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Sonia Bufarah Tommasi Graciela Ormezzano (orgs.) ENVELHECER COM SABEDORIA www.paulinas.org.br editora@paulinas.com.br http://www.paulinas.org.br/ mailto:editora%40paulinas.com.br?subject=contato A Prefácio questão do envelhecer com sabedoria, proposta já no título da obra organizada pelas doutoras Sonia Bufarah Tommasi e Graciela Ormezzano, está ligada direta ou indiretamente a visões paradigmáticas sobre o ser humano e o seu processo de envelhecer. Embora seja algo já considerado ao longo do pensamento ocidental, esse tema é relevante. Ele se faz pertinente à sua reapresentação para a discussão dentro de uma sociedade local-global que vive esse problema ainda de forma bastante despreparada e preconceituosa. Esta problemática remete a grandes questionamentos nos dias atuais: como envelhecer com sabedoria diante de estruturas e relações sociais, familiares, cada vez mais superficiais, provisórias, competitivas e agressivas? Como despertar para um envelhecer saudável e sábio, quando o ser humano vive a ameaça de sua identidade e de sua dignidade por situações cotidianas marcadas pela falta de respeito e de autenticidade na relação Eu-Outro? Serão estes questionamentos legítimos? Ou esta percepção sobre o cotidiano está desfocada? Ao refletir sobre esta ideia, entendeu-se que o convite para escrever este prefácio era deveras provocador e complexo. Primeiro, porque demandaria ter um profundo conhecimento sobre o tema, de acordo com os processos do entendimento humano sobre o conhecimento do seu envelhecer; segundo, porque esse assunto atravessa várias áreas do saber filosófico e científico e aí se forja uma complexidade, nada tão simples de adentrar devido à variação de conceitos e paradigmas. No entanto, com o espírito livre e criativo, percebeu-se que, com humildade científica, se poderia contribuir com esta obra, pois ela em si não tem a pretensão de trazer verdades fechadas e prontas. Com efeito, esse foi um acento forte nas falas que perpassam o texto. Os seus diversos autores, nos seus discursos, dentro de diferentes abordagens e variantes temáticas sobre o objeto central, buscam apresentar uma reflexão sobre o envelhecer, como um processo criativo de tomada de consciência de vários aspectos que podem envolver o desenvolvimento do ser humano no mundo. Para mostrar essa ideia, a obra, na sua estrutura organizativa, apresenta vários subtemas correlatos à questão do envelhecer com sabedoria, discutindo sobre a importância da ternura e a velhice; sobre o cuidado gerontológico, com base na arteterapia como um processo terapêutico de ajuda às crises e sofrimentos; sobre a interferência da tecnologia para a interação no ciberespaço e a comunicação nos relacionamentos; sobre a memória histórica como determinante para o envelhecer; sobre a arte de Picasso como possibilidade de autorreflexão a respeito do envelhecer. E por último resgata a ideia do primeiro capítulo, que trata sobre os mitos e os arquétipos constitutivos da psique humana como expressões legítimas que abrem caminhos para que o ser humano possa fazer o seu percurso de envelhecimento com sabedoria. Estes subtemas que constituem a obra vêm, de uma forma ou outra, nas suas construções textuais, implícita ou explicitamente, tocando uma concepção de ser humano, que na sua estrutura e organização vive o envelhecer biológico, psicológico e sociocultural, e este lhe traz desafios os mais diversos. Sem ter a pretensão de alongar o discurso, pois aqui não se trata disso, contextualiza-se o mundo da ciência nas visões sobre o fenômeno do envelhecer. Esse fenômeno habita e perpassa uma sociedade contemporânea complexa e dinamizada pela criatividade da vida. Esta se manifesta nos diferentes olhares, saberes e seres, que se criam e se recriam, buscando defender e elevar a vida pela sabedoria como última instância da racionalidade subjetivo-objetiva, que caracteriza o pensar e o agir humano. A psicoesfera humana, contemporânea, vive uma crise na sua saúde e no reconhecimento autêntico do natural processo do envelhecer. Ser idoso é, muitas vezes, sentir a discriminação, o enfrentamento com olhares que excluem a pessoa como alguém ultrapassado, que já não serve mais para produzir, que não tem conhecimento sobre os modismos da atualidade; logo, é alguém que pode ser descartado de várias relações e momentos sociais. Embora vários avanços já tenham ocorrido no sentido de respeitar a pessoa idosa nas suas necessidades e ações, ainda se têm preconceitos quanto à sexualidade, estética, política, economia etc. Esta obra tem a sua beleza e importância justamente por tocar um tema de alta relevância social, política, cultural e psicológica. Falar do envelhecer com sabedoria aponta para uma visão de ser humano integral, holística, inclusiva, de amorosidade e ternura. O mundo globalizado, nas suas políticas públicas educacionais e culturais, necessita urgentemente acolher o ser humano como pessoa única, criativa, que grita por respeito ao seu ser e ao verdadeiro espaço social que lhe é devido. A pessoa humana tem em si o valor da vida. Ela conclama cuidado e oportunidade digna para viver um envelhecer com sabedoria e respeito à vida, que se manifesta de forma ímpar em cada um e, por suposto, traz um sentido para o mundo elevar-se humanitariamente na sua psicoecoesfera. Os seres vivos, o humano especialmente, já não aguentam mais a dor da exclusão, do desrespeito, da expropriação, do desamparo e do grito de abandono, miséria e morte. Quando o ser humano constrói relações autoritárias e discriminadoras, essas eliminam a possibilidade de vivências autênticas e de respeito entre um Eu e um Outro. A resultante disso aparece na existência fragilizada pela provisoriedade do saber e do ser no conviver. Diante das profundas mudanças que estão ocorrendo nos padrões culturais da saúde e da cultura, é preciso pensar a longevidade. Cada vez mais ela se expande, trazendo novos desafios psicossociais sobre o processo do envelhecimento. Essas mudanças, nas práticas político-sociais, demandam elaborar e oportunizar espaços para novas maneiras de ser, saber, agir e conviver. Parece que os conceitos obsoletos da “impotência da velhice” já se enfraquecem nas suas estruturas epistemológicas e vivências sociais. Isso causa impacto nas práticas e na formação humana, no sentido mesmo de se preparar para vivenciar envelhecer com sabedoria. Ou seja, compartilhar responsavelmente um processo natural-relacional de amadurecimento em que se encontra beleza, encantamento, amorosidade, autenticidade nas pequenas e grandes relações e coisas. Essa ideia implica aquele processo ecoformativo em que o ser humano determina o sentido de seu viver na vivência criativa do fluxo da própria vida, que perpassa o seu ser como um corpo-criante, que está em constante processo de transformação na relação consigo mesmo, com o outro, com o mundo e com Deus. Nesse fervilhar de perplexidades, envelhecer com sabedoria demanda saber conviver com situações em que o horizonte da vida aparece no sentimento de finitude e infinitude, de segurança e insegurança, de tolerância e intolerância, de amor e desamor, de paz e violência, de vida e morte, de abundância e miséria, de saúde e doença, de inclusão e exclusão e assim por diante. A pergunta que se faz é a seguinte: Estará o ser humano contemporâneo, dentro da formação educacional que forma para a competitividade, preparado para envelhecer com sabedoria? Maturana, na sua teoria sobre a autopoiese do ser vivo, mostra que o desenvolvimento do espírito de competição é excludente e aniquilador. Pois, na relação social, educacional entre um Eu e um Outro, não ocorre o reconhecimento autêntico, respeitoso e amoroso do valor da pessoa. Na maioria das vezes, o que acontecerá é o suprimento de necessidades de um eu em detrimento de um outro, e isto é negação, exclusão e desrespeito à vida que se manifesta como processo criativo, espiritual, em tudo e em todos e tem razão de ser em si mesma. Com base nesse raciocínio se pergunta:e longevo. A labilidade das mudanças, o ritmo acelerado dos acontecimentos, a facilidade dos rompimentos, a predominância da existência sobre orientações absolutas, a ética relativista, a saliência do indivíduo nas instituições, a guinada linguística, revelando a força das falas coletivas e provisórias, a vulgarização e exaltação da sexualidade, transformaram o casamento longevo em uma realidade pouco considerada. Quando desejado, porém, muitas vezes a rotina, a incapacidade criativa e as mediações empobrecedoras fazem com que as relações do casamento longevo se mostrem pouco interessantes, senão, apenas suportáveis e/ou violentas. Especialmente nessa etapa, embora também seja característico a outras fases da vida, a sexualidade humana torna-se bem mais reativa à afetividade, entendida no presente texto como o cultivo à ternura nas relações conjugais. Para Norgren et al. (2004), a intimidade no relacionamento conjugal longevo está diretamente associada à saúde física e mental e à qualidade de vida dos indivíduos, embora se considere que o fato de um casamento durar até a velhice não implique, necessariamente, ser uma relação satisfatória para os cônjuges. Por outro lado, deve-se levar em conta que nem todas as pessoas que vivem maritalmente parecem estar sexualmente satisfeitas. Alie-se a isso o fato de a maior prevalência de problemas psicossexuais da terceira idade não ter origem biológica, mas decorrerem, principalmente, de fatores ligados ao parceiro, tais como falta de ternura e empatia. Assim, quando a relação afetiva do casal é satisfatória, a frequência das relações permanece estável, diminuindo significativamente a ocorrência da disfunção sexual em qualquer idade (VASCONCELLOS et al., 2004). Independentemente da idade dos cônjuges, uma das maiores tragédias da vida de casado é que muitos maridos e mulheres, mesmo depois de vários anos de vida comum, ainda se encontrem em um nível de comunicação que reflita relações meramente convencionais (DEECKEN, 1998), prejudicando a satisfação conjugal. Satisfação conjugal é, sem dúvida, um conceito subjetivo, implicando ter suas próprias necessidades e desejos satisfeitos, assim como corresponder, em maior ou menor escala, ao que o outro espera, definindo um dar e receber recíproco e espontâneo. Relaciona-se com sensações e sentimentos de bem-estar, contentamento, companheirismo, afeição e segurança, fatores que propiciam intimidade no relacionamento, decorrendo da congruência entre expectativas e aspirações que os cônjuges têm, em comparação à realidade vivenciada no casamento (NORGREN et al., 2004, p. 576). A conjugalidade como meio de felicidade possui certas condições de funcionamento independentemente da heterogeneidade das formas de realizar a união e as cumplicidades. A complementaridade é, sem dúvida, uma categoria fundamental, e pode ser em termos sexuais, intelectuais, temperamentais, afetivos, sociais, estéticos. De alguma forma, o casal, em sua reciprocidade, avalia o grau de seu bem-estar pelos resultados mais ou menos permanentes dos benefícios biopsicossociais, bem como a qualificação sobre as relações praticadas na conjugalidade ou fora dela. É possível, então, dizer que a complementaridade pode ser avaliada pelo poder que possui no desenvolvimento proximal. A solidão seria seu inverso. O casamento é capaz de explicitar os potenciais que cada um dos parceiros sozinho não teria condições de desenvolver. O casamento bem construído e com base em projetos significativos pode produzir efeitos positivos na construção da personalidade. Cada um dos parceiros possui, é verdade, a sua identidade, mas o sentido da complementaridade faz com que a conjugalidade seja um meio de apoio e de reinvenção que a solidão não poderia produzir. Uma visão otimista e humana é proposta por Norgren et al. (2004), no sentido de resgatar o valor das relações conjugais da terceira idade. As relações duradouras e satisfatórias permitem que o sistema conjugal se torne um refúgio em relação aos estressores externos, bem como a matriz para o contato com os outros sistemas sociais, o que é bastante relevante ante à longevidade crescente da população idosa. Desse modo, a relação conjugal pode se transformar em fonte de crescimento e aprendizagem, se houver espaço para as diferenças e trocas pessoais (p. 576). A desqualificação social da velhice e, sobretudo, do casal longevo e de suas possibilidades de manifestação sexual, muitas vezes, perturba a estabilidade socioemocional ou conduz ao desgaste do casal. Bursztyn (apud OLIVEIRA, 2002) aponta para o processo de violência social mais ou menos encoberta, através da elaboração de um discurso ideológico da desqualificação. Grupos humanos, de diversas maneiras, padecem da influência perniciosa de um discurso socialmente gerado, o qual acaba por inseri-los numa formatação pouco adequada ao desenvolvimento satisfatório. Os membros desses grupos passam a assumir as formas impostas do discurso, e a isso se ajustam como se fosse algo natural, tornando comprometido seu desenvolvimento. O processo do discurso da desqualificação tem por finalidade desvincular os envolvidos e eliminá-los de uma inserção social mais interessante. Os casais longevos sofrem, assim, de diversas maneiras, mas a principal reside em infligir-lhes a incapacidade de mobilidade social, afetiva e intelectual, desprezando seu potencial de realização de um casamento denso de realizações. A família, sendo um dos espaços preferenciais de organização da personalidade, em razão do pensamento cultural, nem sempre oferece à díade inspirações e ações capazes de significar e/ou de ressignificar a vida dos cônjuges. Os casais, por sua vez, presos às linguagens culturais, assumem os condicionamentos do macro e do mesossistema, ineficazes para imprimir significado e valor à conjugalidade longeva. No caso dos idosos e, em especial, em sua conjugalidade longeva, existem clamores pendentes que expressam a dominação e a exclusão, mostrando que o seu universo não é cultural e socialmente relevante. O velho que ensurdece, a boca escondida, o silêncio dos tios e pais em abandono, as dores escondidas para não incomodar, as falas e olhares pacienciosos revelam algumas formas pelas quais se inscrevem os costumes de uma ética escravizante. A velhice, portanto, está inserida numa relação hierarquizada, onde quem tem o poder da força, do dinheiro, da produção e da política constrói a gestão das relações sociais, autorizando o ser de alguns a ser mais que outros. Na verdade, a questão de existir e ser não depende somente do sentido voluntarista de cada um. As instituições representam as formas sociais de dizer da constituição humana. Seus conteúdos é que vão dizer do desenvolvimento e das maneiras de realizar a vida. A vida dos mais velhos e de sua conjugalidade está perpassada pela autorização e pelas outorgas constituintes das idades. A personalidade do ser idoso e as formas do afeto obedecem às inscrições sociais. Assim, o cotidiano das instituições não pode ser entendido como arranjos ingênuos, mas como instrumento de reprodução dos interesses historicamente constituídos. Eles estão inseridos nas dobras das palavras, dos gestos, dos interditos, dos olhares e, mesmo, das legislações e dos costumes inscritos no silêncio recorrente. Os arranjos da velhice dependem dos olhares e significados concedidos. As representações sociais, portanto, são a fonte primária para entender os caminhos de superação dos preconceitos e das tipificações aprisionantes em que são detidas a personalidade e a existência dos mais velhos. O cotidiano busca orientar o corpo e as funções mentais superiores e primárias, isto é, fundamentalmente, como os mais velhos devem pensar e amar. Diz-lhes sobre suas habilidades e capacidades, seus sonhos e suas direções. A família, especialmente, é o lugar onde residem os desejos sociais pelos quais a sociedade diz das formas como seus membros devem encaminhar os seus projetos e os passos para seu cumprimento. Dessa maneira, a conjugalidade é moldadae a díade vai expressando no decurso de seu ciclo vital os comportamentos esperados. As representações sociais contidas dentro das famílias sutilmente escalam procedimentos e, quando ainda não foram organizadas, em razão da novidade de eventos, como no caso do casamento longevo, ocorrem transferências generalizantes. Alguns casais, apesar das generalizações de fragilização do casamento e da velhice, conseguem obter lucro e autoridade para desempenhar sua existência de forma generosa, porquanto obtêm dos filhos e netos substancial apoio e, de si mesmos, mediações para a realização de suas identidades. Outros, porém, conseguem realizar-se, fugindo dos esquemas tradicionais da composição da díade, ou maximizando os recursos disponíveis. De modo especial, em face da conjugalidade, percebe-se que as conquistas sociais pouco revelam de interessante para o casal longevo. As construções éticas, com seus costumes, não permitem espaços afirmativos de identidades felizes, ficando os casais à mercê de sua própria sorte. Aí ficam como se já tivessem esgotado a sorte conjugal e a sorte humana. É nesse sentido que se propõe uma renovação dos estoques culturais para a melhoria das condições e situações de vida para os idosos em sua conjugalidade, que Restrepo (2000) chama de direito à ternura. Estamos acostumados a opinar sobre os grandes direitos públicos, aqueles que figuram em códigos e constituições, fazendo parte dos discursos políticos e promessas eleitorais. Fala-se do direito ao emprego, da habitação, do direito à educação, ao sufrágio, enfim, de todos aqueles direitos que podem figurar como reivindicações sociais de transparência inquestionável. Mas parece suspeito e até ridículo falar daqueles direitos da vida cotidiana que permanecem confinados à esfera do íntimo, sem que ninguém ouse pronunciar seus nomes nas reuniões em que se debatem com grandiloquência os problemas políticos da época. A esta categoria de direitos domésticos, relegados e vergonhosos, pertence o direito à ternura (p. 9). Dentro desse contexto, insere-se a questão do direito dos mais velhos a redefinirem o sentido de uma gestão política da conjugalidade, problematizando as rotinas do cotidiano das famílias. Nesse contexto, a conjugalidade deixaria de lado as funções sociais normatizadas que levam ao torpor afetivo, para a reprodução e a produção, e menos para a descoberta de caminhos alternativos de um casamento existencial significativo. Basta lançar um olhar à família para darmos conta do montante de sofrimento que carregamos e constatar que aquilo que por definição deveria ser um ninho de amor se converte frequentemente em foco de violência. Basta “farejar” a relação de um casal para perceber os maus-tratos e a dor que se aninham na convivência diária. Dor e entorpecimento de que ninguém escapa em nossa cultura, pois, se alguma coisa está democraticamente distribuída na sociedade contemporânea, é o torpor afetivo (RESTREPO, 2000, p. 20). O estado de pobreza afetiva ou de analfabetismo emocional, inegavelmente, é um fator redutor do afeto e da generosidade nas relações conjugais. O grau de pobreza pode evidenciar o nível de sofrimento nas relações do casamento longevo com a diminuição da ternura. O pressuposto básico da conjugalidade é o de entendê-la como uma instituição também paciente da lei da entropia, necessitando, em face dessa tendência, de fatores positivos concorrentes para a preservação e o desenvolvimento ou desqualificação de sua estrutura. Concorrem, para sua preservação e desenvolvimento ou desqualificação: as condições biopsicossociais, isto é, aqueles fatores que falam ou contribuem através de experiências físicas, afetivas, intelectuais e sociais para a significação ou desestruturação dos parceiros; as situações — aqueles fatores temporais e geográficos que são expressos por eventos e espaços diversos que podem condicionar a ambos, porquanto conjuntamente vivenciados, densificando- se ou não as identidades dos sujeitos interlocutores das condições e das situações. Se, de fato, as disposições, as condições e as situações foram ou tornam-se empobrecidas, fragiliza-se a conjugalidade, e podem-se precipitar rupturas mais ou menos dramáticas e, mesmo, fatais para a sobrevivência da estrutura do casamento. As perdas dos atributos sociais qualificadores da vida do casal limitam a admiração mútua, tornando-se o outro uma espécie de velho desconhecido. Assim, a perda do papel protetivo e de comportamentos centrados nas ações socialmente admiradas redunda em minimização do encantamento dentro da díade. As dificuldades na conjugalidade parecem se expressar semelhantemente às limitações de estilos psíquicos de sujeitos que adoecem. Se é verdade que se pode afirmar que o casal compõe uma pessoa que se funde e, ao mesmo tempo, delineia as individualidades, também pode ser verdade que essa pessoa, imaginariamente constituída, igualmente pode adoecer e comprometer o desenvolvimento dos parceiros. “O surgir da patologia é considerado um momento crítico na evolução de um grupo que parece incapaz de usar de recursos num determinado estágio de seu desenvolvimento” (GROISMAN, 1996, p. 49). Essa ideia pode indicar a possibilidade de haver um bloqueio no qual os parceiros não apresentam disponibilidade afetiva, nem compreensão capaz e vontade para sair da circularidade, ou falta-lhes mediação adequada. A busca de novas opções para um futuro mais denso de significados para ambos necessita de mediações, pois a visão ecológica do desenvolvimento humano faz acreditar que os estreitamentos comunicativos parecem constituir o maior limite na superação das patologias da conjugalidade. O olhar sobre as perspectivas da conjugalidade longeva passa pela problematização de algumas questões que regularmente são vistas como normais ou naturais, mas poderiam ser diferentes se avaliadas pelo olhar da institucionalização dos eventos. Isso significa que, pela construção social dos eventos e das representações, são definidos ontologicamente os seres e as instituições. Assim, a problematização qualificar-se-ia pelo questionamento de alguns conceitos de casamento. O conceito sobre o casamento não foge às promulgações históricas e culturais, muitas vezes apresentando constrangimentos humanos. As perspectivas de um casamento obrigatoriamente indissolúvel, marcado pela crença de que a díade realiza uma união feliz para sempre ou que o amor deve vencer qualquer barreira, podem não ser positivas. A reflexão que se pretende não é negar a magia do sonho dos nubentes nem afastar as bênçãos sagradas, mas avaliar a possibilidade de que o cotidiano, com suas circunstâncias, e as pessoas, com seus potenciais e renovação de influências, podem cumprir melhor a história da conjugalidade. Se não houver atenção constante aos objetivos que movem a conjugalidade, é possível que haja esvaziamento da identidade dos parceiros. A identidade existencial da díade alimenta-se pela reciprocidade de interesses, mas pode, com o tempo, cada um localizar-se em si mesmo, perdendo a conjugalidade seu desempenho e significado. O par inicial lembra fusão, apaixonamento, e sua imagem revela pouco espaço para a individualidade e um espaço imenso para a conjugalidade. “Nós” torna-se, assim, muito maior que o “eu” e o “tu” (ANTON, 2002, p. 58). Em defesa da ternura no casamento longevo: intervenções possíveis Ao contrário do que se pensa, o casamento pode, também, tomar um rumo diferente na idade avançada. Para Deecken (1998), a reflexão benéfica nessa etapa da vida poderia abrir novas possibilidades em direção de um amor mais profundo e mais íntimo, com base na comunicação e no desenvolvimento interpessoal de maneira plena na conjugalidade. A capacidade de renovação dos estoques reguladores de ternura não depende somente do potencial dos indivíduos ou das díades. As relações sociais e sua forma de interagir com as pessoas de um grupo social determinam fortemente os potenciais de desenvolvimento, sendo por elas modulados os impactos. Assim como afirma Vigotsky (1993),ao mesmo tempo que existem as possibilidades de mediações simbólicas para o desenvolvimento cognitivo, também pode haver mediações para aquisição de novas formas de arranjos afetivos. Simplificando, é possível afirmar que ao menos duas formas podem ser constituídas e constituidoras de novos arranjos afetivos. Quando os indivíduos, a díade ou os grupos não conseguem expressar adequadamente a forma estética de ser em conjunto, há tanto a probabilidade de intervir para corrigir a trajetória da expressão afetiva quanto a de provocar com novos estímulos para alterar positivamente o estado afetivo. Ambas as maneiras podem ser levadas a efeito de maneira autoritária ou democrática, sendo as formas autônomas sempre mais positivas que as heterônomas na constituição de atitudes. Piaget (1996) enfatiza isso de maneira convincente. Em primeiro lugar, há o respeito que chamaremos unilateral, porque ele implica uma desigualdade entre aquele que respeita e aquele que é respeitado: é o respeito do pequeno pelo grande, da criança pelo adulto, do caçula pelo irmão mais velho. Este respeito, o único em que normalmente se pensa e no qual Bovet tem insistido muito especialmente, implica uma coação inevitável do superior sobre o inferior; é, pois, característico de uma primeira forma de relação social, que nós chamaremos de relação de coação. Mas existe, em segundo lugar, o respeito que podemos qualificar de mútuo, porque os indivíduos que estão em contato se consideram como iguais e se respeitam reciprocamente. Este respeito não implica, assim, nenhuma coação e caracteriza um segundo tipo de relação social, que nós chamaremos de relação de cooperação (pp. 4-5). Significa, assim, que para terem efeitos duradouros e recíprocos, as interferências não podem ser realizadas sem uma ativa participação dos indivíduos ou dos parceiros envolvidos. As intercessões conscientemente assumidas pelo indivíduo ou pela díade podem, portanto, modificar positivamente a trajetória das relações afetivas. Nesse sentido, a manutenção do amor e do matrimônio em casais longevos pode representar uma efetiva estratégia de intervenção em prol do prolongamento da vida autônoma, bem como da transformação da imagem negativa da velhice. O casamento longevo, desde que baseado em uma relação de apoio mútuo e felicidade, pode implicar efeitos favoráveis à saúde física e mental dos idosos, contribuindo para a manutenção do seu bem-estar e qualidade de vida (VERA; DÍAZ, 2006). Daí vem a questão do que fazer. Uma das possibilidades é o casal realizar uma terapia conjugal para arejar a relação que está em processo de deterioração. Outra alternativa mais simples reside no fato de a díade buscar por conta própria os meios para criar situações e condições de maior plenificação da conjugalidade. A terceira possibilidade, mais complexa, não exclui as duas primeiras: implica a possibilidade de o casal buscar apoio de outras fontes do mesossistema. Independentemente da alternativa escolhida, na prática, somente a reflexão sobre o próprio pensamento pode iniciar o processo de emancipação. A dúvida sobre os comportamentos, o estranhamento sobre as ideias, o debate e o estudo envolvido com uma espécie de abdução, ou seja, uma releitura imediata sobre falas constrangidas ou sobre silêncios e atos falhos, a revisão dos desconfortos, podem dar início a uma rede que põe em suspenso o que deve ser mudado. Mas quando as possibilidades são limitadas, parecem ser necessários ensaios e ainda mais outros que consigam responder melhor aos costumes dados como verdadeiros. Assim, a obediência feminina diante dos comportamentos repetitivos e sem graça do companheiro, os olhares vazios de sentido existentes na díade, os descuidos insuportáveis podem estar acompanhados de uma redefinição. Os corpos envelhecidos e não tocados, o sexo abandonado, a repetição sem alma podem ser entendidos como condenações projetadas por hegemonias que desqualificam desejos. Somente um espírito aventureiro pode revisitar esses demônios históricos e exorcizá-los, povoando corpos e casas com decisões carregadas de sensibilidade e motivação. Nesse sentido, a reflexão profunda possibilita que o macrossistema possa ser examinado para ser não só reconstruído através de novas inscrições, como também superado pela crítica ao discurso tradicional sobre o casamento. Para Bronfenbrener (apud KREBS, 1995), o macrossistema se manifesta na continuidade de formas e conteúdos encontrados em toda a extensão da cultura. Dos sistemas em análise, este é o que mais dificilmente pode ser redefinido, pois nos preexiste e foi formulado historicamente, traduzindo as representações e expectativas das realidades comungadas numa determinada comunidade. O macrossistema, de certa maneira, é o pensar que está presente na corrente sanguínea de um espaço territorial e que determina os consensos e a moral tida como normal e normatizadora de comportamentos. O macrossistema é constituído das linguagens que disciplinam os afetos, os corpos e a sociedade e que, mais ou menos, controlam os seres humanos em sua dependência. Existe uma espécie de amordaçamento oculto presidindo a todos. O lugar para tanto começa no mesossistema e no microssistema, uma vez que não é possível lutar contra os moinhos de vento, ou melhor, contra o espírito do tempo e do espaço de uma forma abstrata. Os espaços de luta devem ocorrer lá onde as verdades históricas são institucionalizadas e reificadas e, muitas vezes, consagradas. O mesossistema compreende as inter-relações entre dois ou mais ambientes em que a díade está ou necessitaria estar envolvida para aperfeiçoar seu desenvolvimento. É nesses ambientes e, de modo especial, nas instituições que o casal vai levar adiante suas projeções e sonhos. No mesossistema, a conjugalidade necessita de uma rede de apoios pelos quais as atividades vão revelar o grau de densidade social e amorosa pelo qual a díade pode se ressignificar. As famílias dos filhos casados ou não, a Igreja, os movimentos sociais, as escolas e mesmo o lugar de trabalho são os espaços onde são produzidas as atividades molares, isto é, aquelas atividades que, conforme Bronfenbrenner, possuem certa persistência temporal e uma significância para o casal. Nesse universo, assim como no microssistema, acontecem também as estruturas interpessoais e os papéis. O significado das identidades estabelecidas no microssistema, por certo, não dá conta da conjugalidade, uma vez que a identidade existencial necessita da comunhão social mais aberta para ampliar socialmente o sentido do casamento longevo. As situações sociais provocam vigor no microssistema da conjugalidade, quando existe mútua admiração nas relações com as instituições com as quais a díade se ocupa e se preocupa. Poucos ainda duvidam de que a capacidade humana de existir e desenvolver-se depende do grau de comunicação que se estabelece com o espaço social onde se vive e da obtenção de reconhecimento por sua existência. A quem compete a responsabilidade de firmar vínculos e criar condições para a fixação de laços importantes para os mais velhos? Os laços que permitem a sensação de pertencimento ainda são constituídos pela família e pelas instituições. Quando os mais velhos diminuírem as probabilidades dos vínculos, em razão de perdas ou afastamentos dos filhos ou dos companheiros de trabalho, da vizinhança e de outros lugares de encontro sistemático, podem estar ameaçados em suas possibilidades de laços de ternura. A certeza do valor e a sensação de pertencimento não podem ficar sem o devido cuidado, sob pena de esvaziarmos o sentido da vida dos mais velhos. Por estas razões o casal, os filhos, parentes, e as instituições públicas e privadas não se podem furtar à preocupação de atender vigorosamente os laços de significação e ressignificação dos idosos, perguntando-se constantemente a quem pertencem e como pertencem. Concluindo As diversas situações do tempo podem oferecer variadas condições para a promoção do desenvolvimento da conjugalidade tardia. Ao se limitarem as possibilidadestradicionais de generatividade, ou seja, as condições próprias da reprodução e da produção, o casal, muitas vezes, por falta de discursos sociais e outorgas, começa uma relação depauperada com interesses individuais não comuns à díade. Os diálogos e ações conjuntas da díade alimentavam externamente o casal. A casa, os filhos, o trabalho, os convites sociais, as realidades políticas, a vida vicinal exigiam uma presença qualificada e intensa. Essas realidades, com seu potencial afetivo, aos poucos, podem tornar-se limitadas, em razão dos costumes históricos; a díade acaba se depreciando, e os sujeitos envolvidos perdem sua qualidade. Por outro lado, diz Norgren et al. (2004, p. 583): Talvez o ser humano deseje coisas semelhantes para si mesmo, ou seja, ser amado, respeitado, sentir-se seguro, compartilhar desejos e sonhos, ter suas necessidades físicas, emocionais e espirituais satisfeitas, bem como ter a possibilidade de dividir tudo isso com alguém especial ao longo da vida. A conjugalidade na velhice necessita, pois, de mediações para representar- se melhor e, na reciprocidade dos parceiros, oferecer amor, palavras, ações e caminhos mais adequados para a formação da identidade. De gestos toscos em torno do corpo, da mente e da sexualidade, poderiam surgir movimentos de reconhecimento público e particular. Os benefícios sociais de novas aprendizagens fariam com que se promovesse não somente o casal, mas todos os que estão próximos. A transformação dos laços sociais de compromissos socialmente impostos em compromissos de um tempo social para si próprio pode constituir uma oportunidade de redefinição de identidade nos desejos livremente tomados. O casal, diante da diminuição dos compromissos sociais do trabalho para o tempo pessoalmente administrado, pode auferir vantagens para a díade. Tanto as escolhas do fazer individual como as do fazer do casal podem constituir-se em motivo de admiração mútua e renovação de laços afetivos. Nesse sentido, a idade avançada parece oferecer tanto a possibilidade de compreender a necessidade de tais relações profundas quanto o tempo de ir- lhes ao encalço, de desenvolvê-las. Assim, o casamento poderia ser mais proveitoso, se homens e mulheres estivessem conscientes dos diferentes níveis de relações pessoais e da imensa possibilidade de comunicação existencial que representa a vivência da conjugalidade. Na comunicação existencial, nenhuma outra finalidade está em jogo, a não ser o verdadeiro bem de ambas as partes: despertam mutuamente as energias latentes e levam-nas a um desenvolvimento total. Deste modo, cada uma dessas pessoas, por assim dizer, “cria” a outra (DEECKEN, 1998, p. 71). 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O aumento da expectativa de vida — mais de trinta anos no último século — deveria estar acompanhado de uma evolução também na expectativa de saúde, afinal são inúmeros os avanços na área tecnológica, tanto quanto no campo das ciências da saúde. A realidade, porém, nos impõe um grande desafio, que é transformar esses ganhos em benefício para a sociedade, superando estigmas, exclusão e descaso. Isso exigirá profundas mudanças na forma como conduzimos nossas relações e nossa maneira de viver; é imprescindível que se revise o conceito de cuidar daqueles que necessitam ser cuidados em razão da fragilidade, doença ou senilidade. Envelhecer não significa, necessariamente, adoecer, mas na idade avançada o desenvolvimento de agravos é mais frequente, como o aumento de doenças crônicas, que podem levar a deficiências físicas, funcionais e psicológicas. O idoso poderá desenvolver graus variados de incapacidade, principalmente se estiver associada a multipatologias. Essa situação poderá ocasionar diversos transtornos ao idoso, aos familiares, à sociedade e, também, às instituições prestadoras de cuidados de saúde, as quais poderiam estar mais bem preparadas para um cuidado mais humanizado (LITVOC; DERNTL, 2002). Embora a maioria das pessoas envelheça sem grande comprometimento, é importante considerar que a frequência das doenças crônicas e a longevidade são consideradas as duas principais causas do crescimento das taxas de idosos portadores de incapacidades. Para muitas famílias, ter um idoso sem independência e autonomia pode ser uma situação mantida no âmbito familiar dos domicílios ou nas instituições asilares, também conhecidas como “instituições de longa permanência para idosos” (ILPI). Cuidar de um idoso no lar requer a disponibilidade de um membro da família para o exercício deste papel ou a contratação de um cuidador, o que demanda recursos financeiros, nem sempre compatíveis com a situação familiar. A indicação da permanência dos idosos incapacitados sob os cuidados de seus familiares ainda é a tendência atual em muitos países e no Brasil. Todavia, as estruturas familiares, no mundo inteiro, estão sofrendo modificações e, quando ocorrem de modo concomitante velhice e doença, muitas famílias não conseguem assumir as atividades cuidativas de seu ente querido no meio familiar. Ainda, cuidar de alguém em situação de doença ou fragilidade durante as 24 horas do dia, sem descanso ou folga, não é tarefa fácil. Assim é que muitas famílias não se sentem em condições de assumir este cuidado, e a opção, então, é colocaro idoso numa ILPI. Às vezes, a própria pessoa não tem familiares e escolhe a internação como única possibilidade diante do medo de ficar doente e sozinha. A procura por instituições prestadoras de serviços a esta clientela, em termos de internação e atendimento prolongado, tende a aumentar. Essa realidade conduz a que outras formas de atenção e cuidado sejam pensadas, visto que, nesses ambientes, muitas vezes as práticas de cuidado aos idosos acabam por criar um cotidiano esvaziado de significado e bastante empobrecido. Como exemplo, há pessoas que passam os dias sentadas diante de um aparelho de televisão ou inertes num leito sem qualquer ocupação. A não existência de atividades empobrece a vida desse idoso; ao contrário do sujeito ativo e criativo, que age sobre o mundo em que vive. Segundo Boff (1999), cuidar é mais que um ato; é uma atitude de compromisso, de responsabilidade e de interesse genuíno pelo outro. Nesse sentido, o cuidar pressupõe colocar-se ao lado do sujeito, interessar-se pelo seu desconforto, sua fragilidade e seu sofrimento. O cuidado com o outro, com os pobres, oprimidos e excluídos; o cuidado com o nosso corpo, na saúde e na doença; o cuidado com nossa alma, seus anjos e demônios interiores; o cuidado com nossos sonhos... Tudo isso implica uma atitude ética fundamental e uma convivência em solidariedade, compreensão, compaixão e amor. Em suma, cuidar acarreta uma relação ética. Nessa direção, parece-nos imperativo salientar o pensamento de Asmann e Mo Sung (2000), que entendem a ética como o saber situar-se no mundo como ser solidário. Não é essa uma tarefa das mais fáceis, tendo em vista que para cuidar do outro precisamos admitir que não existe um sentido único, nem uma verdade única das coisas, o que significa, ainda, fazer uma leitura mais holística acerca da pessoa e dos resultados de suas interações com o meio (URRUTIGARAY, 2004). Todo ser humano busca se tratar pela própria vontade de sobreviver, e se cuidará segundo os seus valores de vida e amor-próprio; contudo, em alguns casos, fica também na dependência da vontade de que outra pessoa faça isso por ele. A atitude de cuidar surge da criatividade humana, da sensibilidade diante das trocas com outrem e das condições naturais da capacidade pessoal não só de gerar novas situações, mas também de executar uma ação de acordo com seu estilo ou modo de ser, fazer e interagir, e de sua própria forma de apresentar ou representar o produto ou acontecimento de tal ação. Cuidar pode ser entendido, de acordo com Ostrower (1996), como um processo criativo que abrange a capacidade de compreender, relacionar, ordenar, configurar e significar, ou, ainda, conforme Lahorgue (2004), de repensar nossas relações para além do imediatamente perceptível, de modo a redimensionar nossas consciências. Cuidado e conforto fazem parte, originalmente, do discurso do sagrado e também estão inseridos no discurso da vida. Se a vida é eminentemente uma manifestação do sagrado, quando as ações são somente de cuidado para com o corpo, e não para com a alma, pode-se dizer que não há cuidado e que essas ações tampouco são oferecedoras de conforto (SANTIN, 1998). Na perspectiva daquele que sofre, o cuidado precisa ser coerente com o nível de conforto desejado. De acordo com Boykin (1998), promove conforto quem está presente em sua totalidade perante a inteireza da pessoa atendida; para o outro, essa experiência do conforto só é vivenciada em relações fundamentadas no respeito. Tal concepção se contrapõe, e muito, ao que vemos hoje, quando o modelo predominante de relação é analítico e reducionista. É o momento em que observamos um certo “endeusamento” da tecnociência. Cabe-nos, porém, perguntar: De que vale um ambiente tecnicamente adequado, se o ser humano muitas vezes é entendido como um produto descartável? (PORTELLA; BETTINELLI, 2004). Os profissionais da saúde e da educação, por meio da arte, têm a possibilidade de auxiliar os outros seres humanos, que é o objetivo primeiro das profissões de ajuda. Pela arte desenvolvem-se os valores essenciais da pessoa, é possível conhecê-la melhor para poder cuidar dela de maneira adequada. Desse modo, ressaltamos a importância da ligação entre arte, educação e saúde. Ocupar-se do idoso requer novos investimentos em termos de estudos e de proposições de alternativas para o seu cuidado no âmbito das ILPI. Nesse contexto surge a arteterapia, como proposta terapêutica apropriada para a intervenção junto ao idoso; portanto, trata-se de uma alternativa de cuidado. Cuidado e conforto sempre fizeram parte da atividade da saúde e da educação, porém, geralmente, a atuação dessas áreas centra-se no modelo de intervenção tradicional, altamente tecnicista e fundamentado na proposta assistencialista. Como processo de cuidado, a arteterapia, pela essência de sua ação terapêutica, pode possibilitar atividades de conforto ao ser humano idoso que se encontra em condição de fragilidade e sofrimento. A utilização dessa arteterapia está direcionada a todos aqueles que se interessam pela busca do bem-estar, como uma reflexão do desenvolvimento da personalidade, das relações sociais e da solução de conflitos (URRUTIGARAY, 2004). Ela pode ser utilizada em geriatria e gerontologia como suporte terapêutico para pessoas idosas, a fim de estimular a criatividade, permitindo a descoberta de uma nova socialização e o restabelecimento da confiança. A arte facilita a expressão de alguns processos internos pela presença do material entre o terapeuta e o idoso. O uso da arteterapia no trabalho com pessoas da terceira idade tem sido registrado por Costa (2003), quando relata as transformações ocorridas em idosos institucionalizados, visto que a pessoa sai da posição incômoda de perceber- se como um inútil e passa a se ver como alguém que cria. Esse tipo de terapia leva ao autoconhecimento e à autoconfiança, aspectos essenciais para a pessoa idosa aproveitar ao máximo o próprio potencial (SOUZA, 2002). A arteterapia também encontra na ludicidade uma contribuição para a promoção da saúde e do bem-estar. Segundo Saviani (2003), existem pontos comuns entre elas, pois ambas exploram a criação. O exercício da arte num espaço-tempo terapêutico e lúdico facilita múltiplos modos de expressar e comunicar, transforma o ambiente e o humor da pessoa, ajudando na recuperação de sua saúde. Arteterapia e ludicidade, portanto, podem atuar juntas no tratamento da dor, do desconforto, da rigidez, da inércia, promovendo qualidade de vida, espontaneidade e conforto, acolhendo o ritmo de cada um ao manifestar seus conteúdos internos. Estudos desenvolvidos por Filipetto (1999) e Acosta (1999) apontam os benefícios físicos e mentais do uso da ludicidade no trabalho com idosos, envolvendo atividades físicas, recreativas e socioculturais. Dentre esses benefícios se destacam uma vida com mais qualidade e autonomia, aumento no nível de percepção da corporeidade, melhora da autoestima e da autoconfiança, maior agilidade nas tarefas diárias, redução do uso de medicamentos, proporcionando alegria e restituindo a motivação pela vida. A atividade lúdica é eminentemente alegre, lembra a brincadeira, propicia a plenitude da experiência, ou seja, o ser humano, quando age ludicamente, vivencia uma experiência plena e saudável. O lúdico também traz um potencial de cura e conforto. A dor interna que a atividade lúdica elicia numa prática não é lúdica por si, no sentido que vimos compreendendo a ludicidade; todavia, viver essa experiência que mobiliza a dor pode ser um ponto de partida para externá-la, bem como para transformar uma experiência interna fragmentada numa vivência plena. Nesse sentido, as atividades que são objetivamente tomadas como lúdicas e que, por alguma razão, possam fazer emergir alguma dor, limite ou dificuldade, possibilitam ao sujeito uma solução para a cura desse sofrimento. Entendemos, pois, a cura como uma oportunidade de fazer contato com um aspecto doloroso de sua vida, mas que também aponta para um aspecto saudável de si mesmo —ao resgatar a alegria, o prazer, a convivência, a não rigidez, o perdão (LUCKESI, 2000, 2004). Fundamentadas neste marco teórico, consideramos necessário efetivar uma investigação que compreendesse as significações de idosos residentes numa ILPI, diante da vivência de uma prática arteterapêutica. Recursos metodológicos A pesquisa configurou-se como um estudo qualitativo, que se caracterizou como aquele que leva em conta o universo de significados, aspirações, crenças, valores e atitudes dos usuários. Para operacionalizar esse estudo, foi utilizado o método criativo e sensível proposto por Cabral (1998), que se efetiva por meio de oficinas. Esse método conjuga técnicas consolidadas de coleta de dados, como entrevista, discussão de grupo e observação participante, com as dinâmicas de criatividade e sensibilidade; tem no processo de criação e sensação a força produtora de dados para a pesquisa e associa ciência e arte, de modo que os participantes, espontaneamente, criem e reflitam sobre situações existenciais concretas. Os sujeitos do estudo constroem, individual ou coletivamente, o significado de suas produções artísticas, gerando temas que poderiam facilitar a organização dos dados para sua compreensão. Validar os achados da pesquisa foi possível porque o próprio grupo confirmou o que era comum e particularizou o incomum. As oficinas foram desenvolvidas ao provocarmos a produção artística com uma finalidade arteterapêutica. Dentre os recursos expressivos, destacamos: colagem, desenho, pintura, modelagem e atividades lúdicas. Para seu desenvolvimento, utilizamos uma sala designada pela gerência da instituição. Foram realizados dez encontros, com a duração média de duas horas, sempre às sextas-feiras, no turno da tarde. O período de coleta estendeu-se de maio a agosto de 2006. Os horários para realização das oficinas foram determinados em conjunto com a direção da instituição a fim de observar o que seria mais apropriado aos sujeitos, de modo que não viesse a comprometer o bom andamento das atividades habituais da instituição. As oficinas constituíram-se no espaço específico em que ocorreu o processo arteterapêutico com os sujeitos do estudo. Em geral, todas as oficinas foram organizadas em quatro fases, que se adequavam à nossa proposta e, sobretudo, às necessidades dos idosos, assim denominadas: acolhida, momento lúdico, momento criativo e encerramento da oficina. • Acolhida: também entendida como aquecimento. Nesse momento eram utilizadas, de forma associada, atividades de distensão, musicalidade, dinâmicas grupais e verbalização dos conteúdos emergentes. Dessa forma, estabelecíamos um ambiente descontraído e aprazível para iniciar o trabalho, explicando a nossa proposta para o encontro e retomando alguma questão que o grupo considerasse necessário sobre as repercussões do encontro anterior. • Momento lúdico: foi planejado com o intuito de trazer ao grupo atividades lúdicas na forma de exercícios ou jogos, por entendermos que, para adultos, essas atividades podem ser um caminho real tanto para o inconsciente se exprimir como para a criatividade desabrochar e, consequentemente, para o desenvolvimento de uma singularidade mais saudável. Para os adultos, as atividades lúdicas podem ser catárticas, ou seja, liberadoras das fixações do passado e construtoras das alegrias do presente e do futuro. Nosso intuito foi proporcionar aos idosos momentos agradáveis de brincadeiras vividas coletivamente, tendo o lúdico como mais um recurso arteterapêutico. • Momento criativo: correspondeu à utilização de recursos artísticos. Essa fase teve como meta ativar o potencial criador e transformador, abrindo mais espaço para a manifestação das emoções. Recorremos a uma variedade de linguagens expressivas para aumentar as opões de cada participante. No nosso entendimento, dispor de mais de uma linguagem favorece e atende melhor às necessidades de cada idoso. • Encerramento: fase final, entendida como um espaço de reflexão da vivência, no qual avaliávamos as atividades desenvolvidas, sua aplicabilidade no cuidado de si, do outro e as manifestações espontâneas dos participantes. Para estimular a fala dos idosos, em cada oficina, após o momento criativo colocávamos uma questão norteadora: “Como foi o encontro de hoje?”, ou “Como estão se sentindo?”. Consideramos essa etapa fundamental, tendo em vista que nem sempre a mensagem não verbal pode possuir diversos significados, o que exige uma validação verbal para auxiliar na compreensão dos signos e símbolos não verbais. O desenvolvimento das oficinas seguindo essa organização permitiu corroborar as intervenções no cuidado gerontológico, bem como oportunizou evidenciar nessa proposta o que estava adequado e o que, na nossa avaliação, ainda merecia certos ajustes. Uma ILPI localizada no sul do Brasil e mantida pela iniciativa privada foi o cenário deste estudo. Como sujeitos da pesquisa selecionamos um grupo de cinco idosos, sendo a amostragem caracterizada como proposital. De acordo com Turato (2003), a amostragem proposital, intencional ou deliberada é entendida como um grupo selecionado para o estudo científico, cuja escolha dos respondentes é deliberada de modo a trazer informações substanciosas sobre o assunto. Para inclusão dos sujeitos no estudo, os idosos deveriam atender aos seguintes critérios: ter sessenta anos ou mais, demanda espontânea, adesão mediante termo de consentimento formalizado, assiduidade. Respeitando as diretrizes da resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde — Ministério da Saúde, que delibera sobre pesquisa com seres humanos, o estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Passo Fundo e obteve parecer favorável para sua execução. Foi realizada uma pré-seleção de onze idosos com características definidas nos critérios, todavia, à medida que realizávamos as oficinas, a frequência dos participantes variava, de modo que cinco deles foram eleitos sujeitos do estudo. Respeitando o princípio do anonimato, os participantes do grupo receberam pseudônimos com a denominação de árvores. A caracterização dos sujeitos, apresentada a seguir, foi construída com base em seus relatos e em informações colhidas junto aos funcionários da instituição durante o período do estudo. • Pinheiro: setenta anos, divorciado, aposentado, procedente de um município vizinho, nasceu e criou-se no meio rural; na vida adulta passou a morar na cidade, pois as condições no interior eram desfavoráveis; obteve um emprego na prefeitura para trabalhar em serviços gerais e aposentou-se como servidor público municipal; teve dois filhos, que constituíram famílias e moram em outro estado. Está na instituição por decisão deles. Há mais ou menos dois anos teve um acidente vascular cerebral; passado o período de internação hospitalar, por ocasião da alta, os filhos providenciaram a internação na ILPI, onde se encontra até o momento. Sofre de depressão e tem história de alcoolismo. • Cedro: oitenta anos, viúvo, aposentado, natural e procedente do município sede. Contando sua história, informa que foi comerciário e motorista; tendo viajado pelo Brasil, conheceu muitos estados, passou por muitas cidades e atravessou também a fronteira do Paraguai, Uruguai e Argentina, sempre na boleia de um caminhão. Foi internado pela família com o diagnóstico de doença de Alzheimer. • Canela: setenta e três anos, divorciada, dois filhos, foi casada com Pinheiro por mais de vinte anos; na instituição viviam como dois estranhos, não se conversavam nem mantinham qualquer tipo de vínculo. Trabalhou para Jacarandá por muitos anos. Também foi internada pelos filhos e sofre de depressão. • Grevilha: sessenta e cinco anos, divorciada, aposentada, natural e procedente de um município distante 150 km da instituição; dois filhos, três netos, cuja falta lamenta muito. Relatou que estava internada na instituição porque precisava de cuidados e que os filhos eram pessoas muito ocupadas, que não dispunham de tempo para cuidar dela. Sofre de transtorno bipolar. • Jacarandá:oitenta e cinco anos, viúva, aposentada, cinco filhos, natural e procedente de um município vizinho. Foi patroa por muitos anos de Canela, a qual considera uma grande companheira; relatou fragmentos da história do casal com muita propriedade. Já no primeiro dia avisou que estava ali por pouco tempo, pois os filhos viriam buscá-la logo; em suas falas sempre se referia à saída da instituição. Tem problemas de saúde mental. As informações coletadas foram compreendidas qualitativamente, visando à descrição e significação do conteúdo abstraído do material de estudo, e permitiram a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção dos significados. Para atingir o significado manifesto e determinar os temas, utilizamos a análise temática proposta por Minayo (1996). Vivências possíveis: reinventando o processo de ser e estar numa ILPI No espaço das ILPI muitos idosos não se sentem integrados ao fluxo da vida e acabam sucumbindo ao retraimento, à angústia e à depressão. Não conseguem tolerar o mundo da forma como se apresenta, o passado parece um refúgio distante, o futuro é incerto e o presente mostra-se muitas vezes sombrio e desinteressante. A institucionalização pode ser uma das situações estressantes e desencadeadoras de depressão, levando os idosos a passarem por diversas mudanças, considerando que se apresenta como uma das formas judiciosas de isolamento social. Essa condição leva à perda da identidade, da liberdade, da autoestima, bem como ao estado de solidão e, muitas vezes, à recusa da própria vida, o que determina a alta prevalência de doenças mentais nos asilos (CARVALHO, FERNANDEZ, 1996; PIZARRO, 2004). A participação nessa proposta de estudo parece ter levado os idosos a exercitarem as habilidades de recriar-se, reinventar o momento e recriar o contexto, confirmando a chancela da principal característica dos seres vivos, a criatividade. Tais habilidades também nos envolveram em nosso trabalho de pesquisadoras, pois, para cuidar do idoso mediante essa proposta, foi necessário sair do nosso próprio círculo e entrar na galáxia do outro, um outro que nos obriga a tomar posição porque fala, provoca, evoca e convoca (BOFF, 1999). Estar presente no mundo como sujeito criativo tem sido o maior desafio enfrentado pelos idosos, os quais têm pouco espaço de expressão. Desse modo, os achados apontam que a vivência de uma prática arteterapêutica oportunizou o reinvestimento na realidade possível, na medida em que utilizamos regras e conteúdos do campo da arteterapia, proporcionando um cuidado criativo. Para cuidar criativamente, no entendimento de Tavares (2002), é mister buscar a essência da pessoa, que jamais adoece, compreendendo o sentido de seu sintoma, escutando sua dor sem repressão, resgatando sua cidadania e inteireza. Foi na anuência desta certeza que cada oficina foi planejada e implementada. Observamos que, ao longo dos encontros, alguns idosos possuíam limitações reais ou potenciais e, outros, embora não as tivessem, as imaginavam. No quadro 1 apresentamos uma sequência de cenas envolvendo dois sujeitos, cuja situação reflete as vivências possíveis, seguindo um compasso, na forma de reinventar seu modo de ser e estar na ILPI. Quadro 1 – Recorte de cenas de um processo de ser e estar numa ILPI Sujeitos Cenas Expressões e vivências Pinheiro Cena 1 Eu sou muito novo para estar aqui, esse aqui não é um lugar para uma pessoa como eu. Tenho só sessenta e um anos, eu ainda posso trabalhar. Estou a contragosto aqui. Me botaram aqui, mas eu não quero ficar aqui... Já faz dois anos que eu estou aqui (primeiro dia, ao se apresentar). Cena 2 Olha que eu nunca tinha feito nada disso aqui. Gostei muito... Vou ficar esperando vocês, sexta-feira, aqui (primeiro dia, ao final da oficina). Cena 3 Eu fiz as coisas da minha morada […] a gente começa a se lembrar das coisas, e vai fazendo […] Aqui a gente não tem nada para fazer, então isso é muito bom, pois o tempo passa que a gente nem vê (segundo encontro). Cena 4 Quando eu começo a desenhar, me vem na cabeça as coisas lá do interio... Eu me lembro de um pé de jabuticaba, ele é tão grande, mais tão grande, e sempre carregadinho de fruta (quarto encontro). Cena 5 Sabe que essas brincadeiras animam a gente; a gente fica até mais esperto (sétimo encontro). Cena 6 Quando faço isso (referindo-se ao momento criativo-desenho), eu me animo muito. A gente começa a lembrá do tempo antigo... Foi um tempo tão bom, pena que hoje a gente tenha que ficar num lugar desses. Se a gente pudesse sair de vez em quando pra passeá, vê outras coisas, mais não dá... Fazê o quê! Ainda bem que tem vocês aqui que fazem esses divertimentos com a gente, seria bom se pudesse ser sempre assim (nono encontro). Grevilha Cena 1 Aquela música me tocou lá no fundo da minha alma, me fez lembrá das minhas netas […] da saudade que eu tenho […] me trouxe tanta coisa na lembrança... Chorei que me lavei toda, mas me fez tão bem, gostei tanto (relatando os acontecimentos do dia – terceiro encontro). Cena 2 O outro dia eu não pude fazer parte do grupo, fiquei sentida […] eu tava meio atacada, daí a gente toma aqueles remédios e só dorme. Eu gosto assim de ficar aqui... A gente vai fazendo as coisas, a gente brinca e daí o tempo passa ligeiro que a gente nem vê. É um dia que a gente fica mais leve, tem até mais disposição (quinto encontro). Cena 3 Me faz tão bem esse divertimento, o jogo, as brincadeiras, assim de bola... Me deixa mais esperta, eu até pareço outra (sétimo encontro). Cena 4 Eu gosto das músicas, eu me lembro do tempo de moça, das coisas boas da vida, dos namoros. Sabe que aqui até fica mais divertido quando a gente brinca desse jeito (oitavo encontro). Por meio do fazer lúdico e criativo, o idoso adquire novas formas de percepção e ação que podem provocar importantes mudanças no seu estilo de vida na esfera de uma ILPI. Ele pode reinventar a sua presença no mundo. Desvelaram-se nas cenas os sentimentos de cada um diante do tempo-espaço da oficina e, também, da ociosidade e da solidão. No desenrolar do processo arteterapêutico, os idosos foram resgatando sua identidade nas reminiscências dos fatos de outrora, aspecto que percebemos ao serem interpretadas as falas e observações. Como se intui da leitura de mundo dos idosos, o impasse da institucionalização apresentou-se como uma fatalidade, expressa mais dolorosamente no início do processo arteterapêutico, até como uma perda de vida, mas, com o passar do tempo e o andamento dos encontros, algumas mudanças ocorreram. Os sujeitos tiveram reconhecidas suas subjetividades, puderam afirmar-se como parte de um contexto determinado e, ainda, comunicaram suas frustrações, desejos, interesses e questionamentos. Alguns demonstraram estar vivendo sentimentos profundos evocados pela música, como no caso de Grevilha. A música produz, de fato, reações fisiológicas cuja amplitude parece depender do conteúdo afetivo; exerce, ainda, grande poder sobre a pessoa — mesmo que o ouvinte não esteja necessariamente consciente do efeito que ela exerce sobre ele — e, desse modo, ajuda a conectar experiências perceptivas e emocionais (VIEILLARD, 2005; LELIS, 2000). Essa relação significativa, verdadeira, curadora, foi sendo construída por meio da brincadeira, do desenho, da pintura, da música, recursos que facilitaram o contato com a história de vida de cada um, com suas sensações, pensamentos e sentimentos, bastante reprimidos nesse ambiente. Provavelmente, por mais esforços que envidássemos, como pesquisadoras e cuidadoras, não poderíamos propiciar aquilo que a música oferecera a Grevilha ou que o desenho proporcionara a Pinheiro. Todavia, percebemos que a participação nas oficinas e o encontro com os recursos expressivos determinaram a evolução do estado de ambos. Então, exercitar a criatividade pode ser uma poderosa modalidade para a realização pessoal do idoso institucionalizado e a reconquista de um espaço alegre, divertido e vital. No quadro 2, apresentamos as cenas protagonizadas por Jacarandá,que é uma demonstração efetiva de sua inserção na proposta arteterapêutica. Essa conjuntura possibilita averiguar a cadência do processo de ser e estar na ILPI. Quadro 2 – Recorte de cenas da vivência arteterapêutica experienciada por Jacarandá Cenas Expressões e vivências Cena 1 Eu já vou sair, não posso ficar muito aqui. As minhas filhas já vêm me buscar, por isso que eu não vou poder ficar mais aqui (primeiro encontro — permanência na oficina, aproximadamente, 20 minutos). Cena 2 Eu gostei do joguinho, mas acho que eu já vou subir... as minhas filhas vão vir me buscar, daí elas não vão me encontrar lá. Pode ser até que no outro dia que vocês venham aqui eu não esteja mais aqui (segundo encontro — permanência na oficina, aproximadamente 50 minutos). Cena 3 Agora que já tá terminando, eu já vou subindo... eu vou pra lá, vou lá para a sala, as minhas filhas disseram que vêm me buscar. Vou falar pra elas dos meus desenhos que eu fiz (quinto encontro). Cena 4 Oi! Que bom que vocês estão aqui! Eu já estava com saudades. O que nós vamos fazer hoje? (sétimo encontro). A utilização de diferentes modalidades expressivas no processo arteterapêutico com idosos pode provocar no sujeito uma dupla experiência interior-exterior, reorganizando conteúdos existentes em sua história pessoal das imagens e na história icônica da humanidade, o que faz aflorar sentimentos e emoções até então velados (ORMEZZANO; ARRUDA, 2005). O cuidar, no entendimento de Volich (2004), pressupõe um exercício permanente de liberdade que permita ao cuidador entrar em contato com as sensações, fantasias e emoções do outro e, também, com aquelas mobilizadas em si pelo sujeito cuidado, para compreendê-las como informações importantes a respeito daquilo que ocorre no setting arteterapêutico. Portanto, é necessário, na atividade cuidativa gerontológica, além dos protocolos e procedimentos específicos, reservar um espaço para utilização dos recursos expressivos, no qual um encontro de outra ordem possa vir a acontecer. Experienciando a ludicidade no contexto da institucionalização Os idosos surpreenderam-nos a cada encontro pelo avanço, pela entrega total às atividades lúdicas, pelo entusiasmo com as brincadeiras, pelo sopro de vida demonstrado e, acima de tudo, pelas transformações evidenciadas nas vivências arteterapêuticas. No quadro 3, apresentamos uma sequência de cenas protagonizadas por Canela, cuja situação reflete as experiências vividas no contato com o lúdico. Quadro 3 – Recorte de cenas mostrando o potencial da ludicidade no processo arteterapêutico Cenas Expressões e vivências Cena 1 Me botaram aqui, eu não pedi pra vir pra cá, foram minhas filhas que fizeram isso comigo […] eu vou ficar aqui, não sei se eu quero ficar, não sei se eu vou gostar disso (apresentação – primeiro encontro). Cena 2 Mas gostei muito de ouvir as músicas... Eu tô meia lerda, eu nem conseguia quase pegá os balão, mas foi bom (final do primeiro encontro). Cena 3 Eu tô meio atacada hoje, acho que eu não quero fazer nada (início do terceiro encontro). Cena 4 Gostei muito, achei até que eu fiz uma coisa bonita! Olha só como ficou bonito! Tá tudo tão cheio de flor. Mas não é que fui eu mesmo que fiz [risos e satisfação ao contemplar sua criação] (final do terceiro encontro). Cena 5 Fazer isso me lembra o tempo da escola, das brincadeiras que a gente fazia, eu gosto muito. Eu queria ficar mais tempo aqui, fazer mais coisa, é tão bom (quarto encontro). Cena 6 Sabe, o jogo me ajuda pra minhas mãos, elas não ficam tão encarangadas (sexto encontro). Cena 7 Eu me animo tanto quanto eu posso dançar. Eu gosto muito. Tu viu, no começo eu nem conseguia pegar as bolas direito? Agora, já fiz tudo. Vendo essas coisas, fazendo essas brincadeiras, eu não paro de rir... Parece que dá uma felicidade na gente (oitavo encontro). O lúdico provoca e desperta a expressão artística adormecida em cada pessoa idosa, na medida em que o jogo é divertido e dinâmico e restabelece o sentido do prazer e da alegria; dessa maneira, enquanto se divertem, os idosos expressam e trabalham suas emoções. Luckesi (2000) destaca que a atividade lúdica é aquela que dá plenitude e, por isso, prazer ao ser humano, seja como exercício, seja como jogo simbólico ou de regra. Os jogos apresentam múltiplas possibilidades de interação consigo mesmo e com o outro. O programa do momento lúdico incluía o uso de música folclórica, cantigas de roda e cirandas, algo apropriado para cada ocasião. À medida que eram apresentadas as canções, percebíamos como isso nos aproximava do desafio de possibilitar aos participantes uma prática cuidativa grupal e, ao mesmo tempo, trabalhar individualmente memória, coordenação motora, atenção, concentração, ritmo e consciência corporal. A participação nessa atividade parece ter levado os idosos a uma viagem ao passado distante. Falavam sobre a infância, sobre sentimentos do passado, destacando mais os momentos felizes que os sofridos. A apreciação desse instante era evidenciada em cada relato, falando sobre as vivências e trazendo à tona as recordações. Eles revelavam suas preferências: alguns gostavam de ouvir música instrumental, outros de cantigas de roda e canções de ninar; também lembravam as histórias contadas. Falavam sobre as músicas, muitas conhecidas desde a infância, outras nunca ouvidas. Referiam que os momentos das práticas eram reconfortantes, fazendo-os se sentirem muito bem no restante do período. Quando o idoso traz as músicas do “seu tempo”, elas vêm carregadas de sentidos anteriores e também atuais, pois a música consegue transcender o tempo cronológico. O processo de recordação é provocado e não possui o intuito de levar o idoso a se isolar no passado, na nostalgia dos “tempos bons”. No entendimento de Tourinho (2007), trata-se de resgatar do passado os aspectos saudáveis para que possam ser reaproveitados no presente. É preciso considerar que esses idosos têm uma história de vida e que, portanto, seu cotidiano é permeado de significados, lembranças, desejos e expressões dessa história, revividos a cada atividade realizada, no modo de fazer uma brincadeira, de jogar a bola, de seguir as regras do jogo, de falar, olhar, ouvir e gesticular. O uso de atividades lúdicas, brincadeiras e jogos também se mostrou favorável na intervenção do idoso portador de síndrome demencial. No quadro 4, apresentamos uma sequência de cenas construídas com base nas nossas observações registradas no diário de campo, que apresentam a evolução manifestada por Cedro, cujo comprometimento se refere à saúde mental. Quadro 4 – Recorte de cenas mostrando o potencial da ludicidade no processo arteterapêutico junto ao idoso portador de síndrome demencial Cenas Expressões e vivências Cena 1 Acho que não vai adiantar trabalhar com o seu Cedro, pois ele tem Alzheimer... vive sempre pra lá e pra cá, não para quieto em lugar nenhum (impressões de um técnico de enfermagem, no primeiro dia). Cena 2 Permaneceu na oficina por aproximadamente dez minutos... Insistiu: “quero ir pra lá” (primeiro encontro). Cena 3 Permaneceu na oficina por quinze minutos, e iniciou as atividades lúdicas. Levantou-se e saiu (segundo encontro). Cena 4 Participou das atividades lúdicas até o fim (quarto encontro). Cena 5 Participou das atividades lúdicas e acompanhou o início do momento criativo, mas não demonstrou interesse e se retirou (quinto encontro). Cena 6 Participou das atividades lúdicas; no momento criativo observou os demais fazendo as atividades, mas não se interessou e retirou-se em seguida (sétimo encontro). Cena 7 Participou das atividades lúdicas; no momento criativo, permaneceu mais tempo na sala, conversou e depois se retirou (oitavo encontro). Cena 8 Permaneceu todo o tempo na sala, até o final do encontro, mas participou só do momento lúdico (décimo encontro). Segundo informações colhidas junto aos membros da equipe de enfermagem, Cedro era portador da doença de Alzheimer (DA) e, de fato, apresentava as manifestações e sinais compatíveis coma enfermidade. Todavia, o diagnóstico definitivo da DA somente é possível no post mortem, pelo estudo histopatológico. O que ampara tal definição, norteando o diagnóstico médico e a intervenção da terapêutica, é o curso de deterioração progressiva e irreversível que o paciente apresenta. Cedro alternava períodos de lucidez com desorientação, algo característico desse estado patológico. Contudo, isso não impediu que ele fosse, gradativamente, demonstrando mais interesse e integrando-se nas atividades, talvez pela rotinização que se mantinha dentro das oficinas. A proposta de um trabalho com ludicidade para idosos exige uma rotina diária a ser implementada e respeitada, pois a repetição é vista como um recurso que lhes fornece segurança, mantendo-os bem situados no tempo e no espaço e, no caso de jogos, facilita a aprendizagem das regras (JESUS; JORGE, 1999). Hoje a demência é reconhecida como uma síndrome caracterizada pela deterioração intelectual que ocorre no adulto ou no idoso. Caldas (2002) enfatiza que, à medida que a pessoa vai demenciando, o desempenho social fica comprometido: ocorrem alterações mentais que incluem distúrbios de memória, de linguagem, de pensamento abstrato, de percepção e práxis, falta de habilidade para desempenhar o cuidado de si e incapacidade para solucionar problemas do cotidiano. Embora a dinâmica de atenção ao idoso que vive um processo de demência tenha toda uma estrutura específica, que difere da assistência ao sujeito sem comprometimento de saúde mental, os estudos de Tavares (2002) e Caldas (2002) apontam que podemos observar, no âmbito das instituições, o despreparo profissional aliado ao medo do desconhecido, de tal modo que essa situação gera muita insegurança no trabalho dos técnicos de enfermagem com o paciente doente mental. Muitas vezes, há uma certa indisposição e, em outras, falta de investimento dos profissionais para com os pacientes demenciados, principalmente em se tratando de idosos asilados. Da descrição das cenas que envolvem o caso de Cedro depreende-se que alguns profissionais ignoram o potencial do ser humano, bem como os benefícios das atividades lúdicas na atenção aos idosos, mesmo daqueles que apresentam síndrome demencial. Em tais situações, é bem provável que numa ILPI cuja equipe partilhe dessa conduta nenhum investimento seja perpetrado. Nesse sentido, Merhy (1998) considera que, nos modelos técnico-assistenciais predominantes hoje no Brasil, as relações entre usuários e trabalhadores dos serviços de saúde produzem espaços intercessores preenchidos pela “voz” do trabalhador e pela “mudez” do usuário, como se o processo de relação trabalhador-usuário fosse mais do tipo da “intersecção objetal”, ou seja, aquela em que o sujeito está ausente no processo e quem toma as decisões totais e plenas é o trabalhador. Entretanto, cabe salientar que esse distanciamento nas relações entre sujeito cuidado e cuidador também é atribuído ao tecnicismo, carregado pela modernidade que preza por velocidade e eficiência, transformando, assim, a pessoa num sujeito apagado da relação (GUARESCHI, 1998; MACHADO, COLVERO, 2003). Ousaríamos asseverar que isso se aplica ao contexto das ILPI, pois observamos que alguns profissionais desses ambientes, na sua práxis diária, estabelecem uma atmosfera em que o centro do cuidado é o paciente, porém o cuidado resume-se à higiene, alimentação e medicação. O olhar da instituição sobre o trabalho arteterapêutico Para abordar este tema, remetemo-nos a uma lenda que traz em si uma reflexão sobre a ideia de norma, padrão e rotina, cujos resquícios trazem consequências às práticas cuidativas das instituições que não consideram o ser humano como o centro da atenção. Uma antiga lenda nos conta sobre um homem rico, poderoso, obsequioso e cortês, de nome Procusto, que tinha por hábito convidar estranhos para visitarem seu palácio. O hóspede era recebido com requinte: túnicas primorosamente talhadas, vinhos muito especiais, iguarias inesquecíveis e… um leito suntuoso. Ao visitante, porém, um único problema se apresentava: encaixar-se perfeitamente no leito. Se houvesse qualquer discrepância entre o tamanho da cama e o do convidado, este era cortado ou esticado para que se adequasse às proporções devidas. A morte era quase certa! Só poucos e raros convidados absolutamente adequados à dimensão preestabelecida alcançavam a velhice. Adentrar numa ILPI, mesmo com uma proposta esclarecida e firmada em contrato por meio do projeto de pesquisa, gerou desconfiança, insegurança e cenas inusitadas, tais como: alguém (funcionário) espiando atrás da porta durante a realização das oficinas, ou, ainda, esforço excessivo ao proferir uma espécie de elogio às criações dos idosos, seguido de uma ação na qual se mostrava total indiferença e, por vezes, até mesmo descaso para com o processo. Tais atitudes podem ilustrar a lenda nos seus aspectos mais sutis e cotidianos. O Procusto, na atualidade, saiu do recinto do seu palácio e habita nos mais variados locais, inclusive nas ILPI. Assim, “cabeças podem rolar” se ousarem interferir ou averiguar algo tão velado como o modo de ser e cuidar de algumas desses lugares. A maior parte das instituições de cuidado prolongado preocupa-se em preencher os regulamentos que descrevem os padrões mínimos que a instituição deve perfazer para cumprir a lei. Eliopoulos (2005) destaca que as necessidades dos residentes são avaliadas de acordo com a sobrevivência econômica. A isso podemos acrescentar o fato de que muitas instituições têm na sua equipe funcionários não habilitados, uma alta rotatividade de pessoal e interesses que, às vezes, parecem atender mais aos desejos dos familiares do que aos anseios dos internos. Nessa perspectiva, nossa tentativa de deslocar o olhar dos dirigentes e cuidadores asilares para as múltiplas possibilidades de cuidado integral e humanizado talvez fique mais no plano da produção de conhecimento e da exposição de uma proposta de cuidado gerontológico que valoriza o sujeito como um ser humano multidimensional, com um potencial criativo ávido. Resta saber se aqueles que virem a conhecer a nossa sugestão vão realmente conseguir enxergá-la. Reflexões finais Ao avaliar os achados do estudo, consideramos que os idosos participantes do trabalho arteterapêutico encontraram oportunidades de reinventar seu modo de ser e estar no contexto de uma ILPI. No encontro com as atividades expressivas, eles acharam formas de comunicar seus anseios, sentimentos e emoções, muitas vezes sufocados por uma internação forçosa. É importante tentar, por meio dessas possibilidades múltiplas, compreender mais profundamente o processo de cuidar o idoso com uma visão mais integradora das diversas ciências que estudam o assunto. Percebemos que tais estudos são, às vezes, estanques, observando a pessoa de uma única perspectiva; hoje se fala até em transdisciplinaridade, porém não conseguimos atingir sequer a mínima integração entre as áreas envolvidas no processo. Esperamos, com nossos achados, sugerir os diversos caminhos que podem ser seguidos para o avanço na construção do conhecimento e no cuidado gerontológico, como também colaborar com outros estudos que entendam o trabalho arteterapêutico como transdisciplinar e como processo inscrito na possibilidade de atender o ser humano integrado no ambiente, levando em conta suas dimensões física, psíquica, emocional e espiritual. Quando falamos de cuidado do idoso em ILPI, podemos afirmar que se fazem necessários espaços arteterapêuticos com recursos apropriados. Todavia, precisamos ressaltar os componentes fundamentais para que essa ideia inovadora triunfe: por um lado, os recursos humanos que vão implementá-la, ou melhor, torná-la uma realidade; por outro, a vontade dos gestores em querer melhorar a qualidade de vida dos asilados. Tarefas dessa dimensão cuidativa requerem uma formação consistente. Assim, atrevemo-nos a enfatizar a necessidade da inserção da arteterapia na qualificação dos recursos humanos, em especial de gerontologia. Com isso,não queremos dizer que em outras faixas etárias se possam ter profissionais menos qualificados, mas, sim, chamar a atenção para a educação de um profissional para o cuidado gerontológico, adotando a arteterapia como proposta terapêutica. Os desafios que emergem da problemática em questão não se limitam ao campo da investigação (ciências) ou ao contexto da dimensão cuidativa, pois têm uma forte incidência no campo da educação. De que modo os cursos da área de saúde podem trabalhar o cuidado humano integrando no seu currículo a arteterapia? Como integrar, efetivamente, no cuidado e no conforto, os procedimentos técnicos com a arteterapia? Para enfrentar esses desafios, o arteterapeuta necessita desenvolver uma percepção crítica do saber-ser e do saber-fazer. É notório que os paradigmas vigentes não estão mais atendendo às reais necessidades do segmento idoso; logo, é preciso ir além do que está posto. Assim, procuramos oferecer alguns subsídios que possam auxiliar as pessoas que trabalham direta ou indiretamente com idosos no âmbito das ILPI. Tentamos também mostrar outras alternativas de cuidado gerontológico, além dos procedimentos técnicos específicos já mencionados. Estamos cientes de que ainda há muito a ser feito para que as ILPI deixem de replicar o estilo dos hospitais e passem a considerar a população que estão atendendo, bem como suas necessidades peculiares. Sabemos que a arteterapia não oferece a panaceia para todos os males, mas temos certeza de que sua contribuição é inegável. Se o leitor ainda tiver dúvidas, basta experimentar! Referências bibliográficas ACOSTA, M. A. F. Jogos de integração do idoso de Santa Maria; atividades e atitudes lúdicas. Caderno Adulto, Santa Maria, n. 3, pp. 125-129, [s.m.] 1999. ASMANN, H.; MO SUNG, J. Competência e sensibilidade solidária; educar para a esperança. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. BOFF. L. Saber cuidar; ética do humano — compaixão da Terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. BOYKIN, Ane. A enfermagem como conforto: o artístico no cuidado. Texto & Contexto – Enfermagem. Florianópolis, v. 7, n. 2, pp. 36-51, maio/ago. 1998. CABRAL, I. E. Método criativo e sensível. In: GAUTHIER, J. H. M; CABRAL, I. E.; SANTOS, I. Pesquisa em enfermagem; novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998. pp. 177-203. CALDAS, C. P. 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Este livro se dispõe a falar sobre essas e outras questões. Vale a pena lê-lo dentro de um espírito, mesmo, de busca de novas reflexões que possibilitem novas ideias para pensar e viver o envelhecer com sabedoria. A sabedoria se sustenta na criatividade que referenda uma espiritualidade sábia, no sentido de perceber a beleza da gênese da vida no ser humano, dentro de seu contexto cultural, e que começa ontologicamente já no momento de seu nascimento. MARIA GLÓRIA DITTRICH Doutora em Teologia pelo Escola Superior de Teologia. É professora e diretora acadêmica da Faculdade São Luiz e professora titular da Universidade do Vale do Itajaí. Atual presidente da Associação Catarinense de Arteterapia – ACAT E Introdução screver sobre o envelhecer não foi fácil, mas com certeza foi uma tarefa que nos enriqueceu. Escrever sobre o envelhecer com sabedoria foi ainda mais difícil, porém nos conduziu ao autoconhecimento, e quem sabe avançamos alguns passos no nosso processo de individuação. Todo tema escolhido para escrever, pintar, esculpir, dançar, musicalizar, ou até mesmo para pesquisar cientificamente, sai das entranhas de seu autor. O pensar criativo envolve o criador, e cada partícula de seu ser se movimenta para a realização da criação artística ou investigativa. Para Jung o nosso modo de ver as coisas é condicionado pelo que somos. Não somos apenas testemunhas passivas e sofredoras de nossa época, das mudanças culturais, sociais e espirituais, mas sim construtores de nossa época, de nossas vidas e do nosso tempo. A responsabilidade e a ação pessoal trabalham direta e indiretamente sobre o coletivo. A elaboração deste livro não foi diferente, o tema surgiu ante a necessidade de suprirmos algumas carências teórico-práticas que percebemos em nossa profissão docente, em nossas atividades acadêmicas, ao formar outros profissionais que atuarão junto ao idoso. Ao mesmo tempo, falamos de nossos anseios, angústias e realizações interiores enquanto seres humanos em processo de envelhecimento. Portanto, cada um dos autores que produziu o conhecimento desta obra fez uma reflexão sobre o fato de ser idoso no mundo contemporâneo. Idoso, mas quem é idoso? O que é ser idoso? Como é o idoso? Mil perguntas e reflexões surgiram. Porém o número de respostas não foi o mesmo das questões. Pois a cada resposta surgia uma nova questão. E dentro de cada um de nós surgiam comparações entre o Eu e o Outro, e a própria visão de idoso que temos internalizada. E o tema ampliou-se. Encontramos conceitos, pré-conceitos, novas formas de se referir ao idoso, tais como terceira idade, melhor idade, idade de ouro e outras. E verificamos que a palavra velho/velha havia sido descartada do vocabulário, ou apenas era empregada no sentido pejorativo. Não foi somente a palavra que foi banida do vocabulário, mas também a pessoa, pois não há mais lugar para o velho/velha na cultura e na sociedade brasileira. O corpo envelhecido deve buscar rejuvenescimento. Mas e o conteúdo, a essência, o conhecimento que esta pessoa acumulou durante toda a sua vida, envelheceram também? Se fizermos uma comparação com a aquisição tecnológica, pode ser que sim, que esteja desatualizada. Mas, se modificarmos o ângulo de avaliação, direcionarmos o olhar sob outro prisma, descobriremos a essência profunda da sabedoria de cada um. A essência da sabedoria não consiste somente em conhecimento científico, teórico, artístico. A profunda essência da sabedoria encontra-se na arte de amar e de se relacionar com equilíbrio e harmonia. Que não é tarefa fácil. Não temos a pretensão de exaurir este tema nem de dar diretrizes exatas que finalizem as reflexões. Mas temos o objetivo de estimular o pensamento sobre as pessoas que estão vivendo mais e que merecem viver com qualidade de vida e serem respeitadas pelo que são. Quem sabe amanhã seremos uma delas. Os capítulos foram elaborados de acordo com as emoções e anseios de seus autores, que, diante de suas necessidades profissionais, buscaram respostas teóricas, psíquicas, emocionais, artísticas e espirituais. Essas respostas apontam para várias direções, porém conduzem a um único ponto, para a libertação do ser humano digno e íntegro, ou seja, para além de todos os conceitos e pré-conceitos culturais e sociais. Para isso, é necessário que o ser humano desenvolva a consciência da autovisão, do autoconhecimento, e que seja dono de si mesmo e aprenda a amar-se. Para Jung, o Si-mesmo atua como uma fonte inconsciente de vida em comunhão, do sujeito com ele mesmo e com o coletivo. A consciência do Si-mesmo afeta profundamente todas as relações, endógenas e exógenas, e leva a pessoa a apreciar o mundo a sua volta com mais interesse e com gratidão renovada. Isso faz com que outra dinâmica substitua e revitalize a que está em vigência e em estado passivo, levando o ser humano a ver o mundo de outro ângulo, descobrindo novas possibilidades e oportunidades de interagir consigo mesmo e com o outro. A vida torna-se mais leve e saudável. SONIA BUFARAH TOMMASI A CAPÍTULO 1 Sabedoria do envelhecer Sonia Bufarah Tommasi1 e José Jorge de Morais Zacharias2 Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia. Fernando Pessoa madurecer e envelhecer são condições tão naturais da vida quanto nascer e morrer, no entanto as diversas sociedades abordam esta questão de maneiras diferentes, em função de aspectos ideológicos ou culturais. As culturas tribais geralmente atribuem ao ancião e à anciã características de sabedoria e responsabilidade no ensino dos valores culturais do grupo. Podem ser conselheiros ou místicos que têm o dom de acessar o mundo dos ancestrais. Nas sociedades modernas, principalmente após a industrialização, a questão do envelhecer passou a ser considerada sob outro prisma, uma vez que o foco cultural deslocou-se para a produção, abandonando as tradições monárquicas e religiosas. Passou-se a dar importância ao cidadão capaz de sustentar a produção por meio de sua força física. Obviamente os anciãos e anciãs ficaram à margem desse novo estilo de vida, pois suas debilidades físicas muitas vezes os impediam de trabalhar numa fábrica. Com o passar do tempo, a população mais velha tendeu a suplantar em número o contingente de jovens, principalmente nos países do primeiro mundo, e este fato acarretou mudanças necessárias no modo de a sociedade lidar com a questão do envelhecer. Uma população cada vez mais numerosa de idosos exigiu que o Estado e as instituições se adaptassem para garantir a esses cidadãos condições adequadas de vida. No entanto, mesmo que as ofertas de serviços e suporte para os idosos tenham sido implementadas, as concepções acerca do que é envelhecer ainda permanecem imbuídas de valores depreciativos, advindos de épocas anteriores em que jovialidade, força e vigor físico eram fundamentais para a inserção social. As repercussões sociais decorrentes do envelhecimento foram historicamente registradas em países mais desenvolvidos — onde a população idosa cresceu mais neste último século –, tornando-se um fenômeno global somente a partir dos anos 1980. O envelhecer em si, como fenômeno de natureza bio-psico-social- espiritual complexo, repercute profundamente no ser humano, e reconhecê- lo é estritamente necessário. Somente com o reconhecimento e compreensão desse fenômeno, processo, fase da vida, é possível envelhecer com sabedoria. Apesar de se acreditar que os estudos sobre o envelhecimento são recentes, o tema já foi preocupação de muitos filósofos gregos. Para a filosofia o envelhecimento encontra-se dentro do paradoxo dos contrários juventude e velhice, que habitam e coexistem num só corpo e em uma só alma. Em um diálogo intensoambientes e ferramentas de interação. A grande rede tem se apresentado como um meio propício para o desenvolvimento de ambientes interacionistas ricos em recursos que propiciem a troca de informações entre indivíduos. Nesse sentido, é possível descrever alguns aspectos que a tornam mais interessante que os outros meios (CASTANHO; LOYOLLA; PRATES, 1999): • Independência de formato: os dados podem ser encapsulados segundo padrões específicos e transmitidos por meio da rede. Para a sua visualização correta, é necessário que o usuário possua programas para realizar a decodificação correta desses dados. Como a transmissão é padronizada por organizações independentes, não se corre o risco de dependência de um formato proprietário; • Sistema dinâmico e incremental: é um meio de transmissão no qual há uma atualização constante do conteúdo facilitada pela arquitetura cliente- servidor. Essa arquitetura permite que a informação original fique armazenada no servidor e que os clientes utilizem a mesma fonte; logo após a atualização, os clientes já têm acesso aos novos dados; • Independência geográfica: a distância entre usuário e servidor não afeta em nada o acesso aos dados. As únicas restrições são a ligação desse à internet e a disponibilidade de um aplicativo de navegação; • Independência temporal: o usuário não é obrigado a acessar os dados em determinado horário, mas sim realiza essa atividade de acordo com a sua necessidade e disponibilidade; • Integração com o ambiente computacional: como os aplicativos têm a interface quase que independente da plataforma, existe a possibilidade de execução de diferentes aplicativos a partir deste. Isso auxilia os novos usuários, que não necessitariam aprender a utilizar uma nova interface para cada plataforma; • Criação: a criação de materiais para a web ainda sofre alguns problemas, como o desconhecimento da própria web. A solução virá com o tempo e com a familiarização do mediador a ela e, também, por meio de ferramentas a serem desenvolvidas; • Comunicação: a utilização de www como nova tecnologia em interação deve-se, em grande parte, à comunicação possibilitada pela web, que permite diversos graus de interação entre pessoas, fator fundamental para a educação. A web permite diversas formas de comunicação, e com vantagens sobre a comunicação face a face. Apesar dos avanços tecnológicos, conseguir implementar um ambiente digital que não só favoreça a participação ativa do sujeito no processo de interação, a troca de ideias e as experiências entre os participantes, mas também torne possível a discussão em grupo e o trabalho cooperativo, continua sendo um desafio para as equipes de desenvolvimento desses ambientes. Um ambiente digital orientado à comunicação e à interação é, quase sempre, em primeiro lugar, um desafio lúdico que gera, naturalmente, motivação, o que é fundamental para que se efetue a comunicação. A interatividade, a manipulação e o controle do ambiente por parte do sujeito reforçam ainda mais a motivação referida e permitem-lhe sentir-se à vontade, dominando um universo que compreende e apreende mais facilmente. Por outro lado, em um ambiente como esse, a aprendizagem é realizada pelo sujeito, embora sempre com o apoio do mediador (GOUVEIA; CAMACHO, 1998). Também se pode afirmar que as dificuldades de aprendizagem são, nesses ambientes, mais fáceis de ultrapassar, já que a interatividade, a manipulação e o controle sobre o ambiente permitem uma adaptação ao tipo e ao ritmo de aprendizagem, que, associada à visualização de informação complexa de uma forma simples, facilita a superação de dificuldades de uso e acesso às tecnologias. Em um ambiente de interação, deseja-se que o sujeito esteja no centro do processo de comunicação. Cunningham, Duffy e Knuth (1993) definiram as finalidades dos ambientes para possibilitar o processo de interação-ensino- aprendizagem: • oferecer múltiplas representações dos fenômenos e problemas estudados, possibilitando que os participantes avaliem soluções alternativas e testem suas decisões; • possibilitar ao sujeito a decisão sobre tópicos do domínio a serem explorados, além dos métodos de estudo e das estratégias para a solução de problemas; • envolver a aprendizagem em contextos realistas e relevantes, isto é, mais autênticos em relação às tarefas da aprendizagem; • colocar o mediador no papel de um consultor que auxilia os participantes a organizarem seus objetivos e caminhos na aprendizagem; • envolver a aprendizagem em experiências sociais que reflitam a colaboração entre os sujeitos; • encorajar a meta-aprendizagem. De acordo com Passerino (2005), os principais requisitos para a existência de interação em ambientes computacionais interativos são: • percepção: requisito necessário para a existência de interação, exige do ambiente mecanismos que permitam “perceber” o outro no ambiente; • relação de copresença: a percepção é um requisito necessário, porém, não suficiente, isto é, além de perceber o outro é importante que seja possível detectar a copresença, ou seja, estabelecer uma relação de forma a compartilhar um contexto diluído no tempo/espaço comum entre os sujeitos; • relação de reciprocidade: estabelece-se na bidirecionalidade, na comunicação entre os participantes; • meio cultural compartilhado: com a finalidade de permitir a construção de um contexto de significados compartilhados;10 • Instrumentos de comunicação: dado que a interação acontece sempre dentro de um processo de comunicação, então a existência de ferramentas ou mecanismos que promovam a linguagem são fundamentais para permitir a interação. Um ambiente deve permitir a interação do aprendiz com o objeto de estudo, e isso não significa apenas apertar teclas ou escolher entre opções de navegação. A interação, ao ultrapassar essa barreira “tecnicista”, permite a integração do objeto de estudo à realidade do sujeito, isto é, às suas condições cognitivas, psicológicas e emocionais, desafiando-o na busca de novas possibilidades de interação e imergindo em situações que propiciam o seu desenvolvimento. A verdadeira interação em ambientes computacionais11 extrapola o universo sujeito/computador, ao transpô-la para o âmbito sujeito/sujeitos, com características diferenciadas das interações face a face amplamente estudadas pela literatura (GOFFMAN, 1981; GUMPERZ, 1982; FORMAN e CAZDEN, 1985; ERICKSON, 1991; RIBEIRO e GARCEZ, 1998; SINCLAIR e COULTHARD, 1975). Idosos, sociedade e as tecnologias de informação e comunicação A relação da imagem do idoso na sociedade vem se transformando lentamente, porém há ainda preconceito e exclusão. O termo “idoso” associa-se a aposentado, inativo e não produtivo. A sociedade propicia ao idoso uma situação cômoda, mas, ao mesmo tempo, reforça valores depressivos quando os considera desocupados e impossibilitados de realizar tarefas. De acordo com Kachar (2000, p. 97) […] a geração que nasceu e foi educada em uma época em que o tempo transcorria em outra velocidade e as tendências das situações eram a estabilidade, hoje não consegue acompanhar as modificações sociais e tecnológicas. Para a maioria das pessoas da terceira idade, o uso do computador estaria totalmente fora do seu alcance. Não envolvendo apenas motivos financeiros, mas motivos emocionais. O uso dessa tecnologia traz certas dificuldades que para nós passam despercebidas. Tudo é muito desconhecido: os ícones, o mouse, a velocidade, a dificuldade em ler na tela, o peso dos dedos sobre o teclado, a memória, a coordenação visomotora, a visão frágil para visualizar os ícones pequenos. As informações disponíveis na internet para as pessoas idosas vêm ao encontro das necessidades e expectativas de inclusão, auxiliando e possibilitando-lhes, ao mesmo tempo, construir conhecimentos e vivenciar o agora, sem desprezar as experiências e os sentimentos já vivenciados. Dessa forma, a aprendizagem não ocorre desvinculada e descontextualizada das experiências do idoso. Mais do que disponibilizar informações, a sociedade e suas instituiçõesprecisam pensar em alternativas e oportunidades para que idosos possam se apropriar desse universo tecnológico, apropriação com a finalidade de incorporação numa cultura, como domínio de modos culturais de agir, de pensar e de se relacionar (SMOLKA, 2000), uma vez que cada inovação tecnológica abre novas possibilidades de criar, relacionar-se e posicionar-se perante os outros. O não acesso à rede mundial de computadores impede que as pessoas idosas descubram as variedades de mídias disponibilizadas, como, por exemplo, sites de pesquisa, listas de discussão e programas de bate-papo. A moderna tecnologia computacional para a terceira idade é tanto desejada quanto rejeitada, pois sentimentos ambíguos se instalam na relação com a máquina. Em muitos casos, são depositadas nela angústias, ansiedades e esperanças. Quem não acompanha os avanços tecnológicos e sociais fica para trás, correndo o risco de ser ultrapassado e marginalizado pela modernidade, pelo tempo e pelos movimentos atuais. No entanto, Kachar (2000, p. 5) ressalta que […] dominar o computador é um ritual de passagem para a modernidade… Há uma busca muito forte de inserção no movimento do mundo e de estabelecer diálogo com as gerações mais novas, representadas pelos netos que sentam para ensinar a vovó a mexer no computador e pelos filhos que sentem orgulho das mães que avançam no desempenho com a máquina. Acompanhar a globalização do uso das novas tecnologias de comunicação e interação — era da informação em rede — é fácil para os jovens, porém, com as pessoas idosas esse processo é mais lento. Muitos têm grandes doses de persistência para a superação de obstáculos, vinculando a busca do conhecimento com a expectativa em conhecer e compreender o novo. Por outro lado, quando o estímulo cerebral do idoso perde a rapidez, criam-se novas dificuldades e torna-se difícil acompanhar o ritmo acelerado das mudanças. Por isso, para quem faz parte da terceira idade, preencher o tempo ocioso de uma forma útil e inteligente é uma preocupação. Os idosos estão partindo para o campo tecnológico, o caminho da informática, pois a sociedade moderna exige constante reciclagem e rapidez de raciocínio. A idade não é fator definidor das possibilidades de acesso ao computador. O ambiente educacional das aulas e das oficinas para as pessoas idosas é diferente do que frequentaram quando eram jovens. Educados numa época em que o ensino se dava pela autoridade, pela disciplina, no sequencial e no direcionamento, o jeito de resolver um problema era único, e o erro era castigado. Nesse sentido, o computador permite um leque de caminhos para lidar com uma mesma situação. Cabem ao indivíduo a descoberta e a escolha da forma de resolução por meio do tentar, errar e acertar. De acordo com Kachar (2000), a apropriação dos símbolos do computador envolve a articulação dos aspectos operacionais do equipamento, da linguagem da máquina e de uma abordagem pedagógica adequada: • Aspecto operacional: aprender a operar o computador; desenvolver a habilidade e a destreza visomotora com o mouse, as teclas e os recursos de hardware e software. • Aspecto da linguagem: leitura, interpretação e compreensão da nova linguagem tecnológica da comunicação. Trabalhar a semântica dos menus, a tradução da palavra, o contexto de origem e o conceito subjacente; • Abordagem pedagógica: utilização de um aplicativo para a promoção da comunicação/interação e para a construção do conhecimento. Num outro enfoque, Passerino e Pasqualotti (2006, p. 256) propõem outras dimensões para compreender o processo de apropriação tecnológico: • Usabilidade: termo multidimensional que se refere aos atributos necessários a um sistema para que possa ser “utilizado” adequadamente, isto é, ser fácil de aprender, eficiente, tolerante a falhas e erros e, principalmente, satisfazer o usuário com relação aos resultados obtidos a partir da utilização dessa tecnologia. • Acessibilidade: representa a facilidade de aproximação do usuário à interface, ao programa, à tela, enfim, aos recursos disponíveis no processo de interação. Enquanto a usabilidade é orientada para as expectativas e para a capacidade do usuário em entender e perceber as estratégias de utilização dessa tecnologia, a acessibilidade foca-se nas condições de uso, principalmente, em como se dá o acesso do usuário às informações disponíveis. • Conhecimento construído: dimensão focada mais na questão do indivíduo e do seu contexto social. Diz respeito à forma como as pessoas constroem conhecimento e como o adaptam a novas situações.12 Além disso, os autores destacam também que além das dimensões apontadas é possível identificar outras variáveis relacionadas com o indivíduo biopsicossocial em interação, como memória, pensamento e linguagem. Ao interagir com o computador, o idoso pode depurar o seu pensamento sobre uma situação-problema. A criação de um desenho ou a digitação e formatação de um texto são elaboradas até satisfazerem o usuário. De acordo com Valente (1993), ao aprender por meio da descoberta há uma construção e apropriação do aprendido pelo aprendiz que o modifica. Esse descobrir é também a descoberta de si próprio, sentindo-se capaz de atingir seu objetivo, revelando suas potencialidades individuais e singulares. Já Rocha (1993) descreve que um ciclo de interação com o computador leva o sujeito a depurar o seu pensamento em relação à situação-problema: descrição-execução-reflexão-depuração. Na terceira idade, a aprendizagem é compartilhada: todos verbalizam dúvidas, experiências, conhecimentos, conquistas e dificuldades. É o aprender superando-se por meio de desafios significativos, desvelando limites e possibilidades, rompendo fronteiras e desconstruindo ideias equivocadas sobre o computador e sobre si próprio. De acordo com Monteiro (2002), para as novas gerações do terceiro milênio não foi preciso a adaptação à informática, porém isso não se aplica para os mais velhos. Não se pode pensar que as novas ferramentas são exclusivas dos jovens, pois nunca é tarde para experimentar, conhecer e descobrir o novo. A partir do momento em que as pessoas idosas tomam contato com as tecnologias de comunicação, abre-se um universo de possibilidades para o desenvolvimento dos processos de interação. Esse contato muitas vezes ocorre de forma obrigatória e sem dar opção ou oportunidade ao idoso de escolhas, pois o desenvolvimento, as criações da sociedade são elaboradas e impostas sob a bandeira do progresso, dos avanços e das melhorias, porém essa não é uma visão globalizada, uma busca “de” e “para” todos. Mecanismos tecnológicos são criados para “ajudar e agilizar”, mas desconsideram-se questões de adaptação e adequação, de usabilidade e acessibilidade. Por exemplo, caixas eletrônicos substituem pessoas no atendimento bancário, mas não substituem a comunicação, a interação e os significados vinculados à linguagem humana. Dessa forma, a velhice não constitui um marco isolado no desenvolvimento vital humano, tampouco é fenômeno acidental dentro da existência. A partir da terceira idade de vida, a felicidade depende mais de como se utiliza o tempo do que de qualquer outra condição. O idoso pode se dar o luxo de fazer só aquilo de que gosta, que é agradável, confortável e importante para viver bem. Entretanto, a disponibilidade de tempo e o interesse não podem ser superados pela falta de estímulos, pelo medo do novo ou pela vergonha. Em decorrência dessas observações, ressalta-se a necessidade de promover junto às pessoas idosas estimulação constante a fim de levá-las à consciência do quanto pode ser ampliada sua capacidade não só de receber e avaliar novas situações e desafios, como também de integração e ressignificação do momento presente e de real participação no contexto sociocultural em que vivem. Assim, a educação está ligada a outros processos, como formação cultural, pessoal e cidadã. É, portanto, um conjunto de ações educativas que proporciona às pessoas idosas condições para que vivenciem e construam estruturas cognitivas, bem comodesenvolvam habilidades práticas e políticas, participando ativamente da sociedade, ao mesmo tempo que têm suas expectativas atendidas. O que se precisa é ensinar juntamente com incluir, é aprender com o construir e atender a expectativas de uma forma e com uma metodologia que realmente coloque o idoso diante das tecnologias e da realidade dinâmica e mutável que o cerca. Para promover a inclusão social ou digital, as instituições de ensino não podem dissociar o idoso de sua realidade e de suas relações com a sociedade e a família, isto é, devem promover a aprendizagem e a construção de novas relações, ou aproximar e estreitar as já existentes. O aprendizado é uma via de mão dupla pela qual os idosos têm a oportunidade de crescimento educacional e social, descobrindo o verdadeiro valor da educação, visto que aprendem e ensinam. Hoje, computadores e sistemas de comunicação são instrumentos úteis para a obtenção de informações de uma forma rápida e nunca antes experimentada pelo ser humano. Na internet esse acesso é obtido de maneira interativa e fácil, com recursos multimídias, como, por exemplo, som, vídeos, imagens e animações. Para as pessoas idosas, ela não é apenas mais uma fonte de pesquisa, pois para esse público o processo de comunicação e interação possibilita a criação de novas relações, seja pelo resgate do passado, seja pelas relações advindas da socialização no ciberespaço. Mais que uma ligação com o mundo, a web torna-se um lugar legítimo de socialização. A rede mundial que liga os computadores de qualquer parte do mundo oferece serviços, informações, diversão e possibilidade de conhecer pessoas e culturas de todos os lugares. Dessa forma, a aprendizagem cooperativa mediada por computador para as pessoas idosas encontra no cenário tecnológico atual condições propícias de instalação e desenvolvimento. O ambiente de comunicação e interação, para que se constitua como tal, cooperativo e interativo, pressupõe a presença de diversos atores, entre os quais o caring digital13 e a pessoa idosa/grupo de idosos. O caring digital faz a mediação, preparando o campo e o ambiente para tal, dispondo e propondo o acesso e a interação da pessoa idosa, seja com o computador, seja com outros idosos ou outras tecnologias, provocando e facilitando o desenvolvimento das atividades propostas. Além disso, busca interagir, estimular e reorientar a atividade de aprendizagem. Esses ambientes precisam contribuir para o enriquecimento do processo educativo como gerador de interações, e não só como indicador de caminhos. Para isso, deve-se permitir e privilegiar o debate, sugerir inovações, apresentar tecnologias que possam influir positivamente no processo de comunicação (REIS, REZENDE; BARROS, 2001). Idosos construindo relações socioafetivas no ciberespaço A velhice é uma fase natural da vida de qualquer indivíduo, e que poderia ser vivida com mais tranquilidade, preservando-se a sua autonomia. Porém, a preocupação de depender dos outros ou necessitar ser asilado acentua-se quando aliada aos problemas físicos, financeiros e à falta de apoio sociofamiliar. As questões que envolvem as pessoas idosas estão enraizadas na cultura dos povos. Com relação à educação, é preciso ter consciência de que ninguém adquiriu na juventude uma bagagem de conhecimentos que lhe baste para a vida toda, porque a rápida evolução do mundo exige a atualização contínua dos saberes. O processo científico e tecnológico e a transformação dos métodos de produção resultantes da busca de maior competitividade fazem com que o saber adquirido numa forma inicial se torne rapidamente obsoleto. No entanto, a educação ao longo da vida desafia cada indivíduo a saber autoconduzir o seu destino, num mundo onde a rapidez das mudanças se conjuga com o fenômeno da globalização e da criatividade; já os institutos de educação permanente para as pessoas idosas devem propor uma educação participativa que estabeleça o vínculo entre docentes e participantes, alternando os papéis de educando e educador. Assim, os programas oferecidos deveriam ter uma preocupação comum: atender à demanda dessa classe social. Para envelhecer com qualidade de vida, alguns aspectos devem ser considerados: situação econômica do idoso, condições que permitam o desenvolvimento e a adaptação da pessoa por meio da educação contínua e, ainda, plasticidade individual e social quanto às questões da velhice. Dessa forma, a educação é um dos meios para vencer os desafios impostos aos idosos pela idade e pela sociedade, proporcionando-lhes o aprendizado de novos conhecimentos e oportunidades para que busquem seu bem-estar físico e emocional. A ideia de que a velhice é uma fase de perdas tem sido substituída pela consideração de que os estágios mais avançados da vida são momentos propícios a novas conquistas, orientadas pela busca do prazer, pela realização de projetos adiados e de satisfação pessoal. As experiências vividas e os saberes acumulados são vistos como ganhos que oferecem elementos para se buscar novas identidades, para realizar sonhos e estabelecer boas relações intergeracionais. Os idosos, em termos numéricos, constituem hoje uma parcela da população cada vez mais representativa. Pode-se entender, então, que, por um lado, a longevidade dos indivíduos decorre do sucesso de conquistas no campo social e de saúde (STUART- HAMILTON, 2002) e, por outro, o envelhecimento, como um processo, representa novas demandas por serviços, benefícios e atenções que constituem desafios do presente e do futuro (WHO, 1998). A teoria da modernização proposta por Cowgill e Holmes (1972) descreve a relação entre o mundo moderno e as mudanças nos papéis sociais e no status das pessoas idosas. A sociedade contemporânea tem como característica a crença na racionalidade e no seu poder de libertar o sujeito de seus temores diante da insegurança da vida na terra, proporcionando-lhe uma existência mais feliz. O argumento central da teoria contextualiza que o status do idoso — definido histórico e culturalmente — está diretamente relacionado ao grau de industrialização da sociedade. De acordo com Cowgill (1974), a educação, a urbanização, a tecnologia científica aplicada à produção econômica e as tecnologias de saúde interferem nas condições do idoso numa sociedade em processo de modernização. Em relação à educação, as universidades devem propor currículos não somente para atender as demandas concretas de hoje, mas também, sobretudo, o princípio da liberdade acadêmica e da diversidade de visões, de temas, na produção do conhecimento e na capacitação de recursos humanos para satisfazer as necessidades do envelhecimento populacional. Por sua vez, o avanço da tecnologia, somado às dificuldades de acesso às novas técnicas e teorizações, causa impacto em todas as gerações e, em especial, na velhice. Por exemplo, como os jovens representam o progresso, os recursos educacionais são preferencialmente direcionados para esse segmento da população, acentuando o declínio no status dos idosos. Além disso, os bens tecnológicos de última geração contrastam com a miséria, pois o não acesso a esses bens remete à exclusão e ao isolamento social. O sistema econômico impõe-se no contexto brasileiro de uma forma mais concentrada para as pessoas que envelhecem. O idoso, por não constituir mão de obra adequada para o trabalho, é desvalorizado e abandonado pelo Estado e pela sociedade. A miséria e a exclusão que acompanham vastos segmentos da população brasileira intensificam-se na velhice. Entretanto, a mídia já consegue identificar o envelhecimento como um novo mercado de consumo. Criam- se e divulgam-se novos mecanismos de educação/atualização e comunicação/interação na internet, capazes de oferecer respostas criativas ao conjunto de mudanças sociais que redefinam a experiência do envelhecimento como uma fase de conquista coletiva. Ao justificar a importância da educação permanente, Lengrand (1970) pondera que a noção de que, na vida, ao homem lhe basta uma determinada bagagem intelectual e técnica está sendosuperada com incrível rapidez. De fato, as dimensões globalizadoras desses avanços ultrapassam as fronteiras e desafiam a educação ou a comunicação e oferecerem novas estratégias educativas ou interativas, capazes de desenvolver um processo de interação- ensino-aprendizagem em qualquer fase da vida. Segundo Ludojoski (1990), fica evidente que não se aprende na infância e na adolescência tudo aquilo de que se vai necessitar ao longo da existência, tampouco se podem adquirir ao acaso, sem a ajuda de um ensino formal, as novas e complexas formas de conhecimentos e de atitudes exigidas durante a vida. Para acompanhar a complexidade dos novos tempos, é necessário que haja uma educação contínua, permanente, que se prolongue ao longo de toda a existência humana, sem limites cronológicos e que remeta a uma nova concepção de sujeito, perseguindo, em última instância, o aperfeiçoamento integral e integrado do sujeito por meio de todas as etapas do desenvolvimento de sua personalidade. Apesar de, nos últimos anos, ter ocorrido uma disseminação do uso do computador em instituições de educação para pessoas idosas, a fim de que a informática possa auxiliar no processo de ensino-aprendizagem é preciso desenvolver ambientes digitais de comunicação que possibilitem interações entre os sujeitos envolvidos, resultando em troca de valores e modificando o indivíduo de uma maneira durável (PASQUALOTTI, 2003). Nesse sentido, com o desenvolvimento da infraestrutura da telecomunicação mundial, a internet tem sido utilizada como uma tecnologia de interação. Conforme Cerceau (1998), muitos ambientes têm sido desenvolvidos para facilitar o trabalho do caring digital em organizar e disponibilizar oficinas na web. Porém, esses ambientes consistem, basicamente, em ferramentas para tornar disponíveis conteúdos e possibilitar a comunicação entre os participantes. Oeiras e Rocha (2001) descrevem que, ao acompanhar o desenvolvimento desses ambientes, pode- se notar que eles têm facilitado a tarefa de disponibilizar conteúdos. No entanto, existem outras necessidades importantes, como as sociais e afetivas, que precisam ser supridas para o bom andamento de uma oficina de interação na qual se deseje que todos participem de forma ativa, contribuindo colaborativamente com a comunicação pretendida. Pode-se dizer que um dos objetivos de uma oficina de interação é criar uma comunidade em que todos se sintam parte e, dessa forma, tenham satisfação e o sentimento de comprometimento com o processo de interação do grupo como um todo. Segundo Haythornthwaite (1998), os elos existentes entre as pessoas têm influência sobre a formação de um senso de comunidade, os quais são fortalecidos por meio da frequência e do estabelecimento de novas relações. Em um ambiente informatizado, as pessoas podem estabelecer relações, em parte, por meio da interação que ocorre pelas ferramentas de comunicação. Entretanto, muitas vezes elas não são adequadas a um objetivo, como, por exemplo, nas discussões em tempo real por meio de bate-papo. Por um lado, o usuário não busca no computador oportunidades para programação ou para inferir nos mecanismos de comportamento das interfaces computacionais. Não há o desejo em programar o computador. Por outro lado, a busca ocorre no campo das conexões, na capacidade que as redes computacionais têm em promover a comunicação, externalizando intenções, desejos, emoções e sensações. A criação de uma rede de relações, de troca, de aprendizagem e de colaboração, integra e conecta o idoso naquilo que realmente é o seu objetivo como um ser social que vive das suas relações com o outro e com o meio, que é o de fazer parte, de interagir, de relacionar e comunicar-se. Para Lévy (1993, p. 135), “o pensamento se dá em uma rede na qual neurônios, módulos, cognitivos, humanos, instituições de ensino, línguas, sistemas de escrita, livros e computadores se interconectam, transformam e traduzem as representações”. De acordo com Kollock (1998), na literatura da área de sociologia, um dos resultados mais consistentes e fortes é o efeito positivo que a comunicação tem sobre a cooperação e a confiança. Quando as pessoas são capazes de se comunicar de forma adequada, a cooperação entre elas pode crescer significativamente. Para que isso se torne realidade, a procura de novos modelos e tecnologias de comunicação para apoio à interação deve ser orientada à construção de relações socioafetivas. Ferramenta colaborativa de interação e comunicação no ciberespaço Com relação aos sujeitos envolvidos no processo, a modo como a comunicação ocorre por meio das tecnologias apresenta-se de duas formas: síncrona e assíncrona. A primeira ocorre quando as pessoas envolvidas na interação estão simultaneamente conectadas. Essa maneira é mais comum em ambientes de bate-papo, sistemas de áudio e videoconferência. Nesse caso a troca de mensagens ocorre em duas vias, ou seja, os sujeitos podem enviar e receber ao mesmo tempo — interação “ao vivo”. Na outra forma de comunicação os sujeitos não estão conectados entre si, mas interagem por meio de ferramentas de comunicação que têm como principal característica a troca de mensagens de forma “off-line”. Entretanto, o processo de colaboração é mais do que trocar mensagens síncrona ou assincronamente. A partir do momento em que a internet propiciou o desenvolvimento de ferramentas de comunicação, a aprendizagem pela colaboração tem sido amplamente estudada por diferentes autores sob paradigmas educacionais diversos, como Perret- Clermont (1984), Mugny e Doise (1983), Vigotsky (2001), Wertsch (1988), Rogoff e Lave (1984), entre outros. No entanto, os aspectos que levam à aprendizagem pela colaboração em ambientes digitais de interação ainda estão num patamar de pesquisa. Sabe-se que a interação mediada por computador assume características diferentes das interações face a face (BERGE e COLLINS, 1995; LÉVY, 1999). Para compreender essa diferença, é necessário considerar a interação social como ponto principal para a aprendizagem colaborativa (PASSERINO, 2005). Conforme Rogoff e Lave (1984), o indivíduo vive numa comunidade em virtude do que tem em comum com os outros, o que é possibilitado pela comunicação, que é o meio pelo qual participa dessa comunidade, isto é, os sujeitos cognitivos se complementam a partir da interação social e da troca de ideias e experiências. Nesse contexto, os cinco sentidos de percepção estão a serviço da comunicação e da geração de novos conhecimentos, surgidos a partir de uma inteligência coletiva. Conforme Levy (1993), as técnicas de transmissão e tratamento das mensagens transformam os ritmos e as modalidades da comunicação de modo mais direto, contribuindo para a redefinição das organizações. De acordo com Vigotsky (1998), a habilidade cognitiva do ser humano é um “produto” gerado por uma variedade de processos históricos e ontogenéticos — processos que se originam numa linha sociobiológica de desenvolvimento. Em outras palavras, o desenvolvimento cognitivo surge a partir das mudanças de estado que ocorrem natural (biológica e de maturação) e culturalmente, pois os mecanismos utilizados pelo sujeito para operar as informações, determinados historicamente e organizados socialmente, influenciam a geração de conhecimento. Procura-se, por meio da utilização de multimídias integradas numa rede social na internet, a promoção das competências teórico-práticas, vinculando num ambiente digital de interação e comunicação os processos de saber, fazer, ser e conviver. Dessa forma, em relação aos pressupostos teóricos sobre comunicação e interação, o apoio é feito em Lévy (1993) e, além disso, busca-se referência em Vigotsky (1998), Habermas (2003) e Morin (2005). Propõem-se ações para contemplar as dimensões de interatividade, cooperação, promoção de autonomia, cognição e metacognição. Em relação à usabilidade, empregam-se os modelos mentais voltados para as expectativas e para a capacidade do sujeito em entender e perceber as estratégias de utilização de um software, isto é, o modo deconhecimento trazido pela cibercultura de Lévy (1999, p. 165): […] trata-se de uma tecnologia intelectual que amplifica a imaginação individual (aumento de inteligência) e permite aos grupos que compartilhem, negociem e refinem modelos mentais comuns, qualquer que seja a complexidade deles (aumento da inteligência coletiva). Com base nesse pressuposto de Lévy – conceito de “ecologia cognitiva”14 –, os idosos, as tecnologias intelectuais e as instituições são visualizados como nodes15 de um hipertexto e atuam como verdadeiros sujeitos, não apenas como meios ou ambientes para o pensamento. Além disso, apoia-se na teoria da reorganização de Tikhomirov, citado por Bicudo (1999, p. 286), sobre a forma como os computadores afetam a cognição humana: A informática exerce papel semelhante àquele desenvolvido pela linguagem na teoria vigotskiniana, sustentando que o computador regula a atividade humana e apresenta diferenças fundamentais em relação à linguagem. O computador pode dar feedback a passos intermediários da atividade humana, os quais seriam impossíveis a observadores externos. Segundo Lee, citado por Byrne (1993, p. 2), as instruções e conteúdos passados com o auxílio do computador podem levar os idosos a “entrarem” em mundos por meio das imagens no monitor e a aprenderem com essas experiências. As informações podem ser apresentadas às pessoas idosas num formato interessante, que permite a sua participação ativa e, ao mesmo tempo, reflete sobre os próximos passos de trabalho e ajusta-se aos níveis de suas habilidades. O autor afirma ainda que os ambientes oferecem oportunidades de o idoso expressar a sua criatividade, pois ele pode analisar as experiências de sua própria vida real, conseguindo, dessa forma, produzir uma entidade abstrata que represente essa experiência no computador. Além disso, buscam-se em Papert (1985) os princípios de uso de computador para aprender com a geometria não formal da linguagem Logo:16 • continuidade: a criação de uma obra de arte deve ter relação de continuidade com o conhecimento pessoal estabelecido de cada um, do qual possa herdar um sentido de afeição e valor, bem como de competência cognitiva; • poder: tem de motivar o sujeito a executar tarefas significativas e que não podem ser efetuadas sem o uso do computador; • ressonância cultural: o tópico de estudo deve fazer sentido em termos de um contexto social mais amplo. Para aplicação desses critérios, os idosos devem levar em conta as suas próprias experiências de mundo, isto é, o julgamento muitas vezes está baseado em crenças e na cultura em que se está inserido. Situações já experimentadas passam a ter uma pré-formatação, isto é, há uma tendência de voltarem a ocorrer da mesma forma como já aconteceram. Dessa forma, poder-se-ia dizer que existe uma estrutura de decisão: as pessoas buscam na memória os fatos e processam-nos levando em conta os mecanismos da experiência e da consciência, isto é, o cérebro funcionaria, nesse caso, como uma arquitetura computacional. Dessa forma, segundo Polanyi, citado por Winn (1993), as pessoas idosas conhecem o mundo de duas maneiras: a primeira, por meio do resultado de suas interações cotidianas, conhecimento esse que é frequentemente direto, pessoal, subjetivo e tácito; a segunda, por meio da descrição que outra pessoa faz do mundo, conhecimento dito “delegado”, “comunal”, “objetivo” e “explícito”, ou seja, é o tipo de conhecimento ensinado por alguém. De acordo com Clancey e Searle, também citados por Winn (1993), as experiências que conduzem ao primeiro tipo de conhecimento são denominadas de “primeira pessoa” e as do segundo tipo, de “terceira pessoa”. As experiências e ações que surgem do conhecimento de primeira pessoa são geralmente caracterizadas por ausência de reflexão, o que significa que a ação flui diretamente para fora da percepção do mundo, sem a intervenção do pensamento consciente. A maior parte daquilo que as pessoas idosas realizam em suas vidas diárias é alcançada deliberadamente, isto é, sem um pensamento reflexivo. Experiências de primeira pessoa são, então, naturais, não refletidas, privadas, e predominam nas interações cotidianas da pessoa idosa com o mundo. Nessa visão, interagir com um computador por uma interface é uma experiência de terceira pessoa. Por exemplo, embora seja possível dominar o teclado ou o mouse num nível de habilidade em que os sujeitos já os usam automaticamente, a informação que a máquina apresenta sempre requer deles reflexão antes das respostas, ou seja, experimentam o computador como um objeto no mundo. A distinção entre a experiência de primeira pessoa e a de terceira pessoa está no fato de a primeira ser simbólica e a segunda, geralmente, não. De qualquer modo, o computador tem seu próprio sistema de símbolos, sem o qual não se pode obter qualquer informação. Segundo Salomon, citado por Winn (1993), lêem-se textos e ícones pictóricos na tela; mostram-se dados como quadros e gráficos; ouve-se algo sobre como está o estado do sistema ou como dirigir-se ao próximo passo da interação. Todos esses símbolos são convencionais e têm de ser aprendidos em algum momento. Se o domínio de um sistema de símbolos é necessário, não é, entretanto, condição suficiente para aprender em experiências de terceira pessoa. Por exemplo, é perfeitamente possível que os idosos criem obras de arte abstratas sem aprenderem os seus símbolos convencionais, contanto que a experiência de aprendizagem seja direta, pessoal e implícita. Para que isso ocorra, as pessoas idosas devem utilizar o ambiente como um mecanismo de cognição. De acordo com Winn e Bricken (1992), a capacidade de programação das tecnologias de multimídia possibilita que isso ocorra, pois os programadores podem desenvolver estratégias pedagógicas para o “comportamento” de cada objeto no ambiente. Algumas experiências: idosos em rede A proposta “Atelier digital”,17 promovida pelo programa da terceira idade da Feevale,18 busca atender à população idosa no domínio da tecnologia. Essa proposta inovadora surgiu das percepções dos pesquisadores da instituição em relação ao motivo da procura pelo idoso dos cursos de informática. Em primeiro lugar, constatou-se que a busca do conhecimento propiciava uma atualização em relação às novas tecnologias, bem como desencadeava nesses sujeitos uma sensação de inclusão no convívio com a sociedade. A segunda percepção vincula-se à necessidade do resgate do espaço perdido perante a família, principalmente com relação às novas gerações — filhos e netos — e, em algumas situações, com colegas de trabalho. Apesar da idade, esses sujeitos mostram-se muito mais capazes e ágeis no manuseio do computador. Entendem a linguagem simbólica de janelas e botões e, ao mesmo tempo, compreendem e interagem com uma lógica computacional e algorítmica que se pode apresentar confusa e diferente daquilo que era conhecido até então. Relatos de idosos que participam de oficinas de informática demonstram que a linguagem simbólica nem sempre caracteriza um entendimento correto do seu real significado: “Quando eu aperto um botão do aparelho de TV, eu sei que ele mudará de canal, aumentará ou diminuirá o volume, ligará ou desligará. Mas no computador os botões não têm significado e não são coerentes com o que fazem. E muitas vezes não dizem o que fazem”. Compreende-se essa dificuldade, pois, ao contrário do que ocorre com uma criança no início do processo de interação com um computador, que não tem dificuldade em relacionar o botão, contendo a figura de um disquete, com a ação “salvar um arquivo”, independentemente do que signifique “salvar”, a experiência de uma pessoa idosa que não teve o mesmo contato com essa forma de representação, ou seja, a imagem do disquete, gera conflito. Relatos do tipo: “Por que então não é uma figura de um CD? O micro lá de casa grava no CD e não no disquete” são constantes durante as aulas de informática. Para que haja a compreensão do que realmente uma imagem significa em uma linguagem simbólica, significados do dia a dia doidoso precisam ser desconstruídos e entendidos de outra forma. Termos como salvar, abrir, colar, recortar, copiar, mover, configurar, salto ou quebra de página, arrastar, muitas vezes não apresentam um paralelo à vivência e experiência do idoso, o que se torna ainda mais perceptível pelo fato de cada um ter sua própria “bagagem” de conhecimentos prévios e construídos. O “Atelier digital” tem como objetivo oportunizar ao idoso a conquista do seu espaço como agente de transformação. Oriundo de uma geração que sempre deteve o poder, esse sujeito passou a conviver com uma tecnologia que não faz diferença à sua vida. Em outras palavras, o sujeito se afasta da tecnologia por motivos próprios de repúdio à inovação ou pelo entendimento das gerações mais novas que o caracterizam como alguém que não possui conhecimento e habilidade para usar toda a parafernália tecnológica disponível. Portanto, a proposta de educação para idosos, incluindo-se especialmente a informática, deve considerar essa busca das pessoas pelo conhecimento, pelo domínio e pela necessidade em buscar seu espaço de evoluir junto com as demais gerações. O que o idoso busca não é conhecer computadores e dominar sua lógica, mas apropriar-se, integrar-se, incluir-se como parte ativa e motivada em fazer acontecer na sociedade. Para Passerino e Pasqualotti (2006, p. 256): Esse público é tão exigente quanto a sociedade moderna lhe exige que seja um sujeito ativo, ou muitas vezes dentro de uma situação paradoxal, essa mesma sociedade vê o idoso como um sujeito experiente pelos processos e ações vivenciadas, mas carente de habilidades e conhecimentos inovadores. E dentro dessa realidade as tecnologias, vistas como inovação e avanço na forma de fazer, tornam-se recursos e técnicas procuradas e demandadas para proporcionarem a esses sujeitos, uma forma de se mostrarem necessários, úteis e atuantes. Outra experiência é a ferramenta InterDigital Arte,19 desenvolvida na Universidade de Passo Fundo,20 cujo objetivo é permitir o acesso, a intermediação, o acompanhamento e a alteração de desenhos abstratos criados por idosos numa rede social na internet. A característica interativa da ferramenta permite ao idoso ser autor ou coautor de uma obra de arte abstrata, isto é, a interação possibilita a criação, de forma colaborativa, de um objeto que será incorporado ao ambiente num movimento contínuo e recursivo. O relacionamento múltiplo e as conexões na rede social permitem que o idoso vivencie, num processo bidirecional e dialógico, sua condição ativa de ator do processo de comunicação e interação no ciberespaço. Referências bibliográficas BERGE, Z. L.; COLLINS, M. P. Computer mediated communication and the online classroom; distance learning. Cresskill: Hampton Press, 1995. BICUDO, M. A. V. Pesquisa em educação matemática: concepções e perspectivas. In: BORBA, M. C. 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Entretanto, o recalque do ressentimento pode se transmutar na recusa do esquecimento humilhante da exclusão que obriga ao exílio — físico ou psicológico —, e o ser humano que vivencia tal situação pode fazer da fraqueza e da marginalidade sua fonte de força e estímulo ao desafio. Com o intuito de levar adiante a investigação proposta, examina-se a obra Memórias de um pobre homem,24 de autoria de Dyonelio Machado.25 O livro, que possui caráter autobiográfico, como indica o próprio título, foi escrito na década de 1970 e publicado em 1990, cinco anos após a morte do autor.26 Chama atenção, em primeiro lugar, na leitura dessas “Imagens fugitivas” (MACHADO, 1990, pp. 15-24), o fato de Dyonelio Machado apresentar, no parágrafo de abertura da obra, uma justificativa para a escrita de suas memórias, dirigindo uma resposta antecipada a qualquer censura possível por parte da posteridade. A crítica temida pelo autor, conforme sua própria declaração, é a mesma que João Pinto da Silva, um dos primeiros historiadores da literatura do Rio Grande do Sul, endereçara ao escritor Aquiles Porto Alegre: a de não produzir reminiscências, mesmo “tendo a seu dispor um grande canal de divulgação” — o Correio do Povo — e embora fosse “testemunha pessoal” de um grupo de escritores — na condição de seu integrante — que fez parte da “vida literária” do estado (MACHADO, 1990, pp. 15-16). Como se trata de alguém que — tendo sido um ativo participante da vida política do Brasil e um ficcionista inovador — se tornou vítima da repressão por parte do Estado e, durante um longo período, viu a sua obra permanecer no ostracismo, não deve surpreender essa antecipação a uma provável censura. É de se perguntar, entretanto, se a espécie de censura de que o escritor procurava esquivar-se e contra a qual resolveu precaver-se não seria — ao contrário do que afirma — aquela que viesse a condenar a imodéstia ou vaidade pretensamente contida em seu desejo de autoria. O autor, que agora ousava fazer uso da palavra não para proferir discursos no palanque, ou para debater grandes temas na imprensa, e nem mesmo para contar a história de personagens fictícios, mas para falar de si próprio, era egresso do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e do Partido Comunista do Brasil (PCB), agremiações cujos ideários pautavam-se pelo investimento no bem da coletividade, em detrimento dos interesses individuais. Esses deviam anular-se em nome de causas que favorecessem a maioria. Avançando na leitura do texto, é possível perscrutar com mais segurança as intenções e os impulsos, conscientes ou não, que levam Dyonelio Machado a escrever, para além daquela motivação que ele mesmo revela. No segundo parágrafo, o autor menciona a escassa “vida literária” entre os gaúchos — informação que seria, no seu entender, de domínio público. Logo a seguir, há uma afirmação ambígua que faz surgir no leitor do mencionado livro a seguinte pergunta: o “mal crônico” constatado pelo escritor — e que, até então, não teria “recebido uma reparação adequada” — era a “vida literária” quase nula no Rio Grande do Sul ou a falta de registro e divulgação de “certa atividade nessa matéria”, que, embora sendo pouca, existia e não podia ser “excluída”? A segunda hipótese surge como a mais provável quando, no mesmo parágrafo, o autor esclarece que essa atividade “consiste na formação de grupos de escritores, ocasionalmente lembrados, e mesmo de alguma produção literária merecedora da atenção dos demais patrícios nossos” (MACHADO, 1990, p. 15). Talvez a reparação reivindicada por Dyonelio Machado seja a de que tais grupos passem a ser lembrados de forma mais sistemática e menos ocasional, e a de que a publicidade garanta à produção literária dos gaúchos a atenção — merecida — dos seus compatriotas. Nos próximos parágrafos, o autor confessa que, a propósito da “queixa” de João Pinto da Silva em relação ao silêncio de Aquiles Porto Alegre, naquela circunstância se irmanara ao historiador, mesmo sendo “ainda novo para semelhantes lamúrias”. Dyonelio Machado diz que lamentou com João Pinto da Silva o fato de Aquiles Porto Alegre, um dos últimos remanescentes da Sociedade Partenon Literário, haver decidido manter-se como um “manancial fechado”, como uma “fonte selada”, guardando apenas para si as experiências que vivenciara junto ao grupo (MACHADO, 1990, p. 15). Depois de caracterizar Aquiles Porto Alegre, Dyonelio Machado informa o nome do veículo no qual aquele publicava suas crônicas — o Correio do Povo — e, logo em seguida, faz conjecturas acerca dos motivos que haviam levado o representante do Partenon Literário a se calar, a não falar de si mesmo, não dando, assim, o seu testemunho sobre esse grupo, “para sempre ligado às origens do regionalismo rio-grandense”. A primeira suposição levantada pelo autor das Memórias é a de que a Aquiles Porto Alegre nem ocorrera a ideia de produzirreminiscências, pelo fato de ter subestimado o cenáculo literário de que participara, uma vez que se tratava de “uma coisa que havia sido ordinária para ele” (MACHADO, 1990, p. 16). A outra hipótese é a de que esse escritor, no seu íntimo, considerando tal tarefa um trabalho “terminal”, acabasse sempre por adiá-lo. Dyonelio Machado reincide, então, na ambiguidade que, pelo menos nessa passagem, parece ser intencional em sua escrita: o autor não esclarece se, a seu ver, a protelação da referida tarefa por parte de Aquiles Porto Alegre expressava o desejo do cronista de adiar o seu próprio fim ou se a crença de que ainda havia tempo é que o afastava do registro de suas lembranças. Dyonelio Machado contrapõe a sua posição de autor — e de velho, portanto — à opinião que ele e seus companheiros — alguns “rapazes mais ou menos poetas”, conforme esclarece adiante — tinham de si mesmos quando eram jovens e formavam o grupo que se autointitulou República do Império. Verifica-se, porém, que, embora afirme não haver qualquer modo de estabelecer uma correlação entre o grupo ao qual pertencera na mocidade e o cenáculo de que fizera parte Aquiles Porto Alegre, o autor acha diversas maneiras de demonstrar o contrário do que declara. Aliás, o raciocínio desenvolvido até esse trecho não faz outra coisa senão conduzir — ou induzir — a uma comparação e, até mesmo, a uma associação entre ele e o cronista. Como se mencionou, no período em que escreve esse texto autobiográfico o escritor se encontra na mesma faixa etária em que estava Aquiles Porto Alegre, quando deste era exigida a “produção de reminiscências”. Portanto, ambos têm de semelhante a idade cronológica e de comum o ofício — a escrita — e a pertença a um grupo. A seguir, o autor das Memórias informa que é um sobrevivente da República do Império, assim como o cronista era o último remanescente do Partenon Literário. Dyonelio Machado sugere que a única diferença marcante a separá-lo de Aquiles Porto Alegre é a alta qualidade do trabalho do cronista, mas a alusão a uma segunda diferença existente entre ambos — aquela referente à atitude tomada perante as próprias lembranças — anula ou, pelo menos, leva a questionar a primeira distinção. Caso Dyonelio Machado, de fato, pensasse dessa forma, caso não se julgasse portador de um “manancial” digno de ser exposto, por que faria questão de registrar as imagens que reteve do passado, “tarefa” a que não se propôs nem mesmo um cronista já consagrado, como Aquiles Porto Alegre? Talvez aquilo que o pudor impeça o autor das Memórias de confessar é que, na sua opinião, o fator real a distanciá-lo do integrante do Partenon Literário é o reconhecimento que teve o trabalho de Aquiles Porto Alegre como homem de Letras, repercussão essa que a sua obra, naquela altura — início da década de 1970 —, ainda não conhecera. As demonstrações de modéstia por parte do escritor, porque insistentes e exageradas, acabam soando falsas, como se pedissem a seus potenciais interlocutores uma retificação. Pode ser essa a verdadeira reparação que, conscientemente ou não, o “pobre homem” deseja, do fundo do ressentimento que mantém entremeado com suas lembranças. Talvez, a escrita das Memórias seja a forma — quem sabe a única — que Dyonelio vislumbrou de fazer justiça com as próprias mãos e, por isso, suas palavras saíam hesitantes, contraditórias, acometidas que estão de pruridos e mágoas. As vacilações e desvios estão inscritos na fala do autor. Por um lado, Dyonelio utiliza as expressões “entende-se naturalmente” e “entende-se com facilidade”, a fim de evidenciar a impossibilidade de estabelecer uma correlação entre a República do Império e o Partenon Literário, portanto, entre si próprio e Aquiles Porto Alegre. Por outro lado, aponta, de modo indireto, para a real possibilidade de se efetuar tal comparação. A tal ponto as indicações nesse sentido são recorrentes, que o paralelo se torna inevitável para o leitor mais ou menos atento. Além disso, ao falar da República do Império, Dyonelio Machado afirma: “Saiu-me o nome quase sem sentir” (MACHADO, 1990, p. 16). A menção à República do Império, cercada de cuidados, mostra: ou que o autor diz tal nome “sem querer”, por entender que o grupo — e ele próprio — devia ser lembrado por outro (provavelmente, um crítico ou historiador da literatura sul-rio-grandense) que não o protagonista da ação; ou que ele o cita de forma intencional e por desejar, com todas as suas forças, fazê-lo, embora não queira que seus leitores percebam que se trata de uma atitude deliberada de sua parte; ou, ainda, que esses dois sentimentos lutavam no íntimo do escritor. Pode ser que esse conflito, aliado à autocensura, que advinha do temor da censura alheia e a ela se antecipava, tenha levado Dyonelio Machado — estudioso de Freud — a simular uma manifestação da memória involuntária (“Saiu-me o nome quase sem sentir”). Esse artifício talvez não se tornasse perceptível se a frase fosse pronunciada oralmente; não há, contudo, como deixar de especular sobre uma possível simulação quando se pensa que, sendo essa uma frase registrada por escrito, bem poderia ter sido “corrigida” ou suprimida e que, não havendo sido, acaba por grifar não só as marcas que o autor decidiu manter e exibir, como também a decisão que tomou de não apagá-las, oportunidade da qual podia se valer se assim o quisesse. Nos próximos parágrafos, ele comenta que era comum, nos idos de 1912 — época em que os membros da posteriormente chamada República do Império começaram a se agregar —, a existência de grupos “de rapazes mais ou menos poetas” que se reuniam, com o intuito de se cotizarem e, desse modo, “poderem atender às despesas de alojamento e alimentação”; muitos eram os que montavam uma “república”. A palavra aparece assim, grafada entre aspas e acompanhada de seu significado — “‘República’… conjunto de estudantes que vivem em comum na mesma casa” —, uma vez que o escritor, conforme explica, está “a lembrar costumes de mais de meio século atrás” (MACHADO, 1990, pp. 16-17). A seguir, informa o autor que o grupo depois intitulado República do Império era constituído, a princípio, por João Leopoldino Santana, Hermínio Freitas e por ele próprio, todos alunos da escola de Afonso Emílio Meyer (tio do escritor Augusto Meyer), situada em Porto Alegre, no Centro, precisamente na Praça da Matriz. Mais tarde, agregaram-se a esses Celestino Prunes, De Souza Júnior e Alceu Wamosy. Logo após, Dyonelio acrescenta que tanto ele próprio quanto João Leopoldino Santana, nesse momento, acabavam de chegar à capital e que um dado, o local de onde vinham, tem a sua importância. Segundo o depoimento do escritor, a “circunstância importante é que esses quatro rapazes (adolescentes de menos de dezessete anos) provínhamos da fronteira: Celestino Prunes e Hermínio Freitas de Alegrete, Santana de Uruguaiana, eu de Quaraí” (MACHADO, 1990, p. 17). Mais adiante, vai destacar o fato de que também Wamosy vinha da fronteira. A circunstância referida por Dyonelio constitui mais um elo entre a maioria dos membros do grupo, já unido por interesses semelhantes e pela situação financeira desfavorável de, pelo menos, alguns de seus integrantes. Além disso, tal circunstância enfileira mais um obstáculo na série de dificuldades enfrentadas por ele: o autor não pertence ao centro; deixara a fronteira muito jovem para buscar um “lugar” na capital e, sobretudo, na história da literatura do Rio Grande do Sul. O escritor, que já havia passado pela prisão em diferentes ocasiões e já publicara inúmeros livros — alguns deles por conta própria — sem ter alcançado o merecido reconhecimento, nessa fase de sua vida, ainda parece sentir-se empurrado para as margens, para as fronteiras, pelos “demais frios”, que não o minuano, dentre os quais o ostracismo, a que responde com o autoisolamento e um aparente descaso pela opinião alheia. É curioso que, ao falar de uma região distante do centro do estado e do País, Dyonelio ressalte as semelhanças que o lugar possui com o triângulo mineiro, uma árearica e economicamente ativa, situada no centro do Brasil. Talvez o que esteja por trás desse paralelo seja uma insinuação ou uma crença — a de que a fronteira, não sendo pródiga como a região de Uberaba e Uberlândia, dispõe de outro tipo de riqueza, o talento de seus habitantes. O que vem depois da caracterização da fronteira parece confirmar essa conjectura. Trata-se de elogios à inteligência, à sensibilidade estética, ao engenho e/ou ao caráter dos membros do grupo. Dyonelio não enaltece a si próprio, ao menos diretamente, dando voltas quando se trata de comparar-se a Aquiles Porto Alegre e de justificar o registro das suas lembranças em livro, como já foi comentado. O mesmo não ocorre, todavia, nas passagens em que fala de seus companheiros, trechos nos quais predomina um tom laudatário e/ou saudosista. Talvez, com tal atitude, deseje ampliar o seu poder de “reparação”, assinalando não apenas o “lugar” que cabe a si e a seu grupo, de um modo geral, na história da literatura sul-rio-grandense, como também a posição individualmente ocupada, na “escassa vida literária” do estado, por seus companheiros, citados um a um. Esse destaque é conferido, inclusive, àqueles que permaneceram no ineditismo, algo compreensível, tendo-se em vista a amizade, a admiração que Dyonelio nutria por todos eles, mas, sobretudo, levando-se em conta que o autor das Memórias combatera contra o ineditismo de sua própria obra, contra a falta de oportunidades de reeditar seus primeiros livros e contra o descaso por parte da crítica literária, rompido, até o início da década de 1970, somente por alguns de seus contemporâneos. Logo após, conta aquilo que já havia anunciado: a circunstância que garantiu ao grupo de jovens a sua “sede própria”, o que ocorreu no início da Primeira Guerra Mundial, e a origem da denominação que essa sede — e, consequentemente, o grupo — viria a receber. O escritor esclarece que a razão que os levou, a ele e a Celestino Prunes, a alugar “uma casinha de porta e duas janelas numa rua, àquela época meio esquecida”, foi a necessidade de desfrutar um “mínimo de conforto” (MACHADO, 1990, p. 20). Esse “conforto”, que então lhes faltava, consistia em ter luz, água e esgoto. A “casinha” ficava numa “ruazinha”, e o diminutivo aqui não apenas acentua a modéstia de ambas, mas traduz, também, a afeição do autor por tais espaços. Trata-se aí da Rua Espírito Santo, que, “apesar de um tanto relegada pelos homens, descia […] numa íngreme ladeira sob a proteção divina do Espírito Santo”, cujo templo — a capela do Divino —, conhecido pelo nome de Império, ficava no começo da referida via pública. Ocorre que, naquele tempo, a Rua Espírito Santo era chamada, espontaneamente, de Beco do Império, uma vez que beco, conforme explica Dyonelio, “é o nome que se dá a uma rua estreita”. O Beco do Império, contrariando a tradição, não se transformou numa “sub-rua”, não se degradou, “como acontece com tudo que é pequeno”. Era uma rua “familiar”, que manifestava um enorme “espírito de complacência” com jovens cujo comportamento, condicionado “pela força do próprio ideal” e “pela carga do ideal que sobre eles pesava” — este último constituindo-se, possivelmente, na consciência que possuíam os moços da “missão” que lhes era atribuída, das expectativas que neles eram depositadas —, revelava-se “muitas vezes um tanto fora dos padrões habituais na zona” (MACHADO, 1990, p. 20). Prova “expressiva” dessa atitude assumida pelos jovens é, na opinião do autor, “o próprio surgimento do nome com que o grupo já tem seu pequenino lugar assegurado na história da literatura doméstica” (MACHADO, 1990, p. 21). Observe-se que, quando Dyonelio reivindica diretamente um “lugar” na posteridade para o grupo que integra, ele o faz cheio de pudores, diminuindo tanto a importância desse cenáculo e da posição que ocupa como a relevância da literatura em cuja história se insere. Porém, de modo implícito, promove uma associação entre os membros do grupo e a rua onde ficava sua sede: as informações sobre os personagens e o espaço, ao surgirem encadeadas, sugerem que — tal como a Rua Espírito Santo — esse “lugar” conquistado pelo cenáculo, ainda que “pequenino” e circunscrito ao âmbito da “literatura doméstica”, é respeitável. No que se refere aos episódios contados acerca da República do Império, cabe ressaltar não só aquilo que é recordado como também os aspectos esquecidos por tal autor. Ele se lembra, por exemplo, de que “era um tanto responsável pela casa perante o senhorio” e de que a chave a ser devolvida ao proprietário havia desaparecido porque não era usada — “a república não se fechava nunca” (MACHADO, 1990, p. 21). Parece sintomático o fato de alguém tão atento aos detalhes e dono de uma memória tão prodigiosa ter, simplesmente, apagado de suas lembranças um dado relativo ao aluguel da casa. “Creio que a casa havia sido alugada em meu nome. Disso não me lembro” (MACHADO, 1990, p. 21) — diz o autor. Talvez não seja mera coincidência a maneira como se exerceu, em relação a tais episódios, a ação da memória, que filtrou, justamente, o fator com o qual Dyonelio e seu companheiro, Celestino Prunes, tiveram, ao que tudo indica, maior dificuldade de lidar: a parte da operação que envolve uma transação financeira. Imagine-se o transtorno que o aluguel pode haver provocado na vida daqueles que, antes, não dispunham de um “mínimo de conforto” e, particularmente, na vida de Dyonelio, que vendia suas roupas usadas, por “umas pratinhas”, a fim de adquirir “um lugar no poleiro do teatro” (MACHADO, 1990, p. 20). Não se pode negar que as experiências relacionadas à aquisição de um “lugar” — no teatro ou na literatura sul-rio- grandense — foram sempre dolorosas, talvez até traumáticas, para o autor. Mais marcantes devem ter sido aquelas situações em que se tratava de garantir para si condições básicas de subsistência, como é o caso do aluguel da casa. Como o escritor esclarece em “Um pobre homem”, o terceiro capítulo de seu relato autobiográfico, esse é o título do mais antigo de seus livros de ficção, publicado em 1927, e deriva “de certa passagem, repetida até a estereotipia, de uma comédia que provocou a quem lhe assistiu um gozo só comparável em intensidade aos desgostos sofridos por quem a escreveu”. A comédia é Tartuffe e seu autor, Molière, um “pobre cômico, que, todavia, faz sua linhagem remontar ao que há de mais corajoso no racionalismo da antiguidade”. Dyonelio lembra que o assunto dessa peça “se encontra inteiro em Lucrécio”, o qual traçou, num só verso, a divisa le pauvre homme, frase que é “o programa, sempre condenado e sempre redivivo, dos que lutam contra a mentira” (MACHADO, 1990, pp. 53-54). A escolha da mesma divisa, por parte do autor, para compor o título de seu relato — Memórias de um pobre homem —, acaba gerando uma contradição, a exemplo daquela que marcava o nome República do Império: como se justifica que “um pobre homem” escreva suas memórias? Entretanto, o depoimento, de forma indireta, traz em si a justificativa para o relato autobiográfico por parte do escritor e demonstra que o paradoxo contido no título do livro é apenas aparente. Justamente em virtude das vicissitudes pelas quais passara (tal como Molière) — que lhe davam matéria para uma boa intriga — e por ser, ele próprio, nesse relato, uma encarnação do “programa, sempre condenado e sempre redivivo, dos que lutam contra a mentira”, é que se apresenta — em geral, por vias tortuosas — como alguém digno de ter memórias e de “produzir reminiscências”. O fato de demonstrar o contrário do que declara sugere, mais uma vez, o temor que nutre de ser censurado por falar de si mesmo, mas, talvez, também denuncie a forma pela qual a falta de reconhecimento por parte da crítica, dos editores e, consequentemente, do grande público acaba por corroer sua autoestima, levando-o a duvidar do talento que, no seu íntimo, acredita possuir. Após deter-se na contradição expressa no nome República do Império, Dyonelio ressalta que essa sede dera “territorialidade” ao grupo, o qual,assim como a geração que o precedera, já possuía “um espaço privativo”: a Praça da Harmonia. E, alguns parágrafos à frente, adota um tom que, até esse momento, só de leve havia marcado as páginas do livro. A saudade e a melancolia tomam conta do relato quando fala do desaparecimento dessa praça e do distanciamento de todos os elementos que compunham a paisagem da “academia literária daquele tempo” — do rio, que “se retraiu pra mais longe, por obra dum aterro e dum cais”, da lua, que mal podia ser visualizada por detrás de um casario —, bem como da morte dos amigos. Nesse instante, o “quadro” que guarda na lembrança, um “flagrante de seres humanos ladrando à lua, às vistas de um rio — que também fugia!”, é considerado “pouco” pelo escritor, que lamenta: “Mas foi tudo o que ficou” (MACHADO, 1990, pp. 22-23). Depois dessa passagem, dedicada a fixar “imagens fugitivas”, Dyonelio afirma que ele e seus companheiros formavam “um grupo de literatos” e revela: “E se ninguém o há de ver com os dados que forneço, posso assegurar que nós o víamos. Mais: e que não víamos outra coisa”. Ocorre, porém, que eles eram, de acordo com a classificação do próprio autor, “uns literatos improdutivos”. “Ou melhor”, corrige, “autoprodutivos”, pois, “em matéria de arte e literatura”, realizavam “o ideal autárquico perfeito”, sendo “os fabricantes e os consumidores”, o que, atesta ele, “terá acontecido com os poetas jovens de todas as épocas e todos os lugares”. Segundo ele, possivelmente, tal atitude fosse motivada pela “consciência de que a ‘publicidade’ demorava muito” e estava longe de seu alcance (MACHADO, 1990, p. 23). É difícil dizer, entretanto, se essa era, de fato, a consciência dos jovens ou se tal interpretação é imposta, num lance retroativo, pelo escritor, que, na hora de registrar suas memórias em livro, ainda se debate contra a falta de divulgação do seu trabalho. Dyonelio constata que, quando de sua dissolução, “o grupo nada tinha a apresentar de produção sua”. Lembra, porém, que, cinco ou seis anos após a desintegração do cenáculo, De Souza Júnior publicara Águas fortes, livro que, pelo próprio título, já se fazia “ligar […] ao ambiente de cândido devaneio estético que reinava na República do Império”. De acordo com ele, não se pode dizer que esse livro, declaradamente, “recorda tempo ou lugar com as coisas, as pessoas, os sucessos que dão consistência a noções tão vagas como essas de tempo e lugar”. Ele confessa, no entanto, não ser capaz de reler as páginas de Águas fortes sem “sentir o coração confrangido de saudade” (MACHADO, 1990, p. 23). A vontade do escritor, ao que parece, é conferir a suas Memórias a capacidade que reconhecera na obra de seu colega de ofício — a de reviver aquilo que a República do Império possuía de inefável, o seu “ambiente”, e revivê-lo da forma mais completa possível. A observação acerca da obra de seu companheiro, bem como do efeito provocado por ela pode, ainda, servir-lhe como defesa — algo em que esse homem, habituado à censura e à repressão, sempre está a pensar —, no caso de vir a sofrer qualquer acusação de falta de precisão ou de fidelidade aos fatos narrados, por parte dos futuros leitores. Afinal, De Souza Júnior provara que o texto capaz de “reviver” o passado é aquele que não se sente constrangido a respeitar determinados limites. Por fim, no último parágrafo do texto, o autor mostra que o ser humano está fadado à condição de caminhante, como se o seu andar fosse o motor a empurrar e fazer girar a roda da vida. Representando metaforicamente aqueles que o ajudam no cumprimento dessa tarefa, estão os animais de tiro. É de se perguntar quem seriam esses “animais” que imitam o ser humano para com ele melhor se irmanarem. Talvez se possa dizer que tais “animais”, os quais têm nos seres humanos “seus iguais e seus senhores”, constituem aí uma imagem transfigurada dos “fantasmas” que habitam o universo das memórias e da fantasia, fantasmas esses que são idênticos às pessoas e, ao mesmo tempo, submissos a elas ou delas dependentes, enquanto “criaturas” que não possuem uma existência autônoma. Seu poder de imitação consiste em fazer valer a força de tração que possuem, e isso remete à ideia de que essas criaturas projetadas pela mente humana é que ajudam as pessoas a carregarem o seu fardo, repleto de lembranças, ressentimentos, mágoas, frustrações, tristeza e saudade. Na tentativa de interpretar a ação recíproca aludida pelo autor ao final do parágrafo, é possível dizer que a forma por meio da qual o ser humano alivia, parcialmente, essa carga transportada por seus fantasmas, em retribuição ao auxílio que deles recebe, é desfazendo-se em parte do peso que ele próprio carrega. Isso se concretiza quando ele confere vida a tais fantasmas no plano ficcional, transformando-os em personagens. Quem sabe Dyonelio, ao final dessa primeira parte do relato no qual se torna um personagem de si mesmo, esteja a expor, conscientemente ou não, a força e o efeito terapêutico que atribui à “produção de reminiscências”, processo que parece ser capaz de auxiliá-lo na superação da dor e na elaboração das perdas. A exteriorização, por intermédio da escrita, dos ressentimentos guardados pelo autor seria, de acordo com esse raciocínio, um ato de liberação de sua parte. As ideias de Pierre Ansart (2001, p. 16) acerca do ressentimento parecem autorizar essa interpretação. O ensaísta cita Nietzsche, que elabora o conceito de ressentimento pelo cruzamento de três abordagens complementares: a histórica, a psicológica e a sociopolítica. Historicamente, explica Ansart, “o ressentimento seria o resultado longínquo de um conflito, de uma ação conduzida, no início da nossa era, pela religião judeo-cristã contra os guerreiros aristocratas”, os quais “possuíam o privilégio de poder exprimir livremente e realizar sua vontade de poder no exercício de sua dominação”. Várias “configurações idênticas” dessa guerra civil, que posteriormente se foram sucedendo no decorrer da história, também são evocadas pelo filósofo alemão. Segundo ele, dessa longa história, Nietzsche “retém sobretudo a história dos sentimentos e, essencialmente, a história do ódio”. Por outro lado, acrescenta Ansart, Nietzsche apresenta o ressentimento assim compreendido como uma “verdadeira configuração psíquica e cultural, um habitus próprio à civilização judeo-cristã, a sua pretensa moral”, cujas consequências sociais e políticas seriam “múltiplas e socialmente decisivas” (2001, p. 17). Após proceder a essa síntese do pensamento do filósofo alemão, chama atenção para o fato de que as descrições de Nietzsche são “hesitantes”, pois “insistem ora na ruminação, na incapacidade do indivíduo de manifestar seu ressentimento, ora na extensão dos signos, dos sintomas e das manifestações abertas ou desviadas dos ressentimentos”. Desse modo, o ensaísta conclui que “dificilmente se pode aceitar a hipótese de que um sentimento, do qual sublinhamos a intensidade e a força, não tenha consequências nem manifestações nas condutas dos indivíduos”. Portanto, o “ódio recalcado” ao qual Nietzsche se refere “é dinâmico, indissociável de certas aspirações, particularmente dos desejos de vingança” (2001, p. 21). No que respeita a Dyonelio Machado, é possível reconhecer em suas Memórias a interiorização do ódio, a ruminação do indivíduo, que diz identificar-se com os animais de tiro, por andar sempre em círculos na “gira da vida”, remoendo e tentando digerir os mesmos sentimentos. Também se pode verificar nesse texto e numa das entrevistas antes citadas a conversão da inferioridade em “humildade resignada” e do “ódio recalcado” em ódio de si mesmo. Expressam tais transformações a denominação que Dyonelio atribui a si mesmo — “um pobre homem” — e o fato de, em determinados momentos, julgar-se não merecedor de assinar um livro de memórias. No entanto, a incapacidade do autor de manifestar seu ressentimento não é total. Por essa razão, o “ódio recalcado” que carrega consigo, em diversas passagens, emerge e clama por vingança ou reparação. A dificuldadee profundo, no qual o início e o fim permanecem unidos, tendo o corpo como palco. Para o filósofo grego Alcebíades, o momento de se ocupar de si mesmo era a idade da passagem da adolescência à fase adulta, em que o moço deveria passar do erótico ao político. Para ele o indivíduo adulto deve se preocupar com os valores da sociedade, da cultura e da política. Já para o filósofo Platão, o pensar sobre as responsabilidades do bem-estar da pólis está nas mãos de todos. Então, a boa educação das crianças garantiria uma pólis ética e, portanto, o cuidado deveria ser permanente. Mesmo antes do século I, Epicuro escreveu: Quando se é jovem, não se pode evitar filosofar e, quando se é velho, não se deve cansar de filosofar. Nunca é muito cedo ou muito tarde para cuidar de sua alma. Aquele que diz que não é ainda, ou que não é mais tempo de filosofar, parece àquele que diz que não é ainda, ou não é mais tempo de atingir a felicidade. Deve-se, então, filosofar quando se é jovem e quando se é velho, no segundo caso […] para rejuvenescer ao contato do bem, pelas lembranças dos dias passados, e no primeiro caso […] a fim de ser, ainda que jovem, tão firme quanto um velho diante do futuro. Para Epicuro, filosofar é o grande segredo para manter a juventude eterna. Ao filosofar sobre o envelhecimento descobre-se que a vida não finda, e que a alma transcende o corpo, como em um eterno retorno, impulsionando o indivíduo para a vida, para o futuro da humanidade. Ao filosofar sobre o envelhecimento o pensamento é livre, percorre as alamedas da vida e atinge a verdade, sendo resolvidas muitas das questões sobre o mais velho e sobre o mais novo. Aprende-se a valorizar tanto um como o outro. Ambos revelam o caminho percorrido e, também, determinam o caminho a ser percorrido. O arquétipo da Velha é um dos mais conhecidos, presente nas histórias de criação, contos de fada, lendas e folclore. Por meio dessas narrativas compreendemos a beleza do envelhecer, principalmente do envelhecer com sabedoria. Dentre os muitos contos de fada, “La Loba”, a Mulher-lobo, destacou-se e se fez presente na elaboração deste texto; por isso a opção de transcrevê-lo como Estés (1996, p. 43) o apresenta em seu livro Mulheres que correm com os lobos: Existe uma velha que vive num lugar oculto de que todos sabem, mas que poucos já viram. Como nos contos de fada da Europa oriental, ela parece esperar que cheguem até ali pessoas que se perderam, que estão vagueando ou à procura de algo. Ela é circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda, e demonstra especialmente querer evitar a maioria das pessoas. Ela sabe crocitar e cacarejar, apresentando geralmente mais sons animais do que humanos. Dizem que ela vive entre os declines de granito decomposto no território dos índios tarahumara. Dizem que está enterrada na periferia de Phoenix, perto de um poço […]. Dizem que foi vista indo para a feira acima de Oxaca, com galhos de lenha de estranhos formatos nas costas. Ela é conhecida por muitos nomes: La Huesera, a Mulher dos Ossos; La Trapera, a Trapeira; e La Loba, a Mulher-lobo. O único trabalho de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva especialmente o que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia dos ossos de todos os tipos de criaturas do deserto: o veado, a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua especialidade reside nos lobos. Ela se arrasta sorrateira e esquadrinha as montañas e os arroyos, leitos secos de rios, à procura de ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca da criatura estão dispostos à sua frente, ela senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar. Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É aí que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pelos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado. La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar. E La Loba ainda canta com tanta intensidade, que o chão do deserto estremece e, enquanto canta, o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro. Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer pela incidência de um raio de sol ou de luar sobre o flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte. Por isso, diz-se que, se você estiver perambulando pelo deserto, por volta do pôr do sol, e quem sabe esteja um pouco perdido, cansado, sem dúvida você tem sorte, porque La Loba pode simpatizar com você e lhe ensinar algo, algo da Alma. La Loba trabalha muito, recolhendo ossos, principalmente aqueles que correm o risco de se perderem pelo mundo. Ela recolhe aqueles ossos que foram deixados pelo caminho ao longo de nossa vida. Recolhe os ossos que às vezes foram perdidos sem serem percebidos, aqueles que foram dolorosamente arrancados e jogados longe, aqueles que caíram depois de uma dor intensa. Ela guarda a parte essencial do esqueleto, o osso, que é relativamente permanente, simbolicamente representando a firmeza, a força e a virtude. Quando reúne todos os ossos de um esqueleto, La Loba monta a estrutura e a observa sentada ao lado do fogo. “A contemplação do esqueleto pelos xamãs é uma espécie de retorno ao estado primordial, pelo despojamento dos elementos perecíveis do corpo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 666). Junto ao fogo observa o esqueleto e pensa que, dentre as muitas canções que conhece, deve fazer uma escolha, pois para cada esqueleto há uma canção, para cada ser há um som primordial, um mantra que lhe trará vida, que o fará renascer. O som é força divina. Ao lado do fogo — Agni, o fogo terrestre — e aquecida por ele, La Loba se eleva, sente a chama celeste Surya. E o fogo Vaishvanara, que é da penetração, da absorção, faz com que neste momento ela sinta o fogo do espírito, da paixão e da emoção, então se faz presente à canção que é entoada e o esqueleto começa a ganhar carne. Com o cantar cada vez mais intenso, a criatura se forma por inteiro e sai correndo. No conto a criatura lobo se transforma em mulher. Em uma mulher que corre para uma nova vida. La Loba representa o arquétipo da Velha Sábia, encontra-se em todos os lugares e em lugar algum. Todos a conhecem sem nem mesmo tê-la visto. La Loba vive no deserto, em que a vida se apresenta condensada, intensa. Em um primeiro momento o deserto parece estéril, a vida parece não existir, e tudo que ali existe está em estado latente, ou abaixo do solo. A maioria de seus habitantes tem vida noturna. As formas de vida do deserto revelam sua beleza misteriosa. Ela transita entre dois mundos — o racional e o mítico –, faz a articulação entre eles. Esse espaço entre os mundos é aquele lugar inexplicável que todos reconhecemos, uma vez que passamos por ele. Porém suas nuanças se esvaem e têm a forma alterada. Se quisermos defini- lo, podemos recorrer à poesia, à música, à dança, à arte ou às histórias (ESTÉS, 1996). La Loba vive no deserto de nossa alma. Principalmente da alma feminina. Estés dirige seus estudos para a mulher, mas acrescentamos que La Loba também existe no homem, escondida em sua anima, e muito tem a dizer-lhe sobre a vida criativa, sobre a renovação espiritual. “Mesmo no melhor dos mundos, a alma precisa de uma renovação ocasional” (ESTÉS, 1996, p. 54). Em algum momento da vida o deserto se faz presente, tanto para mulher quanto para o homem, e é necessário renovar. Geralmente esse momento ocorre na metanoia, entre os quarenta e sessenta anos. Nesse período da vida o deserto se apresenta como uma indiferenciação inicial, no sentido de que nada existe. No deserto o sujeito analisa sua vida e verifica se alcançou ou não seus objetivos. Se tiver maturidade analisa a extensão superficial, estéril sobre a qual viveu, e aprofundaque possui de exteriorizar esse ressentimento se evidencia no plano linguístico: nos desvios, nas ambiguidades, nos períodos truncados e longos. Tais marcas, que talvez não chamassem a atenção se empregadas por outro escritor, em Dyonelio Machado — escritor de estilo enxuto, linguagem direta e objetiva, e precisão vocabular — destacam-se como se houvessem sido grifadas. Todavia, por detrás desses torneios e hesitações, surge, em certos trechos, a imagem do “Doutor Dyonelio”, que usa termos em francês e exibe a erudição, a coragem e o talento que pontuam sua atuação política e intelectual, além de converter em autoridade a sua experiência e, até mesmo, a idade avançada em que se encontra. É, portanto, o “Doutor” que reivindica, por meio de manifestações abertas, um lugar para si na história da literatura sul-rio-grandense — e até do País —, buscando a sua legitimação como escritor, algo que viria somente na passagem da década de 1970 para a de 1980. Essa reivindicação, circunscrita em “Imagens fugitivas” ao âmbito literário, alcançaria também, nos demais capítulos de sua obra, outros terrenos, principalmente o da política. Percebe-se, assim, nessas manifestações diretas do autor, o fenômeno a que se referem Bresciani e Naxara (2001, p. 9): a presença da “memória voluntária construída como estratégia de luta política, afirmação positiva de identidade pelos que se veem excluídos dos direitos à cidadania”. Por fim, cabe ressaltar que, em “Imagens fugitivas”, o ato de relatar as próprias memórias é visto, sobretudo, como um privilégio dos velhos, porque só eles acumularam vivências e lembranças suficientes, em número e intensidade, para ter o que contar. Para o escritor, o ato de “produzir reminiscências” deixa, contudo, de ser uma prerrogativa e passa a ser uma “tarefa”, quando o idoso em questão exerceu uma função social relevante. Também é preciso enfatizar que, no fragmento das Memórias de Dyonelio aqui analisado, a velhice perde o sinal negativo, de inferioridade, que a princípio o autor parece atribuir-lhe, para tornar-se, em algumas passagens, uma vantagem, constituindo-se, inclusive, em expressão de autoridade. Além disso, faz-se necessário assinalar, a título de conclusão, que o próprio escritor se apresenta, ao longo do relato, como um manancial de informações, ideias, opiniões e conflitos. Dessa forma, opõe à imagem estereotipada do velho inepto, conformado e passivo, a figura de um idoso em plena atividade intelectual, com vontade própria e sempre disposto a rebelar-se contra aquilo que contraria o seu senso de justiça. Contar para reviver o passado, mas também, e acima de tudo, para “corrigir”, de antemão, a versão da história a ser contada pelo futuro ou para minar o silêncio que foi construído em torno do seu nome e da sua obra — esse talvez seja o lema do escritor “maldito”, que arrastou a(s) fronteira(s) para o centro, editando a si mesmo. Referências bibliográficas ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento; indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2001. pp. 15-36. BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. Apresentação. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento; indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001. pp. 9-13. GRAWUNDER, Maria Zenilda (Org.). Dyonelio Machado; o cheiro de coisa viva — entrevistas, reflexões dispersas e um romance inédito: O Estadista. Rio de Janeiro: Graphia, 1995. MACHADO, Dyonelio. Memórias de um pobre homem. Pesquisa, apresentação e notas de Maria Zenilda Grawunder. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1990. P CAPÍTULO 6 Picasso como intérprete de si mesmo: afetos, ação e aprendizagem Graciela Ormezzano27 Al principio, el autorretrato es un aprendizaje, y luego se vuelve una representación; he aquí como me veo, he aquí como pienso que me vi. Picasso Considerações iniciais icasso dispensa apresentações. Foi o artista mais genial e mais bem divulgado do século XX, cuja trajetória de vida começou em Málaga, cidade meridional da Espanha, em 1881. Na adolescência mudou-se com sua família para o norte do País; depois, realizou estudos em nível superior em Madri, mas não os concluiu. Até ali é possível afirmar que havia uma grande influência paterna nos trabalhos deste artista, pois seu pai era professor de desenho e restaurador, tendo-o iniciado na formação artística acadêmica. Mais tarde, voltou a Barcelona, onde viveu uma fase intermediária entre o academicismo e o modernismo, afastando-se, então, dos ensinamentos do pai na procura de um modelo pessoal. Ainda jovem, emigrou para França, que foi sua segunda pátria, morando na capital e noutras cidades da costa francesa. Apresentam-se aqui sete autorretratos de Picasso, que foram selecionados para este estudo por terem sido realizados em diversos períodos, principiando por sua vida entre Barcelona e Paris, onde o contato com outros artistas e intelectuais de vanguarda foi decisivo na evolução de sua arte, e concluindo com o autorretrato pintado um ano antes de morrer, em 1973, em Mougins, um povoado perto de Cannes. Isso não significa que sua imagem não aparecesse noutros trabalhos, mas foi necessário selecionar aqueles que ele mesmo intitulou como “autorretratos” para poder ler não somente o aspecto simbólico, senão também o que o aspecto físico das imagens revelava. Esta investigação buscou desvendar o significado desses autorretratos de Pablo Ruiz Picasso, na tentativa de mostrar os afetos vividos cotidianamente, a ação artística e o processo de aprendizagem para a vida, assim como as transformações pessoais na trajetória de envelhecimento segundo sua própria visão. A esse respeito, Bernardet afirma: “Pintar seu próprio rosto, assim como escrever uma autobiografia, é um ato de confissão pelo qual o artista revela voluntariamente a parte mais íntima do seu mundo e do seu ser” (2007, p. 1). Diante da vasta produção artística, a seleção de tais autorretratos encontra-se de acordo com os modos de ver e as ideias da época que influenciaram o pintor, fazendo-se uma leitura iconográfica e iconológica das imagens, à luz das teorias do imaginário. O itinerário de leitura começa pelo tempo-espaço em que cada obra foi elaborada; seguem-se uma descrição breve, aspectos simbólicos e arquetípicos da imagem e, por último, uma interpretação pessoal fundamentada na experiência estética: poiesis, aisthesis e katharsis. Para Mèlich (1994), as duas primeiras categorias básicas exercem a função de tese e antítese. A poiesis é o momento da criação. A ação comunicativa é basicamente uma ação social ativa, produtiva de construção e reconstrução. Os autorretratos de Picasso surgem como uma maneira de ver-se. Contudo, a poiesis não pode existir à margem da aisthesis, que é o espaço da recepção. Na aisthesis percebe-se que o artista espanhol arrasta os contempladores até sua intimidade; o rosto aparece com toda a força da subjetividade e seduz com seu olhar intenso, profundo, cativante. Porém, falta a terceira categoria, a katharsis, síntese entre poiesis e aisthesis, ação comunicativa em nível estético. A katharsis possui uma ação ativa e passiva ao mesmo tempo, uma mediação criadora e receptiva. É fundamentalmente comunicação afetiva, sensível, racional; conserva o caráter espontâneo que caracteriza as ações comunicativas na vida cotidiana. Se era possível que alguém sentisse a angústia de Picasso, é porque existia nessa pessoa determinada ideia ou sensação anterior acerca de tal sentimento. Os a priori afetivos acontecem antes de toda experiência estética, não se captam, mas é preciso conhecê-los, vivê-los. Na obra dele aparecem afetos que se repetem ao longo de toda a seu história, como os temas retomados, uma e outra vez, com o passar dos anos: o pintor e sua modelo, os infinitos retratos de suas mulheres, os personagens mitológicos com os quais se identifica, a releitura dos grandes mestres. Apesar de o autorretrato não ter sido uma temática muitoaproveitada, a presença do artista em cada um dos personagens que criou é gritante, roubando a alma dos retratados reais ou imaginários e fundindo-se simbioticamente com eles. Também se observa que num mesmo período histórico convivem estilos, temas e linguagens expressivas diversas, razão pela qual não se pode considerar seu trabalho dividido somente em épocas ou tendências, mas como expressões cíclicas de sua alma irrequieta e de seu profundo conhecimento sobre arte. Assim, orienta-se a reflexão segundo dois grandes ciclos, o da juventude e o da maturidade, pessoais e artísticos. O adulto jovem: afirmação das ambições artísticas Nos começos do século XX, Picasso viveu em Barcelona, Paris e Madri, na efervescência que se vinha gerando entre artistas, literatos, marchands e intelectuais. Na Catalunha surgiu um movimento modernista culturalmente ligado ao simbolismo francês e a novas teorias estéticas dominadas por ideias anarcossindicalistas. Ele morava em Barcelona quando um dos seus quadros foi selecionado para integrar a Exposição Mundial de 1900, em Paris, motivo que o levou a viajar pela primeira vez a essa cidade, centro europeu da vanguarda artística. Picasso colaborava com revistas vanguardistas e, ao retornar da capital francesa, viajou para Madri para fundar, junto com Francisco Asís Soler, a revista Arte Joven, como diretor artístico. Esta revista foi criada para instaurar em Madri o modernismo catalão, mas alguns meses depois fracassava, o que provocou seu retorno a Barcelona. Vivia, então, uma época marcada pela inquietude e viagens. Nesse clima de grandes transformações artísticas e separação dos velhos padrões acadêmicos, o artista andaluz pintou, entre 1901 e 1902, seu “Autorretrato com sobretudo”, marcando o início de uma fase de reorientação artística e pessoal. Foi nesse período que omitiu o sobrenome paterno Ruiz e passou a utilizar somente o sobrenome materno, sendo, a partir de então, conhecido como Pablo Picasso. Os motivos que podem tê-lo levado a fazer esta escolha oscilam entre o sentimento de fracasso em relação à figura do pai e a fé cega da mãe na capacidade que o filho tinha para atingir o sucesso (IZQUIERDO, 2003). Trata-se de uma composição de forma quase quadrada, monocromática, em tons azuis, de grande sintetismo e beleza pictórica. A figura emerge solitária; o rosto, extremamente pálido, viril e magro, apresenta o jovem artista de barba e bigode; as feições são marcadas por sombras azuladas; na boca, fechada, convergem as oposições, os contrários, abertura pela qual passa a força da fala e as palavras que não podem ser ditas. O olhar assimétrico em cor, forma e expressão, centrado num ponto fora do quadro, fixa o observador, desvelando os sentimentos que o atormentam. As metamorfoses do olhar não revelam somente quem olha; revelam também quem é olhado, tanto a si mesmo como ao observador. É, com efeito, curioso observar as reações do fitado sob o olhar do outro e observar-se a si mesmo sob olhares estranhos. O olhar aparece como símbolo e instrumento de uma revelação. Mais ainda, é um reator e um revelador recíproco de quem olha e de quem é olhado. O olhar de outrem é um espelho que reflete duas almas (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 653). O autorretrato mostra um homem profundamente abatido, mas com ar imponente e distante. A forma é fechada, recortada num fundo vazio; seu torso, coberto por um pesado casacão de inverno. A roupa pode ser vista como um símbolo do próprio ser do artista, a forma visível da sua interioridade. A veste escura e fechada fala de um tempo invernal, período azul, cores frias. Frios são os momentos de angústia e dificuldades econômicas em que exuberam o patético e a melancolia. Picasso diria a Brassaï muitos anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial: Quanto a mim, sofri com o frio em minha vida mais que muitos outros! Em Barcelona, queimava meus desenhos para me aquecer… Em Madri, que inverno! Que frio na minha água-furada da calle Zurbano. Nem fogo nem luz… Jamais passei tanto frio… E no Bateau-Lavoir! Uma fornalha no verão, uma geleira no inverno… A água congelava… […] Pois bem, posso lhe dizer uma coisa: o frio nos estimula… Mantém o espírito desperto (BRASSAÏ, 2000, p. 145). Outra experiência decisiva, além do frio, foi para Picasso a morte de seu amigo Casagemas. Tornou-se o tema oculto em todos os quadros da época, inclusive neste autorretrato, através do uso da cor e da forma. Por um lado, o alongamento exagerado do corpo parecia desejar reter a figura que se elevava, como se estivesse ainda ligada à terra, mas, por outro, a mostrava fora do mundo, excluída pela miséria, o frio e a morte. Esta fase apresenta personagens marginalizados, indicando as preocupações sociais do artista e suas próprias desventuras. A cor é considerada, na teoria do imaginário de Durand (2001), um arquétipo. Azul pesado e denso, a cor adotada pelo pintor para seus estudos monocromáticos, tornou-se o tom adequado para exprimir os seus sentimentos de luto e de dor. Gerador de um clima de irrealidade, imóvel, impávido, indiferente, o azul não expressa o real e sugere uma ideia de eternidade; seu movimento atrai o ser humano para o infinito e lhe desperta a sede do sobrenatural. Era sua forma de expressar a agonia, a angústia e a desolação diante do suicídio do amigo; também uma profunda dor pela perda, sofrimento que lhe exigiu uma energia que pode ter sido expressa como raiva ou culpa. Segundo Izquierdo (2003), Picasso tentou ajudá-lo fazendo juntos uma viagem até Málaga, na intenção de que Casagemas esquecesse uma prostituta francesa por quem estava apaixonado. Contudo, as loucuras do amigo foram tantas que o pintor pediu que voltasse a Barcelona. Casagemas decidiu ir a Paris para conquistar a mulher que tanto desejava e, diante da rejeição dela, foi até um café em que sua amada se encontrava e, ali mesmo, matou-se com um tiro na testa. Essa lembrança atormentava Picasso, que confessou pintar em azul ao pensar na fria e trágica morte do seu melhor amigo. A dor mais difícil de suportar é aquela em que somente cabe a aceitação. Quando se perde alguém a quem se ama, não há como voltar atrás. Durante o luto pela morte de Casagemas, foi preciso lidar com a sensação de abandono do companheiro de aventuras, de raiva contra as prostitutas ou as mulheres, de um modo geral, e de culpa por tê-lo mandado de volta a Barcelona, embora não estivesse mais suportando suas loucuras. O artista resolveu sua tristeza a seu modo, ou seja, pintando e vingando-se das prostitutas ao retratá-las sujas, doentes, feias. Essa transformação caracterizada pela monocromia em azuis apareceu no estágio em que o artista andaluz começava a se afirmar nos círculos de artistas modernistas, atitude que lhe deu um lugar na pintura europeia. A crítica fez elogios ao simbolismo expressivo, mas criticou a tristeza. Com base na monocromia, Picasso criou um modo particular de expressão que acumulava a soma das tendências do momento e apreendia as infinitas possibilidades do azul — em suas tonalidades violetas e esverdeadas. A temática rondava o submundo, havendo um sentimento de identificação com os marginais retratados por ser um imigrante sem recursos, porém essas frustrações não o abateram, pois sua determinação e a imersão por longas horas no ateliê levaram a que, lentamente, deixasse o azul para o plano de fundo e, em vez dele, surgissem rosas, ocres, alaranjados, terrosos. Apesar das longas estadas na capital da França, ele só se fixou na cidade em 1904. Instalou-se num barracão de madeira, o Bateau-Lavoir, local onde conviveu com sua primeira mulher, Fernande Olivier, e outros artistas com quem fez grandes amizades, como Georges Braque e Max Jacob. Para Izquierdo, ela foi a responsável pela sua mudança cromática: “Quando Fernande entrou em sua vida, Picasso abandonou sua restringida palheta de tons azuis e verdes e iniciou uma nova etapa, a rosa” (2003, p. 34). As revistas artístico-literárias da época auxiliavam a divulgar as novas tendências. Toulouse-Lautrec eApollinaire foram grandes colaboradores desse gênero, buscando inspiração na vida do teatro, do cabaré e do circo. O circo Medrano, no sopé de Montmartre, ficava próximo do ateliê e era frequentado por Picasso e seus amigos. O pintor produziu as primeiras obras da fase rosa inspirado nos temas circenses e no sentimento de amizade entre seus personagens. Saltimbancos, clowns e arlequins substituíram os representantes do submundo, sendo apresentados em situações cotidianas, nos bastidores, mostrando sua fragilidade humana, não o glamour do palco. A pobreza e a depressão cederam lugar a uma tristeza adocicada e, de certo modo, até agradável. Sente-se, ainda, um sopro de melancolia, porém a dor, se ainda o incomodava, não parecia ser tão amarga. A partir de então, Picasso não se sentia mais como um imigrante desvalido, porque estava desfrutando de um pouco de prestígio graças ao seu marchand Daniel-Henry Kahnweiler e a sua amiga e colecionadora de arte Gertrude Stein; experimentou novas técnicas gravando uma coleção de águas-fortes, pintando e desenhando. As frequentes idas ao Louvre tornaram-se também visíveis nas telas de 1906, ano em que pintou o “Autorretrato com paleta”; mostrando sensíveis características desta nova fase. Essa pintura, de forma retangular, apresenta a imagem do artista centralizada, o corpo forte e grande pintado de forma simétrica, o rosto em três quartos de perfil. A figura aparece um pouco mais integrada ao fundo que no autorretrato anterior; afina o traço, tornando-o mais sutil. O pintor veste uma camisa branca com decote V, as mangas arregaçadas, indicando uma temperatura mais amena e certo desleixo durante o trabalho. As calças que está vestindo são pretas. A ausência de cor nas roupas e o estilo podem significar despojamento ou luto, que ainda permanece, mas que se vai tornando mais luminoso, um indício da consciência de si mesmo num tempo mais vital. Os artistas do circo pintados por ele levam as roupas dos personagens que representam, o que os diferencia das pessoas comuns. Picasso retrata-se como artista plástico, com a paleta na mão, usando roupas adequadas a sua tarefa de pintor. Ele se considerava fazendo parte do grupo de artistas ambulantes, um grupo de seres livres com sentimentos sinceros e solidários. Segundo o historiador de arte Vitali Suslov (1980), foi nessa época que se estabeleceram os princípios fundamentais de sua arte, os ideais humanistas e as temáticas essenciais. O artista andaluz compreendia as contradições e os conflitos do seu tempo revelando em novas nuanças a incerteza da espera para dar um novo salto criativo. O olhar do autorretrato se dirige ao ponto inferior esquerdo da obra. De acordo com a simbologia espacial, este ponto simboliza o que foi superado, a criatividade (ZIMMERMANN, 1992). Há um novo tratamento plástico no olhar, um retorno ao primitivo, talvez indicando a angústia superada pelas dificuldades e perdas da fase anterior por meio da criação, aparentando serenidade e concentração. A ruptura com o período azul foi lenta, mas profunda. Não se limitou à cor, já que, como mencionado anteriormente, os motivos também sofreram uma alteração fundamental. O cabelo continua preto, mas o corte é bem mais curto, emoldurando o crânio. Ele parece mais corado, saudável. A cor é modelada e no pescoço deixa sobressair a estrutura óssea. Os tons terrosos, ocres e alaranjados aparecem não só na pele de Picasso, mas na paleta que segura na mão esquerda, e também misturados ao azul do fundo. As camadas coloridas foram colocadas muito finas e líquidas para sugerir suavidade. Na escolha das cores, as relações dos tons cinza e azulado são, de certa maneira, austeras, mas não possuem a unicidade da cor de um sentimento único, predominante. No lugar disso, há um equilíbrio, uma oposição de forças, e uma busca do contorno para obter força e elegância em vez da ondulação melódica, recorrente e emocional da linha (SCHAPIRO, 2002, p. 28). Essa época esboça a reversão de valores estéticos, embora traga a herança do simbolismo e do art nouveau. Picasso experimentou também uma reversão de valores humanos, expressa nos afetos sexuais, nos impulsos, nos desejos, na curiosidade. A atração sexual que sentia por Fernande continha os rudimentos do gosto e do gozo. Sua vida estava orientada aos prazeres, a um modo de vida desenvolvido a partir das tensões afetivas criadas sobre os impulsos sexuais. Queria viver perigosamente. Izquierdo (2003) afirma que, nesse período, experimentar drogas teve grande importância para o artista, que seduziu sua companheira graças ao ópio. Contudo, depois de quatro anos se apartou definitivamente dessas experiências. Outro suicídio marcou a vida de Picasso: o pintor alemão Wiegels enforcou-se no ateliê. Daí em diante seus únicos vícios voltaram a ser o trabalho, o sexo e o tabaco. Com o passar do tempo, seu afeto por Fernande transformou-se num desejo de posse, tendo atitudes doentias, como trancá-la dentro da casa e não deixá-la nunca sozinha, até que ela se cansou de ser mulher-objeto e ambos tiveram relacionamentos com outras pessoas até acabar a paixão que os envolvia. É interessante mencionar a possível sublimação da energia sexual na força de trabalho que emerge neste autorretrato, assim como a intensa ideia de atividade, poder e dominação que sugere o braço direito. A mão direita significa autoridade; fechada, indica o segredo. Que terrível mistério Picasso quer guardar só para si? Que saber escondido há na mão com que pinta? Um enigma que oculta também a estilização do próprio rosto, convertido em quase uma máscara. Existe certa semelhança entre sua imagem neste quadro, o Retrato de Gertrude Stein, pintado no mesmo ano, e as duas figuras centrais retratadas em Les Demoiselles d’Avignon, a primeira pintura cubista que realizaria no ano seguinte. Ele agora está determinado a ser um artista em um novo sentido, não um artista que projeta no quadro seus sonhos e paixões, fantasias, anseios, autopiedade e tristezas, mas que quer mostrar sua verdadeira força como a de um artista que pode construir, manipular, distribuir, que conhece a precisão de cada elemento no todo, num sentido arquitetônico. Isso lhe foi inspirado pelo exemplo de Cézanne, sem obedecer à cor ou ao pincel desse pintor (SCHAPIRO, 2002, p. 32). As mudanças da fase rosa prenunciaram o tratamento diferenciado da superfície que o aproximava de Cézanne, o qual recomendava expressar a natureza por meio do cilindro, da esfera e do cone, em perspectiva, para que cada lado dos objetos se dirigisse a um ponto de fuga central. Esta pintura parece anunciar o salto dado pelo cubismo, caracterizado pelas deformações geométricas sob a provável influência da escultura africana, embora Picasso negasse alguma relação entre a arte negra e a proposta estética criada por ele e Braque. De acordo com Gullar (2000), é difícil identificar a data exata de qualquer movimento artístico, uma vez que se trata de um processo, de vários fatores convergentes, que, lentamente, se vão definindo. Até o momento, admitem- se dois aspectos fundamentais: por um lado, a obra de Cézanne conhecida por Picasso e Braque; por outro, a visita de Picasso a uma exposição de escultura africana no Museu de Chaillot. A esses dois fatos se somou o esgotamento do modelo impressionista. O crítico e poeta brasileiro dá crédito a Picasso no sentido de que a influência da escultura negra pode ter sido incidental, pelo estranhamento que ela produz em relação à tradição artística europeia. Contudo, não se pode dizer o mesmo da forte presença de Cézanne no cenário da arte francesa. Entretanto, é mister considerar também uma transformação paradigmática no campo da ciência e da arte ocidentais. Apesar de não haver nenhuma intenção de descrever nas obras cubistas os princípios da matemática moderna, da geometria não euclidiana ou da nova física, é possível perceber, sim, uma visão de totalidade que invadiu os dois campos do saber com suas inovações radicais. A geometria pictórica orientada pela percepção darealidade foi acrescida de uma estrutura autônoma. O cubismo foi, na época, um outro modo de percepção do real ou até de reinventar o mundo, quebrando as regras da geometrização que antes apreendiam objetos simples, na sua forma típica, para facilitar a identificação. Todavia, a proposta cubista, em toda sua complexidade, dificulta em lugar de favorecer a identificação da figura. Onde estariam as convergências entre ciência e arte, então? Schapiro (2002) aponta que há uma relação com a teoria de Einstein sobre a relatividade do espaço e do tempo, expressa no cubismo pela quebra da perspectiva renascentista como representação das três dimensões, e a apresentação de todas as partes constitutivas do objeto, além de uma inferência de Panofsky sobre a suposta percepção dos cubistas de uma quarta dimensão, que indicaria a ordem temporal em sua continuidade sucessiva. Em estudo anterior, sobre os retratos de Picasso, Ormezzano (2002) percebe no Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler uma desaparição da perspectiva; a figura se superpõe em planos, o corpo se dissolve no espaço pictórico e atemporal; o simbolismo da morte material e do acorpóreo surge na composição caótica como espelho da ordem labiríntica que o olho procura organizar e tornar holos. No Autorretrato de estilo pré-cubista, pintado na primavera de 1907, Picasso buscava criar uma nova imagem pessoal. Foi a linha o meio dominante de realização. As formas geométricas diluíram os contornos apoderando-se de resíduos realistas. Faltavam longas experiências até se chegar à ideia de cubismo mencionada anteriormente. Diga-se de passagem, este autorretrato foi uma das primeiras tentativas de aproximação à tendência que marcou a história da arte universal. Os largos e rápidos traços de pincel desenharam as feições, delimitando as superfícies do quadro, preenchidas de cor e pouco modeladas. Em várias zonas a tela ficou sem pintar. Não somente o modo rápido de produzir a obra, mas o olhar de Picasso também se transformou. Há apenas poucos meses de diferença entre o autorretrato de 1906 e o de 1907, mas, enquanto o primeiro mostra-o ainda jovem, o outro revela o Picasso amadurecido e mais ousado. O pintor não se retrata como promotor de sua individualidade, mas como realizador de uma construção abstrata no espaço pictórico composto de uma grade estrutural. Isto não significava apenas “desvendar” o objeto, mostrando sua face não visível, mas recriá-lo a partir do “interior” da arte. Não se visava à representação do objeto como apreendido no “real”; ao contrário, buscava-se figurá-lo através de um procedimento pictórico que, por um caminho todo diferente da percepção habitual, fornecesse uma intuição similar à daquele objeto (FAGUNDES JUNIOR, 1996, p. 29). A paleta de Picasso aqueceu-se e adensou-se; as cores ficaram mais quentes e escuras que nos autorretratos anteriores. Emerge uma indicação de que o cubismo utilizaria futuramente os tons da terra, em lugar dos azuis e dos rosados. Para Portal (1996), a cor brônzea simboliza o ser que está em pecado, rodeado dos demônios apoderados de sua alma em tentação, a degradação moral, mas, ao mesmo tempo, a regeneração e o ser que luta contra o inferno. Esta cor, junto ao preto das íris e do cabelo, pode indicar a tristeza que continuava acompanhando o pintor; junto ao branco das escleróticas e da camisa, pode significar o talento. O artista perfura o público com seu olhar, pois os olhos enfrentam, dilaceram, atraem. O fotógrafo Brassaï escreve sobre esses olhos arrebatadores: Contrariamente ao que se diz, ao que se pensa, constatei então, eles não são nem anormalmente grandes nem anormalmente escuros. Se parecem enormes, é porque têm a curiosa faculdade de se abrirem amplamente, descobrindo a esclerótica branca — às vezes até mesmo acima da íris — na qual a luz pode se refletir e brilhar em relâmpagos. É a abertura das pálpebras que faz seu olhar fixo, louco, alucinado… Daí também que, nas pupilas amplamente dilatadas, a íris, normalmente castanho-escura, pareça tão negra. É o olho de um artista feito para um perpétuo espanto (2000, p. 32). O olho, órgão da visão, é associado à luz. Não se pode separar a imagem do olho do simbolismo do olhar — olho e olhar estão sempre vinculados à transcendência. No ato de ver há também compreendido um saber, considerando que olho é luz, a visão pode significar o fato de trazer à luz um conhecimento. A mitologia confirma o isomorfismo do olho, da visão e da transcendência; em diversas culturas encontram-se associações entre o olho de Deus que tudo vê e tudo sabe (DURAND, 2001). Uma antevisão parece mostrar-lhe que, apesar de encontrar-se numa situação financeira pouco confortável, logo mudaria para dias mais prósperos. Nesta obra não aparece o pintor em roupas de trabalho, mas em traje social, seguindo, provavelmente, os mandatos da moda de época. Picasso se veste com elegância, insistindo nos contrastes de cores e ressaltando o colarinho branco sobre fundo escuro; usa a indumentária como provocação, expressando um estilo singular, revelando suas intenções (BERNARDET, 2007). A roupa como reflexo da autoconsciência é reveladora de uma personalidade influenciável e do desejo de prevalecer sobre os outros, de ser pioneiro nas mutações da época, conjugando sensualidade, beleza e desejo de fortuna. Predomina no Autorretrato de 1907 um sentimento de orientação que, segundo Heller (1982), é um sentimento afirmativo de probabilidade relacionado à ação direta do trabalho e do conhecimento, que se faz de guia na maior parte das atividades cotidianas. Picasso pode ter pensado: “Sinto que agora estou no caminho certo…”. O caminho que o conduziu ao cubismo não está prescrito completamente nesta pintura, mas se percebem aproximações, que seriam desenvolvidas mais adiante no cubismo analítico e no sintético, com base na experiência prévia. Esse conhecimento, voltado à geometrização, teve Cézanne por mestre, com o qual aprendeu a abolir o não essencial. Acumulou saberes captados com seu olhar usurpador sobre a escultura africana, que elimina o detalhe pela exaltação das formas simples, ou, talvez, sobre a escultura ibérica pré-romana, cuja redução formal tende à abstração. Uma viagem a Gòsol, povoado dos Pirineus espanhóis onde passou suas férias com Fernande, marcou o início de uma nova fase, influenciada pela arte de povos antigos e pré-históricos. A cada ruptura, um autorretrato com um novo tratamento no rosto. De qualquer modo, independentemente das intertextualidades possíveis nesta pintura, pode-se inferir que sua criatividade artística teve um efeito tão perturbador e desconcertante que revolucionou a arte do século XX, influenciando movimentos posteriores. Picasso e Braque trabalhavam juntos, experimentando novos materiais depois de o cubismo se afirmar dentro e fora da França. A Primeira Guerra Mundial desintegrou o trabalho do grupo interessado nesta tendência porque os amigos de Picasso tiveram de se dirigir ao campo de batalha. Apesar das baixas sofridas, a proposta perdurou como tendência estética. Grandes transformações profissionais e pessoais na vida de Picasso revelaram-se na busca de experiências no mundo do teatro. Ele viajou com Cocteau para a Itália, em 1917, onde fez cenários e figurinos para o balé Parade, de Sergey Diaghilev. Conheceu a bailarina russa Olga Kokhlova. Durante a primeira época de namoro com Olga, “o corpo leve e flexível da bailarina e sua beleza algo crispada foram o veículo perfeito para expressar a nova etapa na que entrava Picasso […]” (IZQUIERDO, 2003, p. 80). Nesse ano desenhou outro autorretrato, que demonstra uma opção pela figura realista na sua aparência concreta, o que não implica uma recusa à distorção orientada do cubismo — as obras deste ciclo contêm ambos os aspectos. A experimentação cubista vai até 1920 de forma mais estilizada; às vezes, intercala uma pintura semiabstrata, outras, diferentes ensaios que retornam a um estágio decorativo e neoclassicista. É a expressão de uma capacidade vital de mudança contínua de um padrãoalcançado, oscilando à procura de novas formas expressivas entre os dois polos, reproduzindo a aparência imediata e o olhar sob a superfície. O Autorretrato de 1917 é um desenho a lápis sobre papel. O rosto encontra-se em posição de três quartos, perfil esquerdo. Seguindo os padrões clássicos, Picasso utilizou a proporção áurea, talvez inconscientemente, para dividir o retângulo na vertical e na horizontal. Na intersecção de ambas as linhas imaginárias encontra-se o olho esquerdo, que corresponde à lua — ele mira o futuro. A orelha parece um pouco grande em relação ao rosto, situando-se no ponto central da margem direita da imagem. O simbolismo da orelha está associado ao pênis (pavilhão) e à vagina (conduto auditivo). A analogia indica que a palavra do homem é tão importante para a fecundação da mulher como o líquido seminal. A sexualidade aparece reiteradamente na obra de Picasso. De acordo com a simbologia espacial, este ponto indica a realidade exterior, a extroversão, o masculino, o tu. O desejo de Picasso está voltado à conquista de Olga (ZIMMERMANN, 1992; CHEVALIER e GHEERBRANT, 2000). Picasso, que sempre dominou as mulheres, submeteu-se às exigências da bailarina e casou-se com ela. Olga decidiu transformar seu marido num pintor da sociedade parisiense. Picasso passou a retratar socialites. Ambos levavam uma vida de festa e luxo. Izquierdo comenta que se Olga introduziu o pintor nas altas esferas sociais, isso foi algo que sempre produziu uma forte atração em Picasso, “era uma inclinação burguesa herdada do seu pai, Dom José, que tinha sido um homem conservador” (2003, p. 82). A linha sempre foi muito valorizada por Picasso. Nesse autorretrato esboça suavemente o contorno da figura, sugerindo pouco volume. Uma linha modulada mais escura realça a silhueta, linhas mais claras se entrecruzam, configurando a sombra por meio da textura. O olho esquerdo foi enfatizado em um jogo de texturas sombreadas que relembra a experiência cubista de criar planos abertos. O desenho é extremamente sóbrio, procura reproduzir a imagem natural. Em relação ao método utilizado, provavelmente, ele tenha se baseado numa fotografia sua, uma vez que nesta fase utilizava-se da imagem fotográfica como recurso para obter maior objetividade possível tanto nos desenhos como nas pinturas. Buscava, com isso, uma análise da linha e a descoberta do volume e da proporção, que seriam muito úteis para futuros trabalhos (BUCHHOLZ; ZIMMERMANN, 2001). Distanciamento, técnica e neutralidade parecem ser as características principais desse ciclo, que se espelha nas figuras da Antiguidade clássica, do Renascimento e do Neoclassicismo, sem deixar de lado a experiência cubista. Os dois estilos apresentavam problemas plásticos diferentes que ele resolvia de maneiras diversas e que faziam parte de dois aspectos de sua personalidade. Enquanto, no primeiro, procurava o virtuosismo da forma, no segundo, a destruía. Pugnam, quiçá, nessa época, o pensamento e a emoção. O problema poderia estar numa tentativa de libertar-se dos sentimentos de maneira tal que, ao não se deixar afetar muito por eles, garantisse mais racionalidade e desenvolvimento intelectual. Mas também conhecer sem sentir, sem se emocionar, poderia vir a atuar de forma contrária, ou seja, negando o saber que tanto desejava. Nos anos que seguiram à guerra, Picasso permaneceu na dupla fórmula. Seus temas oscilaram entre a natureza morta e as artes do circo, da dança, da música e do teatro. Em 1925 participou da primeira exposição do grupo surrealista. Embora não aderisse completamente à filosofia do grupo, reconheceu uma grande força estética nesse movimento que o acolhia. Encerra-se o ciclo com um Picasso amadurecido em sua trajetória profissional, que já não buscava os círculos de artistas dos quais se aproximar. Ele era a figura requisitada para acrescentar valor às estéticas vanguardistas. O adulto maduro: tête-à-tête com o espelho Nas três primeiras décadas do século XX Picasso expressou-se em vários campos artísticos e numerosos estilos. A audácia do surrealismo estimulava- o a confrontar o que existe com o que pode vir a existir. Todavia, pode ser um erro vê-lo como pintor surrealista, apesar de Breton reivindicar a sua presença no movimento. Segundo o próprio Picasso: “Não se delimita a natureza, não se a copia mais; deixam-se os objetos imaginados adquirir aparências reais…” (BRASSAÏ, 2000, p. 53). E, mais adiante, acrescenta: “Procuro sempre observar a natureza. Insisto na semelhança, numa semelhança mais profunda, mais real do que o real, que atinge o surreal. É assim que eu concebia o surrealismo, mas a palavra era empregada de um modo bem diferente…” (BRASSAÏ, 2000, p. 54). No período surrealista, o artista continuou insistindo na separação entre forma e conteúdo, transferindo para o plano bidimensional da tela formas palpáveis, com volume. São composições afastadas da realidade que proporcionam espaço para o imaginário, mostrando a sintonia das obras com a tendência da época, embora, para ele, não fosse importante tornar as experiências interiores visíveis, mas mostrar o processo artístico tradutor da realidade, fácil de identificar e numa linguagem pictórica abstrata. O “surrealismo” picasseano nasceu quando o cubismo pretendeu ir além do real criando uma síntese que levasse a uma percepção similar à do objeto, mas por um caminho totalmente diferente da sua figuração direta, assim desnudando nele algo de outra maneira inapreensível, “inconsciente”. Um “inconsciente” não tanto psicológico, mas físico, relacionado às faces ocultas do objeto (FAGUNDES JUNIOR, 1996, p. 32). Picasso faz o Autorretrato de perfil, fotografia clicada em 1927, na qual se observa que a sombra do pintor é projetada sobre um quadro em que se autorretratara anteriormente. Será esta uma imagem de sua face oculta? Se Picasso procurava uma semelhança profunda e surreal, seria o autorretrato pendurado na parede a máscara, e a sombra projetada sobre ele, sua sombra? A persona (máscara) e a sombra são duas estruturas descritas por Jung (1990) na personalidade adulta. Os conteúdos pessoais conscientes constituem a persona e têm a função de integração social. Mas a natureza humana não é só luz; há nela bastante sombra, que abriga símbolos de difícil aceitação pela consciência. Ambas as estruturas se complementam e formam uma polaridade. A sombra ocupa grande parte da metade direita da fotografia, assim como cobre a metade do autorretrato na zona de luz, significando, provavelmente, que a polaridade entre luz e sombra está na busca de equilíbrio, o que o artista espanhol procurava por meio de uma atividade profissional compulsiva. O preto e o branco da fotografia aumentam a sensação de dramatismo. Algo de teatral permaneceu nesse período, além de Olga. Os jogos luminosos que acontecem em cena têm estreita relação com o jogo de teatro de sombras que Picasso estabelece nesta obra. De acordo com Buchholz e Zimmermann: Assim, o “eu” irreal — a sombra — aparece vindo da margem da pintura, indo inscrever-se na imagem da mesma pessoa, ao mesmo tempo que a verdadeira pessoa fotografa esta encenação. Como em muitos quadros surrealistas, trata-se de uma obra conceptual, em que o testemunho — neste caso, uma fantasia inquietante — se sobrepõe ao aspecto técnico […] (2001, p. 77). A função estética contribui entre várias funções na elaboração simbólica. A vida é inseparável da experiência artística, e percebe-se em Picasso uma vida conduzida por uma personalidade artística que, provavelmente, possuía algumas psicopatologias, as quais não cabem, neste obra, diagnosticar, discutir ou julgar. No entanto, considerando o tipo de relação amorosa que estabeleceu, nesse período, considera-se oportuno abordar as funções de afetividade e agressividade, assim como a ligação entre amor e poder. No mesmo ano do Autorretrato de perfil, Picasso conhece Marie Thérèse Walter, que foi a maior paixão sexual da vida do pintor — tiveram um relacionamento sem fronteiras nem tabus. Ela era contra qualquer convencionalismo.O pintor a iniciou em práticas sadomasoquistas, em todo tipo de experiências sexuais e prazeres extravagantes, que acrescentavam à relação algo de surrealista. Os encontros mantiveram-se em segredo porque ela era menor de idade e este tipo de relação poderia ser punido com o cárcere (IZQUIERDO, 2003). Compreende-se como parte importante da defesa sadomasoquista uma interação que fez Picasso, a miúdo, ter afetividade pelo que rejeitava e aceitação pelo que o desagradava. Em relação aos sentimentos de amor e poder, escreve Byington: Quando a polaridade do amor e do poder sofre uma fixação e passa a atuar na sombra, forma-se a defesa sadomasoquista, que pode então ser compreendida como a conjunção defensiva entre o amor e o poder e incluir formas defensivas as mais variadas nos relacionamentos humanos (2004, p. 89). Para Picasso a fotografia era uma arte menor, pela qual, apesar de menosprezá-la, se sentia atraído. Ele tinha muitas fotografias guardadas que o auxiliavam no estudo do corpo e das feições. Procurava encontrar novos caminhos artísticos e, por meio dessa tecnologia, descobrir diversas funções com jogos de luz e sombra, sobreposições e recursos compositivos, que lhe permitiriam expressar-se esteticamente e ser material de reflexões para novas formas expressionistas. No início da Segunda Guerra Mundial, ele trabalhava em Royan, onde permaneceu por um ano. Por três vezes voltou a Paris para procurar tintas, pincéis, telas e papéis. No verão seguinte, as tropas alemãs entraram em Royan. Em agosto de 1940, retornou à capital e presenciou a ocupação alemã retirado no trabalho de seu ateliê. Nessa época de terror, marcada por violência, medo e morte, expressou seu testemunho de horror. Após experiências realizadas em papel fotossensível, junto com o fotógrafo Man Ray, ele parece ter diminuído as fronteiras entre o desenho, a pintura e a fotografia. A criação o manteve numa atmosfera quase mística, convidando-o à visão introspectiva e à auto-observação, o que pode ser apreciado na fotografia de caráter expressionista, Autorretrato ao espelho, produzida em 1940. Nela, Picasso se retratou no seu ateliê, isolado dos amigos, dos colegas de trabalho, ameaçado pelos nazistas. O enquadramento divide a fotografia em duas partes horizontalmente: na parte inferior mais escura, há potes, pincéis, uma velha paleta, algumas pequenas esculturas sobre um móvel, uma estufa para se aquecer; na parte superior, mais luminosa, sua imagem se reflete em um espelho em meio a dois desenhos. Um pequeno relógio indica as horas de trabalho contínuo e solitário, o tempo que passa e suas marcas. Desde o seu lugar, no espelho, o pintor parece espreitar o observador da imagem tanto quanto a si mesmo, como é possível perceber no diálogo efetuado durante a guerra num encontro com Brassaï, em que o pintor exclamou: “Diga a verdade! Já faz um bom tempo que não nos vemos… Mudei bastante, não é mesmo?… Veja como estão meus cabelos… Quando olho meus antigos retratos, fico assustado…” (BRASSAÏ, 2000, p. 78). De acordo com o simbolismo espacial, a posição do seu rosto refletido no espelho implica uma tendência a vivenciar a realidade interior, o passado, a introversão, um contato maior com o eu, o feminino. O espelho simboliza também o lunar, a inteligência, o saber, e emerge na tradição pictórica e literária evocando o destino do mundo e introduzindo a variação da água, como o primeiro espelho, que encantou o rapaz no mito de Narciso. Ao Narciso que habitava em Picasso também lhe perseguiam duas ninfas, nessa época, a sensual Marie Thérèse e a ciumenta Dora Maar. Picasso amou-as e, depois, como aconteceu com o mito de Eco, rejeitou-as, da mesma forma que intimamente, talvez, desprezasse a todas as ninfas que acossava ou que o importunavam, porque ele só estava apaixonado por si mesmo. A esse respeito Jung (2000) afirma que, quando alguém olha o espelho, vê sua própria imagem, correndo o risco do encontro consigo mesmo, porque o espelho mostra fielmente aquela face que é encoberta pela máscara. Esta atitude demonstra uma prova de coragem de Picasso e pode indicar que estava em busca do caminho interior. A relação simbólica do espelho e do espaço fotográfico com o feminino estará inferindo que se trata de uma imagem de sua anima? Este arquétipo bipolar masculino-feminino, quiçá, esteja expressando os símbolos presentes na personalidade dele sempre que são mobilizados os afetos, intensificando as relações emocionais com a profissão, já que a fantasia é obra sua. Quando a anima é constelada intensamente, ela o torna vaidoso, sensível e de humor instável? Todo homem possui uma estrutura psíquica inata que lhe permite pressupor a da mulher física e espiritualmente, uma vez que a forma do mundo em que nasceu é uma imagem virtual, assim como são também virtuais as imagens dos pais, das mulheres, dos filhos, do nascimento e da morte. Vida e morte se refletem também no branco, no cinza e no preto da fotografia. O branco simboliza a luz e o preto, as trevas; o cinza, como mistura de preto e branco, é símbolo da morte terrena e da imortalidade da alma. A fase cinzenta que evoca essa fotografia pode ter respondido aos horrores da guerra, que transformava a vida em cinzas (JUNG, 1990; PORTAL, 1996). Picasso conservou a reserva e a introspecção até o final da vida; adquiriu um grande poder de visão no processo artístico e de percepção de si e do mundo que o levou a uma transformação permanente. Esse conjunto de poderes foi desenvolvido passando por muitos estágios, que, como na fotografia, dependiam do olhar. Os critérios que efetivaram a decisão para reter a realidade nesse momento determinado e não noutro qualquer, nesse espaço-tempo específico, são difusos, mas pode ter havido uma sincronicidade entre o movimento para tal busca e o significado daquele instante. Em abril de 1944, um editor de arte visitou o artista e comentou que descobrira um antigo Picasso por ele mesmo e que o comprara. O pintor admitiu que os autorretratos fossem muito raros e que não tinha frequentado muito seu rosto como temática. Bernardet (2007) refere que Picasso parou de pintar autorretratos, no sentido literal da palavra, em 1918, quando morreu Apollinaire, o que iria provocar mais uma perda e uma nova ruptura artística. Alguns dias mais tarde, depois da visita do editor de arte, quando Brassaï chegou à Rue des Grands-Augustins, Picasso abriu a porta e falou: Você chega mesmo a propósito. Justamente esta manhã pensei na fotografia… Ao despertar, olhando-me no espelho com meus cabelos desgrenhados, sabe qual foi a ideia que tive? Pois bem, lamentei não ser fotógrafo! É muito diferente o modo como os outros nos veem e como nós mesmos nos vemos num espelho em certos momentos. Várias vezes em minha vida, aconteceu- me surpreender uma expressão de meu rosto que jamais pude encontrar em nenhum de meus retratos. E talvez fossem minhas expressões mais verídicas. Deveria haver um buraco no espelho a fim de que a objetiva pudesse captar nossa fisionomia mais íntima inesperadamente… (BRASSAÏ, 2000, p. 158). Confirmam-se nas próprias palavras de Picasso que ele não é um fotógrafo, mas alguém que usa a fotografia como um recurso para o estudo, a criatividade e a expressão artística. O ciclo seguinte é composto de diversas tendências, que incluem reiterações cubistas, distorções figurativas e sentimentalismos expressionistas, com a maior parte das obras recaindo no já conhecido, sem produzir nenhuma fantástica descoberta formal, nenhuma ideia tão criativa que pudesse vir a ser comparada com a fase de adulto jovem. Isso não significa que não realizou obras esplêndidas, incursionando pela escultura, pela cerâmica e ainda se mantendo fiel ao desejo de desenhar e pintar. Vemos, então, como Picasso, na velhice, chegou a um realismo extraordinário, não na pintura, mas na escultura, por meio de um sentimento pela vida — a vida não como algo a ser lamentado ou como um objeto de ódio ou de impulso cruel ou destrutibilidade, não como um objeto para ser reordenado naobra de arte, não como algo sujeito à fantasia e ao capricho, mas algo apresentado imediatamente, de maneira maravilhosa, ao nosso sentimento de viver como algo necessário e um bem na existência. Esse foi o fenômeno mais extraordinário em um artista e foi alcançado na velhice — e talvez não se realizaria sem a idade avançada, […] (SCHAPIRO, 2002, p. 62). Com o final da guerra, o pintor tornou-se um homem público. As reportagens e publicações sobre sua vida e obra não cessavam. Como aconteceu com Guernica, em que o pintor reagiu à guerra civil espanhola denunciando o bombardeio sobre a cidade basca, pintou Massacre na Coreia para denunciar a invasão norte-americana ao país. No verão desse mesmo ano, 1951, Picasso estava atormentado com a ideia de envelhecer, pois logo faria setenta anos. Izquierdo escreve que, em certa ocasião, conversando com Geneviève Laporte, lhe confessou: “O terrível é que agora ainda podemos fazer o que queremos. Mas querer e não poder: isto é espantoso” (2003, p. 137). Esgotada com o fim da guerra a tendência ao surreal, a barbárie das catástrofes políticas e sociais, impôs-se a abstração como tendência dominante. Não uma abstração de cunho geométrico, mas uma abstração de signo expressivo e uma força orgânica que se desenvolveu em múltiplas correntes: informalismo, action painting, pop art, op art, arte cibernética e outras. Nenhuma dessas modalidades seduziu Picasso, embora sua marca esteja presente em todas elas. Os últimos anos foram vividos pelo artista num exílio voluntário e custodiado ciosamente por Jacqueline Roque, sua segunda esposa, com quem se casara um pouco antes de completar oitenta anos. Em 1965 foi operado de úlcera de estômago, embora se suspeite que a cirurgia tenha sido de próstata. O translado e o ingresso na clínica foram um grande segredo. Esta fase da sua vida ficou envolvida pelo mistério, que adquiria cada vez mais a forma grotesca, pintando de forma quase maníaca. Ele detestava a palavra “morte”, mas teve de conviver com ela desde a infância. O rosto cadavérico do Autorretrato, realizado em 1972, mostra sua obsessão pelo fim da vida. A pintura revela uma abstração do seu rosto, no que vulgarmente se conhece como “estilo Picasso”. Linhas pretas contornam os olhos, o nariz, o queixo. Uma espiral no olho esquerdo gera uma sensação de vazio; o outro olho, cheio, parece sair da órbita. A boca é esboçada com três linhas horizontais; linhas violetas indicam as marcas do seu rosto; uma textura vermelha de pequenos traços retos coroa a cabeça, fundindo-se em planos dessa cor e do branco, no fundo da obra; outra pontilhada na cor roxa esboça o bigode. Ele lançava mão das linhas escuras e das cores pálidas de seus dias na Espanha e dos primeiros tempos em Paris. Grafismos sinuosos pretos indicam os pelos da barba e do torso. Gestos frenéticos registram a intensidade e o dinamismo do pincel sobre a tela, mapeando as feições. Esses grafismos, memórias de gestos autônomos entre si, alçam-se da pintura em direção ao espectador, enredando-o na problematização de sua multiplicidade e estabelecendo o movimento contrário àquele que subjaz à percepção “natural” do olho, a profundidade (FAGUNDES JUNIOR, 1996, p. 106) A imagem realizada por Picasso, que pode ser comparada com a simbologia da cabeça ou do crânio, estaria simbolizando o ciclo iniciático da morte da matéria como fase anterior ao renascimento num nível espiritual. O rosto com barba pode simbolizar coragem e sabedoria; os pelos na barba e no peito indicariam virilidade; o torso peludo, na base da pintura, esboça a manifestação inconsciente da vida instintiva e sensual. Em relação às cores utilizadas, o vermelho noturno simbolizaria a inquietude, que, junto com a simbologia espacial no ponto inferior esquerdo, pode expressar conflitos com o que aparece no vértice superior direito, ou seja, com a consciência de um fogo final que se aproxima. A morte expressa-se também nas cores da obra, que se caracteriza pela monocromia; o preto, o branco e o roxo são considerados em diversas culturas e religiões as cores da aflição, da mágoa e do luto. A força desta obra de Picasso desperta na unidade visual monocromática, que seduz o olho do espectador, uma figura em meio à emaranhada superposição de grafismos. O itinerário seguido vai sendo deixado à mostra, evidenciando a precariedade sobre a qual a metamorfose se opera. O tosco, o inacabado, o acidental ficaram incorporados à obra como seu elemento constituinte mais importante (ZIMMERMANN, 1992; PORTAL, 1996). O aspecto físico de Picasso na velhice já não mostrava a força vital que o caracterizara, o que poderia ser um bom motivo para ficar longe dos olhares curiosos. Jacqueline o mantinha no isolamento, sequestrado, conforme a fala de alguns, ou atendendo a suas ordens expressas, segundo o comentário de outros. Aos noventa e dois anos Picasso morreu na cama, repentinamente, depois de ter trabalhado até altas horas da madrugada. Neste último olhar para si mesmo, ele parece deprimido, sem vida. A pessoa deprimida tem um aspecto de preocupação e de raiva, sentindo-se desgastada e sem energia. Os olhos e o ricto da boca expressam esses sentimentos, além de contenção e medo. Pavor da morte iminente intuída uns meses antes de acontecer? Medo que se formava pelo desconhecimento diante do que o esperava? Experiência que, até esse momento, foi dos outros, de sua irmã, seus pais, seus amigos, suas mulheres. Era o presságio fatal de um futuro próximo, sobretudo porque sua idade avançava nos noventa anos e o fim estaria próximo. No fim de sua existência, ele tentou arrancar mais vida a cada traço, trabalhando com afinco e com a consciência de que o tempo se estava esgotando. Nesse sentido, uma fala de Picasso a Brassaï sustenta tal afirmação: “As exposições não me dizem mais grande coisa. Meus antigos quadros não me interessam mais… Estou bem mais curioso pelos que ainda não fiz…” (BRASSAÏ, 2000, p. 330). De quase tudo o que viveu soube extrair algum aprendizado que o auxiliasse no processo criador, pode-se supor que, no final da vida, quando já parecia saber de tudo, quando a evolução das propostas estéticas não lhe interessavam mais, quando parecia estar parado, ele avançava no estudo dos grandes mestres, na lembrança das touradas, num lugar fixo apesar das múltiplas linguagens utilizadas, o lugar da pintura. Como diz Uchoa Fagundes Junior: “A pintura enquanto fazer torna-se um discurso cuja porosidade ocorre pelos interstícios de tempo, pois guarda em si as lâminas de tinta-memória dos gestos de instantes vividos em clímax, como entre uma expiração e uma inspiração, um átimo de morte, de não presença” (1996, p. 117). E não só a pintura, mas o conjunto de sua obra que se aproxima dos trinta mil trabalhos disse não à morte e carregou Picasso como emblema da arte do século XX, adentrando com o permanente interesse que desperta sua personalidade e sua vida pessoal tumultuada no século XXI, apesar dos esforços de Jacqueline em conservar a vida e a morte dele somente para ela. Quando faleceu no dia 8 de abril de 1973, nenhum filho ou neto foi autorizado a participar do enterro, no castelo de Vauvernagues. Nem assim ela obteve sucesso: seria impossível negar ao mundo uma personalidade que marcou a história da arte contemporânea. Considerações finais A evolução de Picasso não foi linear, mas circular, elíptica, cíclica. De intenso dinamismo, caracterizado pelas mudanças de tendência, ele buscava incessantemente novas formas e cores. Em todas as fases aparece o domínio dos materiais e das técnicas, o humor irônico voltado à caricatura, o gosto pela transformação da arte e pelas metamorfoses pessoais. Cada nova solução plástica que ele encontrava incorporava às suas obras seguintes; alimentava-se de seus conhecimentos anteriores e enriquecia-os aprofundando o que tinha aprendido com as descobertas e misturando estilos. Todos os autorretratos em estudo caracterizam-se pelo tratamento monocromático, seja pintura, desenho ou fotografia…. Se isso tem algum significado,não há condições de responder no momento. Talvez uma necessidade de sentir-se inteiro, com todos os pedaços que tinha abandonado no seu país natal, nos amigos que perdera com a guerra, nas mulheres que amara, nos filhos e netos com quem não convivia. A significação dos autorretratos criados por ele foi desvendada de um modo subjetivo e parcial, pois é necessário resignar-se a que nada pode ser revelado absolutamente. As obras foram divididas para melhor compreensão em dois grandes ciclos, na tentativa de aproximar o conteúdo das imagens da sua vida cotidiana, considerando as ações artísticas realizadas e o modo como aprendia e crescia como ser humano, o que se misturava com seus temores em relação à velhice e à morte. Não cabe dúvida de que a vida de adulto jovem foi mais produtiva no que se refere à criação de propostas estéticas que granjearam seguidores no mundo todo. Porém, no período em que vivenciou o adulto maduro, provavelmente, não se interessava tanto em criar novas propostas, mas em se aprofundar naquelas que tinha criado, tentando chegar ao âmago, ao segredo que cada linha, plano e cor podiam lhe oferecer. Os ciclos de sua vida foram considerados em relação aos saltos que foi dando sua vitalidade artística e que, de alguma forma, determinavam também os afetos que o mobilizaram. A dor da perda na época azul, a tênue alegria em Montmartre durante a fase rosa, o desafio profissional e cognitivo do período cubista, a plácida acomodação vivenciada durante o classicismo, os possíveis sentimentos de culpa da época surrealista, o ódio e a impotência que cresceram na guerra e, finalmente, o desespero diante do medo da morte. Foram afetos que conseguiu superar sempre por meio da criatividade e da obsessiva produção artística. Picasso foi um workaholic, cujos sentimentos iam sendo trabalhados junto com suas telas. Quando amava as pessoas, retratava-as como flores, personagens maravilhosos, coloridos; quando as detestava, desenhava-as como monstros engolidores, ciclopes, de feições espantosas, rudes e cruéis. Também fazia isso com ele mesmo. Nos múltiplos quadros em que se retratou como o pintor e seu modelo, aparecia como o homem viril, sedutor, forte; entretanto, noutros, aparecia representado por figuras diabólicas e mitológicas, que estupravam, violentavam e sangravam suas vítimas. É interessante observar que nenhum dos seus autorretratos mostra as pernas, parte do corpo que é símbolo do vínculo social, permitindo aproximações com as pessoas, facilitando os contatos. Não querer mostrar as pernas, talvez, esteja significando uma necessidade de Picasso de não revelar seus poderes, de manter-se a uma distância considerável dos outros. Sem dúvida, o fato de ter tido muitas mulheres não significa que tenha tido facilidade para estreitar vínculos com elas. Dir-se-ia que, ao contrário, foi bastante difícil manter cada uma das relações, apesar de seu poder de conquista. Fazendo uma analogia entre a terra e a mulher, é comum observar que as terras conquistadas opõem bastante resistência aos conquistadores, por sentirem a violência da invasão, não da aproximação afetiva, do encontro. É isso que emerge das obras selecionadas, uma vez que é impossível esgotar o assunto. Transformar a arte, mudar de vida e metamorfosear-se parecem ser as principais ações realizadas pelo artista, na tentativa de ir além da forma conhecida, do previsível, do existente; reciclando o aprendido, na relação interior-exterior, de maneira consciente-inconsciente, superando a fragmentação. Picasso pode ser considerado uma síntese essencial do que aconteceu na arte do seu tempo-espaço vital. Foi o centro em torno do qual se desenvolveu a estética contemporânea. A transformação e o dinamismo deste ser foram além das linhas, trazendo uma nova percepção de mundo. A forma relacionada com o mundo exterior expressava a aprendizagem dos processos técnicos e manifestava-se numa linguagem inédita, única, multifacética. Porém, essa forma emergia do mergulho na interioridade. Ações externa e interna agiam paralelamente através da consciência pessoal, que se desenvolvia por meio de rituais, da energia coletiva, das redes subjetivas de comunicação, as quais propiciaram, por meio da criação simbólica, a emergência de conteúdos de uma comunidade artística, representando o casamento místico, o estético, a arte do século XX. Referências bibliográficas BERNARDET, C. La autorrepresentación en la pintura de Picasso. Disponível em: . Acesso em: 5 mar. 2007. BRASSAÏ. Conversas com Picasso. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. BUCHHOLZ, E.; ZIMMERMANN, B. Pablo Picasso; vida e obra. Colônia: Könemann, 2001. BYINGTON, C. A. Arte e psicopatologia; a defesa sadomasoquista e a transcedência do mal. Junguiana, São Paulo, v. 22, pp. 87-97, 2004. 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Por exemplo, muitas pessoas ainda acreditam, e citam diversas pesquisas que provariam esta crença, que a capacidade intelectual vai diminuindo à medida que as pessoas envelhecem. Essas pesquisas baseiam-se no fato de que durante a vida milhares de neurônios morrem diariamente. A consequência deste processo seria uma diminuição progressiva das capacidades do cérebro de processar informações, até que finalmente, se a pessoa viver por um tempo suficientemente longo, a senilidade seria inevitável. No entanto, descobertas recentes no campo da neuropsicologia confirmam um quadro muito mais animador. Em primeiro lugar, nossa psique e nossa inteligência são fruto de processos muito mais complexos do que um número limitado de células cerebrais que morrem todos os dias e não podem ser renovadas. As habilidades deste sistema complexo, o cérebro humano, dependem não do número de células existentes no cérebro, mas sim do número de interconexões existentes entre elas. E este número é quase infinito! Além disso, novas conexões podem se formar quando o cérebro é convenientemente estimulado, abrindo novas possibilidades para o indivíduo ampliar relações e percepções do mundo e de si mesmo. Aliás, um dado interessante vem a confirmartais descobertas: qualquer pessoa que conheça um pouco de história da arte nota que a qualidade da obra dos grandes gênios tende a melhorar à medida que envelhecem. Foi o que aconteceu com Goethe, Shakespeare, Beethoven, J. S. Bach, Miguelangelo, Volpi, Villa-Lobos e Jorge Amado, a respeito dos quais os críticos concordam que suas obras foram se aprimorando até idade bastante avançada. Portanto, a moderna pesquisa científica vem demonstrar que o enfrentamento de desafios constantes e solução de problemas podem alterar a estrutura física do cérebro em pessoas idosas, o que aumenta a possibilidade de estas pessoas viverem a segunda metade de suas vidas de maneira mais feliz e equilibrada (PRÉTAT, 1997). Sabemos também que outras sociedades e culturas, que não a moderna sociedade industrial, já tiveram e têm perante a velhice valores, atitudes e crenças muito diferentes das atualmente vigentes em nosso meio. Por exemplo, um dos sinais que apontam nesta direção está no fato de que nelas os velhos eram e são chamados por nomes que denotam respeito e admiração, como, por exemplo patriarcas e matriarcas, oráculos, sábios, videntes, pajés, xamãs (BRENNAN; BREWI, 2004). Por outro lado, na sociedade moderna, aos velhos são atribuídas algumas características de personalidade estereotipadas e negativas. Eles são vistos como obstinados, teimosos, inflexíveis e irritadiços. Como será que surgiu tal lamentável estado de coisas? Acreditamos que estas expressões negativas sejam simplesmente o outro lado da medalha daquilo que em pessoas mais jovens seriam consideradas qualidades extremamente positivas. Vamos tomar como exemplo o epíteto teimoso, que poderia ser reinterpretado como determinado ou motivado. A propósito, a adequada definição de adjetivos e termos constitui tarefa importante para as modernas ciências humanas, ao tentar fornecer subsídios para o combate aos preconceitos contra a velhice. Sua grande contribuição seria a de buscar uma redefinição dos termos pejorativos atribuídos aos velhos, a fim de revelar os aspectos positivos que estão contidos neles. A moderna pesquisa científica sobre a velhice, ao estudar a vida de pessoas que se mantiveram produtivas e criativas até o fim de suas vidas, também identificou certos segredos que contribuíram para que isto tivesse acontecido. Muitas delas permaneceram envolvidas com pessoas, com a sociedade e a cultura em que viviam. Pessoas que desistem de viver envelhecem muito mais rapidamente do que aquelas que se envolvem ativamente nas atividades de sua cultura, de sua sociedade, com amigos e parentes. Conservaram-se ativas do ponto de vista intelectual. Pessoas que tinham mais anos de escolaridade e que mantiveram seus interesses em diversas áreas aumentaram sua inteligência verbal até o fim da vida. Permaneceram flexíveis. Foi constatado, em várias pesquisas, que indivíduos que aos quarenta anos eram mais capazes de tolerar a ambiguidade, mudar seus mapas de realidade e aproveitar as novas experiências que a vida lhes proporcionava, não viram declinar suas capacidades intelectuais até a velhice avançada (PRÉTAT, 1997). Não há dúvidas de que a segunda metade da vida vai apresentar muitos desafios como, aliás, a primeira também. Além disso, a transição para esta segunda metade da vida, semelhantemente ao período da adolescência, quase sempre é um período de crise e infelizmente, na atualidade, na nossa cultura de produção e consumo, de negação das raízes e busca obstinada pelo novo; a maior parte das pessoas não está preparada para enfrentar estes possíveis desafios. Vamos usar um texto de Carl Gustav Jung, reconhecido como o precursor do campo da compreensão da psicologia do desenvolvimento na vida adulta, para apresentar imagens e ideias sobre a segunda metade da vida. Em seu artigo, “As etapas da vida humana”, escrito em 1931 (JUNG, 1991, pp. 346, 347), Jung vai nos dizer: De manhã, o sol se eleva do mar noturno do inconsciente e olha para a vastidão do mundo colorido que se torna tanto mais amplo, quanto mais alto ele ascende no firmamento. O sol descobrirá seu significado dentro desta extensão cada vez maior de seu campo de ação produzido por sua ascensão e se dará conta de que seu objetivo supremo está em alcançar a maior altura possível e, consequentemente, a mais ampla disseminação possível de suas bênçãos sobre a terra. Apoiado nesta convicção ele se encaminha para o zênite imprevisto — imprevisto, porque sua existência individual e única é incapaz de prever o seu ponto culminante. Precisamente ao meio- dia, o sol começa a declinar, e este declínio significa uma inversão de todos os valores e ideais cultivados durante a manhã. O sol entra então em contradição consigo mesmo. É como se recolhesse dentro de si seus próprios raios, em vez de emiti-los. A luz e o calor diminuem e por fim se extinguem. Jung também afirma que as mudanças psicológicas que ocorrem na transição entre a meia-idade e a velhice ocasionariam para as pessoas uma espécie de crise ou período problemático, comparável à famosa crise da adolescência. Pois as pessoas tendem a naturalmente evitar o novo e apegam-se ao já experienciado, criando uma tensão entre o fluxo de desenvolvimento da natureza e sua obstinação egoica de permanecer no estágio conhecido e seguro. Para ser possível entender melhor a crise da meia-idade pode ser muito esclarecedor comentar um pouco sobre a crise que, segundo ele e grande parte dos psicólogos, ocorre no fim da adolescência. A psicologia analítica afirma que, de forma ideal, no final da adolescência as pessoas deveriam ter enfrentado e superado uma série de obstáculos e tarefas inerentes ao seu desenvolvimento psicológico em amplo sentido (cognitivo, afetivo e social), o que resultaria em uma série de realizações psicológicas. Dentre estas realizações está o separar-se da dependência do complexo materno, acarretando o abandono do status de criança e da dependência infantil do complexo parental, e o desenvolvimento de um ego forte capaz de enfrentar de forma satisfatória as exigências da realidade externa. Se o indivíduo consegue ou não tal realização terá consequências muito importantes para a maneira como ele irá viver sua vida adulta. Para Jung, as realizações psicológicas mencionadas são indispensáveis para que na primeira metade de sua vida adulta, entendida como uma fase extrovertida durante a qual o sol alcança o zênite, o indivíduo consiga cumprir várias tarefas específicas, tais como: capacidade de ganhar a própria vida, ocupar uma posição dentro da sociedade, optar ou não pelo casamento ou algum outro tipo de relacionamento, decidir-se pela paternidade ou maternidade. Diz ele também que estabelecer uma identidade que permita tais realizações não é fácil e que são raras as ocasiões em que a transição para a vida adulta ocorre sem dificuldades. Afirma ele que (JUNG, 1991, p. 409, § 761): Para a imensa maioria são as exigências da vida que interrompem bruscamente o sonho da meninice. Se o indivíduo estiver suficientemente preparado, a passagem para uma atividade profissional pode efetuar-se de maneira suave. Mas se ele se agarra a ilusões que colidem com a realidade, certamente surgirão problemas. Ninguém pode avançar na vida sem apoiar-se em determinados pressupostos. Às vezes estes pressupostos são falsos, isto é, não se coadunam com as condições externas com as quais o indivíduo se depara. Muitas vezes, são expectativas exageradas, subestimadas dificuldades externas, injustificado otimismo ou uma atitude negativista. Jung também afirma que não é apenas esta contradição entre falsas crenças e a realidade externa que tem de ser resolvida para que a passagem para a vida adulta possa ser feita: podem também surgir problemas ligados à vida sexual e a sentimentos de inferioridade advinda de uma sensibilidade exacerbada. O que podemos notar de interessante neste período de crise que irá marcar a transição entre a infância e a vida adulta? Além disso, quais seriam as diferenças mais notáveis entre aqueles que o conseguem superarmais ou menos satisfatoriamente e aqueles que só o fazem a custa de grandes sofrimentos, ou então não conseguem? Em primeiro lugar, parece-nos importante dizer que, para a psicologia analítica, o crescimento psicológico se dá sempre em termos de uma luta entre os opostos, a qual vai, quando satisfatoriamente resolvida, resultar em uma nova síntese. Na passagem da infância para a vida adulta existem dois polos presentes: o do passado, da meninice, de uma situação de dependência dos pais, e o da recusa de abraçar a vida adulta, com seus perigos e dificuldades, mas também repleto de possibilidades. A característica mais importante que pode ser identificada nas pessoas que encontram dificuldades em efetuar tal transição seria agarrar-se ao nível de consciência da infância, recusar-se a se tornar adulto, resistir às forças que o empurram a participar no mundo mais amplo que o seio familiar. Parece que há algo dentro do indivíduo que quer continuar a ser infantil, rejeitar tudo que pareça novo ou então sujeitá-lo à própria vontade, um constante oscilar entre a tendência a não agir ou então se abandonar aos próprios anseios pelo prazer ou poder. Parece que nesta etapa da vida existe presente com muita força uma exigência de ampliação de horizontes, a qual obriga a pessoa a participar de um mundo mais amplo do que o de sua infância. E a psicologia analítica vai nos dizer que qualquer pessoa que procura proteger-se do novo e regredir ao passado acaba na mesma condição neurótica daquela que se identifica apenas com o novo e foge do passado. Nessas pessoas ocorre aquilo que Jung denominou de estreitamento do nível de consciência, ou seja, elas fazem a escolha de ignorar a tensão entre os opostos, em vez de tentar integrá-los permitindo o surgir de um estado de consciência mais elevado. Para este trabalho de superação dos opostos as pessoas contarão com a ajuda do arquétipo do herói. Os arquétipos são formas sem conteúdo próprio que servem para organizar ou canalizar materiais psicológicos. Podem ser comparados ao leito seco de um rio, cuja forma determina as características deste mesmo rio quando a água começa a fluir dentro dele. Foram chamados por Jung de imagens primordiais, pois frequentemente correspondem a temas mitológicos que aparecem repetidas vezes nos contos e lendas que fazem parte do folclore de inúmeras sociedades e culturas (JUNG, 1991). O arquétipo do herói ocupa uma posição central nas lendas de quase todas as culturas e, ao examinar vários mitos e lendas, Jung identificou nele certos elementos centrais: o nascimento divino do herói, sua descida aos mundos subterrâneos, as ações heroicas que tem de levar a cabo, tais como batalhas contra monstros terríveis ou então feitos perigosos que têm de ser realizados; a presença de companheiros e auxiliares, seja do sexo feminino ou masculino, ou às vezes até mesmo um animal; e os motivos da derrota, morte e renascimento. Para Jung, esse arquétipo pode ser identificado com o aparecimento lento da consciência do Eu, o sentimento de um indivíduo único e separado da natureza. O surgimento da consciência teria um lado quase divino e mágico, pois esta nasceria do aparente nada, porém, sua manifestação teria um grande efeito transformador, simbolizado pelo fato de que o herói é filho de um deus e seu nascimento apresenta características extraordinárias. O entrar em contato com as forças obscuras do inconsciente, para Jung, podia ser comparado com a descida do herói aos mundos subterrâneos, algo que implica muitos perigos, mas que tem de ser realizado para que o herói possa crescer e desenvolver-se enquanto um indivíduo único. Além disso, para a maior parte das pessoas, manter a própria integridade e a consciência de si mesmo é frequentemente uma batalha difícil, envolvendo um trabalho duro e ingrato, que parece requerer a presença ao lado do herói de um companheiro e um auxiliar cuja inteligência, perícia, disposição para ajudar e perseverança fossem muito grandes. Contudo, Jung chamou nossa atenção também para o perigo que uma valorização excessiva do arquétipo do herói pode apresentar. Para ele, o conceito clássico de hybris, o orgulho desmesurado, se aplicaria à fé que a moderna sociedade industrial deposita na capacidade humana de produzir, agir e realizar, modificando o mundo ao seu redor. Para a psicologia analítica, a ideia de que a ciência, a técnica e o progresso material acabariam por resolver todos os problemas da humanidade seria um exemplo gritante de hybris, e a identificação excessiva com o herói seria, psicologicamente, uma espécie de namoro com o desastre. O que Jung quis dizer com isso é que a sociedade atual cai no erro da hybris ao valorizar quase que exclusivamente aquilo que as pessoas conseguem realizar no mundo que está fora delas. Diz ele também que a preocupação excessiva com um aspecto isolado da vida, no caso, realizações no mundo externo, conduz sempre a uma diminuição do campo da consciência. E, como para a psicologia analítica, a psique tende sempre à realização do equilíbrio e da totalidade, cria-se uma tensão em nível inconsciente, a qual, por volta dos quarenta anos, pode levar as pessoas a sentirem um vago sentimento de descontentamento, de que algo lhes está faltando, de que não são felizes, de que a vida não tem sentido. Para a psicologia analítica, este sentimento seria uma indicação de que a psique está se preparando para enfrentar a segunda etapa da vida, etapa esta que irá exigir que os indivíduos olhem para dentro de si mesmos, para seu mundo interno. Nesta fase, as pessoas irão enfrentar um período de crise, comparável ao que foi experimentado na passagem para a vida adulta. Diz Jung que a crise é desencadeada a partir da constatação de que, ao concentrar toda a energia psicológica disponível no sentido de realizar metas que possam garantir-lhe um lugar na sociedade, algo importante foi deixado de lado. Assim sendo, mais uma vez o indivíduo vai ter de enfrentar a tensão dos opostos na esperança de encontrar uma saída para o conflito. Novamente, como ocorreu na passagem da adolescência para a vida adulta, terá que escolher entre o conhecido — a repetição dos padrões que se mostraram satisfatórios até então — e o desconhecido — a necessidade de encontrar dentro de si novas razões para continuar vivendo. De novo, terá que enfrentar alguns problemas sérios, para dar continuidade a sua jornada de amadurecimento psíquico. Porém, Jung nos diz que os problemas realmente sérios da vida nunca são totalmente resolvidos. Mais ainda, quando parece que foram solucionados, isto é um sinal gritante de que algo foi perdido no caminho. O significado e o propósito de um problema não estão em sua solução, mas no trabalho constante sobre ele (JUNG, 1991). Para a psicologia analítica, a assim chamada crise da meia-idade é um indício de que uma mudança importante se prepara na vida psíquica. A evidência mostra que entre os trinta e cinco e quarenta anos começam a surgir mudanças nas pessoas: Nas palavras de Jung (JUNG, 1991, p. 413, § 773): […] muitas vezes ocorre uma espécie de mudança lenta do caráter da pessoa; outras vezes são traços desaparecidos desde a infância que voltam à tona; às vezes também antigas inclinações e interesses habituais começam a diminuir e são substituídos por novos. Inversamente — e isto se dá com muita frequência — as convicções e os princípios morais que os nortearam até então, principalmente os de ordem moral, começam a endurecer-se e enrijecer-se, o que pode levá-los, crescentemente, a uma posição de fanatismo e intolerância que culmina por volta dos cinquenta anos. Seria como se a existência destes princípios estivesse ameaçada, e, por esta razão, se tornasse mais necessário ainda enfatizá-los (JUNG, 1991, p. 345). Há ainda outros exemplos interessantes da famosa crise da meia-idade: o marido que troca sua mulher de quarenta anos por duas de vinte; a mulher que gasta quase todo o seu tempo livre na academia de ginástica e no cabeleireiro, tentando reparar os danos causados peloseu olhar para as camadas mais baixas, mais soterradas, à procura da realidade psíquica. Recolhe seus ossos, senta-se junto ao fogo Surya (fogo celeste) e canta. Ao se sentir renascido, corre em direção à nova vida. No deserto a alma se purifica, reencontra a Deus, e consegue seguir seu caminho. No esoterismo ismaélico, o deserto é o ser exterior, o corpo, o mundo, o literalismo, que a pessoa percorre cegamente, sem perceber o ser divino escondido no interior dessas aparências. A sociedade contemporânea apresenta discussões sobre racismo, sexo e envelhecimento. Há um temor no ar sobre a discriminação negativa, que leva à igualdade, porém, esta igualdade apaga as diferenças, que são tão ricas e significativas e que distinguem um grupo ou um indivíduo de outro. Para Mankowitz (1990, p. 142) “as diferenças de idade são importantes. O envelhecimento traz experiências com as quais os jovens nem sonham. O jovem experimenta a vida de um modo que o velho já não pode, mas o velho pode e deve lembrar, e saber como ele mudou”. Para Jung, a segunda metade da vida possibilita ao indivíduo iniciar a sua busca espiritual, pois as obrigações externas da vida já foram cumpridas. Para explicar melhor essa ideia, ele lançou mão de uma metáfora. Apresentou o ciclo vital como o caminho que o sol percorre no céu durante um dia. Assim, do nascimento até a meia-idade, o sol se levanta cada vez mais alto até atingir o zênite, ampliando seu campo de ação no mundo e energizando a terra. A partir do zênite o sol declina até o poente, recolhendo sua luz e voltando-se não mais para a terra, mas para si mesmo, preparando-se para a finitude. Para Jung, a partir da metade da vida, a metanoia, ocorre uma inversão do sentido da libido. O foco da vida passa do mundo externo para o mundo interno. As realizações na vida externa perdem o brilho. A libido dirige-se para o mundo interior, permitindo ao indivíduo descobrir potenciais ainda não desenvolvidos. É um momento de autoavaliação, de reflexão sobre as coisas vividas e as não vividas. O senso de desigualdade entre “o que eu já consegui a essa altura” e o que “realmente quero” leva a alma a buscar “o que realmente quero”. Esta questão leva muitas vezes a uma experiência de renascimento ou renovação de vida (STAUDE, 1988, p. 93). Tais reflexões conduzem à busca de um novo sentido para a própria existência. O processo de autoavaliação amplia a vivência filosófica religiosa, preparando o indivíduo para a finitude. Nesse momento o papel do arteterapeuta, do psicoterapeuta, do analista consiste em auxiliar o sujeito no processo de interiorização e integração de conteúdos inconscientes que emergem nos sonhos, na imaginação, nos processos ansióginos e nos medos. E também em a apoiar a viagem do herói por um campo desconhecido, o mundo interior. Com auxílio de técnicas como, por exemplo, análise do conteúdo verbal, análise transferencial, interpretação de sonhos, imaginação ativa, arteterapia analítica, o profissional possibilitará que o sujeito visualize e aceite as limitações da idade e inicie a busca por novas descobertas conectando-se ao arquétipo da criança. Essas técnicas também auxiliarão na ampliação do sentido de vida e transcendência ligando-se ao Self. “Uma das principais características do processo de iniciação da metanoia é o desenvolvimento de um relacionamento positivo com os aspectos não ego do Self, como a voz interior que Jung chamou de daimon da criatividade” (STAUDE, 1988, p. 94). Lembrando sempre que a experiência direta com as profundezas numinosas da psique é muito mais importante que a análise intelectual da experiência, o profissional sensível está atento para traduzir as emoções em imagens, isto é, permitir que as imagens que estão ocultas nas emoções se manifestem sem limites e sem críticas, ganhando novas forças para a dissolução de velhas estruturas. Geralmente a dissolução é dolorosa, entrar em contato com as experiências passadas, com sentimentos de culpa, perda, solidão, isolamento, ficar de frente com os fracassos é realizar uma heroica conquista do inconsciente. A crise da meia-idade permite integrar alguns dos aspectos do não ego e trabalhar algumas polaridades básicas da psique. Nesse momento tem-se que abandonar o idealismo heroico, porque “há coisas que são mais importantes que a vontade do ego, e a estas devemos nos inclinar” (JUNG, apud STAUDE, 1988, p. 82). A voz interior, o daimon da criatividade, de Jung direcionou a sua postura profissional, as imagens interiores foram expressas pela pintura e escultura, e o auxiliaram na construção de novos paradigmas para a compreensão da psicodinâmica dos estados psíquicos. Quando emergiu da crise da meia-idade, Jung encontrou consolo, e a integração psíquica chegou- lhe através da pintura, da escultura e da navegação. Ele sentiu que essas atividades físicas e artísticas lhe davam equilíbrio e o capacitavam para desenvolver a sua subdesenvolvida função sensorial. Em particular, Jung aprendeu muito sobre si mesmo e sua psicodinâmica, fazendo uma série de desenhos circulares, chamados mandalas, que ele usava como sinal de seus estados psíquicos diários (STAUDE, 1988, p. 87). Para Jung o “fazer” é uma parte importante do trabalho do ser humano. O “fazer”, o “criar” com as próprias mãos revelam o invisível, a sutileza da alma. A arte celebra as estações da alma. La Loba, a partir do canto, ensina a recriar a vida e Jung ensina por meio do “fazer” artístico. Assim, ambos relatam a solidão e oferecem caminhos para sair da esterilidade e adentrar na vida fecunda. Os rituais de passagem compreendem uma morte, seguida de uma viagem ao país dos espíritos, que pode ser no deserto, e logo após um renascimento, o encontro consigo mesmo, o Self. A velhice parece ser mais respeitada na cultura tradicional oriental do que na moderna sociedade produtiva ocidental. No Oriente encontramos mitos, contos de fada e lendas que narram a virtude da velhice. Para os orientais a velhice é indício de sabedoria, acúmulo de experiência e de reflexão. A tradição chinesa, que sempre honrou o idoso, narra que Lao Tse nasceu de cabelos brancos e com aspecto de velho — sua aparência deu origem a seu nome, que significa Velho Mestre. Nascer com os cabelos brancos é sinal de eternidade, de existência no passado. Ser velho significa existir antes da origem e depois do fim. Buda simbolicamente é o Irmão Mais Velho do Mundo. Xiva é o Velho Senhor. Assim também, na tradição religiosa do Ocidente, como no Cristianismo, Deus, o Pai, tem a aparência de um velho saudável, forte, com cabelos e barbas longos e brancos. A correspondente cristã da Velha Sábia encarna na figura de Sant’Ana, mãe da Virgem Maria e avó de Jesus. Na tradição nagô, temos a figura divinizada do Velho Sábio personificado no Orixá Oxalá, mais especificamente em Oxalufã — o velho pai sábio, criador dos seres humanos e tido como pai dos Orixás. Na cultura bantu, temos Zâmbi, que é o Deus criador. A Velha Sábia surge na figura de Nana Buruku, a senhora da lama do elemento primordial da criação humana e da sua final decomposição na morte (ZACHARIAS, 1989). Saindo das belas imagens oferecidas pelos mitos, do(a) Velho(a) em sua plena sabedoria criativa, entramos nos contos de fada, que trazem um outro aspecto do velho. Os contos de fada, geralmente, associam as imagens do Velho ou da Velha à aparência física mais próxima do real: o corpo arqueado e frágil, o rosto enrugado, as mãos desgastadas. Esses personagens moram longe da cidade, no meio da floresta, alguns são bruxos e bruxas e possuem conhecimento que não está ao alcance dos adultos. São exemplos dessas figuras o Mago Merlin, a Baba Yaga, a Cuca, entre outros. Podemos destacar também a deusa celta Sheila Na Gi, que preside o nascimento e a morte, origem de todas as coisas — que surgem através de Yone (a vagina) e que celebram o envelhecimento na plenitude de sua sabedoria de que tudo terá um fim. Para Jung (2002, v. IX/1, p. 218) o arquétipo do(a) Velho(a) representa o saber, o conhecimento, a reflexão, apassar dos anos; o executivo bem-sucedido que quer largar tudo e ir viver como hippie ou então afogar-se totalmente no seu trabalho para tentar esquecer de si. Acreditamos que cada um de nós conhece inúmeros casos iguais ou semelhantes aos que foram citados. Estes problemas têm algo em comum: as pessoas continuam a utilizar as estratégias psicológicas que foram bem-sucedidas na juventude na segunda metade da vida; e da mesma maneira que há pessoas que têm dificuldades em abandonar o mundo da infância, outras existem que não conseguem abandonar sua juventude, e procuraram fugir ante a difícil tarefa de ter de enfrentar o amadurecimento. Neste contexto a teoria de Jung nos chama a atenção para o fato de que, atualmente, nas modernas sociedades industriais as pessoas entram na segunda metade da vida sem ter conhecimento da possibilidade destas transformações, embarcando nesta viagem totalmente despreparadas. Ele afirma que na segunda metade da vida a tônica deve se deslocar da dimensão interpessoal ou externa para um contato maior com os próprios processos interiores, e a luta pelo sucesso externo deve sofrer uma modificação de modo a incluir uma preocupação com o significado e sentido da própria vida através de valores de natureza espiritual. Para a psicologia analítica, é importante que, na maturidade, as pessoas tentem desenvolver uma perspectiva maior, tornando-se conscientes do propósito mais amplo de suas vidas no contexto do sentido da existência e do cumprimento de sua trajetória como realização no mundo do Si Mesmo. Esta abordagem afirma que na segunda metade da vida o encarar a própria morte e o preparar-se para ela devem tornar-se uma realidade. Por meio de um mergulho em sua vida interna, do contato com os grandes arquétipos, com as imagens primordiais, símbolos mais antigos do que a própria história humana, a pessoa vai adquirindo um grau cada vez maior de autoaceitação (HOLLIS, 1995). Este mergulho no mundo interno traz também consigo uma desilusão a respeito dos valores convencionais e estereotipados pelos quais se viveu até então, a necessidade de examinar as relações que se mantêm com as outras pessoas, um contacto mais espontâneo, mas ao mesmo tempo mais profundo com a beleza contida na natureza e na arte, bem como na responsabilidade em aproveitar o tempo para desenvolver dons e talentos que foram negligenciados na primeira metade da vida, especialmente a partir da perspectiva de que tais dons e talentos podem ser utilizados para ajudar outras pessoas (MIDDELKOOP, 1996). Naturalmente, ao proporem-se a realizar este mergulho para dentro de si mesmas, as pessoas não perdem aquilo que é real em suas próprias vidas e experiências: seus conhecimentos, habilidades, capacidade de se relacionar com as outras pessoas e de realizar um trabalho útil continuam a ser importantes. No entanto, na maturidade, à medida que a vida interior torna- se mais importante, elas começam a explorar novas possibilidades e aspectos de si mesmas que até então foram negligenciados. Passam a fazer coisas que valorizam pessoalmente, e não coisas que acham que deveriam fazer ou que são valorizadas pelos outros. Quando as pessoas não resistem a este apelo de abandonarem suas ambições de sucesso e realização externas em favor de uma vida interior mais rica, a pesquisa psicológica mostra que, à medida que passam os anos, suas vidas podem tornar-se mais ricas e agradáveis (MONTEIRO, 2006). O arquétipo, a imagem primordial, que vai guiar os seres humanos na segunda metade de suas vidas, é o do velho e da velha sábios. Jung vai descrever os atributos deste arquétipo como sendo o conhecimento, a reflexão, a capacidade de olhar profundamente para dentro de si mesmo, das coisas e das outras pessoas, sabedoria, perícia e intuição (JUNG, 1991; MIDDELKOOP, 1996). O arquétipo do velho sábio é a outra face, completamente diversa, do herói, porém intimamente ligado a este. Enquanto os feitos do herói são realizados no mundo externo, os do velho sábio e da velha sábia, igualmente importantes, ocorrem no mundo interior. E, da mesma maneira que a figura do herói, a do velho sábio e da velha sábia tem um caráter universal no riquíssimo corpo de informações coletadas através dos séculos pelas grandes religiões e os grandes sistemas mitológicos da humanidade. Cabe também dizer que este foi um arquétipo com o qual Jung, sob diversas formas e de modos diversos, estabeleceu um contato interior muito íntimo e direto, no decorrer de sua longa vida (WEAVER, 1996). A descrição que o próprio Jung nos fornece sobre as qualidades arquetípicas do velho e da velha sábios parece tornar bem clara a ideia de que estes são para ele uma das personificações do espírito, especialmente do espírito enquanto conhecimento e sabedoria. A psicologia analítica vai também nos chamar atenção para outras características muito interessantes deste arquétipo: a capacidade de manter o silêncio interior, de retirar-se do mundo e viver de maneira quase monástica vem indicar que, de forma oposta à força extrovertida do herói, o poder da sabedoria anciã provém de seu interior, e que este poder interior é uma força mágica que nos pode ser extremamente útil no sentido de mostrar o caminho a ser seguido e nos dar forças para prosseguir na jornada da vida. Uma das figuras da cultura ocidental que é mencionada por Jung em conexão com este arquétipo e que encarna na imaginação popular o velho sábio é a do Mago Merlin, das lendas do rei Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda — o mago e feiticeiro, o conselheiro e guia, o velho da floresta e o buscador da verdade, o qual esteve ao lado de Artur antes mesmo de seu nascimento, e cujo desaparecimento marca o começo do fim do reino de Camelot. No Catolicismo temos as figuras de São Joaquim e Santa Ana, pais de Maria e avós de Jesus, representando a sabedoria divina, os quais prepararam Maria para sua missão de mãe do Salvador. Na cultura afrodescendente, que deu origem ao candomblé e à umbanda, a figura do velho sábio está presente no orixá Oxalufã — velho e sábio, paciente com todas as coisas, misericordioso e conhecedor do fato de que as coisas não são totalmente boas ou más. Princípio da criação e da sabedoria, filho de Olorum, o Deus criador cósmico. A velha sábia apresenta-se na forma do orixá Nanã Buruku — senhora dos pântanos e esposa de Oxalufã, origem e finitude da vida material, pois é do barro que Oxalufã cria os seres humanos, que para lá voltam para serem decompostos por Nanã. Nesse sentido ela é a mãe que rejeita os filhos no nascimento, mas os acolhe na finitude, assim como a terra nos acolherá na morte física. Ainda temos a figura dos pretos velhos e das pretas velhas, encarnação da paciência e sabedoria nos terreiros de umbanda (ZACHARIAS, 1998). Em nossa opinião, um dos grandes méritos de Jung enquanto psicólogo e investigador foi o fato de que nos falou de suas experiências com este grande arquétipo de forma a inspirar as pessoas a tentarem entrar em contato com ele, isto em um momento histórico em que o materialismo era a tendência dominante dentro da psicologia. Na verdade, o contato de Jung com o arquétipo do velho sábio foi de tal forma profundo que, principalmente na fase final de sua vida, cada vez mais, para seus colaboradores e discípulos ele foi se tornando o representante vivo desta imagem primordial. Acreditamos que, para nós que estamos vivendo nestes dias de pós- modernidade, repletos de incertezas, e que tivemos a oportunidade de assistir à derrocada de sistemas políticos e de seus grandes líderes, que haviam prometido construir o paraíso sobre a terra, pode ser que a figura humana de C. G. Jung seja ainda uma das que melhor possam simbolizar o significado interior e transformador deste grande arquétipo do velho sábio. Para finalizar, e de maneira muito breve, gostaríamos de oferecer algumas sugestões sobre como nossa sociedade poderia tornar mais rica e produtiva a vida dos que já passaram da primeira metade da vida. Devemos procurar combater, por meio da disseminaçãode informações nas escolas e através dos meios de comunicação de massas, os preconceitos que existem contra a velhice. É importante preparar, por meio da ação cultural da sociedade como um todo, as pessoas de meia-idade, para que tenham condições e possam assim enfrentar, com maiores possibilidades de sucesso, os desafios e as crises que marcam a transição para a segunda metade da vida. As entidades públicas e privadas devem fornecer espaços onde as pessoas mais velhas possam reunir-se, conviver entre si e trocar ideias e experiências sobre o que está acontecendo em sua vida. Além disso, devem desenvolver programas em que os velhos possam ter oportunidades para entrar em contato e desenvolver potenciais que, por falta de tempo, recursos ou disponibilidade, não foram devidamente apreendidos e trabalhados durante a primeira metade da vida. A idade madura oferece um campo vastíssimo de experiências interiores, que, se bem vividas, podem contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e acolhedora. Referências bibliográficas BRENNAN, A.; BREWI, J. Arquétipos junguianos; a espiritualidade na meia-idade. São Paulo: Madras, 2004. HOLLIS, J. A passagem do meio. São Paulo: Paulus, 1995. JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1991. v. VIII. MIDDELKOOP, P. O velho sábio. São Paulo: Paulus, 1996. MONTEIRO, D. M. R. (Org.) Espiritualidade e finitude. São Paulo: Paulus, 2006. PRÉTAT, J. R. Envelhecer. São Paulo: Paulus, 1997. WEAVER, R. A velha sábia. São Paulo: Paulus, 1996. ZACHARIAS, J. J. M. Ori axé; a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998. Notas 1 Doutora em Ciências da Religião e mestre em Psicologia da Saúde, ambos pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Possui especialização em Musicoterapia e em Psicologia Analítica. É psicóloga clínica e educacional pela Universidade Paulista (UNIP). Docente em cursos de Pós-graduação de Arteterapia, Psicologia Analítica, Psicossomática, Gerontologia. Presidente fundadora da Oscip Arte Sem barreiras. Vice-presidente da Associação Catarinense de Arteterapia (ACAT). Autora do livroArte-terapia e loucura (Vetor). Organizadora do livro Revisitando a ética com múltiplos olhares e da coleção Anima Mundi, da citada editora. E- mail: . 2 Psicólogo e analista junguiano pela Associação Junguiana do Brasil/IAAP. Doutor em Psicologia Social e mestre em Psicologia Escolar, ambos pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). É docente universitário, autor do inventário de tipos psicológicos QUATI e DTO e dos livros: Entendendo os tipos humanos (Paulus); Tipos psicológicos junguianos e escolha profissional; Ori axé; Vox Dei; Tipos, a diversidade humana (Vetor). Músico e organista. 3 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, gerontólogo pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, vice-líder do Grupo de Pesquisa Vivencer UPF/CNPq, coordenador do Programa Universidade Sênior. Professor e coordenador do curso de especialização em Gerontologia e Geriatria da Universidade de Passo Fundo. 4 Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Grupo Vivencer/CNPq. Professora do curso de especialização em Psicologia da Saúde e Intervenções Psicossociais e do curso de Psicologia da Universidade de Passo Fundo. 5 Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina e gerontóloga pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. É líder do grupo de pesquisa Vivencer UPF/CNPq, além de professora do curso de especialização em Arteterapia e do curso de Enfermagem da Universidade de Passo Fundo. 6 Pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid, doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, coordenadora de pesquisa e pós-graduação da Faculdade de Artes e Comunicação, coordenadora do Curso de Especialização em Arteterapia, além de professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo e dos cursos de Artes Visuais e de Tecnólogo em Design Gráfico da mesma instituição. 7 Doutor em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor do Programa de Pós-graduação em Envelhecimento Humano da Universidade de Passo Fundo. 8 Doutora em Informática na Educação pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul e professora do Programa de Pós-graduação em Informática da mesma instituição. 9 Mestre em Ciência da Computação Aplicada pela Universidade do Vale dos Sinos e professor no Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes do Centro Universitário Feevale. 10 Considerando que toda situação interacional implica uma situação comunicacional, os protagonistas utilizam o contexto para interpretar as mensagens recebidas, numa visão clássica, mas Lévy (1993) afirma que o contexto na verdade é o próprio alvo da comunicação, isto é, nos comunicamos para transformar o contexto compartilhado pelos parceiros. O sentido de uma mensagem surge do contexto que é local, particular, mas as mensagens se alteram ao se deslocar de uma pessoa para outra influenciando no contexto particular, criando assim um contexto público, compartilhado, unido aos contextos particulares de cada participante. Assim, se, por um lado, o contexto serve para determinar o sentido de uma palavra ou frase, por outro, essa mesma palavra ou frase produz uma rede semântica de significados particular composta de imagens, palavras, lembranças, conceitos, sensações, entre outros, que são ativados quando o protagonista recebe e interpreta a mensagem. 11 Ambiente computacional interacionista é entendido nesse texto como o sistema integrado de software e hardware que permite o desenvolvimento de ações colaborativas. 12 Os idosos possuem o que se denomina “inteligência cristalizada”, que abrange os conhecimentos gerais e de vocabulário que costumam se manter constantes apesar da idade e, em alguns casos, até aumenta. Além disso, as competências sociais nos idosos são mais bem trabalhadas que nos jovens, característica que pode ser aproveitada no processo de apropriação tecnológico. Dessa forma, para Passerino e Pasqualotti (2006, p. 252), “os idosos não somente podem aprender a utilizar a tecnologia, como também se aproveitar da tecnologia para construir e participar de comunidades de aprendizagem, tornando-os novamente socialmente produtivos perante a sociedade. Isso tem impacto na autoestima do idoso e, consequentemente, no grupo social próximo”. 13 Entendido neste texto como mediador (“desequilibrador”: aquele que provoca conflitos e situações problemáticas) do processo de aprendizagem num ambiente com concepção interacionista; já o idoso é entendido como sujeito interagente do processo, isto é, o conhecimento resulta da sua ação sobre a realidade e desta sobre o idoso. 14 A noção de ecologia cognitiva, de acordo com Lévy (1993, p. 137), corresponde ao “[…] estudo das dimensões técnicas e coletivas da cognição”, baseando-se na “[…] ideia de um coletivo pensante homens-coisas, coletivo dinâmico povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes”. 15 Neste texto, entendem-se nodes como pontos de intersecção de vários documentos hipermidiáticos que se confluem para um mesmo lugar, isto é, para outro hipertexto. 16 A linguagem Logo, termo grego que significa pensamento, ciência, raciocínio ou cálculo, foi desenvolvida na década de 1960 no Massachusets Institute of Technology pelo matemático Seymour Papert. É uma linguagem de programação voltada para o ambiente educacional, fundamentada na filosofia construtivista. 17 O Atelier Digital traz uma proposta pedagógica inédita, diferente dos tradicionais cursos de informática. A atividade trabalha de forma continuada a individualidade do sujeito e suas necessidades, levando em consideração o estágio em que cada aluno se encontra. Proporciona também a aproximação do mundo tecnológico e virtual incluindo visitas ao ciberespaço, contatos com editor de texto, internet, entre outros. 18 O Centro Universitário Feevale (www.feevale.br)está localizado na cidade de Novo Hamburgo/RS e teve sua autonomia universitária homologada pelo Ministério da Educação (MEC) em 21 de julho de 1999. 19 A ferramenta integra o portal InterDigital (www.interdigital.org.br), ambiente que agrega todas as ferramentas de comunicação e interação digital no ciberespaço, para idosos vinculados a grupos de convivência, sejam eles do município de Passo Fundo ou não. 20 A UPF (www.upf.br) foi reconhecida pelo Decreto Federal n. 62.835, de 6 de junho de 1968. A sede da instituição encontra-se no município de Passo Fundo — RS. http://www.feevale.br/ http://www.interdigital.org.br/ 21 Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo e do Curso de Letras da mesma instituição. 22 Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo. 23 As reflexões sobre o ressentimento, que serão tomadas como fundamento para este estudo, encontram-se em Bresciani e Naxara, 2001. 24 Para este estudo, utilizou-se a seguinte edição da obra, da qual foram extraídas todas as citações do referido livro: MACHADO, Dyonelio. Memórias de um pobre homem. Pesquisa, apresentação e notas de Maria Zenilda Grawunder. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1990. Em virtude da riqueza de dados que a obra oferece e das inúmeras questões que suscita, toma-se como objeto desta análise apenas a primeira das três partes que constituem o capítulo inaugural do referido volume, a qual é intitulada “Imagens fugitivas”. Essa primeira parte — “Imagens fugitivas” — foi publicada por Dyonelio Machado, inicialmente, em 16 de outubro de 1971, no Caderno de Sábado, suplemento cultural do Correio do Povo, como homenagem póstuma a seu amigo Celestino Prunes. No texto de apresentação da obra, intitulado “O escritor que depõe”, a organizadora da edição esclarece que, no primeiro capítulo, “composto de três partes, o autor rememora as lembranças mais caras de seus primeiros tempos de vida literária. A partir do segundo capítulo alterna trechos manuscritos e datilografados, numa descrição de momentos que vão desde a sua estreia na ficção, em 1927, até sua prisão e vida política […]. São nove capítulos, em 127 páginas predominantemente manuscritas, em que utiliza os mais variados tipos de papel rascunho, rabiscos e correções a tinta, a lápis, caneta vermelha, azul, preta” (op. cit., p. 11). 25 Escritor, presidente da Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul (1935), deputado estadual constituinte pelo Partido Comunista — PCB (1947) e médico psiquiatra, nascido na cidade de Quaraí (RS), em 1895, e falecido em 1985. Foi pioneiro na introdução da psicanálise no tratamento psiquiátrico. 26 Dyonelio Machado, em uma entrevista que concedeu no ano de 1980 (GRAWUNDER, 1995, p. 50), afirma que deixara suas memórias incompletas: havia começado a escrevê-las, porém não concluíra o processo. Esse fragmento, que o autor decidiu não completar, mas também não destruiu, é o texto que tomou a forma de livro. 27 Pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid, doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, coordenadora de pesquisa e pós-graduação da Faculdade de Artes e Comunicação, coordenadora do Curso de Especialização em Arteterapia, além de professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo e dos cursos de Artes Visuais e de Tecnólogo em Design Gráfico da mesma instituição. 28 Psicólogo e analista junguiano pela Associação Junguiana do Brasil/IAAP. Doutor em Psicologia Social e mestre em Psicologia Escolar, ambos pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). É docente universitário, autor do inventário de tipos psicológicos QUATI e DTO e dos livros: Entendendo os tipos humanos (Paulus);Tipos psicológicos junguianos e escolha profissional; Ori axé; Vox Dei; Tipos, a diversidade humana (Vetor). Músico e organista. 29 Formada em Filosofia (1960) e mestre em Psicologia Clínica (1970), ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Psicologia Social pela University of London (1978). É professora aposentada do Instituto de Psicologia da USP. Possui experiência na área de psicologia social: sensibilidade moral, desenvolvimento adulto, transpessoal e grupos transcentrados. 30 Doutora em Ciências da Religião e mestre em Psicologia da Saúde, ambos pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Possui especialização em Musicoterapia e em Psicologia Analítica. É psicóloga clínica e educacional pela Universidade Paulista (UNIP). Docente em cursos de Pós-graduação de Arteterapia, Psicologia Analítica, Psicossomática, Gerontologia. Presidente fundadora da Oscip Arte Sem barreiras. Vice-presidente da Associação Catarinense de Arteterapia (ACAT). Autora do livroArte-terapia e loucura (Vetor). Organizadora do livro Revisitando a ética com múltiplos olhares e da coleção Anima Mundi, da citada editora. E- mail: . Autores Sonia Bufarah Tommasi possui formação em Psicologia da Saúde, com especialização em Musicoterapia, Psicologia Analítica e Psicologia clínica e educacional. Doutora em Ciências da Religião, leciona em cursos de pós- graduação de arteterapia, psicologia analítica, psicossomática, gerontologia. É presidente fundadora da Oscip Arte Sem Barreiras e vice-presidente da Associação Catarinense de Arteterapia – ACAT. Graciela Ormezzano possui formação em Educação, Arteterapia em Educação e Saúde e Artes Plásticas. Realizou seu pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid (Espanha). É professora e pesquisadora da Universidade de Passo Fundo – UPF, presidente da Associação Sul-Brasileira de Arteterapia – ASBAT e editora associada da Revista Brasileira de Ciên cias do Envelhecimento Humano. Créditos Direção-geral: Flávia Reginatto Editora responsável: Andréia Schweitzer Copidesque: Ana Cecilia Mari Coordenação de revisão: Marina Mendonça Revisão: Ruth Mitzuie Kluska Direção de arte: Irma Cipriani Assistente de arte: Sandra Braga Gerente de produção: Felício Calegaro Neto Producão de ebook: Telma Custódio Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados. Paulinas Rua Dona Inácia Uchoa, 62 04110-020 – São Paulo – SP (Brasil) Tel.: (11) 2125-3500 Telemarketing e SAC: 0800-7010081 © Pia Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2011 Envelhecer com sabedoria Prefácio Introdução 1. Sabedoria do envelhecer Referências bibliográficas 2. Sobre a ternura e a velhice Para a compreensão da sexualidade longeva com diferentes significados A história como intercessora na relação afeto e sexualidade na velhice Conjugalidade longeva: um aspecto da ternura na velhice Em defesa da ternura no casamento longevo: intervenções possíveis Concluindo Referências bibliográficas 3. Arteterapia no cuidado gerontológico: algumas reflexões sobre vivências criativas na velhice e a educação do cuidador À guisa de introdução Recursos metodológicos Vivências possíveis: reinventando o processo de ser e estar numa ILPI Experienciando a ludicidade no contexto da institucionalização O olhar da instituição sobre o trabalho arteterapêutico Reflexões finais Referências bibliográficas 4. Idosos em rede: interface entre interação no ciberespaço, tecnologias de comunicação e relacionamento Tecnologias de informação e comunicação promovendo a interação Idosos, sociedade e as tecnologias de informação e comunicação Idosos construindo relações socioafetivas no ciberespaço Ferramenta colaborativa de interação e comunicação no ciberespaço Algumas experiências: idosos em rede Referências bibliográficas 5. Da memória acorrentada à publicização do exílioReferências bibliográficas 6. Picasso como intérprete de si mesmo: afetos, ação e aprendizagem Considerações iniciais O adulto jovem: afirmação das ambições artísticas O adulto maduro: tête-à-tête com o espelho Considerações finais Referências bibliográficas 7. O crepúsculo da vida Referências bibliográficas Notas Autores Créditossabedoria, a inteligência e a intuição, além de possuir qualidades morais como benevolência e solicitude, as quais tornam explícito seu caráter “espiritual”. As histórias são bálsamos medicinais. Trazem instruções que orientam os caminhos da vida. Ao mesmo tempo, despertam interesses, revelam a tristeza, fazem perguntas, levantam anseios e compreensões aflorando o arquétipo, neste caso do(a) Velho(a) Sábio(a), resgatando o impulso psíquico perdido durante a vida. Nos contos de fada o herói se coloca em situações difíceis, sobre as quais não ponderou, não possui o devido amadurecimento. Nesses momentos necessita de orientação, de auxílio, que geralmente recebe de um velho ou de uma velha que encontra pelo caminho. “O(a) Velho(a) representa a concentração do poder mental e a reflexão dos propósitos e, ainda mais importante, introduz um pensamento genuinamente objetivo” (VON FRANZ, 1990, p. 172). Tais situações ou conflitos não pertencem somente aos contos de fada, pois a vida diária requer um posicionamento, para o qual não se está preparado, e a orientação de uma pessoa mais velha é de suma importância. “O Velho sempre aparece quando o herói se encontra em apuros, numa situação desesperadora e sem saída, da qual só pode salvá-lo uma reflexão profunda ou uma ideia feliz, isto é, uma função espiritual ou um automatismo endopsíquico” (JUNG, 2002, v. IX/1, p. 214). Na vida real o arquétipo do velho aparece em sonhos, trazendo soluções para problemas do dia a dia, ou propondo reflexões sobre o problema atual. Os contos não se reportam aos fatores humanos pessoais, mas ao desenvolvimento dos arquétipos; eles mostram os vários modos pelos quais os arquétipos estão relacionados entre si dentro do inconsciente coletivo. Nos contos de fada geralmente o(a) Velho(a) pergunta “de onde vem”, “por quê”, “quem”, “para onde vai”, estimulando a autorreflexão, ao mesmo tempo em que favorece a reunião das forças morais, e ainda presenteia com talismãs mágicos, que vão auxiliar o herói em sua jornada. Na vida real o jovem encontra esse arquétipo na figura da avó, do avô, do pastor, do padre, do professor, da professora, em um conhecido ou estranho, enfim, em uma pessoa de mais idade com a qual tem mais afinidade e respeito. A cultura ocidental da era industrial valoriza o jovem, o ágil; o velho é desvalorizado, é descartável, pois prejudica o rápido andamento das coisas. Não há reconhecimento de seu conhecimento e de sua experiência, isto porque tudo que ele sabe já não tem validade, foi superado. O mundo ocidental esquece que não se vive somente de tecnologia, o conhecimento do velho vai além dessas pequenas fronteiras que esvaecem com tempo. Também esquece que essa tecnologia está em busca cada vez mais da longevidade e, portanto, o número de pessoas velhas aumenta a cada dia. A moderna sociedade ocidental não pode mais se permitir ignorar as pessoas velhas, já que elas constituem uma proporção considerável da população total. A situação social contemporânea exige uma continuidade diferente e uma resposta psicológica distinta do que se via no passado. As mudanças rápidas exigem a mudança de paradigmas em relação ao idoso, mais respeito por sua sabedoria e experiência, criando espaço para sua atuação profissional. Nesse contexto social, os idosos passam por situações de abandono, incompreensão e privação das mais variadas. Dentre elas, podemos destacar o abandono psicológico, na medida em que não há espaço para ouvir suas histórias, suas experiências, sua sabedoria. Sua vida, repleta de vivências e aventuras, é rejeitada como algo ultrapassado, sem utilidade e valor no mundo atual, assim como ele mesmo. Essa postura da sociedade e das pessoas com relação aos idosos leva-os a estados de introspecção defensiva, desenvolvimento de teimosia obstinada e à depressão. Esse panorama conduz o cuidador a prestar atenção especial à fenomenologia do envelhecer e a buscar compreender melhor o processo com o qual irá lidar. Jung desenvolveu procedimentos terapêuticos que se mostram muito úteis para o acompanhamento e apoio psicológico de idosos. Dentre eles, podemos destacar os que utilizam técnicas expressivas e arteterapia. Iremos ampliar melhor esses conceitos a seguir. Apesar de o idoso aparentar decrepitude, sua alma vibra intensamente e anseia por empreender uma nova viagem, para dentro de si, retomando sua história e compreendendo o sentido de sua vida, preparando-se para a eternidade. “Em si, a psicoterapia é o tratamento da alma, pois a alma é a origem ou a mãe de toda conduta humana” (WEARVER, 1996, p. 9). Assim, como Jung, Wearver utiliza o termo “alma” em seu sentido psicológico de origem grega, psyche, e não com conotação religiosa, o qual também será adotado para esse texto. Quando a pessoa apresenta um problema, que parece ser individual, ela traz o seu corpo, a sua alma e todo o seu mundo. O indivíduo é um componente do mundo, suas ações e comportamentos interferem no mundo, e as ações e comportamentos do mundo e do coletivo interferem no indivíduo. É a lei da ação e reação. “O mundo e a alma são suprapessoais […] a psicoterapia atravessa o limite do pessoal e o vincula ao suprapessoal” (WEARVER, 1996, pp. 9- 10). A arteterapia possibilita que a alma manifeste suas imagens, suas cores e formas, tanto pessoais quanto coletivas; revela a imagem, a cor e a forma da sombra, o lado sombrio da persona. Jung, ao estudar a psique, com o teste de associação de palavras, constatou dificuldades na continuidade do pensamento consciente, que era interrompido com outras ideias, com teor emocional, vinculado à palavra estímulo. Também verificou que existe um mecanismo de projeção, que a consciência utiliza uma atividade criativa autônoma do inconsciente pessoal e que tem a propensão de criar mitos. Jung empregou esse dinamismo no contexto analítico, e o denominou imaginação ativa, na qual incluiu técnicas de expressão artística, tais como visões, pinturas, modelagem, redação, música. Na imaginação ativa o inconsciente fornece o conteúdo, enquanto o consciente auxilia a moldar a forma. O ego aceita a imagem inconsciente, sofre-a, sente-a e coopera com sua formulação. Segundo Wearver (1996, p. 34): O elemento-chave da imaginação ativa está na extensão em que a pessoa se sente envolvida ou participa de algo que está escrevendo ou vivenciando, moldando em argila ou pintando. A pessoa não pinta diretamente na primeira pessoa; não obstante, uma obra de pintura pode revelar muito da imaginação ativa, vinculando consciente e inconsciente. Na mesma medida que a pessoa está de fato envolvida, seu ego também estará. Verifica-se, portanto, que Jung partiu de uma imagem para a ação criadora. Em arteterapia, de maneira geral, parte-se do sentir para a ação, estimula-se o sujeito a pintar a sua dor, a sua emoção, que revela o vínculo do consciente com o inconsciente e conta com a cooperação irrestrita do ego. Desde muito antes de a medicina existir a imaginação atuava tanto na saúde quanto na doença. A prática da magia para curar doenças entre os povos primitivos era normal, como, por exemplo, os rituais xamânicos. A imaginação é fundamental para o processo de informação e também para a orientação do sentir e do lidar com as emoções. Na Grécia antiga acreditava-se que a doença era desencadeada pela alteração dos humores divinos. Na Ilíada encontram-se quadros de doenças psíquicas, tais como melancolia, mania e loucura. São descritos momentos em que a alma é dilacerada por conflitos e dúvidas; e a solidão torna-se companheira. Muitos templos de cura foram construídos, com interiores ricamente decorados com pinturas e esculturas dos deuses, no qual se podia ouvir música, relaxar e estabelecer um religare e, consequentemente, recuperar a saúde (TOMMASI, 2005). Para Jung o ser humano se apresenta externamente com o corpo material e internamente pelas imagens de suas atividades vitais. Conhecer a conexão entre emoções, sensações e imagens possibilita o conhecimento do sistema e dos fatores psíquicos, somáticos e sociaisdo ser humano em questão, isso porque as emoções têm sempre um correlato fisiológico. O contato com essa conexão se faz com a imaginação ativa (técnica criada por Jung), com a expressão artística ou com a arteterapia, que auxiliam na compreensão dos símbolos em seu sentido figurativo, emocional, psíquico e, também, nas manifestações físicas. Restabelece-se o religare. Considerando o espaço terapêutico como lugar sagrado em que se faz o religare por meio da criação artística, citamos Eliade (1998, p. 320): Para recuperar o tempo sagrado, o tempo mítico, o Grande Tempo, será necessário o rito e todos os gestos significativos, sem distinção. O rito é a repetição de um fragmento do tempo original, sendo que o tempo original serve de modelo para todos os tempos; basta conhecer o mito para compreender a vida. O trabalho com imagens no processo terapêutico tem como finalidade trazer para a consciência o sistema de crenças, mitos e valores que regem a psique do indivíduo e, assim, auxiliá-lo no caminho do autoconhecimento e no processo de trans-forma-ação em busca do Ser Integral. Middelkoop (1996, p. 10) prefere empregar o termo mundo imaginal, e usa a palavra imaginação com um significado particular: para ele é a “descrição de uma vivência dentro do mundo imaginal”. Nesse sentido ele explica que o mundo imaginal é dinâmico, atua quando a pessoa está desperta com plena consciência. A imaginação conduz os sentimentos, comportamentos, sensações físicas. Por meio da imaginação o indivíduo fica feliz, triste, sente dor, discute relações, toma posição diante de alguns fatos, soluciona problemas, com plena consciência do que se passa dentro dele. O mundo imaginal também propõe desafios, às vezes com tarefas específicas “que parece ter sido organizado a partir de um ponto central […] o cerne do Si-mesmo […] este cerne possui uma forma personificada”, com iniciativa, linguagem e ação própria (MIDDELKOOP, 1996, p. 11). O Si-mesmo se expressa por meio de imagens, metáforas, símbolos e rituais, que às vezes não são compreensíveis de imediato, e também não é necessário interpretar todos os símbolos que são apresentados por ele. Muitos símbolos se apresentam com a função de exercer influência sobre a psique. “O arquétipo do Velho representa a reflexão útil e a concentração das forças morais e físicas que se realiza espontaneamente no espaço psíquico extraconsciente, quando um pensamento consciente não é possível” (JUNG, 2002, v. IX/1, p. 214). Não há como preparar o indivíduo para percorrer os caminhos da imaginação ativa, assim como não se prepara alguém para sonhar: as imagens fluem do inconsciente livremente. A jornada conduzirá a uma “aprendizagem especial, concentrada no fortalecimento da sensibilidade e da empatia” (MIDDELKOOP, 1996, p. 17). Existem momentos em que as palavras não expressam o sentir, em que o pensamento racional não comporta a dimensão das emoções, e literalmente se fica sem palavras para exprimir aquilo que se quer transmitir; então, em uma tentativa de dizer o indivisível, se faz uso do pincel, da pena, da partitura e do corpo, para dar vida às figuras do inconsciente que são vivas e numinosas. A imaginação ativa, a arteterapia, alcança o seio da estrutura da psique, em que a vida psíquica é contida e mantida. É nesse âmbito que constitui a origem dos mitos, dos contos de fada e das formas específicas de credo e rituais religiosos. A ampliação por analogia facilita o indivíduo a aceitar sua própria vinculação com a totalidade da raça humana e seus fundamentos intrínsecos. Ao profissional compete comparar a história de vida do sujeito com as histórias narradas, decorrentes da imaginação, e desvendar como esse sujeito conduz sua vida e enfrenta os problemas de sua existência. Assim se têm dados da relação do ego com o Si-mesmo. Na última fase da vida, quando as energias físicas e psíquicas começam a enfraquecer e, ainda, quando amigos e parentes se vão, os valores espirituais e culturais passam a ser muito importantes. Conhecer a figura de velho(a) que rege a psique de cada indivíduo, como ele sente e imagina sua velhice, como elabora seu caminho de amadurecimento, quais são seus sentimentos em relação à velhice alheia e à própria e, ao mesmo tempo, identificar os aspectos sóbrios da velhice, prepara-o para um entardecer sadio e criativo. Para Middelkoop (1996, p. 12), “O mundo imaginal cria um campo de força no qual certos acontecimentos tornam-se possíveis enquanto tudo o mais se revela muito mais difícil, o que significa que somos capazes de localizar novas fontes dentro de nós mesmos”. Penetrar no mundo imaginal significa caminhar por alamedas misteriosas, além de possibilitar encontrar a cada esquina um novo desafio para resolver e transcender para novas etapas de crescimento. Referências bibliográficas CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. EDINGER, E. F. Um esboço sobre psicologia analítica. São Paulo: Quadrante, 1984. ELIADE, M. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ESTÉS, C. P. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. JUNG, C. G. Estudos experimentais. Petrópolis: Vozes, 1995. _____. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. _____. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, v. IX/1, 2002. MANKOWITZ, A. Menopausa. São Paulo: Paulus, 1990. MIDDELKOOP, P. O velho sábio. São Paulo: Paulus, 1996. STAUDE, J. R. Desenvolvimento adulto de C.G. Jung. São Paulo: Cultrix. 1988. TOMMASI, S. M. B. Arte-terapia e loucura. São Paulo: Vetor, 2005. VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1998. WEARVER, R. A velha sábia. São Paulo: Paulus, 1996. ZACHARIAS, J. J. M. Ori axé; a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1989. S CAPÍTULO 2 Sobre a ternura e a velhice Agostinho Both3 e Ciomara Ribeiro Benincá4 e existem conceitos naturalmente interligados, são a ternura e a velhice. Esta ligação, quase uma interdependência espontânea, baseia- se, provavelmente, na representação social do ser idoso como aquele amável e bondoso indivíduo que habita no inconsciente de todos, em tese, representando o ideal da figura do vovô e da vovó. A partir daí, percebe-se uma tendência culturalmente determinada para representar o idoso e a idosa como alguém destituído de malícia e, principalmente, sem qualquer tipo de manifestação de caráter sexual ou erótico. Tem-se, então, a figura do velhinho ou da velhinha meiga e benevolente, que em atitude de total entrega e devoção abdica dos anseios eróticos e dos desejos sexuais mais íntimos para dedicar-se ao cuidado dos descendentes em troca da mutualidade do afeto, da proteção e do respeito. Entretanto, estaria essa figura branda e benevolente correspondendo fielmente à imagem do homem e da mulher que atingem a terceira idade nos dias de hoje? Definitivamente, esses devotados e circunspetos sujeitos estão em extinção como resposta às mudanças de uma sociedade que se moderniza tecnológica e culturalmente, pouco a pouco garantindo a todos a livre expressão da sua individualidade, independentemente de idade, cor, raça e sexo. E é nesse contexto que a relação entre ternura e velhice assume um significado revisto e ampliado, contribuindo para a plena realização do idoso nas mais variadas esferas de sua vida. A ternura, então, pode ser entendida como a capacidade de expressar afeição e estabelecer relacionamentos, dentre esses, os que permitem usufruir da própria sexualidade. Trata-se, também, de um processo de construção de vínculos pelo qual o ser humano se sente valorizado e atendido nas suas questões vitais, especialmente na velhice, quando o suporte social assume uma importância capital na saúde física e mental. Nesse sentido, o presente texto apresenta e discute os sentidos atribuídos à ternura na terceira idade, problematizando a importância das relações coloridas pelo afeto como direito inalienável a qualquer pessoa em todo o ciclo vital. Busca-se, assim,explorar de diversas maneiras a natureza, as formas e os caminhos da ternura, tendo como foco a sua manifestação e importância na velhice. Vale salientar, porém, que o conceito de ternura aqui apresentado corresponde ao desenvolvido por Restrepo (2000, p. 84), que respeita uma lógica relacional aberta e relativizada. Somos ternos quando abandonamos a arrogância de uma lógica universal e nos sentimos afetados pelo contexto, pelos outros, pela variedade de espécies que nos cercam. Somos ternos quando nos abrimos à linguagem da sensibilidade, captando em nossas vísceras o prazer ou a dor dos outros. Somos ternos quando reconhecemos nossos limites e entendemos que a força nasce de compartilhar com os outros o alimento afetivo. Somos ternos quando fomentamos o crescimento da diferença, sem tentar nivelar aquilo que nos contrasta. Somos ternos quando abandonamos a lógica da guerra, protegendo os nichos afetivos e vitais para que não sejam contaminados pelas exigências da funcionalidade e da produtividade a todo transe, que pululam no mundo contemporâneo. A manifestação da ternura, enquanto estratégia afetiva necessária ao fortalecimento de laços interpessoais, é importante em qualquer fase da vida do ser humano. Desde o nascimento, o bebê tem seu contato com o mundo estabelecido pelos gestos da mãe que, permeados pelo afeto, transcendem o caráter meramente conservativo para constituir laços de confiança e de ternura. Assim acontece durante toda a vida! Na velhice, da mesma forma, a expressão afetiva estrutura os vínculos mais importantes, sejam eles relativos à manutenção do grupo social, familiar e, de forma mais restrita, à manutenção dos laços conjugais. No primeiro caso, a ternura do idoso para com seus descendentes ou com a sociedade mais ampla cristaliza a representação idealizada do “vovô” e da “vovó” como figuras aglutinadoras na família e referência para os mais jovens. Trata-se, aqui, de uma estigmatização que, de forma mais ou menos declarada, mascara o real preconceito, a desvalorização e a exclusão social do idoso na cultura ocidental. Alie-se a isso a clivagem entre a ternura e a sensualidade, explicitada na teoria psicanalítica como se fosse reativada nesse período tardio da vida. Vovô e vovó são anjos da guarda com um corpo diáfano, liberado de todo traço de sensualidade. Esta fábula deve ser preservada a todo custo; se preciso for, sob o controle dos filhos que se tornam, por sua vez, guardiões do recalcamento (ou da supressão). Ocorre, assim, uma inversão dos papéis que ocupavam na adolescência. Adultos maduros são então compelidos a ocultar cuidadosamente todo e qualquer interesse sexual, sob pena de serem socialmente desconsiderados e afetivamente rejeitados pela própria família (VASCONCELLOS et al., 2004, p. 415). No presente texto, com efeito, discute-se a importância da ternura na manutenção dos laços conjugais, tendo a sexualidade como uma manifestação afetiva essencial para preservar e fortalecer o casamento longevo e outros laços íntimos. O que se defende, então, é que para os idosos a ternura representa um elemento essencial no matrimônio e fora dele, comparado a um tempero sutil e suave que torna o sexo bem mais saboroso ao exigente paladar dos casais longevos. A problemática da sexualidade na terceira idade, além dos aspectos afetivos, leva em conta fatores básicos que, na verdade, influenciam o comportamento e a resposta sexual em qualquer idade. Em seu estudo com casais longevos, Vasconcellos et al. (2004) apontaram cinco fatores que se combinam para restringir ou ampliar a manifestação afetivo-sexual nessa etapa: 1) a saúde física; 2) os preconceitos sociais; 3) a autoestima; 4) os conhecimentos sobre sexualidade; e 5) o status conjugal. Nesse sentido, é certo que a condição de saúde deteriorada pode impedir o interesse pelo sexo, tanto quanto as experiências negativas do passado e a insatisfação conjugal e sexual atual deterioram as relações afetivas, fortalecendo conflitos e rancores que resultam no afastamento físico e emocional do casal. Alie-se a isso a fragilidade psicofisiológica a qual estão submetidos muitos idosos para, muitas vezes, sacramentar as áridas relações conjugais na terceira idade. A valorização da manifestação afetiva, colocada aqui como o direito à ternura, vem contrariar a ideia de embotamento natural estendido à sexualidade, como se tratasse de um processo de esgotamento irreversível e retilíneo típico do envelhecimento. Rejeita-se, então, a proposta limitadora da expressão afetiva e sexual, uma vez que há muito tempo o reducionismo biológico vem afetando o entendimento humano sobre a capacidade de expressão da libido. Entretanto, a manifestação afetivo-sexual, como todo fenômeno humano, também é perpassada pela cultura que, através das instituições e suas convenções, modula as suas formas limitando comportamentos e atitudes interpessoais. De uma perspectiva histórica ocidental, o pensamento greco-romano e cristão não tem sido gentil com a manifestação da sexualidade entre os mais velhos. São recorrentes os temas da fria e seca velhice em praticamente todos os textos, como no de Iacub (2006), por exemplo. Ele faz um profundo estudo sobre a construção da política em torno da eroticidade na velhice, que dificulta a organização pessoal e dos casais, sendo os propósitos sociais limitadores das relações de expressão afetiva. As realizações estreitas de cuidados dos filhos, diz o autor, fazem com que a expressividade muitas vezes se reduza aos conflitos e a outras formas de opressão. Além disso, as promessas de fidelidade e felicidade para sempre frequentemente ocultam e escamoteiam o arrefecimento severo da retirada das outras oportunidades de viver, revelando-se em formas amorfas e em caminhos repetidos, como se a cultura reificasse e naturalizasse as vivências e os espaços interiores longe de estados afetivos emergentes. Assim, analisando-se historicamente a manifestação afetivo-sexual, tem- se a impressão de que, além da irreversível decadência orgânica, com a velhice estabelece-se mais drasticamente um apelo para o ser humano olhar seu destino associado à morte. E isso parece ser o mote principal na percepção tecnicista da modernidade: entre alguns olhares contemporâneos, a velhice articula-se “como um retorno ao inorgânico, uma tendência à desconexão ou um aumento da pulsão para a morte devido às mudanças biológicas associadas à sexualidade” (IACUB, 2006, p. 80). O velho, assim, é visto como um indivíduo carente de energia, que, retirando-se, favorece o desenvolvimento da espécie humana, recebendo, em contrapartida, a generosa compensação da transcendência religiosa. Considere-se, por outro lado, que, de uma perspectiva biológica, velhice e morte são conceitos naturalmente associados um ao outro. Pelo definhamento do corpo, se em algum momento da vida a morte é natural, esse momento é a velhice. Equivale dizer, então, que a morte de uma pessoa idosa surpreende menos do que a de um jovem “na flor da idade”, baseada na ideia de cumprimento de finalidades para as quais a pessoa veio ao mundo. Assim, de uma perspectiva existencial, a finitude enquanto condição inerente a qualquer ser vivo remete o indivíduo à inevitável reflexão sobre a própria existência, servindo como ponto de referência e de significação, balizado nos limites temporais que denunciam a irremediável precariedade da condição humana. A consciência de um significado existencial enquanto membro atuante de um grupo ou de uma sociedade pode ressignificar a experiência solitária de envelhecimento e morte para a dimensão espiritual do enfrentamento da finitude, como uma explicação para o ser humano, a que ele veio ao mundo. Independentemente de ser uma experiência religiosa ou não, a visão de transcendência consistiria, então, na busca espiritual baseada na necessidade de se perceber pertencente a algo mais amplo do que o simples cotidiano, a serviço de um enfrentamento mais tranquilo da ideia de envelhecimento e finitude (ROSENBERG apud BENINCÁ, 2003). Para a compreensãoda sexualidade longeva com diferentes significados O comportamento sexual dos homens e das mulheres tem sido abundantemente investigado, apontando diferenças entre as formas masculinas e femininas da expressão sexual. O mesmo investimento não se aplica à sexualidade dos idosos. A expressão da sexualidade na terceira idade ainda é uma área de pesquisa relativamente negligenciada, seja pelos ditames socioculturais que não têm no velho um ser sexualizado, seja pela própria dificuldade e inibição das pessoas dessa idade para abordar esse assunto (NORGREN et al., 2004; VASCONCELLOS et al., 2004). Os estudos indicam que a expressão afetiva está diretamente vinculada aos modos de vida anterior e à própria capacidade de renovação afetiva. De maneira geral, as indicações das pesquisas levam a um pluralismo na expressão sexual, dependendo das condições de saúde, do estilo de vida e das oportunidades atualizadoras de sua manifestação. De outra parte, existem também indicações afirmadoras de uma multiplicidade de objetos substitutos na expressão da sexualidade. Então, a ternura na velhice revela- se multiforme, de acordo com as perspectivas biológicas e culturais de inserção dos mais velhos. Pode-se dizer, assim, que a expressão da sexualidade tem-se apresentado cada vez mais e de diferentes maneiras tanto em razão da autorização social e das mudanças culturais quanto das alternativas que os fármacos concedem pelos avanços da tecnologia médica. Da perspectiva das ciências sociais, a antropologia, a sociologia e a linguística têm demonstrado que a expressão das diversas realidades humanas não obedece somente aos ditames da biologia, mas também, ainda mais significativamente, à biografia inserida nos contextos da linguagem social da qual é tributária. Nesse contexto, as transformações científicas e socioculturais, consequentemente, contribuíram para a expressão da sexualidade dos mais velhos, revisando conceitos que parecem ganhar novas formas, superando- se antigos estigmas, como aquele representado nos primórdios da psicanálise (FERENCZI apud IACUB, 2006). Se tornam cínicos, maliciosos e mesquinhos: quer dizer, sua libido regressa às etapas pregenitais do desenvolvimento, expressando, às vezes, de maneira dissimulada, em forma de erotismo anal, voyeurismo, exibicionismo e tendência à masturbação (p. 122). Hoje em dia, porém, os progressos da medicina acabaram por minimizar as barreiras biológicas que dificultavam, em outros tempos, a manutenção da atividade sexual na maturidade. O que se espera então é que, juntamente com o aumento da expectativa de vida e do progresso científico e técnico obtido, haja uma evolução social e cultural que produza mudança de mentalidades no que tange à manifestação da sexualidade dos idosos. Na prática, nem sempre isso acontece. Não raro, as manifestações públicas de desejo sexual dos mais velhos são tidas como inadequadas, especialmente se assumirem um caráter estereotipado obtido à custa da liberalização dos costumes, das terapias de reposição hormonal, assim como das novas moléculas que lutam contra as disfunções de ereção (VASCONCELLOS et al., 2004). O que se vê, então, é uma sexualidade longeva ainda contaminada de preconceitos, como a ideia do “velho safado”. O velho safado é visto como um fescenino, um obsceno, um devasso […] A reação diante de seu comportamento varia da irônica condescendência ao desprezo e à indignação. […] A safadeza e o Viagra garantem-lhe a cara de pau necessária para que ele volte à carga tantas vezes quanto necessário. É claro que com isso ele não se torna mais simpático aos olhos das pessoas (SCLIAR, 2007, p. 19). Como se pode observar, mesmo não se recomendando posturas que ridicularizem o idoso em relação à manifestação da sua sexualidade, ainda é premente a necessidade de lutar contra crenças associadas ao ostracismo e à discriminação sexual que atingem esse grupo de idade. Em outras palavras, percebe-se que as repercussões do processo de envelhecimento sobre a sexualidade são particularmente contaminadas de preconceitos relacionados à degradação biológica que serviu durante séculos para caracterizar essa etapa da vida, impregnando o imaginário cultural. É de conhecimento geral que a mídia retrata o sexo como sendo para os jovens e esbeltos, e o humor “velhicista” tacha os mais velhos que querem uma vida sexual de “velhos sujos” ou feios e desesperados. Mesmo as pessoas mais velhas rotuladas pela mídia como “sexy” geralmente são escolhidas porque “não parecem ter a idade que têm”. Correspondentemente, a pessoa mais velha não encontra no seu dia a dia a confirmação de que desejar uma vida sexual em qualquer etapa da idade adulta é normal e sadio (STUART-HAMILTON, 2002, p. 142). A história como intercessora na relação afeto e sexualidade na velhice Considerando-se que as mudanças históricas em torno das disciplinas institucionais, entendimentos e motivações apresentam similaridades em suas expressões, pode-se pensar que a história da sexualidade humana, tanto no campo pessoal quanto nas relações diádicas, obedece à semelhança dos processos históricos maiores. As rupturas, porém, surgem em razão de os costumes já não darem conta das necessidades que emergem, solicitando um novo tempo. Nesse contexto, dois eventos concorrem para a mudança. O primeiro diz respeito à insatisfação em torno das outorgas institucionais, em atenção às solicitações sociais dos mais velhos. O segundo emerge das provocações advindas, geralmente, de ideias e motivações que se diferenciam significativamente daquelas que moviam as estruturas existentes anteriormente. Parece, assim, significar que as instituições, a própria estrutura social, as pessoas e as díades vinculadas em razão da qualidade de conexão com outros espaços culturais aceleram a desestruturação dos antigos costumes, fazendo com que os atuais não produzam mais os mesmos efeitos e a mesma satisfação. Nesse arranjo social, cada vez mais se produz o desperdício da dignidade, por conta de jogar-se fora tudo e todos aqueles que, por uma razão ou outra, podem ser descartados, prevalecendo uma sensação de fácil abandono e de ameaça. Então, sobrevivência, competição e exclusão dos mais fracos ditam as regras de convivência humana no mundo ocidental produtivo, sendo o programa Big Brother a representação viva desse processo, em que a regra do jogo é excluir! Tendo sobre as cabeças a sentença de que tudo pode acabar de uma hora para a outra, consome-se tudo e todos desesperadamente, lançando-se mão de linhas de crédito que atendam os desejos de imediato. Nessa cultura de massa, as financeiras e as lojas, por sua conta, tripudiam com juros os incautos logo ali adiante, humilhando aqueles que transcendem a sua capacidade de quitar as próprias dívidas e preservar a sua dignidade. A ternura, essa necessária intimidade humana, fica, assim, relegada a rápidos contatos ou a falas virtualmente estabelecidas mediante os recursos tecnológicos que encurtam distâncias, mas, nem sempre, aproximam pessoas. Da mesma forma, as casas não mais conseguem representar os antigos sistemas de convivência, troca e comunicação, já que a intimidade das conversas duradouras atualmente flui com dificuldade entre ações que revelam características de hiperatividade, violência e medo, refletindo o clima da sociedade urbana mais ampla. Dessa maneira, fortalece-se o centralismo do ego, uma vez que não se tem a necessária solidariedade e afeto que ampliam as possibilidades de extensão da existência humana para além das subjetividades individuais qualificadas em propósitos de uma eroticidade narcisista. Por outro lado, as instituições, assim como as pessoas, têm maior ou menor capacidade de redefinir seus objetivos e metas para, então, superar as antigas formas de providenciar os apelos humanos. A capacidade de renovação carrega, pois, um legado que facilita o processo de mudanças. As disposições culturais e sociais, historicamente internalizadas no seio da sociedade ou nos indivíduos, facilitam os avanços superadores dos costumese reinventores de caminhos. As condições do meso, micro e macrossistema têm muito a auxiliar na determinação das mudanças. A inserção dos mais velhos em grupos sociais pode dinamizar mais ou menos os processos internos, tendo-se a história e o meio ambiente como contribuição para a dinâmica da ternura. E para efetivação das mudanças em atenção ao processo de contínua e positiva manutenção do estado afetivo, algumas categorias inerentes a todo processo histórico colaboram de forma decisiva. Se for verdade que a história da velhice traz elementos perversos, fazendo com que seu entendimento tenha comprometido os investimentos sociais e pessoais em torno dela, existem, de outra parte, proposições interessantes para minimização de seus efeitos e maximização de recursos inovadores. Dentre essas está o paradigma da pós-modernidade, com a construção das identidades e defesa do direito de cada sujeito construir-se com suas próprias referências culturais. A partir desse paradigma, as mulheres podem deslocar-se para sua centralidade e as minorias para a convivência naturalizada de seus próprios costumes, tanto quanto a longevidade pode tornar-se um espaço humano confortável como o da juventude e da vida adulta. A identidade passa a ser, então, uma referência com a qual se estabelecem relações de poder; consequentemente, os mais velhos têm a sua intimidade respeitada e, por uma política social, podem encontrar novas formas de expressão afetiva e sexual. Isso significa que eles passam a se constituir por discursos com novas tendências, ou seja, como frutos da linguagem histórica em constante transformação. As formas de operar a realidade têm como base as referências culturais afastadas da tradição. Isso, porém, não afasta o entendimento do sujeito, que pode desenvolver estratégias denunciadoras e opções divergentes daquelas originárias de sua cultura. Deduz-se, então, que o espaço da crítica social e pessoal, a partir de referenciais linguísticos, enseja uma função disciplinadora de vontades diferentes daquelas que são estabelecidas pelas hegemonias tradicionais da cultura. Assim, as metanarrativas, ou seja, as verdades maiores que estruturavam poderes e formas de existir passam a dar lugar a discursos igualitários e diferenciados. O que até pouco tempo atrás parecia ser próprio dos jovens, hoje também pode ser alcançado pelos mais velhos, bem como a ternura e a sexualidade, que já estão disponíveis em qualquer faixa etária! Considere-se, porém, que muitos velhos de hoje já traziam modelos comportamentais revolucionários para a época em que eram jovens, expressando de forma criativa a sua sexualidade, sem dar muita importância aos interditos sociais. A história aponta para mudanças resultantes de intervenções significativas, seja por inconformidade das pessoas, por descobertas intrínsecas a interesses de grupos ou por descobertas paralelas. Assim, a história se oxigena e entra em estado de ebulição emergente, causando entusiasmo e novas trocas, geralmente oriundas de fora e estimulando novas organizações e arranjos sociais. Essa foi a forma como os egípcios intervieram na Grécia e os árabes na cultura cristã no advento das cruzadas — acontecimentos dos quais se conhece bem os resultados e impactos. Na história dos casais e dos indivíduos, guardadas as devidas proporções, ocorre o mesmo fenômeno. Quando se fala de casamentos de longa duração, isto é, que compreendam um período de vinte anos ou mais, deve- se considerar que esses casais já passaram por várias transformações pessoais, conjugais e familiares. Compreende-se, por outro lado, que os movimentos sexuais em transformação ocorrem em razão de novos objetos de paixão, dados por novos apelos que invadem a sociedade ou emergem de forma particular. A liberdade de ser parece exigir algumas condições mínimas para a ocorrência de renovações atualizadoras. Se existe a crença de uma tendência atualizadora dos organismos vivos, parece, porém, que tal evidência não ocorre por geração espontânea. Os aprendizados anteriores, ou seja, a configuração de um estilo de vida do indivíduo e da díade se configura em atualizações afetivas, tendo em conta a história dos potenciais anteriores. Assim, tanto a escola quanto a família podem probabilizar expressões afetivas futuras dependendo das vivências, pois virtudes como a ternura se formam em razão de exercícios que se concretizam em hábitos. A casa e a escola, muito antes dos eventos futuros, são garantias de renovação de estoques afetivos, sendo a sala de aula, a família, a comunidade espaços privilegiados de ternura, garantindo formas mais agradáveis de seres humanos para o resto de suas vidas. A sociedade ocidental possui disposições significativas por onde casais, enquanto autorizados por razões da generatividade, podem perfazer suas identidades. Casas, filhos, assessoramento reconhecido, a unidade e a intimidade, o trabalho reconhecido, os parentes em torno, as celebrações parentais, os olhares, o sexo seguro e as falas íntimas, o amor, a segurança, as concepções de mundo, o imaginário comungado, as memórias, marcam identidades. Muitas dessas mediações, senão todas, sofrem alterações substanciais no decorrer da existência do casal. Entretanto, as perdas, muitas vezes suavizadas por mudanças na destinação afetiva, mas muitas irreparáveis, podem comprometer o bem-estar na conjugalidade. Conjugalidade longeva: um aspecto da ternura na velhice O redimensionamento da afetividade e do sexo na terceira idade, segundo Lopes (1999), passa, necessariamente, pela revisão de valores, crenças e limites, reinterpretando a sexualidade do casal de forma positiva, sem desconsiderar uma provável interferência hormonal no comportamento sexual. Nesse ponto, devem-se evitar expectativas irrealistas que, no contraponto à abstenção, levam à obrigação exagerada por desempenho (VASCONCELLOS et al., 2004). O casamento longevo, assim como a longevidade estendida, são fenômenos sociológicos recentes não suficientemente enfocados. De uma perspectiva estritamente biológica, o casal longevo perde suas funções históricas de reprodução e produção, embora tenha mais tempo para ficar junto, visto que o cuidado com os filhos deixa de ser uma tarefa central e a vida profissional perde o destaque ou se interrompe. Parafraseando Marx (apud DUMAZEDIER, 1994), pode-se dizer que o tempo livre para a distração, assim como para atividades superiores, transformará naturalmente quem dele tira proveito num indivíduo ou casal diferente. A afirmação pode levar a diversas direções. Em primeiro lugar, esse tempo demanda preparação conjunta, uma vez que o reconhecimento mútuo é necessário no matrimônio. Para a sustentação de uma conjugalidade bem-sucedida, é preciso a escolha antecipada de objetos de paixão suficientemente capazes de gerar densidade afetiva pela cumplicidade de ambos em torno dos efeitos da ação individual e/ou conjunta. Assim, não é suficiente a busca da ocupação do tempo livre com objetivos de interesse individual, se em um dos cônjuges tal escolha for desconsiderada. Tanto o não fazer como o fazer podem levar à perda da intensidade afetiva e da admiração mútua, uma vez que o fazer pode conter motivos de distanciamento entre o casal. Por outro lado, o abandono do trabalho pelo jogo ou pelas conversas sem destino pode apagar os olhares de consideração entre o casal. Sob essa ótica, muitas vezes, equivocadamente as funções afetivo-sexuais são desqualificadas, com base na ideia de não terem mais como destino as funções sociais reprodutivas; da mesma forma equivocada, as funções mentais são desqualificadas porque, pela aposentadoria, não operam na economia com a mesma intensidade da fase anterior. Essa perspectiva ultrapassada e incorreta relega o casal longevo a uma instância social geralmente esvaziada de sentido, na medida em que foge aos interesses do sistema produtivo vigente (BOTH, 2003). Dentre todas essas representações sociais existem, entretanto, nichos que preservam, com interesse e dificuldade, um casamento monogâmico