seu ateliê, isolado dos amigos, dos colegas de
trabalho, ameaçado pelos nazistas. O enquadramento divide a fotografia em
duas partes horizontalmente: na parte inferior mais escura, há potes, pincéis,
uma velha paleta, algumas pequenas esculturas sobre um móvel, uma estufa
para se aquecer; na parte superior, mais luminosa, sua imagem se reflete em
um espelho em meio a dois desenhos. Um pequeno relógio indica as horas
de trabalho contínuo e solitário, o tempo que passa e suas marcas. Desde o
seu lugar, no espelho, o pintor parece espreitar o observador da imagem
tanto quanto a si mesmo, como é possível perceber no diálogo efetuado
durante a guerra num encontro com Brassaï, em que o pintor exclamou:
“Diga a verdade! Já faz um bom tempo que não nos vemos… Mudei
bastante, não é mesmo?… Veja como estão meus cabelos… Quando olho
meus antigos retratos, fico assustado…” (BRASSAÏ, 2000, p. 78).
De acordo com o simbolismo espacial, a posição do seu rosto refletido no
espelho implica uma tendência a vivenciar a realidade interior, o passado, a
introversão, um contato maior com o eu, o feminino. O espelho simboliza
também o lunar, a inteligência, o saber, e emerge na tradição pictórica e
literária evocando o destino do mundo e introduzindo a variação da água,
como o primeiro espelho, que encantou o rapaz no mito de Narciso. Ao
Narciso que habitava em Picasso também lhe perseguiam duas ninfas, nessa
época, a sensual Marie Thérèse e a ciumenta Dora Maar. Picasso amou-as e,
depois, como aconteceu com o mito de Eco, rejeitou-as, da mesma forma
que intimamente, talvez, desprezasse a todas as ninfas que acossava ou que
o importunavam, porque ele só estava apaixonado por si mesmo.
A esse respeito Jung (2000) afirma que, quando alguém olha o espelho, vê
sua própria imagem, correndo o risco do encontro consigo mesmo, porque o
espelho mostra fielmente aquela face que é encoberta pela máscara. Esta
atitude demonstra uma prova de coragem de Picasso e pode indicar que
estava em busca do caminho interior. A relação simbólica do espelho e do
espaço fotográfico com o feminino estará inferindo que se trata de uma
imagem de sua anima? Este arquétipo bipolar masculino-feminino, quiçá,
esteja expressando os símbolos presentes na personalidade dele sempre que
são mobilizados os afetos, intensificando as relações emocionais com a
profissão, já que a fantasia é obra sua. Quando a anima é constelada
intensamente, ela o torna vaidoso, sensível e de humor instável?
Todo homem possui uma estrutura psíquica inata que lhe permite
pressupor a da mulher física e espiritualmente, uma vez que a forma do
mundo em que nasceu é uma imagem virtual, assim como são também
virtuais as imagens dos pais, das mulheres, dos filhos, do nascimento e da
morte. Vida e morte se refletem também no branco, no cinza e no preto da
fotografia. O branco simboliza a luz e o preto, as trevas; o cinza, como
mistura de preto e branco, é símbolo da morte terrena e da imortalidade da
alma. A fase cinzenta que evoca essa fotografia pode ter respondido aos
horrores da guerra, que transformava a vida em cinzas (JUNG, 1990;
PORTAL, 1996).
Picasso conservou a reserva e a introspecção até o final da vida; adquiriu
um grande poder de visão no processo artístico e de percepção de si e do
mundo que o levou a uma transformação permanente. Esse conjunto de
poderes foi desenvolvido passando por muitos estágios, que, como na
fotografia, dependiam do olhar. Os critérios que efetivaram a decisão para
reter a realidade nesse momento determinado e não noutro qualquer, nesse
espaço-tempo específico, são difusos, mas pode ter havido uma
sincronicidade entre o movimento para tal busca e o significado daquele
instante.
Em abril de 1944, um editor de arte visitou o artista e comentou que
descobrira um antigo Picasso por ele mesmo e que o comprara. O pintor
admitiu que os autorretratos fossem muito raros e que não tinha frequentado
muito seu rosto como temática. Bernardet (2007) refere que Picasso parou
de pintar autorretratos, no sentido literal da palavra, em 1918, quando
morreu Apollinaire, o que iria provocar mais uma perda e uma nova ruptura
artística. Alguns dias mais tarde, depois da visita do editor de arte, quando
Brassaï chegou à Rue des Grands-Augustins, Picasso abriu a porta e falou:
Você chega mesmo a propósito. Justamente esta manhã pensei na fotografia… Ao despertar,
olhando-me no espelho com meus cabelos desgrenhados, sabe qual foi a ideia que tive? Pois bem,
lamentei não ser fotógrafo! É muito diferente o modo como os outros nos veem e como nós
mesmos nos vemos num espelho em certos momentos. Várias vezes em minha vida, aconteceu-
me surpreender uma expressão de meu rosto que jamais pude encontrar em nenhum de meus
retratos. E talvez fossem minhas expressões mais verídicas. Deveria haver um buraco no espelho
a fim de que a objetiva pudesse captar nossa fisionomia mais íntima inesperadamente…
(BRASSAÏ, 2000, p. 158).
Confirmam-se nas próprias palavras de Picasso que ele não é um
fotógrafo, mas alguém que usa a fotografia como um recurso para o estudo,
a criatividade e a expressão artística. O ciclo seguinte é composto de
diversas tendências, que incluem reiterações cubistas, distorções figurativas
e sentimentalismos expressionistas, com a maior parte das obras recaindo
no já conhecido, sem produzir nenhuma fantástica descoberta formal,
nenhuma ideia tão criativa que pudesse vir a ser comparada com a fase de
adulto jovem. Isso não significa que não realizou obras esplêndidas,
incursionando pela escultura, pela cerâmica e ainda se mantendo fiel ao
desejo de desenhar e pintar.
Vemos, então, como Picasso, na velhice, chegou a um realismo extraordinário, não na pintura,
mas na escultura, por meio de um sentimento pela vida — a vida não como algo a ser lamentado
ou como um objeto de ódio ou de impulso cruel ou destrutibilidade, não como um objeto para ser
reordenado naobra de arte, não como algo sujeito à fantasia e ao capricho, mas algo apresentado
imediatamente, de maneira maravilhosa, ao nosso sentimento de viver como algo necessário e um
bem na existência. Esse foi o fenômeno mais extraordinário em um artista e foi alcançado na
velhice — e talvez não se realizaria sem a idade avançada, […] (SCHAPIRO, 2002, p. 62).
Com o final da guerra, o pintor tornou-se um homem público. As
reportagens e publicações sobre sua vida e obra não cessavam. Como
aconteceu com Guernica, em que o pintor reagiu à guerra civil espanhola
denunciando o bombardeio sobre a cidade basca, pintou Massacre na Coreia
para denunciar a invasão norte-americana ao país. No verão desse mesmo
ano, 1951, Picasso estava atormentado com a ideia de envelhecer, pois logo
faria setenta anos. Izquierdo escreve que, em certa ocasião, conversando
com Geneviève Laporte, lhe confessou: “O terrível é que agora ainda
podemos fazer o que queremos. Mas querer e não poder: isto é espantoso”
(2003, p. 137).
Esgotada com o fim da guerra a tendência ao surreal, a barbárie das
catástrofes políticas e sociais, impôs-se a abstração como tendência
dominante. Não uma abstração de cunho geométrico, mas uma abstração de
signo expressivo e uma força orgânica que se desenvolveu em múltiplas
correntes: informalismo, action painting, pop art, op art, arte cibernética e
outras. Nenhuma dessas modalidades seduziu Picasso, embora sua marca
esteja presente em todas elas.
Os últimos anos foram vividos pelo artista num exílio voluntário e
custodiado ciosamente por Jacqueline Roque, sua segunda esposa, com
quem se casara um pouco antes de completar oitenta anos. Em 1965 foi
operado de úlcera de estômago, embora se suspeite que a cirurgia tenha sido
de próstata. O translado e o ingresso na clínica foram um grande segredo.
Esta fase da sua vida ficou envolvida pelo mistério, que adquiria cada vez
mais a forma grotesca, pintando de forma quase maníaca. Ele detestava a
palavra “morte”, mas teve de conviver com ela desde a infância. O rosto
cadavérico do Autorretrato, realizado em 1972, mostra sua obsessão pelo
fim da vida.
A pintura revela uma abstração do seu rosto, no que vulgarmente se
conhece como “estilo Picasso”. Linhas pretas contornam os olhos, o nariz, o
queixo. Uma espiral no olho esquerdo gera uma sensação de vazio; o outro
olho, cheio, parece sair da órbita. A boca é esboçada com três linhas
horizontais; linhas violetas indicam as marcas do seu rosto; uma textura
vermelha de pequenos traços retos coroa a cabeça, fundindo-se em planos
dessa cor e do branco, no fundo da obra; outra pontilhada na cor roxa
esboça o bigode. Ele lançava mão das linhas escuras e das cores pálidas de
seus dias na Espanha e dos primeiros tempos em Paris. Grafismos sinuosos
pretos indicam os pelos da barba e do torso. Gestos frenéticos registram a
intensidade e o dinamismo do pincel sobre a tela, mapeando as feições.
Esses grafismos, memórias de gestos autônomos entre si, alçam-se da
pintura em direção ao espectador, enredando-o na problematização de sua
multiplicidade e estabelecendo o movimento contrário àquele que subjaz à
percepção “natural” do olho, a profundidade (FAGUNDES JUNIOR, 1996,
p. 106)
A imagem realizada por Picasso, que pode ser comparada com a
simbologia da cabeça ou do crânio, estaria simbolizando o ciclo iniciático
da morte da matéria como fase anterior ao renascimento num nível
espiritual. O rosto com barba pode simbolizar coragem e sabedoria; os
pelos na barba e no peito indicariam virilidade; o torso peludo, na base da
pintura, esboça a manifestação inconsciente da vida instintiva e sensual.
Em relação às cores utilizadas, o vermelho noturno simbolizaria a
inquietude, que, junto com a simbologia espacial no ponto inferior
esquerdo, pode expressar conflitos com o que aparece no vértice superior
direito, ou seja, com a consciência de um fogo final que se aproxima. A
morte expressa-se também nas cores da obra, que se caracteriza pela
monocromia; o preto, o branco e o roxo são considerados em diversas
culturas e religiões as cores da aflição, da mágoa e do luto. A força desta
obra de Picasso desperta na unidade visual monocromática, que seduz o
olho do espectador, uma figura em meio à emaranhada superposição de
grafismos. O itinerário seguido vai sendo deixado à mostra, evidenciando a
precariedade sobre a qual a metamorfose se opera. O tosco, o inacabado, o
acidental ficaram incorporados à obra como seu elemento constituinte mais
importante (ZIMMERMANN, 1992; PORTAL, 1996).
O aspecto físico de Picasso na velhice já não mostrava a força vital que o
caracterizara, o que poderia ser um bom motivo para ficar longe dos olhares
curiosos. Jacqueline o mantinha no isolamento, sequestrado, conforme a
fala de alguns, ou atendendo a suas ordens expressas, segundo o comentário
de outros. Aos noventa e dois anos Picasso morreu na cama,
repentinamente, depois de ter trabalhado até altas horas da madrugada.
Neste último olhar para si mesmo, ele parece deprimido, sem vida. A
pessoa deprimida tem um aspecto de preocupação e de raiva, sentindo-se
desgastada e sem energia. Os olhos e o ricto da boca expressam esses
sentimentos, além de contenção e medo. Pavor da morte iminente intuída
uns meses antes de acontecer? Medo que se formava pelo desconhecimento
diante do que o esperava? Experiência que, até esse momento, foi dos
outros, de sua irmã, seus pais, seus amigos, suas mulheres. Era o presságio
fatal de um futuro próximo, sobretudo porque sua idade avançava nos
noventa anos e o fim estaria próximo. No fim de sua existência, ele tentou
arrancar mais vida a cada traço, trabalhando com afinco e com a
consciência de que o tempo se estava esgotando. Nesse sentido, uma fala de
Picasso a Brassaï sustenta tal afirmação: “As exposições não me dizem
mais grande coisa. Meus antigos quadros não me interessam mais… Estou
bem mais curioso pelos que ainda não fiz…” (BRASSAÏ, 2000, p. 330).
De quase tudo o que viveu soube extrair algum aprendizado que o
auxiliasse no processo criador, pode-se supor que, no final da vida, quando
já parecia saber de tudo, quando a evolução das propostas estéticas não lhe
interessavam mais, quando parecia estar parado, ele avançava no estudo dos
grandes mestres, na lembrança das touradas, num lugar fixo apesar das
múltiplas linguagens utilizadas, o lugar da pintura. Como diz Uchoa
Fagundes Junior: “A pintura enquanto fazer torna-se um discurso cuja
porosidade ocorre pelos interstícios de tempo, pois guarda em si as lâminas
de tinta-memória dos gestos de instantes vividos em clímax, como entre
uma expiração e uma inspiração, um átimo de morte, de não presença”
(1996, p. 117).
E não só a pintura, mas o conjunto de sua obra que se aproxima dos trinta
mil trabalhos disse não à morte e carregou Picasso como emblema da arte
do século XX, adentrando com o permanente interesse que desperta sua
personalidade e sua vida pessoal tumultuada no século XXI, apesar dos
esforços de Jacqueline em conservar a vida e a morte dele somente para ela.
Quando faleceu no dia 8 de abril de 1973, nenhum filho ou neto foi
autorizado a participar do enterro, no castelo de Vauvernagues. Nem assim
ela obteve sucesso: seria impossível negar ao mundo uma personalidade
que marcou a história da arte contemporânea.
Considerações finais
A evolução de Picasso não foi linear, mas circular, elíptica, cíclica. De
intenso dinamismo, caracterizado pelas mudanças de tendência, ele buscava
incessantemente novas formas e cores. Em todas as fases aparece o domínio
dos materiais e das técnicas, o humor irônico voltado à caricatura, o gosto
pela transformação da arte e pelas metamorfoses pessoais. Cada nova
solução plástica que ele encontrava incorporava às suas obras seguintes;
alimentava-se de seus conhecimentos anteriores e enriquecia-os
aprofundando o que tinha aprendido com as descobertas e misturando
estilos.
Todos os autorretratos em estudo caracterizam-se pelo tratamento
monocromático, seja pintura, desenho ou fotografia…. Se isso tem algum
significado,não há condições de responder no momento. Talvez uma
necessidade de sentir-se inteiro, com todos os pedaços que tinha
abandonado no seu país natal, nos amigos que perdera com a guerra, nas
mulheres que amara, nos filhos e netos com quem não convivia.
A significação dos autorretratos criados por ele foi desvendada de um
modo subjetivo e parcial, pois é necessário resignar-se a que nada pode ser
revelado absolutamente. As obras foram divididas para melhor
compreensão em dois grandes ciclos, na tentativa de aproximar o conteúdo
das imagens da sua vida cotidiana, considerando as ações artísticas
realizadas e o modo como aprendia e crescia como ser humano, o que se
misturava com seus temores em relação à velhice e à morte. Não cabe
dúvida de que a vida de adulto jovem foi mais produtiva no que se refere à
criação de propostas estéticas que granjearam seguidores no mundo todo.
Porém, no período em que vivenciou o adulto maduro, provavelmente, não
se interessava tanto em criar novas propostas, mas em se aprofundar
naquelas que tinha criado, tentando chegar ao âmago, ao segredo que cada
linha, plano e cor podiam lhe oferecer.
Os ciclos de sua vida foram considerados em relação aos saltos que foi
dando sua vitalidade artística e que, de alguma forma, determinavam
também os afetos que o mobilizaram. A dor da perda na época azul, a tênue
alegria em Montmartre durante a fase rosa, o desafio profissional e
cognitivo do período cubista, a plácida acomodação vivenciada durante o
classicismo, os possíveis sentimentos de culpa da época surrealista, o ódio e
a impotência que cresceram na guerra e, finalmente, o desespero diante do
medo da morte. Foram afetos que conseguiu superar sempre por meio da
criatividade e da obsessiva produção artística. Picasso foi um workaholic,
cujos sentimentos iam sendo trabalhados junto com suas telas. Quando
amava as pessoas, retratava-as como flores, personagens maravilhosos,
coloridos; quando as detestava, desenhava-as como monstros engolidores,
ciclopes, de feições espantosas, rudes e cruéis. Também fazia isso com ele
mesmo. Nos múltiplos quadros em que se retratou como o pintor e seu
modelo, aparecia como o homem viril, sedutor, forte; entretanto, noutros,
aparecia representado por figuras diabólicas e mitológicas, que estupravam,
violentavam e sangravam suas vítimas.
É interessante observar que nenhum dos seus autorretratos mostra as
pernas, parte do corpo que é símbolo do vínculo social, permitindo
aproximações com as pessoas, facilitando os contatos. Não querer mostrar
as pernas, talvez, esteja significando uma necessidade de Picasso de não
revelar seus poderes, de manter-se a uma distância considerável dos outros.
Sem dúvida, o fato de ter tido muitas mulheres não significa que tenha tido
facilidade para estreitar vínculos com elas. Dir-se-ia que, ao contrário, foi
bastante difícil manter cada uma das relações, apesar de seu poder de
conquista. Fazendo uma analogia entre a terra e a mulher, é comum
observar que as terras conquistadas opõem bastante resistência aos
conquistadores, por sentirem a violência da invasão, não da aproximação
afetiva, do encontro.
É isso que emerge das obras selecionadas, uma vez que é impossível
esgotar o assunto. Transformar a arte, mudar de vida e metamorfosear-se
parecem ser as principais ações realizadas pelo artista, na tentativa de ir
além da forma conhecida, do previsível, do existente; reciclando o
aprendido, na relação interior-exterior, de maneira consciente-inconsciente,
superando a fragmentação.
Picasso pode ser considerado uma síntese essencial do que aconteceu na
arte do seu tempo-espaço vital. Foi o centro em torno do qual se
desenvolveu a estética contemporânea. A transformação e o dinamismo
deste ser foram além das linhas, trazendo uma nova percepção de mundo. A
forma relacionada com o mundo exterior expressava a aprendizagem dos
processos técnicos e manifestava-se numa linguagem inédita, única,
multifacética. Porém, essa forma emergia do mergulho na interioridade.
Ações externa e interna agiam paralelamente através da consciência
pessoal, que se desenvolvia por meio de rituais, da energia coletiva, das
redes subjetivas de comunicação, as quais propiciaram, por meio da criação
simbólica, a emergência de conteúdos de uma comunidade artística,
representando o casamento místico, o estético, a arte do século XX.
Referências bibliográficas
BERNARDET, C. La autorrepresentación en la pintura de Picasso. Disponível em:
. Acesso em: 5 mar. 2007.
BRASSAÏ. Conversas com Picasso. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.
BUCHHOLZ, E.; ZIMMERMANN, B. Pablo Picasso; vida e obra. Colônia: Könemann, 2001.
BYINGTON, C. A. Arte e psicopatologia; a defesa sadomasoquista e a transcedência do mal.
Junguiana, São Paulo, v. 22, pp. 87-97, 2004.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
2000.
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário; introdução à arqueologia geral. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
FAGUNDES JUNIOR, C. U. O beijo da história; Picasso como emblema da contemporaneidade.
São Paulo: Editora 34, 1996.
GULLAR, F. Cubismo. Arte & informação, São Paulo, ano 1, n. 1, pp. 6-24, maio 2000.
HELLER, A. Teoría de los sentimientos. Barcelona: Fontamara, 1982.
IZQUIERDO, P. Picasso y las mujeres. Barcelona: Belacqva, 2003.
JUNG, C. Las relaciones entre el yo y el inconsciente. Barcelona: Paidós, 1990.
http://www.elcalamo.com/benardet6.html
____. Os arquetipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
MÉLICH, J-C. Del extraño al cómplice; la educación en la vida cotidiana. Barcelona: Anthropos,
1994.
ORMEZZANO, G. R. O cantejondo dos retratos de Picasso. Riscos, São Miguel do Oeste, ano 2, n.
3, pp. 47-52, ago. 2002.
PORTAL, F. El simbolismo de los colores; en la Antigüedad, la Edad Media y los tiempos modernos.
Palma de Mallorca: Sophia Perennis, 1996.
SCHAPIRO, M. A unidade da arte de Picasso. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
SUSLOV, V. Los comienzos de un genio. El correo de la Unesco. Paris, ano XXXIII, pp. 4-9, dez.
1980.
ZIMMERMANN, E. B. Integração de processos interiores no desenvolvimento da personalidade.
Campinas: Unicamp, 1992. Dissertação — (Mestrado em Psicologia Clínica.) Campinas: Faculdade
de Ciências Médicas/Universidade Estadual de Campinas, 1992.
N
CAPÍTULO 7
O crepúsculo da vida
José Jorge de Morais Zacharias28, Anna Mathilde Pacheco e Chaves29 e Sonia Bufarah Tommasi30
a atualidade, nos países desenvolvidos, uma pessoa pode
realisticamente atingir os oitenta anos de idade. Apesar disso, ainda
existem muitos preconceitos em relação às pessoas de mais de cinquenta
anos, que são consideradas pejorativamente como velhas.
Tais preconceitos são visíveis até no campo da pesquisa científica. Por
exemplo, muitas pessoas ainda acreditam, e citam diversas pesquisas que
provariam esta crença, que a capacidade intelectual vai diminuindo à
medida que as pessoas envelhecem. Essas pesquisas baseiam-se no fato de
que durante a vida milhares de neurônios morrem diariamente. A
consequência deste processo seria uma diminuição progressiva das
capacidades do cérebro de processar informações, até que finalmente, se a
pessoa viver por um tempo suficientemente longo, a senilidade seria
inevitável.
No entanto, descobertas recentes no campo da neuropsicologia confirmam
um quadro muito mais animador. Em primeiro lugar, nossa psique e nossa
inteligência são fruto de processos muito mais complexos do que um
número limitado de células cerebrais que morrem todos os dias e não
podem ser renovadas. As habilidades deste sistema complexo, o cérebro
humano, dependem não do número de células existentes no cérebro, mas
sim do número de interconexões existentes entre elas. E este número é
quase infinito!
Além disso, novas conexões podem se formar quando o cérebro é
convenientemente estimulado, abrindo novas possibilidades para o
indivíduo ampliar relações e percepções do mundo e de si mesmo. Aliás,
um dado interessante vem a confirmartais descobertas: qualquer pessoa que
conheça um pouco de história da arte nota que a qualidade da obra dos
grandes gênios tende a melhorar à medida que envelhecem. Foi o que
aconteceu com Goethe, Shakespeare, Beethoven, J. S. Bach, Miguelangelo,
Volpi, Villa-Lobos e Jorge Amado, a respeito dos quais os críticos
concordam que suas obras foram se aprimorando até idade bastante
avançada.
Portanto, a moderna pesquisa científica vem demonstrar que o
enfrentamento de desafios constantes e solução de problemas podem alterar
a estrutura física do cérebro em pessoas idosas, o que aumenta a
possibilidade de estas pessoas viverem a segunda metade de suas vidas de
maneira mais feliz e equilibrada (PRÉTAT, 1997).
Sabemos também que outras sociedades e culturas, que não a moderna
sociedade industrial, já tiveram e têm perante a velhice valores, atitudes e
crenças muito diferentes das atualmente vigentes em nosso meio. Por
exemplo, um dos sinais que apontam nesta direção está no fato de que nelas
os velhos eram e são chamados por nomes que denotam respeito e
admiração, como, por exemplo patriarcas e matriarcas, oráculos, sábios,
videntes, pajés, xamãs (BRENNAN; BREWI, 2004).
Por outro lado, na sociedade moderna, aos velhos são atribuídas algumas
características de personalidade estereotipadas e negativas. Eles são vistos
como obstinados, teimosos, inflexíveis e irritadiços. Como será que surgiu
tal lamentável estado de coisas? Acreditamos que estas expressões
negativas sejam simplesmente o outro lado da medalha daquilo que em
pessoas mais jovens seriam consideradas qualidades extremamente
positivas.
Vamos tomar como exemplo o epíteto teimoso, que poderia ser
reinterpretado como determinado ou motivado. A propósito, a adequada
definição de adjetivos e termos constitui tarefa importante para as modernas
ciências humanas, ao tentar fornecer subsídios para o combate aos
preconceitos contra a velhice. Sua grande contribuição seria a de buscar
uma redefinição dos termos pejorativos atribuídos aos velhos, a fim de
revelar os aspectos positivos que estão contidos neles.
A moderna pesquisa científica sobre a velhice, ao estudar a vida de
pessoas que se mantiveram produtivas e criativas até o fim de suas vidas,
também identificou certos segredos que contribuíram para que isto tivesse
acontecido. Muitas delas permaneceram envolvidas com pessoas, com a
sociedade e a cultura em que viviam. Pessoas que desistem de viver
envelhecem muito mais rapidamente do que aquelas que se envolvem
ativamente nas atividades de sua cultura, de sua sociedade, com amigos e
parentes.
Conservaram-se ativas do ponto de vista intelectual. Pessoas que tinham
mais anos de escolaridade e que mantiveram seus interesses em diversas
áreas aumentaram sua inteligência verbal até o fim da vida.
Permaneceram flexíveis. Foi constatado, em várias pesquisas, que
indivíduos que aos quarenta anos eram mais capazes de tolerar a
ambiguidade, mudar seus mapas de realidade e aproveitar as novas
experiências que a vida lhes proporcionava, não viram declinar suas
capacidades intelectuais até a velhice avançada (PRÉTAT, 1997).
Não há dúvidas de que a segunda metade da vida vai apresentar muitos
desafios como, aliás, a primeira também. Além disso, a transição para esta
segunda metade da vida, semelhantemente ao período da adolescência,
quase sempre é um período de crise e infelizmente, na atualidade, na nossa
cultura de produção e consumo, de negação das raízes e busca obstinada
pelo novo; a maior parte das pessoas não está preparada para enfrentar estes
possíveis desafios.
Vamos usar um texto de Carl Gustav Jung, reconhecido como o precursor
do campo da compreensão da psicologia do desenvolvimento na vida
adulta, para apresentar imagens e ideias sobre a segunda metade da vida.
Em seu artigo, “As etapas da vida humana”, escrito em 1931 (JUNG,
1991, pp. 346, 347), Jung vai nos dizer:
De manhã, o sol se eleva do mar noturno do inconsciente e olha para a vastidão do mundo
colorido que se torna tanto mais amplo, quanto mais alto ele ascende no firmamento. O sol
descobrirá seu significado dentro desta extensão cada vez maior de seu campo de ação produzido
por sua ascensão e se dará conta de que seu objetivo supremo está em alcançar a maior altura
possível e, consequentemente, a mais ampla disseminação possível de suas bênçãos sobre a terra.
Apoiado nesta convicção ele se encaminha para o zênite imprevisto — imprevisto, porque sua
existência individual e única é incapaz de prever o seu ponto culminante. Precisamente ao meio-
dia, o sol começa a declinar, e este declínio significa uma inversão de todos os valores e ideais
cultivados durante a manhã. O sol entra então em contradição consigo mesmo. É como se
recolhesse dentro de si seus próprios raios, em vez de emiti-los. A luz e o calor diminuem e por
fim se extinguem.
Jung também afirma que as mudanças psicológicas que ocorrem na
transição entre a meia-idade e a velhice ocasionariam para as pessoas uma
espécie de crise ou período problemático, comparável à famosa crise da
adolescência. Pois as pessoas tendem a naturalmente evitar o novo e
apegam-se ao já experienciado, criando uma tensão entre o fluxo de
desenvolvimento da natureza e sua obstinação egoica de permanecer no
estágio conhecido e seguro.
Para ser possível entender melhor a crise da meia-idade pode ser muito
esclarecedor comentar um pouco sobre a crise que, segundo ele e grande
parte dos psicólogos, ocorre no fim da adolescência.
A psicologia analítica afirma que, de forma ideal, no final da adolescência
as pessoas deveriam ter enfrentado e superado uma série de obstáculos e
tarefas inerentes ao seu desenvolvimento psicológico em amplo sentido
(cognitivo, afetivo e social), o que resultaria em uma série de realizações
psicológicas. Dentre estas realizações está o separar-se da dependência do
complexo materno, acarretando o abandono do status de criança e da
dependência infantil do complexo parental, e o desenvolvimento de um ego
forte capaz de enfrentar de forma satisfatória as exigências da realidade
externa.
Se o indivíduo consegue ou não tal realização terá consequências muito
importantes para a maneira como ele irá viver sua vida adulta. Para Jung, as
realizações psicológicas mencionadas são indispensáveis para que na
primeira metade de sua vida adulta, entendida como uma fase extrovertida
durante a qual o sol alcança o zênite, o indivíduo consiga cumprir várias
tarefas específicas, tais como: capacidade de ganhar a própria vida, ocupar
uma posição dentro da sociedade, optar ou não pelo casamento ou algum
outro tipo de relacionamento, decidir-se pela paternidade ou maternidade.
Diz ele também que estabelecer uma identidade que permita tais realizações
não é fácil e que são raras as ocasiões em que a transição para a vida adulta
ocorre sem dificuldades.
Afirma ele que (JUNG, 1991, p. 409, § 761):
Para a imensa maioria são as exigências da vida que interrompem bruscamente o sonho da
meninice. Se o indivíduo estiver suficientemente preparado, a passagem para uma atividade
profissional pode efetuar-se de maneira suave. Mas se ele se agarra a ilusões que colidem com a
realidade, certamente surgirão problemas. Ninguém pode avançar na vida sem apoiar-se em
determinados pressupostos. Às vezes estes pressupostos são falsos, isto é, não se coadunam com
as condições externas com as quais o indivíduo se depara. Muitas vezes, são expectativas
exageradas, subestimadas dificuldades externas, injustificado otimismo ou uma atitude
negativista.
Jung também afirma que não é apenas esta contradição entre falsas
crenças e a realidade externa que tem de ser resolvida para que a passagem
para a vida adulta possa ser feita: podem também surgir problemas ligados à
vida sexual e a sentimentos de inferioridade advinda de uma sensibilidade
exacerbada.
O que podemos notar de interessante neste período de crise que irá marcar
a transição entre a infância e a vida adulta? Além disso, quais seriam as
diferenças mais notáveis entre aqueles que o conseguem superarmais ou
menos satisfatoriamente e aqueles que só o fazem a custa de grandes
sofrimentos, ou então não conseguem?
Em primeiro lugar, parece-nos importante dizer que, para a psicologia
analítica, o crescimento psicológico se dá sempre em termos de uma luta
entre os opostos, a qual vai, quando satisfatoriamente resolvida, resultar em
uma nova síntese. Na passagem da infância para a vida adulta existem dois
polos presentes: o do passado, da meninice, de uma situação de
dependência dos pais, e o da recusa de abraçar a vida adulta, com seus
perigos e dificuldades, mas também repleto de possibilidades.
A característica mais importante que pode ser identificada nas pessoas que
encontram dificuldades em efetuar tal transição seria agarrar-se ao nível de
consciência da infância, recusar-se a se tornar adulto, resistir às forças que o
empurram a participar no mundo mais amplo que o seio familiar. Parece
que há algo dentro do indivíduo que quer continuar a ser infantil, rejeitar
tudo que pareça novo ou então sujeitá-lo à própria vontade, um constante
oscilar entre a tendência a não agir ou então se abandonar aos próprios
anseios pelo prazer ou poder.
Parece que nesta etapa da vida existe presente com muita força uma
exigência de ampliação de horizontes, a qual obriga a pessoa a participar de
um mundo mais amplo do que o de sua infância. E a psicologia analítica vai
nos dizer que qualquer pessoa que procura proteger-se do novo e regredir ao
passado acaba na mesma condição neurótica daquela que se identifica
apenas com o novo e foge do passado. Nessas pessoas ocorre aquilo que
Jung denominou de estreitamento do nível de consciência, ou seja, elas
fazem a escolha de ignorar a tensão entre os opostos, em vez de tentar
integrá-los permitindo o surgir de um estado de consciência mais elevado.
Para este trabalho de superação dos opostos as pessoas contarão com a
ajuda do arquétipo do herói. Os arquétipos são formas sem conteúdo
próprio que servem para organizar ou canalizar materiais psicológicos.
Podem ser comparados ao leito seco de um rio, cuja forma determina as
características deste mesmo rio quando a água começa a fluir dentro dele.
Foram chamados por Jung de imagens primordiais, pois frequentemente
correspondem a temas mitológicos que aparecem repetidas vezes nos contos
e lendas que fazem parte do folclore de inúmeras sociedades e culturas
(JUNG, 1991).
O arquétipo do herói ocupa uma posição central nas lendas de quase todas
as culturas e, ao examinar vários mitos e lendas, Jung identificou nele
certos elementos centrais: o nascimento divino do herói, sua descida aos
mundos subterrâneos, as ações heroicas que tem de levar a cabo, tais como
batalhas contra monstros terríveis ou então feitos perigosos que têm de ser
realizados; a presença de companheiros e auxiliares, seja do sexo feminino
ou masculino, ou às vezes até mesmo um animal; e os motivos da derrota,
morte e renascimento.
Para Jung, esse arquétipo pode ser identificado com o aparecimento lento
da consciência do Eu, o sentimento de um indivíduo único e separado da
natureza. O surgimento da consciência teria um lado quase divino e mágico,
pois esta nasceria do aparente nada, porém, sua manifestação teria um
grande efeito transformador, simbolizado pelo fato de que o herói é filho de
um deus e seu nascimento apresenta características extraordinárias. O entrar
em contato com as forças obscuras do inconsciente, para Jung, podia ser
comparado com a descida do herói aos mundos subterrâneos, algo que
implica muitos perigos, mas que tem de ser realizado para que o herói possa
crescer e desenvolver-se enquanto um indivíduo único. Além disso, para a
maior parte das pessoas, manter a própria integridade e a consciência de si
mesmo é frequentemente uma batalha difícil, envolvendo um trabalho duro
e ingrato, que parece requerer a presença ao lado do herói de um
companheiro e um auxiliar cuja inteligência, perícia, disposição para ajudar
e perseverança fossem muito grandes.
Contudo, Jung chamou nossa atenção também para o perigo que uma
valorização excessiva do arquétipo do herói pode apresentar. Para ele, o
conceito clássico de hybris, o orgulho desmesurado, se aplicaria à fé que a
moderna sociedade industrial deposita na capacidade humana de produzir,
agir e realizar, modificando o mundo ao seu redor. Para a psicologia
analítica, a ideia de que a ciência, a técnica e o progresso material
acabariam por resolver todos os problemas da humanidade seria um
exemplo gritante de hybris, e a identificação excessiva com o herói seria,
psicologicamente, uma espécie de namoro com o desastre.
O que Jung quis dizer com isso é que a sociedade atual cai no erro da
hybris ao valorizar quase que exclusivamente aquilo que as pessoas
conseguem realizar no mundo que está fora delas. Diz ele também que a
preocupação excessiva com um aspecto isolado da vida, no caso,
realizações no mundo externo, conduz sempre a uma diminuição do campo
da consciência. E, como para a psicologia analítica, a psique tende sempre à
realização do equilíbrio e da totalidade, cria-se uma tensão em nível
inconsciente, a qual, por volta dos quarenta anos, pode levar as pessoas a
sentirem um vago sentimento de descontentamento, de que algo lhes está
faltando, de que não são felizes, de que a vida não tem sentido.
Para a psicologia analítica, este sentimento seria uma indicação de que a
psique está se preparando para enfrentar a segunda etapa da vida, etapa esta
que irá exigir que os indivíduos olhem para dentro de si mesmos, para seu
mundo interno. Nesta fase, as pessoas irão enfrentar um período de crise,
comparável ao que foi experimentado na passagem para a vida adulta.
Diz Jung que a crise é desencadeada a partir da constatação de que, ao
concentrar toda a energia psicológica disponível no sentido de realizar
metas que possam garantir-lhe um lugar na sociedade, algo importante foi
deixado de lado. Assim sendo, mais uma vez o indivíduo vai ter de
enfrentar a tensão dos opostos na esperança de encontrar uma saída para o
conflito. Novamente, como ocorreu na passagem da adolescência para a
vida adulta, terá que escolher entre o conhecido — a repetição dos padrões
que se mostraram satisfatórios até então — e o desconhecido — a
necessidade de encontrar dentro de si novas razões para continuar vivendo.
De novo, terá que enfrentar alguns problemas sérios, para dar continuidade
a sua jornada de amadurecimento psíquico.
Porém, Jung nos diz que os problemas realmente sérios da vida nunca são
totalmente resolvidos. Mais ainda, quando parece que foram solucionados,
isto é um sinal gritante de que algo foi perdido no caminho. O significado e
o propósito de um problema não estão em sua solução, mas no trabalho
constante sobre ele (JUNG, 1991).
Para a psicologia analítica, a assim chamada crise da meia-idade é um
indício de que uma mudança importante se prepara na vida psíquica. A
evidência mostra que entre os trinta e cinco e quarenta anos começam a
surgir mudanças nas pessoas: Nas palavras de Jung (JUNG, 1991, p. 413, §
773):
[…] muitas vezes ocorre uma espécie de mudança lenta do caráter da pessoa; outras vezes são
traços desaparecidos desde a infância que voltam à tona; às vezes também antigas inclinações e
interesses habituais começam a diminuir e são substituídos por novos. Inversamente — e isto se
dá com muita frequência — as convicções e os princípios morais que os nortearam até então,
principalmente os de ordem moral, começam a endurecer-se e enrijecer-se, o que pode levá-los,
crescentemente, a uma posição de fanatismo e intolerância que culmina por volta dos cinquenta
anos. Seria como se a existência destes princípios estivesse ameaçada, e, por esta razão, se
tornasse mais necessário ainda enfatizá-los (JUNG, 1991, p. 345).
Há ainda outros exemplos interessantes da famosa crise da meia-idade: o
marido que troca sua mulher de quarenta anos por duas de vinte; a mulher
que gasta quase todo o seu tempo livre na academia de ginástica e no
cabeleireiro, tentando reparar os danos causados peloseu olhar para as camadas mais
baixas, mais soterradas, à procura da realidade psíquica. Recolhe seus
ossos, senta-se junto ao fogo Surya (fogo celeste) e canta. Ao se sentir
renascido, corre em direção à nova vida. No deserto a alma se purifica,
reencontra a Deus, e consegue seguir seu caminho.
No esoterismo ismaélico, o deserto é o ser exterior, o corpo, o mundo, o
literalismo, que a pessoa percorre cegamente, sem perceber o ser divino
escondido no interior dessas aparências.
A sociedade contemporânea apresenta discussões sobre racismo, sexo e
envelhecimento. Há um temor no ar sobre a discriminação negativa, que
leva à igualdade, porém, esta igualdade apaga as diferenças, que são tão
ricas e significativas e que distinguem um grupo ou um indivíduo de outro.
Para Mankowitz (1990, p. 142) “as diferenças de idade são importantes. O
envelhecimento traz experiências com as quais os jovens nem sonham. O
jovem experimenta a vida de um modo que o velho já não pode, mas o
velho pode e deve lembrar, e saber como ele mudou”. Para Jung, a segunda
metade da vida possibilita ao indivíduo iniciar a sua busca espiritual, pois as
obrigações externas da vida já foram cumpridas. Para explicar melhor essa
ideia, ele lançou mão de uma metáfora. Apresentou o ciclo vital como o
caminho que o sol percorre no céu durante um dia. Assim, do nascimento
até a meia-idade, o sol se levanta cada vez mais alto até atingir o zênite,
ampliando seu campo de ação no mundo e energizando a terra. A partir do
zênite o sol declina até o poente, recolhendo sua luz e voltando-se não mais
para a terra, mas para si mesmo, preparando-se para a finitude.
Para Jung, a partir da metade da vida, a metanoia, ocorre uma inversão do sentido da libido. O
foco da vida passa do mundo externo para o mundo interno. As realizações na vida externa
perdem o brilho. A libido dirige-se para o mundo interior, permitindo ao indivíduo descobrir
potenciais ainda não desenvolvidos. É um momento de autoavaliação, de reflexão sobre as coisas
vividas e as não vividas. O senso de desigualdade entre “o que eu já consegui a essa altura” e o
que “realmente quero” leva a alma a buscar “o que realmente quero”. Esta questão leva muitas
vezes a uma experiência de renascimento ou renovação de vida (STAUDE, 1988, p. 93).
Tais reflexões conduzem à busca de um novo sentido para a própria
existência. O processo de autoavaliação amplia a vivência filosófica
religiosa, preparando o indivíduo para a finitude.
Nesse momento o papel do arteterapeuta, do psicoterapeuta, do analista
consiste em auxiliar o sujeito no processo de interiorização e integração de
conteúdos inconscientes que emergem nos sonhos, na imaginação, nos
processos ansióginos e nos medos. E também em a apoiar a viagem do
herói por um campo desconhecido, o mundo interior. Com auxílio de
técnicas como, por exemplo, análise do conteúdo verbal, análise
transferencial, interpretação de sonhos, imaginação ativa, arteterapia
analítica, o profissional possibilitará que o sujeito visualize e aceite as
limitações da idade e inicie a busca por novas descobertas conectando-se ao
arquétipo da criança. Essas técnicas também auxiliarão na ampliação do
sentido de vida e transcendência ligando-se ao Self. “Uma das principais
características do processo de iniciação da metanoia é o desenvolvimento
de um relacionamento positivo com os aspectos não ego do Self, como a
voz interior que Jung chamou de daimon da criatividade” (STAUDE, 1988,
p. 94).
Lembrando sempre que a experiência direta com as profundezas
numinosas da psique é muito mais importante que a análise intelectual da
experiência, o profissional sensível está atento para traduzir as emoções em
imagens, isto é, permitir que as imagens que estão ocultas nas emoções se
manifestem sem limites e sem críticas, ganhando novas forças para a
dissolução de velhas estruturas. Geralmente a dissolução é dolorosa, entrar
em contato com as experiências passadas, com sentimentos de culpa, perda,
solidão, isolamento, ficar de frente com os fracassos é realizar uma heroica
conquista do inconsciente. A crise da meia-idade permite integrar alguns
dos aspectos do não ego e trabalhar algumas polaridades básicas da psique.
Nesse momento tem-se que abandonar o idealismo heroico, porque “há
coisas que são mais importantes que a vontade do ego, e a estas devemos
nos inclinar” (JUNG, apud STAUDE, 1988, p. 82).
A voz interior, o daimon da criatividade, de Jung direcionou a sua postura
profissional, as imagens interiores foram expressas pela pintura e escultura,
e o auxiliaram na construção de novos paradigmas para a compreensão da
psicodinâmica dos estados psíquicos.
Quando emergiu da crise da meia-idade, Jung encontrou consolo, e a integração psíquica chegou-
lhe através da pintura, da escultura e da navegação. Ele sentiu que essas atividades físicas e
artísticas lhe davam equilíbrio e o capacitavam para desenvolver a sua subdesenvolvida função
sensorial. Em particular, Jung aprendeu muito sobre si mesmo e sua psicodinâmica, fazendo uma
série de desenhos circulares, chamados mandalas, que ele usava como sinal de seus estados
psíquicos diários (STAUDE, 1988, p. 87).
Para Jung o “fazer” é uma parte importante do trabalho do ser humano. O
“fazer”, o “criar” com as próprias mãos revelam o invisível, a sutileza da
alma. A arte celebra as estações da alma.
La Loba, a partir do canto, ensina a recriar a vida e Jung ensina por meio
do “fazer” artístico. Assim, ambos relatam a solidão e oferecem caminhos
para sair da esterilidade e adentrar na vida fecunda. Os rituais de passagem
compreendem uma morte, seguida de uma viagem ao país dos espíritos, que
pode ser no deserto, e logo após um renascimento, o encontro consigo
mesmo, o Self.
A velhice parece ser mais respeitada na cultura tradicional oriental do que
na moderna sociedade produtiva ocidental. No Oriente encontramos mitos,
contos de fada e lendas que narram a virtude da velhice. Para os orientais a
velhice é indício de sabedoria, acúmulo de experiência e de reflexão. A
tradição chinesa, que sempre honrou o idoso, narra que Lao Tse nasceu de
cabelos brancos e com aspecto de velho — sua aparência deu origem a seu
nome, que significa Velho Mestre. Nascer com os cabelos brancos é sinal de
eternidade, de existência no passado. Ser velho significa existir antes da
origem e depois do fim. Buda simbolicamente é o Irmão Mais Velho do
Mundo. Xiva é o Velho Senhor. Assim também, na tradição religiosa do
Ocidente, como no Cristianismo, Deus, o Pai, tem a aparência de um velho
saudável, forte, com cabelos e barbas longos e brancos. A correspondente
cristã da Velha Sábia encarna na figura de Sant’Ana, mãe da Virgem Maria
e avó de Jesus. Na tradição nagô, temos a figura divinizada do Velho Sábio
personificado no Orixá Oxalá, mais especificamente em Oxalufã — o velho
pai sábio, criador dos seres humanos e tido como pai dos Orixás. Na cultura
bantu, temos Zâmbi, que é o Deus criador. A Velha Sábia surge na figura de
Nana Buruku, a senhora da lama do elemento primordial da criação humana
e da sua final decomposição na morte (ZACHARIAS, 1989).
Saindo das belas imagens oferecidas pelos mitos, do(a) Velho(a) em sua
plena sabedoria criativa, entramos nos contos de fada, que trazem um outro
aspecto do velho. Os contos de fada, geralmente, associam as imagens do
Velho ou da Velha à aparência física mais próxima do real: o corpo
arqueado e frágil, o rosto enrugado, as mãos desgastadas. Esses
personagens moram longe da cidade, no meio da floresta, alguns são bruxos
e bruxas e possuem conhecimento que não está ao alcance dos adultos. São
exemplos dessas figuras o Mago Merlin, a Baba Yaga, a Cuca, entre outros.
Podemos destacar também a deusa celta Sheila Na Gi, que preside o
nascimento e a morte, origem de todas as coisas — que surgem através de
Yone (a vagina) e que celebram o envelhecimento na plenitude de sua
sabedoria de que tudo terá um fim.
Para Jung (2002, v. IX/1, p. 218) o arquétipo do(a) Velho(a) representa o
saber, o conhecimento, a reflexão, apassar dos anos; o
executivo bem-sucedido que quer largar tudo e ir viver como hippie ou
então afogar-se totalmente no seu trabalho para tentar esquecer de si.
Acreditamos que cada um de nós conhece inúmeros casos iguais ou
semelhantes aos que foram citados.
Estes problemas têm algo em comum: as pessoas continuam a utilizar as
estratégias psicológicas que foram bem-sucedidas na juventude na segunda
metade da vida; e da mesma maneira que há pessoas que têm dificuldades
em abandonar o mundo da infância, outras existem que não conseguem
abandonar sua juventude, e procuraram fugir ante a difícil tarefa de ter de
enfrentar o amadurecimento.
Neste contexto a teoria de Jung nos chama a atenção para o fato de que,
atualmente, nas modernas sociedades industriais as pessoas entram na
segunda metade da vida sem ter conhecimento da possibilidade destas
transformações, embarcando nesta viagem totalmente despreparadas. Ele
afirma que na segunda metade da vida a tônica deve se deslocar da
dimensão interpessoal ou externa para um contato maior com os próprios
processos interiores, e a luta pelo sucesso externo deve sofrer uma
modificação de modo a incluir uma preocupação com o significado e
sentido da própria vida através de valores de natureza espiritual. Para a
psicologia analítica, é importante que, na maturidade, as pessoas tentem
desenvolver uma perspectiva maior, tornando-se conscientes do propósito
mais amplo de suas vidas no contexto do sentido da existência e do
cumprimento de sua trajetória como realização no mundo do Si Mesmo.
Esta abordagem afirma que na segunda metade da vida o encarar a própria
morte e o preparar-se para ela devem tornar-se uma realidade. Por meio de
um mergulho em sua vida interna, do contato com os grandes arquétipos,
com as imagens primordiais, símbolos mais antigos do que a própria
história humana, a pessoa vai adquirindo um grau cada vez maior de
autoaceitação (HOLLIS, 1995).
Este mergulho no mundo interno traz também consigo uma desilusão a
respeito dos valores convencionais e estereotipados pelos quais se viveu até
então, a necessidade de examinar as relações que se mantêm com as outras
pessoas, um contacto mais espontâneo, mas ao mesmo tempo mais
profundo com a beleza contida na natureza e na arte, bem como na
responsabilidade em aproveitar o tempo para desenvolver dons e talentos
que foram negligenciados na primeira metade da vida, especialmente a
partir da perspectiva de que tais dons e talentos podem ser utilizados para
ajudar outras pessoas (MIDDELKOOP, 1996).
Naturalmente, ao proporem-se a realizar este mergulho para dentro de si
mesmas, as pessoas não perdem aquilo que é real em suas próprias vidas e
experiências: seus conhecimentos, habilidades, capacidade de se relacionar
com as outras pessoas e de realizar um trabalho útil continuam a ser
importantes. No entanto, na maturidade, à medida que a vida interior torna-
se mais importante, elas começam a explorar novas possibilidades e
aspectos de si mesmas que até então foram negligenciados. Passam a fazer
coisas que valorizam pessoalmente, e não coisas que acham que deveriam
fazer ou que são valorizadas pelos outros. Quando as pessoas não resistem a
este apelo de abandonarem suas ambições de sucesso e realização externas
em favor de uma vida interior mais rica, a pesquisa psicológica mostra que,
à medida que passam os anos, suas vidas podem tornar-se mais ricas e
agradáveis (MONTEIRO, 2006).
O arquétipo, a imagem primordial, que vai guiar os seres humanos na
segunda metade de suas vidas, é o do velho e da velha sábios. Jung vai
descrever os atributos deste arquétipo como sendo o conhecimento, a
reflexão, a capacidade de olhar profundamente para dentro de si mesmo,
das coisas e das outras pessoas, sabedoria, perícia e intuição (JUNG, 1991;
MIDDELKOOP, 1996).
O arquétipo do velho sábio é a outra face, completamente diversa, do
herói, porém intimamente ligado a este. Enquanto os feitos do herói são
realizados no mundo externo, os do velho sábio e da velha sábia,
igualmente importantes, ocorrem no mundo interior. E, da mesma maneira
que a figura do herói, a do velho sábio e da velha sábia tem um caráter
universal no riquíssimo corpo de informações coletadas através dos séculos
pelas grandes religiões e os grandes sistemas mitológicos da humanidade.
Cabe também dizer que este foi um arquétipo com o qual Jung, sob diversas
formas e de modos diversos, estabeleceu um contato interior muito íntimo e
direto, no decorrer de sua longa vida (WEAVER, 1996).
A descrição que o próprio Jung nos fornece sobre as qualidades
arquetípicas do velho e da velha sábios parece tornar bem clara a ideia de
que estes são para ele uma das personificações do espírito, especialmente
do espírito enquanto conhecimento e sabedoria. A psicologia analítica vai
também nos chamar atenção para outras características muito interessantes
deste arquétipo: a capacidade de manter o silêncio interior, de retirar-se do
mundo e viver de maneira quase monástica vem indicar que, de forma
oposta à força extrovertida do herói, o poder da sabedoria anciã provém de
seu interior, e que este poder interior é uma força mágica que nos pode ser
extremamente útil no sentido de mostrar o caminho a ser seguido e nos dar
forças para prosseguir na jornada da vida.
Uma das figuras da cultura ocidental que é mencionada por Jung em
conexão com este arquétipo e que encarna na imaginação popular o velho
sábio é a do Mago Merlin, das lendas do rei Artur e seus cavaleiros da
Távola Redonda — o mago e feiticeiro, o conselheiro e guia, o velho da
floresta e o buscador da verdade, o qual esteve ao lado de Artur antes
mesmo de seu nascimento, e cujo desaparecimento marca o começo do fim
do reino de Camelot.
No Catolicismo temos as figuras de São Joaquim e Santa Ana, pais de
Maria e avós de Jesus, representando a sabedoria divina, os quais
prepararam Maria para sua missão de mãe do Salvador. Na cultura
afrodescendente, que deu origem ao candomblé e à umbanda, a figura do
velho sábio está presente no orixá Oxalufã — velho e sábio, paciente com
todas as coisas, misericordioso e conhecedor do fato de que as coisas não
são totalmente boas ou más. Princípio da criação e da sabedoria, filho de
Olorum, o Deus criador cósmico. A velha sábia apresenta-se na forma do
orixá Nanã Buruku — senhora dos pântanos e esposa de Oxalufã, origem e
finitude da vida material, pois é do barro que Oxalufã cria os seres
humanos, que para lá voltam para serem decompostos por Nanã. Nesse
sentido ela é a mãe que rejeita os filhos no nascimento, mas os acolhe na
finitude, assim como a terra nos acolherá na morte física. Ainda temos a
figura dos pretos velhos e das pretas velhas, encarnação da paciência e
sabedoria nos terreiros de umbanda (ZACHARIAS, 1998).
Em nossa opinião, um dos grandes méritos de Jung enquanto psicólogo e
investigador foi o fato de que nos falou de suas experiências com este
grande arquétipo de forma a inspirar as pessoas a tentarem entrar em
contato com ele, isto em um momento histórico em que o materialismo era
a tendência dominante dentro da psicologia.
Na verdade, o contato de Jung com o arquétipo do velho sábio foi de tal
forma profundo que, principalmente na fase final de sua vida, cada vez
mais, para seus colaboradores e discípulos ele foi se tornando o
representante vivo desta imagem primordial.
Acreditamos que, para nós que estamos vivendo nestes dias de pós-
modernidade, repletos de incertezas, e que tivemos a oportunidade de
assistir à derrocada de sistemas políticos e de seus grandes líderes, que
haviam prometido construir o paraíso sobre a terra, pode ser que a figura
humana de C. G. Jung seja ainda uma das que melhor possam simbolizar o
significado interior e transformador deste grande arquétipo do velho sábio.
Para finalizar, e de maneira muito breve, gostaríamos de oferecer algumas
sugestões sobre como nossa sociedade poderia tornar mais rica e produtiva
a vida dos que já passaram da primeira metade da vida. Devemos procurar
combater, por meio da disseminaçãode informações nas escolas e através
dos meios de comunicação de massas, os preconceitos que existem contra a
velhice. É importante preparar, por meio da ação cultural da sociedade
como um todo, as pessoas de meia-idade, para que tenham condições e
possam assim enfrentar, com maiores possibilidades de sucesso, os desafios
e as crises que marcam a transição para a segunda metade da vida. As
entidades públicas e privadas devem fornecer espaços onde as pessoas mais
velhas possam reunir-se, conviver entre si e trocar ideias e experiências
sobre o que está acontecendo em sua vida. Além disso, devem desenvolver
programas em que os velhos possam ter oportunidades para entrar em
contato e desenvolver potenciais que, por falta de tempo, recursos ou
disponibilidade, não foram devidamente apreendidos e trabalhados durante
a primeira metade da vida.
A idade madura oferece um campo vastíssimo de experiências interiores,
que, se bem vividas, podem contribuir para a construção de uma sociedade
mais justa e acolhedora.
Referências bibliográficas
BRENNAN, A.; BREWI, J. Arquétipos junguianos; a espiritualidade na meia-idade. São Paulo:
Madras, 2004.
HOLLIS, J. A passagem do meio. São Paulo: Paulus, 1995.
JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1991. v. VIII.
MIDDELKOOP, P. O velho sábio. São Paulo: Paulus, 1996.
MONTEIRO, D. M. R. (Org.) Espiritualidade e finitude. São Paulo: Paulus, 2006.
PRÉTAT, J. R. Envelhecer. São Paulo: Paulus, 1997.
WEAVER, R. A velha sábia. São Paulo: Paulus, 1996.
ZACHARIAS, J. J. M. Ori axé; a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998.
Notas
 
 
1 Doutora em Ciências da Religião e mestre em Psicologia da Saúde, ambos pela Universidade
Metodista de São Paulo (UMESP). Possui especialização em Musicoterapia e em Psicologia
Analítica. É psicóloga clínica e educacional pela Universidade Paulista (UNIP). Docente em
cursos de Pós-graduação de Arteterapia, Psicologia Analítica, Psicossomática, Gerontologia.
Presidente fundadora da Oscip Arte Sem barreiras. Vice-presidente da Associação Catarinense de
Arteterapia (ACAT). Autora do livroArte-terapia e loucura (Vetor). Organizadora do
livro Revisitando a ética com múltiplos olhares e da coleção Anima Mundi, da citada editora. E-
mail: .
2 Psicólogo e analista junguiano pela Associação Junguiana do Brasil/IAAP. Doutor em Psicologia
Social e mestre em Psicologia Escolar, ambos pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). É
docente universitário, autor do inventário de tipos psicológicos QUATI e DTO e dos
livros: Entendendo os tipos humanos (Paulus); Tipos psicológicos junguianos e escolha
profissional; Ori axé; Vox Dei; Tipos, a diversidade humana (Vetor). Músico e organista.
3 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, gerontólogo pela Sociedade
Brasileira de Geriatria e Gerontologia, vice-líder do Grupo de Pesquisa Vivencer UPF/CNPq,
coordenador do Programa Universidade Sênior. Professor e coordenador do curso de
especialização em Gerontologia e Geriatria da Universidade de Passo Fundo.
4 Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Grupo
Vivencer/CNPq. Professora do curso de especialização em Psicologia da Saúde e Intervenções
Psicossociais e do curso de Psicologia da Universidade de Passo Fundo.
5 Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina e gerontóloga pela
Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. É líder do grupo de pesquisa Vivencer
UPF/CNPq, além de professora do curso de especialização em Arteterapia e do curso de
Enfermagem da Universidade de Passo Fundo.
6 Pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid, doutora em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, coordenadora de pesquisa e pós-graduação da
Faculdade de Artes e Comunicação, coordenadora do Curso de Especialização em Arteterapia,
além de professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo
e dos cursos de Artes Visuais e de Tecnólogo em Design Gráfico da mesma instituição.
7 Doutor em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor
do Programa de Pós-graduação em Envelhecimento Humano da Universidade de Passo Fundo.
8 Doutora em Informática na Educação pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul e professora
do Programa de Pós-graduação em Informática da mesma instituição.
9 Mestre em Ciência da Computação Aplicada pela Universidade do Vale dos Sinos e professor no
Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes do Centro Universitário Feevale.
10 Considerando que toda situação interacional implica uma situação comunicacional, os
protagonistas utilizam o contexto para interpretar as mensagens recebidas, numa visão clássica,
mas Lévy (1993) afirma que o contexto na verdade é o próprio alvo da comunicação, isto é, nos
comunicamos para transformar o contexto compartilhado pelos parceiros. O sentido de uma
mensagem surge do contexto que é local, particular, mas as mensagens se alteram ao se deslocar
de uma pessoa para outra influenciando no contexto particular, criando assim um contexto público,
compartilhado, unido aos contextos particulares de cada participante. Assim, se, por um lado, o
contexto serve para determinar o sentido de uma palavra ou frase, por outro, essa mesma palavra
ou frase produz uma rede semântica de significados particular composta de imagens, palavras,
lembranças, conceitos, sensações, entre outros, que são ativados quando o protagonista recebe e
interpreta a mensagem.
11 Ambiente computacional interacionista é entendido nesse texto como o sistema integrado de
software e hardware que permite o desenvolvimento de ações colaborativas.
12 Os idosos possuem o que se denomina “inteligência cristalizada”, que abrange os conhecimentos
gerais e de vocabulário que costumam se manter constantes apesar da idade e, em alguns casos, até
aumenta. Além disso, as competências sociais nos idosos são mais bem trabalhadas que nos
jovens, característica que pode ser aproveitada no processo de apropriação tecnológico. Dessa
forma, para Passerino e Pasqualotti (2006, p. 252), “os idosos não somente podem aprender a
utilizar a tecnologia, como também se aproveitar da tecnologia para construir e participar de
comunidades de aprendizagem, tornando-os novamente socialmente produtivos perante a
sociedade. Isso tem impacto na autoestima do idoso e, consequentemente, no grupo social
próximo”.
13 Entendido neste texto como mediador (“desequilibrador”: aquele que provoca conflitos e
situações problemáticas) do processo de aprendizagem num ambiente com concepção
interacionista; já o idoso é entendido como sujeito interagente do processo, isto é, o conhecimento
resulta da sua ação sobre a realidade e desta sobre o idoso.
14 A noção de ecologia cognitiva, de acordo com Lévy (1993, p. 137), corresponde ao “[…] estudo
das dimensões técnicas e coletivas da cognição”, baseando-se na “[…] ideia de um coletivo
pensante homens-coisas, coletivo dinâmico povoado por singularidades atuantes e subjetividades
mutantes”.
15 Neste texto, entendem-se nodes como pontos de intersecção de vários documentos hipermidiáticos
que se confluem para um mesmo lugar, isto é, para outro hipertexto.
16 A linguagem Logo, termo grego que significa pensamento, ciência, raciocínio ou cálculo, foi
desenvolvida na década de 1960 no Massachusets Institute of Technology pelo matemático
Seymour Papert. É uma linguagem de programação voltada para o ambiente educacional,
fundamentada na filosofia construtivista.
17 O Atelier Digital traz uma proposta pedagógica inédita, diferente dos tradicionais cursos de
informática. A atividade trabalha de forma continuada a individualidade do sujeito e suas
necessidades, levando em consideração o estágio em que cada aluno se encontra. Proporciona
também a aproximação do mundo tecnológico e virtual incluindo visitas ao ciberespaço, contatos
com editor de texto, internet, entre outros.
18 O Centro Universitário Feevale (www.feevale.br)está localizado na cidade de Novo
Hamburgo/RS e teve sua autonomia universitária homologada pelo Ministério da Educação
(MEC) em 21 de julho de 1999.
19 A ferramenta integra o portal InterDigital (www.interdigital.org.br), ambiente que agrega todas as
ferramentas de comunicação e interação digital no ciberespaço, para idosos vinculados a grupos de
convivência, sejam eles do município de Passo Fundo ou não.
20 A UPF (www.upf.br) foi reconhecida pelo Decreto Federal n. 62.835, de 6 de junho de 1968. A
sede da instituição encontra-se no município de Passo Fundo — RS.
http://www.feevale.br/
http://www.interdigital.org.br/
21 Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e
professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo e do Curso
de Letras da mesma instituição.
22 Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo.
23 As reflexões sobre o ressentimento, que serão tomadas como fundamento para este estudo,
encontram-se em Bresciani e Naxara, 2001.
24 Para este estudo, utilizou-se a seguinte edição da obra, da qual foram extraídas todas as citações
do referido livro: MACHADO, Dyonelio. Memórias de um pobre homem. Pesquisa, apresentação
e notas de Maria Zenilda Grawunder. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1990. Em virtude
da riqueza de dados que a obra oferece e das inúmeras questões que suscita, toma-se como objeto
desta análise apenas a primeira das três partes que constituem o capítulo inaugural do referido
volume, a qual é intitulada “Imagens fugitivas”. Essa primeira parte — “Imagens fugitivas” — foi
publicada por Dyonelio Machado, inicialmente, em 16 de outubro de 1971, no Caderno de Sábado,
suplemento cultural do Correio do Povo, como homenagem póstuma a seu amigo Celestino
Prunes. No texto de apresentação da obra, intitulado “O escritor que depõe”, a organizadora da
edição esclarece que, no primeiro capítulo, “composto de três partes, o autor rememora as
lembranças mais caras de seus primeiros tempos de vida literária. A partir do segundo capítulo
alterna trechos manuscritos e datilografados, numa descrição de momentos que vão desde a sua
estreia na ficção, em 1927, até sua prisão e vida política […]. São nove capítulos, em 127 páginas
predominantemente manuscritas, em que utiliza os mais variados tipos de papel rascunho, rabiscos
e correções a tinta, a lápis, caneta vermelha, azul, preta” (op. cit., p. 11).
25 Escritor, presidente da Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul (1935), deputado
estadual constituinte pelo Partido Comunista — PCB (1947) e médico psiquiatra, nascido na
cidade de Quaraí (RS), em 1895, e falecido em 1985. Foi pioneiro na introdução da psicanálise no
tratamento psiquiátrico.
26 Dyonelio Machado, em uma entrevista que concedeu no ano de 1980 (GRAWUNDER, 1995, p.
50), afirma que deixara suas memórias incompletas: havia começado a escrevê-las, porém não
concluíra o processo. Esse fragmento, que o autor decidiu não completar, mas também não
destruiu, é o texto que tomou a forma de livro.
27 Pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid, doutora em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, coordenadora de pesquisa e pós-graduação da
Faculdade de Artes e Comunicação, coordenadora do Curso de Especialização em Arteterapia,
além de professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo
e dos cursos de Artes Visuais e de Tecnólogo em Design Gráfico da mesma instituição.
28 Psicólogo e analista junguiano pela Associação Junguiana do Brasil/IAAP. Doutor em Psicologia
Social e mestre em Psicologia Escolar, ambos pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). É
docente universitário, autor do inventário de tipos psicológicos QUATI e DTO e dos
livros: Entendendo os tipos humanos (Paulus);Tipos psicológicos junguianos e escolha
profissional; Ori axé; Vox Dei; Tipos, a diversidade humana (Vetor). Músico e organista.
29 Formada em Filosofia (1960) e mestre em Psicologia Clínica (1970), ambos pela Universidade de
São Paulo (USP). Doutora em Psicologia Social pela University of London (1978). É professora
aposentada do Instituto de Psicologia da USP. Possui experiência na área de psicologia social:
sensibilidade moral, desenvolvimento adulto, transpessoal e grupos transcentrados.
30 Doutora em Ciências da Religião e mestre em Psicologia da Saúde, ambos pela Universidade
Metodista de São Paulo (UMESP). Possui especialização em Musicoterapia e em Psicologia
Analítica. É psicóloga clínica e educacional pela Universidade Paulista (UNIP). Docente em
cursos de Pós-graduação de Arteterapia, Psicologia Analítica, Psicossomática, Gerontologia.
Presidente fundadora da Oscip Arte Sem barreiras. Vice-presidente da Associação Catarinense de
Arteterapia (ACAT). Autora do livroArte-terapia e loucura (Vetor). Organizadora do
livro Revisitando a ética com múltiplos olhares e da coleção Anima Mundi, da citada editora. E-
mail: .
Autores
Sonia Bufarah Tommasi possui formação em Psicologia da Saúde, com
especialização em Musicoterapia, Psicologia Analítica e Psicologia clínica e
educacional. Doutora em Ciências da Religião, leciona em cursos de pós-
graduação de arteterapia, psicologia analítica, psicossomática, gerontologia.
É presidente fundadora da Oscip Arte Sem Barreiras e vice-presidente da
Associação Catarinense de Arteterapia – ACAT.
Graciela Ormezzano possui formação em Educação, Arteterapia em
Educação e Saúde e Artes Plásticas. Realizou seu pós-doutorado na
Universidad Complutense de Madrid (Espanha). É professora e
pesquisadora da Universidade de Passo Fundo – UPF, presidente da
Associação Sul-Brasileira de Arteterapia – ASBAT e editora associada da
Revista Brasileira de Ciên cias do Envelhecimento Humano.
Créditos
 
 
 
Direção-geral: Flávia Reginatto
Editora responsável: Andréia Schweitzer
Copidesque: Ana Cecilia Mari
Coordenação de revisão: Marina Mendonça
Revisão: Ruth Mitzuie Kluska
Direção de arte: Irma Cipriani
Assistente de arte: Sandra Braga
Gerente de produção: Felício Calegaro Neto
Producão de ebook: Telma Custódio
 
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de
dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados.
Paulinas
Rua Dona Inácia Uchoa, 62
04110-020 – São Paulo – SP (Brasil)
Tel.: (11) 2125-3500
Telemarketing e SAC: 0800-7010081
© Pia Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2011
	Envelhecer com sabedoria
	Prefácio
	Introdução
	1. Sabedoria do envelhecer
	Referências bibliográficas
	2. Sobre a ternura e a velhice
	Para a compreensão da sexualidade longeva com diferentes significados
	A história como intercessora na relação afeto e sexualidade na velhice
	Conjugalidade longeva: um aspecto da ternura na velhice
	Em defesa da ternura no casamento longevo: intervenções possíveis
	Concluindo
	Referências bibliográficas
	3. Arteterapia no cuidado gerontológico: algumas reflexões sobre vivências criativas na velhice e a educação do cuidador
	À guisa de introdução
	Recursos metodológicos
	Vivências possíveis: reinventando o processo de ser e estar numa ILPI
	Experienciando a ludicidade no contexto da institucionalização
	O olhar da instituição sobre o trabalho arteterapêutico
	Reflexões finais
	Referências bibliográficas
	4. Idosos em rede: interface entre interação no ciberespaço, tecnologias de comunicação e relacionamento
	Tecnologias de informação e comunicação promovendo a interação
	Idosos, sociedade e as tecnologias de informação e comunicação
	Idosos construindo relações socioafetivas no ciberespaço
	Ferramenta colaborativa de interação e comunicação no ciberespaço
	Algumas experiências: idosos em rede
	Referências bibliográficas
	5. Da memória acorrentada à publicização do exílioReferências bibliográficas
	6. Picasso como intérprete de si mesmo: afetos, ação e aprendizagem
	Considerações iniciais
	O adulto jovem: afirmação das ambições artísticas
	O adulto maduro: tête-à-tête com o espelho
	Considerações finais
	Referências bibliográficas
	7. O crepúsculo da vida
	Referências bibliográficas
	Notas
	Autores
	Créditossabedoria, a inteligência e a intuição,
além de possuir qualidades morais como benevolência e solicitude, as quais
tornam explícito seu caráter “espiritual”.
As histórias são bálsamos medicinais. Trazem instruções que orientam os
caminhos da vida. Ao mesmo tempo, despertam interesses, revelam a
tristeza, fazem perguntas, levantam anseios e compreensões aflorando o
arquétipo, neste caso do(a) Velho(a) Sábio(a), resgatando o impulso
psíquico perdido durante a vida.
Nos contos de fada o herói se coloca em situações difíceis, sobre as quais
não ponderou, não possui o devido amadurecimento. Nesses momentos
necessita de orientação, de auxílio, que geralmente recebe de um velho ou
de uma velha que encontra pelo caminho. “O(a) Velho(a) representa a
concentração do poder mental e a reflexão dos propósitos e, ainda mais
importante, introduz um pensamento genuinamente objetivo” (VON
FRANZ, 1990, p. 172). Tais situações ou conflitos não pertencem somente
aos contos de fada, pois a vida diária requer um posicionamento, para o
qual não se está preparado, e a orientação de uma pessoa mais velha é de
suma importância.
“O Velho sempre aparece quando o herói se encontra em apuros, numa
situação desesperadora e sem saída, da qual só pode salvá-lo uma reflexão
profunda ou uma ideia feliz, isto é, uma função espiritual ou um
automatismo endopsíquico” (JUNG, 2002, v. IX/1, p. 214). Na vida real o
arquétipo do velho aparece em sonhos, trazendo soluções para problemas
do dia a dia, ou propondo reflexões sobre o problema atual.
Os contos não se reportam aos fatores humanos pessoais, mas ao
desenvolvimento dos arquétipos; eles mostram os vários modos pelos quais
os arquétipos estão relacionados entre si dentro do inconsciente coletivo.
Nos contos de fada geralmente o(a) Velho(a) pergunta “de onde vem”, “por
quê”, “quem”, “para onde vai”, estimulando a autorreflexão, ao mesmo
tempo em que favorece a reunião das forças morais, e ainda presenteia com
talismãs mágicos, que vão auxiliar o herói em sua jornada.
Na vida real o jovem encontra esse arquétipo na figura da avó, do avô, do
pastor, do padre, do professor, da professora, em um conhecido ou estranho,
enfim, em uma pessoa de mais idade com a qual tem mais afinidade e
respeito.
A cultura ocidental da era industrial valoriza o jovem, o ágil; o velho é
desvalorizado, é descartável, pois prejudica o rápido andamento das coisas.
Não há reconhecimento de seu conhecimento e de sua experiência, isto
porque tudo que ele sabe já não tem validade, foi superado. O mundo
ocidental esquece que não se vive somente de tecnologia, o conhecimento
do velho vai além dessas pequenas fronteiras que esvaecem com tempo.
Também esquece que essa tecnologia está em busca cada vez mais da
longevidade e, portanto, o número de pessoas velhas aumenta a cada dia. A
moderna sociedade ocidental não pode mais se permitir ignorar as pessoas
velhas, já que elas constituem uma proporção considerável da população
total.
A situação social contemporânea exige uma continuidade diferente e uma
resposta psicológica distinta do que se via no passado. As mudanças rápidas
exigem a mudança de paradigmas em relação ao idoso, mais respeito por
sua sabedoria e experiência, criando espaço para sua atuação profissional.
Nesse contexto social, os idosos passam por situações de abandono,
incompreensão e privação das mais variadas. Dentre elas, podemos destacar
o abandono psicológico, na medida em que não há espaço para ouvir suas
histórias, suas experiências, sua sabedoria. Sua vida, repleta de vivências e
aventuras, é rejeitada como algo ultrapassado, sem utilidade e valor no
mundo atual, assim como ele mesmo.
Essa postura da sociedade e das pessoas com relação aos idosos leva-os a
estados de introspecção defensiva, desenvolvimento de teimosia obstinada e
à depressão. Esse panorama conduz o cuidador a prestar atenção especial à
fenomenologia do envelhecer e a buscar compreender melhor o processo
com o qual irá lidar.
Jung desenvolveu procedimentos terapêuticos que se mostram muito úteis
para o acompanhamento e apoio psicológico de idosos. Dentre eles,
podemos destacar os que utilizam técnicas expressivas e arteterapia. Iremos
ampliar melhor esses conceitos a seguir.
Apesar de o idoso aparentar decrepitude, sua alma vibra intensamente e
anseia por empreender uma nova viagem, para dentro de si, retomando sua
história e compreendendo o sentido de sua vida, preparando-se para a
eternidade.
“Em si, a psicoterapia é o tratamento da alma, pois a alma é a origem ou a
mãe de toda conduta humana” (WEARVER, 1996, p. 9). Assim, como Jung,
Wearver utiliza o termo “alma” em seu sentido psicológico de origem
grega, psyche, e não com conotação religiosa, o qual também será adotado
para esse texto.
Quando a pessoa apresenta um problema, que parece ser individual, ela
traz o seu corpo, a sua alma e todo o seu mundo. O indivíduo é um
componente do mundo, suas ações e comportamentos interferem no mundo,
e as ações e comportamentos do mundo e do coletivo interferem no
indivíduo. É a lei da ação e reação.
“O mundo e a alma são suprapessoais […] a psicoterapia atravessa o
limite do pessoal e o vincula ao suprapessoal” (WEARVER, 1996, pp. 9-
10). A arteterapia possibilita que a alma manifeste suas imagens, suas cores
e formas, tanto pessoais quanto coletivas; revela a imagem, a cor e a forma
da sombra, o lado sombrio da persona.
Jung, ao estudar a psique, com o teste de associação de palavras,
constatou dificuldades na continuidade do pensamento consciente, que era
interrompido com outras ideias, com teor emocional, vinculado à palavra
estímulo. Também verificou que existe um mecanismo de projeção, que a
consciência utiliza uma atividade criativa autônoma do inconsciente pessoal
e que tem a propensão de criar mitos.
Jung empregou esse dinamismo no contexto analítico, e o denominou
imaginação ativa, na qual incluiu técnicas de expressão artística, tais como
visões, pinturas, modelagem, redação, música. Na imaginação ativa o
inconsciente fornece o conteúdo, enquanto o consciente auxilia a moldar a
forma. O ego aceita a imagem inconsciente, sofre-a, sente-a e coopera com
sua formulação.
Segundo Wearver (1996, p. 34):
O elemento-chave da imaginação ativa está na extensão em que a pessoa se sente envolvida ou
participa de algo que está escrevendo ou vivenciando, moldando em argila ou pintando. A pessoa
não pinta diretamente na primeira pessoa; não obstante, uma obra de pintura pode revelar muito
da imaginação ativa, vinculando consciente e inconsciente. Na mesma medida que a pessoa está
de fato envolvida, seu ego também estará.
Verifica-se, portanto, que Jung partiu de uma imagem para a ação
criadora. Em arteterapia, de maneira geral, parte-se do sentir para a ação,
estimula-se o sujeito a pintar a sua dor, a sua emoção, que revela o vínculo
do consciente com o inconsciente e conta com a cooperação irrestrita do
ego.
Desde muito antes de a medicina existir a imaginação atuava tanto na
saúde quanto na doença. A prática da magia para curar doenças entre os
povos primitivos era normal, como, por exemplo, os rituais xamânicos. A
imaginação é fundamental para o processo de informação e também para a
orientação do sentir e do lidar com as emoções.
Na Grécia antiga acreditava-se que a doença era desencadeada pela
alteração dos humores divinos. Na Ilíada encontram-se quadros de doenças
psíquicas, tais como melancolia, mania e loucura. São descritos momentos
em que a alma é dilacerada por conflitos e dúvidas; e a solidão torna-se
companheira. Muitos templos de cura foram construídos, com interiores
ricamente decorados com pinturas e esculturas dos deuses, no qual se podia
ouvir música, relaxar e estabelecer um religare e, consequentemente,
recuperar a saúde (TOMMASI, 2005).
Para Jung o ser humano se apresenta externamente com o corpo material e
internamente pelas imagens de suas atividades vitais. Conhecer a conexão
entre emoções, sensações e imagens possibilita o conhecimento do sistema
e dos fatores psíquicos, somáticos e sociaisdo ser humano em questão, isso
porque as emoções têm sempre um correlato fisiológico. O contato com
essa conexão se faz com a imaginação ativa (técnica criada por Jung), com
a expressão artística ou com a arteterapia, que auxiliam na compreensão dos
símbolos em seu sentido figurativo, emocional, psíquico e, também, nas
manifestações físicas. Restabelece-se o religare.
Considerando o espaço terapêutico como lugar sagrado em que se faz o
religare por meio da criação artística, citamos Eliade (1998, p. 320):
Para recuperar o tempo sagrado, o tempo mítico, o Grande Tempo, será necessário o rito e todos
os gestos significativos, sem distinção. O rito é a repetição de um fragmento do tempo original,
sendo que o tempo original serve de modelo para todos os tempos; basta conhecer o mito para
compreender a vida.
O trabalho com imagens no processo terapêutico tem como finalidade
trazer para a consciência o sistema de crenças, mitos e valores que regem a
psique do indivíduo e, assim, auxiliá-lo no caminho do autoconhecimento e
no processo de trans-forma-ação em busca do Ser Integral.
Middelkoop (1996, p. 10) prefere empregar o termo mundo imaginal, e
usa a palavra imaginação com um significado particular: para ele é a
“descrição de uma vivência dentro do mundo imaginal”. Nesse sentido ele
explica que o mundo imaginal é dinâmico, atua quando a pessoa está
desperta com plena consciência. A imaginação conduz os sentimentos,
comportamentos, sensações físicas. Por meio da imaginação o indivíduo
fica feliz, triste, sente dor, discute relações, toma posição diante de alguns
fatos, soluciona problemas, com plena consciência do que se passa dentro
dele. O mundo imaginal também propõe desafios, às vezes com tarefas
específicas “que parece ter sido organizado a partir de um ponto central […]
o cerne do Si-mesmo […] este cerne possui uma forma personificada”, com
iniciativa, linguagem e ação própria (MIDDELKOOP, 1996, p. 11).
O Si-mesmo se expressa por meio de imagens, metáforas, símbolos e
rituais, que às vezes não são compreensíveis de imediato, e também não é
necessário interpretar todos os símbolos que são apresentados por ele.
Muitos símbolos se apresentam com a função de exercer influência sobre a
psique.
“O arquétipo do Velho representa a reflexão útil e a concentração das
forças morais e físicas que se realiza espontaneamente no espaço psíquico
extraconsciente, quando um pensamento consciente não é possível” (JUNG,
2002, v. IX/1, p. 214). Não há como preparar o indivíduo para percorrer os
caminhos da imaginação ativa, assim como não se prepara alguém para
sonhar: as imagens fluem do inconsciente livremente. A jornada conduzirá a
uma “aprendizagem especial, concentrada no fortalecimento da
sensibilidade e da empatia” (MIDDELKOOP, 1996, p. 17).
Existem momentos em que as palavras não expressam o sentir, em que o
pensamento racional não comporta a dimensão das emoções, e literalmente
se fica sem palavras para exprimir aquilo que se quer transmitir; então, em
uma tentativa de dizer o indivisível, se faz uso do pincel, da pena, da
partitura e do corpo, para dar vida às figuras do inconsciente que são vivas e
numinosas.
A imaginação ativa, a arteterapia, alcança o seio da estrutura da psique,
em que a vida psíquica é contida e mantida. É nesse âmbito que constitui a
origem dos mitos, dos contos de fada e das formas específicas de credo e
rituais religiosos. A ampliação por analogia facilita o indivíduo a aceitar sua
própria vinculação com a totalidade da raça humana e seus fundamentos
intrínsecos.
Ao profissional compete comparar a história de vida do sujeito com as
histórias narradas, decorrentes da imaginação, e desvendar como esse
sujeito conduz sua vida e enfrenta os problemas de sua existência. Assim se
têm dados da relação do ego com o Si-mesmo. Na última fase da vida,
quando as energias físicas e psíquicas começam a enfraquecer e, ainda,
quando amigos e parentes se vão, os valores espirituais e culturais passam a
ser muito importantes. Conhecer a figura de velho(a) que rege a psique de
cada indivíduo, como ele sente e imagina sua velhice, como elabora seu
caminho de amadurecimento, quais são seus sentimentos em relação à
velhice alheia e à própria e, ao mesmo tempo, identificar os aspectos
sóbrios da velhice, prepara-o para um entardecer sadio e criativo.
Para Middelkoop (1996, p. 12), “O mundo imaginal cria um campo de
força no qual certos acontecimentos tornam-se possíveis enquanto tudo o
mais se revela muito mais difícil, o que significa que somos capazes de
localizar novas fontes dentro de nós mesmos”.
Penetrar no mundo imaginal significa caminhar por alamedas misteriosas,
além de possibilitar encontrar a cada esquina um novo desafio para resolver
e transcender para novas etapas de crescimento.
Referências bibliográficas
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
EDINGER, E. F. Um esboço sobre psicologia analítica. São Paulo: Quadrante, 1984.
ELIADE, M. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ESTÉS, C. P. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
JUNG, C. G. Estudos experimentais. Petrópolis: Vozes, 1995.
_____. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.
_____. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, v. IX/1, 2002.
MANKOWITZ, A. Menopausa. São Paulo: Paulus, 1990.
MIDDELKOOP, P. O velho sábio. São Paulo: Paulus, 1996.
STAUDE, J. R. Desenvolvimento adulto de C.G. Jung. São Paulo: Cultrix. 1988.
TOMMASI, S. M. B. Arte-terapia e loucura. São Paulo: Vetor, 2005.
VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1998.
WEARVER, R. A velha sábia. São Paulo: Paulus, 1996.
ZACHARIAS, J. J. M. Ori axé; a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1989.
S
CAPÍTULO 2
Sobre a ternura e a velhice
Agostinho Both3 e Ciomara Ribeiro Benincá4
e existem conceitos naturalmente interligados, são a ternura e a
velhice. Esta ligação, quase uma interdependência espontânea, baseia-
se, provavelmente, na representação social do ser idoso como aquele
amável e bondoso indivíduo que habita no inconsciente de todos, em tese,
representando o ideal da figura do vovô e da vovó.
A partir daí, percebe-se uma tendência culturalmente determinada para
representar o idoso e a idosa como alguém destituído de malícia e,
principalmente, sem qualquer tipo de manifestação de caráter sexual ou
erótico. Tem-se, então, a figura do velhinho ou da velhinha meiga e
benevolente, que em atitude de total entrega e devoção abdica dos anseios
eróticos e dos desejos sexuais mais íntimos para dedicar-se ao cuidado dos
descendentes em troca da mutualidade do afeto, da proteção e do respeito.
Entretanto, estaria essa figura branda e benevolente correspondendo
fielmente à imagem do homem e da mulher que atingem a terceira idade
nos dias de hoje? Definitivamente, esses devotados e circunspetos sujeitos
estão em extinção como resposta às mudanças de uma sociedade que se
moderniza tecnológica e culturalmente, pouco a pouco garantindo a todos a
livre expressão da sua individualidade, independentemente de idade, cor,
raça e sexo. E é nesse contexto que a relação entre ternura e velhice assume
um significado revisto e ampliado, contribuindo para a plena realização do
idoso nas mais variadas esferas de sua vida.
A ternura, então, pode ser entendida como a capacidade de expressar
afeição e estabelecer relacionamentos, dentre esses, os que permitem
usufruir da própria sexualidade. Trata-se, também, de um processo de
construção de vínculos pelo qual o ser humano se sente valorizado e
atendido nas suas questões vitais, especialmente na velhice, quando o
suporte social assume uma importância capital na saúde física e mental.
Nesse sentido, o presente texto apresenta e discute os sentidos atribuídos à
ternura na terceira idade, problematizando a importância das relações
coloridas pelo afeto como direito inalienável a qualquer pessoa em todo o
ciclo vital. Busca-se, assim,explorar de diversas maneiras a natureza, as
formas e os caminhos da ternura, tendo como foco a sua manifestação e
importância na velhice.
Vale salientar, porém, que o conceito de ternura aqui apresentado
corresponde ao desenvolvido por Restrepo (2000, p. 84), que respeita uma
lógica relacional aberta e relativizada.
Somos ternos quando abandonamos a arrogância de uma lógica universal e nos sentimos afetados
pelo contexto, pelos outros, pela variedade de espécies que nos cercam. Somos ternos quando nos
abrimos à linguagem da sensibilidade, captando em nossas vísceras o prazer ou a dor dos outros.
Somos ternos quando reconhecemos nossos limites e entendemos que a força nasce de
compartilhar com os outros o alimento afetivo. Somos ternos quando fomentamos o crescimento
da diferença, sem tentar nivelar aquilo que nos contrasta. Somos ternos quando abandonamos a
lógica da guerra, protegendo os nichos afetivos e vitais para que não sejam contaminados pelas
exigências da funcionalidade e da produtividade a todo transe, que pululam no mundo
contemporâneo.
A manifestação da ternura, enquanto estratégia afetiva necessária ao
fortalecimento de laços interpessoais, é importante em qualquer fase da vida
do ser humano. Desde o nascimento, o bebê tem seu contato com o mundo
estabelecido pelos gestos da mãe que, permeados pelo afeto, transcendem o
caráter meramente conservativo para constituir laços de confiança e de
ternura. Assim acontece durante toda a vida! Na velhice, da mesma forma, a
expressão afetiva estrutura os vínculos mais importantes, sejam eles
relativos à manutenção do grupo social, familiar e, de forma mais restrita, à
manutenção dos laços conjugais.
No primeiro caso, a ternura do idoso para com seus descendentes ou com
a sociedade mais ampla cristaliza a representação idealizada do “vovô” e da
“vovó” como figuras aglutinadoras na família e referência para os mais
jovens. Trata-se, aqui, de uma estigmatização que, de forma mais ou menos
declarada, mascara o real preconceito, a desvalorização e a exclusão social
do idoso na cultura ocidental. Alie-se a isso a clivagem entre a ternura e a
sensualidade, explicitada na teoria psicanalítica como se fosse reativada
nesse período tardio da vida.
Vovô e vovó são anjos da guarda com um corpo diáfano, liberado de todo traço de sensualidade.
Esta fábula deve ser preservada a todo custo; se preciso for, sob o controle dos filhos que se
tornam, por sua vez, guardiões do recalcamento (ou da supressão). Ocorre, assim, uma inversão
dos papéis que ocupavam na adolescência. Adultos maduros são então compelidos a ocultar
cuidadosamente todo e qualquer interesse sexual, sob pena de serem socialmente desconsiderados
e afetivamente rejeitados pela própria família (VASCONCELLOS et al., 2004, p. 415).
No presente texto, com efeito, discute-se a importância da ternura na
manutenção dos laços conjugais, tendo a sexualidade como uma
manifestação afetiva essencial para preservar e fortalecer o casamento
longevo e outros laços íntimos. O que se defende, então, é que para os
idosos a ternura representa um elemento essencial no matrimônio e fora
dele, comparado a um tempero sutil e suave que torna o sexo bem mais
saboroso ao exigente paladar dos casais longevos.
A problemática da sexualidade na terceira idade, além dos aspectos
afetivos, leva em conta fatores básicos que, na verdade, influenciam o
comportamento e a resposta sexual em qualquer idade. Em seu estudo com
casais longevos, Vasconcellos et al. (2004) apontaram cinco fatores que se
combinam para restringir ou ampliar a manifestação afetivo-sexual nessa
etapa: 1) a saúde física; 2) os preconceitos sociais; 3) a autoestima; 4) os
conhecimentos sobre sexualidade; e 5) o status conjugal. Nesse sentido, é
certo que a condição de saúde deteriorada pode impedir o interesse pelo
sexo, tanto quanto as experiências negativas do passado e a insatisfação
conjugal e sexual atual deterioram as relações afetivas, fortalecendo
conflitos e rancores que resultam no afastamento físico e emocional do
casal. Alie-se a isso a fragilidade psicofisiológica a qual estão submetidos
muitos idosos para, muitas vezes, sacramentar as áridas relações conjugais
na terceira idade.
A valorização da manifestação afetiva, colocada aqui como o direito à
ternura, vem contrariar a ideia de embotamento natural estendido à
sexualidade, como se tratasse de um processo de esgotamento irreversível e
retilíneo típico do envelhecimento. Rejeita-se, então, a proposta limitadora
da expressão afetiva e sexual, uma vez que há muito tempo o reducionismo
biológico vem afetando o entendimento humano sobre a capacidade de
expressão da libido. Entretanto, a manifestação afetivo-sexual, como todo
fenômeno humano, também é perpassada pela cultura que, através das
instituições e suas convenções, modula as suas formas limitando
comportamentos e atitudes interpessoais.
De uma perspectiva histórica ocidental, o pensamento greco-romano e
cristão não tem sido gentil com a manifestação da sexualidade entre os mais
velhos. São recorrentes os temas da fria e seca velhice em praticamente
todos os textos, como no de Iacub (2006), por exemplo. Ele faz um
profundo estudo sobre a construção da política em torno da eroticidade na
velhice, que dificulta a organização pessoal e dos casais, sendo os
propósitos sociais limitadores das relações de expressão afetiva. As
realizações estreitas de cuidados dos filhos, diz o autor, fazem com que a
expressividade muitas vezes se reduza aos conflitos e a outras formas de
opressão. Além disso, as promessas de fidelidade e felicidade para sempre
frequentemente ocultam e escamoteiam o arrefecimento severo da retirada
das outras oportunidades de viver, revelando-se em formas amorfas e em
caminhos repetidos, como se a cultura reificasse e naturalizasse as vivências
e os espaços interiores longe de estados afetivos emergentes.
Assim, analisando-se historicamente a manifestação afetivo-sexual, tem-
se a impressão de que, além da irreversível decadência orgânica, com a
velhice estabelece-se mais drasticamente um apelo para o ser humano olhar
seu destino associado à morte. E isso parece ser o mote principal na
percepção tecnicista da modernidade: entre alguns olhares contemporâneos,
a velhice articula-se “como um retorno ao inorgânico, uma tendência à
desconexão ou um aumento da pulsão para a morte devido às mudanças
biológicas associadas à sexualidade” (IACUB, 2006, p. 80). O velho, assim,
é visto como um indivíduo carente de energia, que, retirando-se, favorece o
desenvolvimento da espécie humana, recebendo, em contrapartida, a
generosa compensação da transcendência religiosa.
Considere-se, por outro lado, que, de uma perspectiva biológica, velhice e
morte são conceitos naturalmente associados um ao outro. Pelo
definhamento do corpo, se em algum momento da vida a morte é natural,
esse momento é a velhice. Equivale dizer, então, que a morte de uma pessoa
idosa surpreende menos do que a de um jovem “na flor da idade”, baseada
na ideia de cumprimento de finalidades para as quais a pessoa veio ao
mundo. Assim, de uma perspectiva existencial, a finitude enquanto
condição inerente a qualquer ser vivo remete o indivíduo à inevitável
reflexão sobre a própria existência, servindo como ponto de referência e de
significação, balizado nos limites temporais que denunciam a irremediável
precariedade da condição humana.
A consciência de um significado existencial enquanto membro atuante de
um grupo ou de uma sociedade pode ressignificar a experiência solitária de
envelhecimento e morte para a dimensão espiritual do enfrentamento da
finitude, como uma explicação para o ser humano, a que ele veio ao mundo.
Independentemente de ser uma experiência religiosa ou não, a visão de
transcendência consistiria, então, na busca espiritual baseada na
necessidade de se perceber pertencente a algo mais amplo do que o simples
cotidiano, a serviço de um enfrentamento mais tranquilo da ideia de
envelhecimento e finitude (ROSENBERG apud BENINCÁ, 2003).
Para a compreensãoda sexualidade longeva com
diferentes significados
O comportamento sexual dos homens e das mulheres tem sido abundantemente investigado,
apontando diferenças entre as formas masculinas e femininas da expressão sexual. O mesmo
investimento não se aplica à sexualidade dos idosos. A expressão da sexualidade na terceira idade
ainda é uma área de pesquisa relativamente negligenciada, seja pelos ditames socioculturais que
não têm no velho um ser sexualizado, seja pela própria dificuldade e inibição das pessoas dessa
idade para abordar esse assunto (NORGREN et al., 2004; VASCONCELLOS et al., 2004).
Os estudos indicam que a expressão afetiva está diretamente vinculada
aos modos de vida anterior e à própria capacidade de renovação afetiva. De
maneira geral, as indicações das pesquisas levam a um pluralismo na
expressão sexual, dependendo das condições de saúde, do estilo de vida e
das oportunidades atualizadoras de sua manifestação. De outra parte,
existem também indicações afirmadoras de uma multiplicidade de objetos
substitutos na expressão da sexualidade. Então, a ternura na velhice revela-
se multiforme, de acordo com as perspectivas biológicas e culturais de
inserção dos mais velhos.
Pode-se dizer, assim, que a expressão da sexualidade tem-se apresentado
cada vez mais e de diferentes maneiras tanto em razão da autorização social
e das mudanças culturais quanto das alternativas que os fármacos concedem
pelos avanços da tecnologia médica. Da perspectiva das ciências sociais, a
antropologia, a sociologia e a linguística têm demonstrado que a expressão
das diversas realidades humanas não obedece somente aos ditames da
biologia, mas também, ainda mais significativamente, à biografia inserida
nos contextos da linguagem social da qual é tributária.
Nesse contexto, as transformações científicas e socioculturais,
consequentemente, contribuíram para a expressão da sexualidade dos mais
velhos, revisando conceitos que parecem ganhar novas formas, superando-
se antigos estigmas, como aquele representado nos primórdios da
psicanálise (FERENCZI apud IACUB, 2006).
Se tornam cínicos, maliciosos e mesquinhos: quer dizer, sua libido regressa às etapas pregenitais
do desenvolvimento, expressando, às vezes, de maneira dissimulada, em forma de erotismo anal,
voyeurismo, exibicionismo e tendência à masturbação (p. 122).
Hoje em dia, porém, os progressos da medicina acabaram por minimizar
as barreiras biológicas que dificultavam, em outros tempos, a manutenção
da atividade sexual na maturidade. O que se espera então é que, juntamente
com o aumento da expectativa de vida e do progresso científico e técnico
obtido, haja uma evolução social e cultural que produza mudança de
mentalidades no que tange à manifestação da sexualidade dos idosos. Na
prática, nem sempre isso acontece. Não raro, as manifestações públicas de
desejo sexual dos mais velhos são tidas como inadequadas, especialmente
se assumirem um caráter estereotipado obtido à custa da liberalização dos
costumes, das terapias de reposição hormonal, assim como das novas
moléculas que lutam contra as disfunções de ereção (VASCONCELLOS et
al., 2004). O que se vê, então, é uma sexualidade longeva ainda
contaminada de preconceitos, como a ideia do “velho safado”.
O velho safado é visto como um fescenino, um obsceno, um devasso […] A reação diante de seu
comportamento varia da irônica condescendência ao desprezo e à indignação. […] A safadeza e o
Viagra garantem-lhe a cara de pau necessária para que ele volte à carga tantas vezes quanto
necessário. É claro que com isso ele não se torna mais simpático aos olhos das pessoas (SCLIAR,
2007, p. 19).
Como se pode observar, mesmo não se recomendando posturas que
ridicularizem o idoso em relação à manifestação da sua sexualidade, ainda é
premente a necessidade de lutar contra crenças associadas ao ostracismo e à
discriminação sexual que atingem esse grupo de idade. Em outras palavras,
percebe-se que as repercussões do processo de envelhecimento sobre a
sexualidade são particularmente contaminadas de preconceitos relacionados
à degradação biológica que serviu durante séculos para caracterizar essa
etapa da vida, impregnando o imaginário cultural.
É de conhecimento geral que a mídia retrata o sexo como sendo para os jovens e esbeltos, e o
humor “velhicista” tacha os mais velhos que querem uma vida sexual de “velhos sujos” ou feios e
desesperados. Mesmo as pessoas mais velhas rotuladas pela mídia como “sexy” geralmente são
escolhidas porque “não parecem ter a idade que têm”. Correspondentemente, a pessoa mais velha
não encontra no seu dia a dia a confirmação de que desejar uma vida sexual em qualquer etapa da
idade adulta é normal e sadio (STUART-HAMILTON, 2002, p. 142).
A história como intercessora na relação afeto e
sexualidade na velhice
Considerando-se que as mudanças históricas em torno das disciplinas
institucionais, entendimentos e motivações apresentam similaridades em
suas expressões, pode-se pensar que a história da sexualidade humana, tanto
no campo pessoal quanto nas relações diádicas, obedece à semelhança dos
processos históricos maiores. As rupturas, porém, surgem em razão de os
costumes já não darem conta das necessidades que emergem, solicitando
um novo tempo. Nesse contexto, dois eventos concorrem para a mudança.
O primeiro diz respeito à insatisfação em torno das outorgas institucionais,
em atenção às solicitações sociais dos mais velhos. O segundo emerge das
provocações advindas, geralmente, de ideias e motivações que se
diferenciam significativamente daquelas que moviam as estruturas
existentes anteriormente. Parece, assim, significar que as instituições, a
própria estrutura social, as pessoas e as díades vinculadas em razão da
qualidade de conexão com outros espaços culturais aceleram a
desestruturação dos antigos costumes, fazendo com que os atuais não
produzam mais os mesmos efeitos e a mesma satisfação.
Nesse arranjo social, cada vez mais se produz o desperdício da dignidade,
por conta de jogar-se fora tudo e todos aqueles que, por uma razão ou outra,
podem ser descartados, prevalecendo uma sensação de fácil abandono e de
ameaça. Então, sobrevivência, competição e exclusão dos mais fracos ditam
as regras de convivência humana no mundo ocidental produtivo, sendo o
programa Big Brother a representação viva desse processo, em que a regra
do jogo é excluir! Tendo sobre as cabeças a sentença de que tudo pode
acabar de uma hora para a outra, consome-se tudo e todos
desesperadamente, lançando-se mão de linhas de crédito que atendam os
desejos de imediato. Nessa cultura de massa, as financeiras e as lojas, por
sua conta, tripudiam com juros os incautos logo ali adiante, humilhando
aqueles que transcendem a sua capacidade de quitar as próprias dívidas e
preservar a sua dignidade.
A ternura, essa necessária intimidade humana, fica, assim, relegada a
rápidos contatos ou a falas virtualmente estabelecidas mediante os recursos
tecnológicos que encurtam distâncias, mas, nem sempre, aproximam
pessoas. Da mesma forma, as casas não mais conseguem representar os
antigos sistemas de convivência, troca e comunicação, já que a intimidade
das conversas duradouras atualmente flui com dificuldade entre ações que
revelam características de hiperatividade, violência e medo, refletindo o
clima da sociedade urbana mais ampla. Dessa maneira, fortalece-se o
centralismo do ego, uma vez que não se tem a necessária solidariedade e
afeto que ampliam as possibilidades de extensão da existência humana para
além das subjetividades individuais qualificadas em propósitos de uma
eroticidade narcisista.
Por outro lado, as instituições, assim como as pessoas, têm maior ou
menor capacidade de redefinir seus objetivos e metas para, então, superar as
antigas formas de providenciar os apelos humanos. A capacidade de
renovação carrega, pois, um legado que facilita o processo de mudanças. As
disposições culturais e sociais, historicamente internalizadas no seio da
sociedade ou nos indivíduos, facilitam os avanços superadores dos
costumese reinventores de caminhos.
As condições do meso, micro e macrossistema têm muito a auxiliar na
determinação das mudanças. A inserção dos mais velhos em grupos sociais
pode dinamizar mais ou menos os processos internos, tendo-se a história e o
meio ambiente como contribuição para a dinâmica da ternura. E para
efetivação das mudanças em atenção ao processo de contínua e positiva
manutenção do estado afetivo, algumas categorias inerentes a todo processo
histórico colaboram de forma decisiva.
Se for verdade que a história da velhice traz elementos perversos, fazendo
com que seu entendimento tenha comprometido os investimentos sociais e
pessoais em torno dela, existem, de outra parte, proposições interessantes
para minimização de seus efeitos e maximização de recursos inovadores.
Dentre essas está o paradigma da pós-modernidade, com a construção das
identidades e defesa do direito de cada sujeito construir-se com suas
próprias referências culturais.
A partir desse paradigma, as mulheres podem deslocar-se para sua
centralidade e as minorias para a convivência naturalizada de seus próprios
costumes, tanto quanto a longevidade pode tornar-se um espaço humano
confortável como o da juventude e da vida adulta. A identidade passa a ser,
então, uma referência com a qual se estabelecem relações de poder;
consequentemente, os mais velhos têm a sua intimidade respeitada e, por
uma política social, podem encontrar novas formas de expressão afetiva e
sexual. Isso significa que eles passam a se constituir por discursos com
novas tendências, ou seja, como frutos da linguagem histórica em constante
transformação.
As formas de operar a realidade têm como base as referências culturais
afastadas da tradição. Isso, porém, não afasta o entendimento do sujeito,
que pode desenvolver estratégias denunciadoras e opções divergentes
daquelas originárias de sua cultura. Deduz-se, então, que o espaço da crítica
social e pessoal, a partir de referenciais linguísticos, enseja uma função
disciplinadora de vontades diferentes daquelas que são estabelecidas pelas
hegemonias tradicionais da cultura. Assim, as metanarrativas, ou seja, as
verdades maiores que estruturavam poderes e formas de existir passam a
dar lugar a discursos igualitários e diferenciados. O que até pouco tempo
atrás parecia ser próprio dos jovens, hoje também pode ser alcançado pelos
mais velhos, bem como a ternura e a sexualidade, que já estão disponíveis
em qualquer faixa etária!
Considere-se, porém, que muitos velhos de hoje já traziam modelos
comportamentais revolucionários para a época em que eram jovens,
expressando de forma criativa a sua sexualidade, sem dar muita importância
aos interditos sociais. A história aponta para mudanças resultantes de
intervenções significativas, seja por inconformidade das pessoas, por
descobertas intrínsecas a interesses de grupos ou por descobertas paralelas.
Assim, a história se oxigena e entra em estado de ebulição emergente,
causando entusiasmo e novas trocas, geralmente oriundas de fora e
estimulando novas organizações e arranjos sociais. Essa foi a forma como
os egípcios intervieram na Grécia e os árabes na cultura cristã no advento
das cruzadas — acontecimentos dos quais se conhece bem os resultados e
impactos.
Na história dos casais e dos indivíduos, guardadas as devidas proporções,
ocorre o mesmo fenômeno. Quando se fala de casamentos de longa
duração, isto é, que compreendam um período de vinte anos ou mais, deve-
se considerar que esses casais já passaram por várias transformações
pessoais, conjugais e familiares. Compreende-se, por outro lado, que os
movimentos sexuais em transformação ocorrem em razão de novos objetos
de paixão, dados por novos apelos que invadem a sociedade ou emergem de
forma particular.
A liberdade de ser parece exigir algumas condições mínimas para a
ocorrência de renovações atualizadoras. Se existe a crença de uma
tendência atualizadora dos organismos vivos, parece, porém, que tal
evidência não ocorre por geração espontânea. Os aprendizados anteriores,
ou seja, a configuração de um estilo de vida do indivíduo e da díade se
configura em atualizações afetivas, tendo em conta a história dos potenciais
anteriores. Assim, tanto a escola quanto a família podem probabilizar
expressões afetivas futuras dependendo das vivências, pois virtudes como a
ternura se formam em razão de exercícios que se concretizam em hábitos. A
casa e a escola, muito antes dos eventos futuros, são garantias de renovação
de estoques afetivos, sendo a sala de aula, a família, a comunidade espaços
privilegiados de ternura, garantindo formas mais agradáveis de seres
humanos para o resto de suas vidas.
A sociedade ocidental possui disposições significativas por onde casais,
enquanto autorizados por razões da generatividade, podem perfazer suas
identidades. Casas, filhos, assessoramento reconhecido, a unidade e a
intimidade, o trabalho reconhecido, os parentes em torno, as celebrações
parentais, os olhares, o sexo seguro e as falas íntimas, o amor, a segurança,
as concepções de mundo, o imaginário comungado, as memórias, marcam
identidades. Muitas dessas mediações, senão todas, sofrem alterações
substanciais no decorrer da existência do casal. Entretanto, as perdas,
muitas vezes suavizadas por mudanças na destinação afetiva, mas muitas
irreparáveis, podem comprometer o bem-estar na conjugalidade.
Conjugalidade longeva: um aspecto da ternura na velhice
O redimensionamento da afetividade e do sexo na terceira idade, segundo
Lopes (1999), passa, necessariamente, pela revisão de valores, crenças e
limites, reinterpretando a sexualidade do casal de forma positiva, sem
desconsiderar uma provável interferência hormonal no comportamento
sexual. Nesse ponto, devem-se evitar expectativas irrealistas que, no
contraponto à abstenção, levam à obrigação exagerada por desempenho
(VASCONCELLOS et al., 2004).
O casamento longevo, assim como a longevidade estendida, são
fenômenos sociológicos recentes não suficientemente enfocados. De uma
perspectiva estritamente biológica, o casal longevo perde suas funções
históricas de reprodução e produção, embora tenha mais tempo para ficar
junto, visto que o cuidado com os filhos deixa de ser uma tarefa central e a
vida profissional perde o destaque ou se interrompe.
Parafraseando Marx (apud DUMAZEDIER, 1994), pode-se dizer que o
tempo livre para a distração, assim como para atividades superiores,
transformará naturalmente quem dele tira proveito num indivíduo ou casal
diferente. A afirmação pode levar a diversas direções. Em primeiro lugar,
esse tempo demanda preparação conjunta, uma vez que o reconhecimento
mútuo é necessário no matrimônio.
Para a sustentação de uma conjugalidade bem-sucedida, é preciso a
escolha antecipada de objetos de paixão suficientemente capazes de gerar
densidade afetiva pela cumplicidade de ambos em torno dos efeitos da ação
individual e/ou conjunta. Assim, não é suficiente a busca da ocupação do
tempo livre com objetivos de interesse individual, se em um dos cônjuges
tal escolha for desconsiderada. Tanto o não fazer como o fazer podem levar
à perda da intensidade afetiva e da admiração mútua, uma vez que o fazer
pode conter motivos de distanciamento entre o casal. Por outro lado, o
abandono do trabalho pelo jogo ou pelas conversas sem destino pode apagar
os olhares de consideração entre o casal.
Sob essa ótica, muitas vezes, equivocadamente as funções afetivo-sexuais
são desqualificadas, com base na ideia de não terem mais como destino as
funções sociais reprodutivas; da mesma forma equivocada, as funções
mentais são desqualificadas porque, pela aposentadoria, não operam na
economia com a mesma intensidade da fase anterior. Essa perspectiva
ultrapassada e incorreta relega o casal longevo a uma instância social
geralmente esvaziada de sentido, na medida em que foge aos interesses do
sistema produtivo vigente (BOTH, 2003).
Dentre todas essas representações sociais existem, entretanto, nichos que
preservam, com interesse e dificuldade, um casamento monogâmico

Mais conteúdos dessa disciplina

Mais conteúdos dessa disciplina