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1 2 Marco Evangelista Direito CIVIL sem estresse! 3.a edição Manaus 2013 3 Copyright 2013 © ArkiUltra O conteúdo desta obra é de responsabilidade do autor, proprietário do direito autoral. Capa: Sérgio Bemfica Ilustrações: Marco Evangelista _______________________________________________ Evangelista, Marco Direito Civil sem estresse! – 3.a edição Evangelista – Manaus: 2013 ISBN 1. Direito civil 2. Direito civil – Brasil I. Título CDD-347 ______________________________________________ Índice para catálogo sistemático: 1. Direito civil 347 2. Direito privado 347 www.EvangeBlog.com www.ArkiUltra.com www.marcoevangelista.com.br http://www.evangeblog.com/ http://www.arkiultra.com/ http://www.marcoevangelista.com.br/ 4 Aos Evangelistas: Antonio Zená Marcus Mariana Marcus Filho Marina Manuela Sou grato a João Freire da Cunha Filho (i.m.) Paulo Ferraz (i.m) e Regina Ferraz Pelo apoio dado ao meu início de carreira na advocacia, em 1998. “Ele não sabia que era impossível, foi lá e fez”. (anônimo) 5 APRESENTAÇÃO DA TERCEIRA EDIÇÃO Desde a segunda edição, muitas mudanças ocorreram; algumas drásticas e quase inimagináveis, como a possibilidade do divórcio imediato. Não houve um só dia sequer sem que eu fosse perguntado sobre quando haveria uma nova edição desta obra. Soube que o “Sem estresse!” figurava dentre os livros mais emprestados nas bibliotecas, incluindo as faculdades onde eu nem ministro aulas. Tudo isso me deu a certeza de que eu acertei o alvo: escrever um livro de direito livre de “frescuras retóricas”. Não temos nem nunca tivemos a pretensão de sermos o melhor ou maior livro de direito civil; de saída, temos consciência de nossas limitações cognitivas quanto à matéria, mas, já que não tenho o maior ou o melhor livro, teria que ter um diferente; foi o que fiz. Nesta obra o leitor terá a impressão de que está sentado comigo em uma mesa de bar, conversando informalmente sobre os assuntos aqui tratados, sem firulas ou sem demonstrações desnecessárias de erudição. Costumo dizer aos meus alunos nas faculdades para nunca se prenderem a um autor só. Um doutrinador, seja quem for, não tem a verdade; muito menos no direito. Digo aos alunos para lerem no mínimo três livros sobre cada matéria e que formem seu conhecimento pela média do que leem; só assim o direito mantém-se em movimento. Todo conhecimento “macaqueado” é burro. Atualizei alguns capítulos, reescrevi outros e elaborei alguns novos. A forma dos capítulos mudou; todavia, quanto ao conteúdo, a maior mudança está no direito de família, que inclusive triplicou de tamanho na nova edição. Ao final da obra colocamos uma lista com todos os prazos do Código Civil, compilada por nós, para estudo. Agora temos um blog (www.EvangeBlog.com) onde podemos postar atualizações imediatas; e esta edição é a primeira a ser publicada em formato eletrônico, esperando ver no mundo virtual a grande aceitação que teve nas livrarias físicas. APRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO (2006) Esta obra nasceu em sala de aula. Os gráficos que se encontram nesta obra são repetições daqueles criados e utilizados por mim ao longo de aulas em cursos superiores e em cursinhos preparatórios. http://www.evangeblog.com/ 6 Os textos são "transcrições" de aulas e dicas que ministrei, igualmente, nas classes. Despojados de maiores pretensões, nosso desejo é levar ao leitor o conhecimento básico do direito civil brasileiro, o qual esquematizamos e explicamos com macetes, gráficos e desenhos elaborados por nós. Esperamos que o leitor assimile o conhecimento aqui transmitido ou fixe os que já possui, pois, se "recordar é viver", na área jurídica "recordar é sobreviver"! Resolvemos quebrar a sisudez tão normalmente vista nos textos jurídicos, tornando o direito civil simplificado até onde se faça possível. Elucidaremos o texto frio da lei, tornando-o dinâmico para melhor compreensão. Não temos pretensão de deitar doutrina ou impor institutos, embora não nos olvidemos de marcar nossa opinião em matérias polêmicas que, com o advento do Novo Código Civil Brasileiro, apenas começaram. Esta obra já nasce sob o espírito do Novo Código Civil, razão pela qual não nos prendemos a institutos do código revogado, exceto quando ainda vigentes por disposição expressa no novel codex. Estamos abertos a críticas e a sugestões; e desde já agrademos aos alunos que, por meio de questionamentos sempre pertinentes, apresentados em sala de aula, forçaram-nos, também, a melhorar mais e mais. Aliás, esse é o objetivo deste livro: ajudá-lo a melhorar. Recomendamos ao leitor manter o código civil à mão durante a leitura da obra; e lembramos que dados adicionais podem ser encontramos em nosso site: www.marcoevangelista.com.br Boa leitura! http://www.marcoevangelista.com.br/ 7 Sumário 0 TÓPICOS INICIAIS .............................................................................................. 15 0.1 DIREITO ............................................................................................... 15 0.1.1 DIVISÃO DIDÁTICA DO DIREITO .................................................... 16 0.2 CONCEITO E CONTEÚDO DO DIREITO CIVIL ....................................... 18 0.3 DIREITO CIVIL E RELAÇÕES JURÍDICAS .............................................. 19 0.4 PRINCÍPIOS DO DIREITO CIVIL ............................................................ 19 0.5 FONTES DO DIREITO CIVIL .................................................................. 21 0.6 LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (LINDB) . 23 0.6.1 A LEI .............................................................................................. 24 0.6.2 EFICÁCIA DA LEI NO TEMPO ........................................................ 27 0.6.3 EFICÁCIA DA LEI NO ESPAÇO ...................................................... 28 0.6.4 CONFLITOS DE LEI ...................................................................... 28 0.6.5 ESTRUTURA DA LEI ..................................................................... 29 0.6.6 O CÓDIGO CIVIL – SUA HISTÓRIA E CRÍTICAS .............................. 30 0.7 RELAÇÕES JURÍDICAS......................................................................... 31 0.8 “ESQUEMA” DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO ....................................... 32 1 TEORIA GERAL ................................................................................................. 35 1.1 PESSOAS ............................................................................................. 35 1.1.2 CONCEITO DE “PESSOA” .............................................................. 35 1.1.3 PESSOA NATURAL ........................................................................ 35 1.1.4 PESSOA JURÍDICA .................................................................. 68 1.2 BENS ................................................................................................. 82 1.2.1 NOÇÃO DE PATRIMÔNIO ..................................................... 82 1.2.2 CONCEITO DE “BENS” .......................................................... 82 1.2.3 CLASSIFICAÇÃO .................................................................... 83 1.2.4 BEM DE FAMÍLIA .......................................................................... 94 1.2.5 REGISTRO CIVIL .......................................................................... 95 1.3 FATOS JURÍDICOS ............................................................................... 96 1.3.1 ATOS E NEGÓCIOS JURÍDICOS ................................................... 100 8 1.3.2 O TEMPO COMO FATO JURÍDICO .............................................. 123 1.3.3 PROVAS DOS FATOS JURÍDICOS ..............................................129 2 OBRIGAÇÕES ................................................................................................... 145 2.1 TEORIA GERAL .................................................................................. 145 2.2 ELEMENTOS DAS OBRIGAÇÕES ........................................................ 146 2.2.1 OBRIGAÇÃO CIVIL E OBRIGAÇÃO NATURAL ............................... 148 2.3 FONTES DE OBRIGAÇÕES ................................................................. 149 2.4 CLASSIFICAÇÃO ................................................................................ 149 2.4.1 CLASSIFICAÇÃO BÁSICA ............................................................. 150 2.4.2 CLASSIFICAÇÃO QUANTO À ATIVIDADE ..................................... 150 2.4.3 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO OBJETO ....................................... 153 2.4.4 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AOS SUJEITOS .................................. 154 2.4.5 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO ELEMENTO ACIDENTAL ............... 162 2.4.6 CLASSIFICAÇÃO QUANTO À FINALIDADE ................................... 162 2.4.7 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO TEMPO DE CUMPRIMENTO ......... 162 2.5 TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES .................................................... 163 2.5.1 CESSÃO DE CRÉDITO ................................................................. 163 2.5.2 ASSUNÇÃO DE DÍVIDA ................................................................ 165 2.6 EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ........................................................... 166 2.6.1 EXTINÇÃO DIRETA (PAGAMENTO) .............................................. 167 2.6.2 EXTINÇÃO INDIRETA DAS OBRIGAÇÕES .................................... 174 2.7 INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES ............................................. 182 2.7.1 INADIMPLEMENTO RELATIVO (MORA) ....................................... 182 2.7.3 INADIMPLEMENTO ABSOLUTO .................................................. 185 2.8 CLÁUSULA PENAL ............................................................................ 187 2.9 ARRAS (OU SINAL) ........................................................................... 187 2.10 PAGAMENTO INDEVIDO .................................................................. 188 2.11 CONCURSO DE CREDORES ........................................................... 189 2.12 ENRIQUECIMENTO ILÍCITO ............................................................. 189 3 CONTRATOS ................................................................................................... 192 9 3.1 TEORIA GERAL DOS CONTRATOS ................................................... 192 3.1.2 PRINCÍPIOS CONTRATUAIS ....................................................... 193 3.1.3 ELEMENTOS DOS CONTRATOS ................................................. 197 3.1.4 FORMAÇÃO DOS CONTRATOS .................................................. 197 3.1.5 LUGAR DO CONTRATO .............................................................. 199 3.1.6 CONTRATOS ENVOLVENDO TERCEIROS .................................. 200 3.1.7 CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS ........................................... 201 3.1.8 EXTINÇÃO DOS CONTRATOS .................................................... 205 3.1.9 EVICÇÃO .................................................................................... 206 3.1.10 VÍCIOS REDIBITÓRIOS ............................................................. 208 3.1.11 ELABORAÇÃO DE INSTRUMENTOS CONTRATUAIS ................. 210 3.1.12 INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS ....................................... 210 3.2 CONTRATOS EM ESPÉCIE ................................................................ 212 3.2.1 COMPRA E VENDA ..................................................................... 212 3.2.2 TROCA OU PERMUTA ................................................................ 215 3.2.3 CONTRATO ESTIMATÓRIO ........................................................ 217 3.2.4 DOAÇÃO .................................................................................... 217 3.2.5 LOCAÇÃO .................................................................................. 221 3.2.6 MÚTUO ...................................................................................... 226 3.2.7 COMODATO ............................................................................... 226 3.2.8 PRESTAÇÃO DE SERVIÇO ......................................................... 227 3.2.9 EMPREITADA ............................................................................. 229 3.2.10 DEPÓSITO ................................................................................ 230 3.2.11 MANDATO ................................................................................ 232 3.2.12 COMISSÃO ............................................................................... 236 3.2.13 AGÊNCIA E DISTRIBUIÇÃO ...................................................... 237 3.2.14 CORRETAGEM ......................................................................... 237 3.2.15 TRANSPORTE .......................................................................... 238 3.2.16 SEGURO .................................................................................. 241 3.2.17 CONSTITUIÇÃO DE RENDA ...................................................... 245 3.2.18 JOGO E APOSTA ...................................................................... 246 3.2.19 FIANÇA..................................................................................... 247 3.2.20 TRANSAÇÃO ............................................................................ 249 3.2.21 ARBITRAGEM ........................................................................... 249 3.3 ATOS UNILATERAIS .......................................................................... 250 3.3.1 PROMESSA DE RECOMPENSA .................................................. 250 10 3.3.2 GESTÃO DE NEGÓCIO ............................................................... 250 3.3.3 TÍTULO AO PORTADOR .............................................................. 251 4 RESPONSABILIDADE CIVIL ............................................................................. 253 4.1 TEORIA GERAL .................................................................................. 253 4.1.1 FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL ................................... 253 4.1.2 FONTES GERADORAS DO DEVER DE INDENIZAR ....................... 254 4.1.3 CLASSIFICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL ....................... 255 4.1.4 ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL ............................. 256 4.2 DEFESAS DE RESPONSABILIDADE CIVIL ......................................... 264 4.2.1 DEFESAS DIRETAS .................................................................... 264 4.2.2 DEFESAS INDIRETAS (EXCLUDENTES) ..................................... 265 4.3 ALGUMAS RESPONSABILIZAÇÕES CIVIS ......................................... 275 4.3.1 RESPONSABILIDADE DECORRENTE DAS RELAÇÕES DE CONSUMO ........................................................................................... 275 4.3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO .................................... 277 4.3.3 DANO ESTÉTICO ........................................................................ 280 4.3.4 RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL ............................... 281 4.3.5 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA .......................................... 281 4.3.6 RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL ..................................... 282 4.3.7 DANO NUCLEAR ........................................................................ 284 4.3.8 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATOS TERRORISTAS .............. 285 4.4 RESPONSABILIDADE POR ATO DE TERCEIRO OU FATO DA COISA . 286 4.4.1 DIREITO DE REGRESSO ............................................................ 288 4.5 AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS ................................................... 288 4.6 LIQUIDAÇÃO DO DANO .....................................................................288 4.6.1 ALGUMAS TARIFAÇÕES E PARÂMETROS LEGAIS PARA A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL ................................................................ 289 4.7 EXECUÇÃO DA REPONSABILIDADE CIVIL ........................................ 292 4.8 REPARAÇÃO CIVIL PARA PLURALIDADE DE VÍTIMAS ...................... 293 4.9 AÇÃO CIVIL EX DELICTO .................................................................. 295 4.10 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS JURÍDICAS................... 296 11 4.11 RESPONSABILIDADE CIVIL EM LEIS ESPECIAIS ............................. 297 5 DIREITOS REAIS (coisas) ................................................................................ 299 5.1 TEORIA GERAL ................................................................................. 300 5.2 POSSE .............................................................................................. 300 5.2.1 TEORIAS DA POSSE .................................................................. 301 5.2.2 CLASSIFICAÇÃO DA POSSE ...................................................... 302 5.2.3 AQUISIÇÃO DA POSSE .............................................................. 303 5.2.4 EFEITOS DA POSSE ................................................................... 303 5.2.5 PROTEÇÃO DA POSSE .............................................................. 304 5.2.6 PERDA DA POSSE ..................................................................... 305 5.3 DIREITOS REAIS ............................................................................... 306 5.3.1 CLASSIFICAÇÃO ........................................................................ 307 5.3.2 PRINCÍPIOS DOS DIREITOS REAIS ............................................ 308 5.3.3 PROPRIEDADE........................................................................... 309 5.3.3 ENFITEUSE ................................................................................ 330 5.3.4 SUPERFÍCIE ............................................................................... 331 5.3.5 USUFRUTO ................................................................................ 332 5.3.6 USO ............................................................................................. 334 5.3.7 HABITAÇÃO ................................................................................. 335 5.3.8 CONCESSÃO (de uso e de moradia) ............................................ 335 5.3.9 SERVIDÃO ................................................................................. 336 5.3.10 DIREITOS REAIS DE GARANTIA ............................................... 337 5.3.11 PROMESSA DE COMPRA E VENDA .......................................... 351 5.4 DIREITOS DE VIZINHANÇA ............................................................... 351 5.5 CONDOMÍNIO ................................................................................... 354 5.5.1 CONDOMÍNIO ORDINÁRIO ......................................................... 355 5.5.2 CONDOMÍNIO EDILÍCIO .............................................................. 356 5.6 TUTELA JUDICIAL DOS DIREITOS DAS COISAS ................................ 360 6 FAMÍLIA ............................................................................................................. 363 6.1 TEORIA GERAL .................................................................................. 364 6.1.1 ASPECTOS INICIAIS .................................................................... 364 6.1.2 TIPOS DE FAMÍLIA ....................................................................... 365 12 6.2 DIREITO CONVIVENCIAL .................................................................. 366 6.2.1 CASAMENTO ............................................................................... 366 6.2.2 UNIÃO ESTÁVEL ........................................................................ 388 6.2.3 OUTRAS ESPÉCIES DE UNIÃO ................................................... 396 6.3 DIREITO PARENTAL .......................................................................... 398 6.3.1 PARENTESCO ............................................................................ 398 6.3.2 FILIAÇÃO ................................................................................... 402 6.3.3 PODER FAMILIAR ....................................................................... 413 6.4 DIREITO ASSISTENCIAL ................................................................... 416 6.4.1 ALIMENTOS ............................................................................... 416 6.4.2 TUTELA ...................................................................................... 421 6.4.3 CURATELA ................................................................................. 422 6.4.4 GUARDA .................................................................................... 423 7 SUCESSÕES ..................................................................................................... 425 7.1 ABERTURA DA SUCESSÃO ................................................................ 426 7.2 HERDEIROS NECESSÁRIOS............................................................... 426 7.3 ORDEM DE VOCAÇÃO HEREDITÁRIA ................................................. 427 7.3.1 SUCESSÃO DOS DESCENDENTES .............................................. 428 7.3.2 SUCESSÃO DOS ASCENDENTES ................................................ 429 7.3.3 SUCESSÃO DO CÔNJUGE ........................................................... 429 7.3.4 SUCESSÃO DOS COLATERAIS .................................................... 431 7.4 DIREITO DE REPRESENTAÇÃO .......................................................... 431 7.5 OS EXCLUÍDOS DA SUCESSÃO ......................................................... 432 7.5.1 INDIGNIDADE .............................................................................. 433 7.5.2 DESERDAÇÃO ............................................................................. 434 7.6 SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA ............................................................ 435 7.6.1 QUEM PODE TESTAR .................................................................. 435 7.6.2 FORMAS DE TESTAMENTO ......................................................... 436 7.6.3 SUBSTITUIÇÃO TESTAMENTÁRIA ............................................... 437 7.6.4 QUEM NÃO RECEBE POR TESTAMENTO ................................... 439 7.6.5 ELABORAÇÃO DO TESTAMENTO ............................................... 439 7.6.6 REVOGAÇÃO E ROMPIMENTO DO TESTAMENTO ..................... 440 13 7.7 SUCESSÃO DO COMPANHEIRO ......................................................... 441 7.8 INVENTÁRIO ....................................................................................... 442 7.8.1 SONEGADOS ................................................................................... 442 7.9 PARTILHA ........................................................................................... 443 7.10 ACEITAÇÃO E RENÚNCIA DA HERANÇA .......................................... 445 7.11 LEGADO ........................................................................................... 445 7.12 HERANÇA JACENTE E VACANTE ..................................................... 448 7.13 EXECUÇÃO DO TESTAMENTO ......................................................... 449 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 451 ABREVIATURAS E SIGLAS ................................................................................. 453 “Making Of” ............................................................................................................ 455 O AUTOR: ....................................................................................................... 456 Apêndice - PRAZOS DO CÓDIGO CIVIL ..............................................................458 14 0 Tópicos Iniciais Sim! É um capítulo “zero” mesmo! Qual é o problema? ☺ 15 0 TÓPICOS INICIAIS Podemos ir diretamente ao assunto e mergulhar nos meandros do Direito Civil, certo? Errado! Algum conhecimento prévio se faz necessário antes chegarmos à zona-alvo. É por isso que esse capítulo é o “zero”; é quase um resumão de “Introdução ao Estudo do Direito”; acredite: o estudo dos institutos formadores da ciência jurídica é realmente necessário. 0.1 DIREITO O direito, como tudo o que emana da sociedade, muda sempre, o que o torna impossível de ser totalmente aprendido por qualquer pessoa, o que não significa dizer que não possamos aprendê-lo o suficiente para o que desejamos (para nossa vida, para advocacia, para concurso público etc.). Em sua conceituação, “direito” é uma das palavras com maior número de acepções que se conhece. Você certamente já ouviu: “Tenho direito à liberdade!"; “Vou procurar meus direitos!”; “Isso fere o direito!”; “Vou cursar Faculdade de Direito!”. Assim, o direito pode significar conjunto de normas, ou o poder de fazer algo, ou a faculdade de exigir algo, ou a denominação da ciência jurídica. Um conceito simples, que deve ser guardado como carta na manga, é “Direito é o conjunto de regras que regulam a vida em sociedade”. Embora esteja incompleto, tal conceito não pode ser enquadrado como incorreto, seja por qualquer ângulo que se tome a acepção da palavra. Portanto direito é conjunto de regras, quer escrita, quer não. Em verdade, tudo é regulado por regras. O universo tem suas próprias regras, as “leis físicas” (como a lei da gravidade). As regras que nos interessam são as que regulam a vida, mas apenas a vida em sociedade, ou seja, a vida em que, no local onde ela se desenvolve, existe mais de um indivíduo. Por isso se costuma dizer que onde há sociedade, existe o direito. O homem tem, sabe-se lá por quê, a estranha vontade de submeter seu semelhante a algo; a vontade – oculta ou não – de colocar seus próprios interesses acima dos interesses de seu par. Logo já imaginou o inferno que haveria caso não existisse um conjunto de regras que colocasse “cada um no seu lugar”? A vida seria um inferno! Justamente para que não ocorra tal caos, é que existe o direito, assim cada um sabe até onde pode ir; e sabe que, ao menos em tese, está protegido dessa “vontade predatória” do seu semelhante. No que toca à etimologia, a palavra direito vem do latim directum, que também deu origem ao português "directo". Directum, por sua vez, era o particípio passado do verbo dirigere, que significa "dirigir" ou "alinhar". Em todas as línguas ocidentais, a palavra que designa o direito tem conexão com uma dessas duas http://pt.wikipedia.org/wiki/Latim 16 etimologias: right, em inglês, recht, em alemão, diritto, em italiano, derecho, em espanhol e droit, em francês; e, em russo, pravo.1 Essas regras, em que se baseia o direito, são sinônimos de normas. Norma é um preceito de conduta (faça/não faça) seguido de sanção (que é um castigo, uma reprimenda, expressa na forma “sob pena de...”, “senão...”, “caso contrário....”). É a sanção que diferencia uma norma de um mandamento comum. É a sanção que nos faz cumprir a norma; serve para incutir no destinatário um medo quanto ao não cumprimento da norma; e, quando tal sanção é aplicada, serve de exemplo aos súditos para que não incorram em igual comportamento. A palavra origina-se do latim norma, que significa “régua”, “esquadro”. Logo denota algo que guia uma exatidão. Uma norma é dita jurídica quando a sanção contida na norma pode ser imposta pelo Poder Judiciário. Quando a sanção, grave ou não, for imposta por outros entes que não provenientes exclusivamente do Poder Judiciário, temos uma norma não jurídica. Certa vez fui entrevistado em um programa de TV e me perguntaram o que é direito; além de responder o que escrevi acima, também reproduzi o dogma de Miguel Reale: “É a união de fato, valor e norma.”; misturando filosofia e história do direito, poderia também ter respondido o mantra do direito romano, consolidado por Ulpiano: “Direito é viver honestamente; não causar dano a outrem; e dar a cada um o que lhe é devido.” (honeste vivere; neminem laedere; suum cuique tribuere). 0.1.1 DIVISÃO DIDÁTICA DO DIREITO O Direito é um todo unitário. É um instituto uno. Os termos “direito civil”, “direito penal” e outros existem apenas para fins de estudo. Para tal finalidade, didática, o direito se divide em vários ramos, que se dividem em vários sub-ramos, e assim por diante. A primeira grande divisão didática do direito é a que divide este em ramo do direito público e do direito privado. 1 http://pt.wikipedia.org/wiki/Direito ; neste site encontramos que o termo "direito" foi introduzido com o sentido atual já na Idade Média, aproximadamente no século IV. A palavra usada pelos romanos era ius. Quanto a esta, os filólogos não se entendem. Para alguns, ius se relacionaria com iussum, particípio passado do verbo iubere, que quer dizer mandar, ordenar. Para outros, ius estaria ligado a iustum, aquilo que é justo, tendo seu radical no védico yos, significando aquilo que é bom. http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_russa http://pt.wikipedia.org/wiki/Filologia 17 Figura 1 - Direito Público e Privado O direito público trata das relações jurídicas em que um dos polos da relação é o Estado, no uso de seu poder de império2. É uma relação vertical, com superior e subalterno, na qual o superior é o Estado, e o subalterno é o administrado, o particular, o súdito do Estado. Como exemplo de ramos do direito público, podemos citar o Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Tributário, Direito Previdenciário, dentre outros. O direito privado trata das relações entre iguais, entre pessoas que não apresentam nenhuma ascensão sobre a outra, daí dizermos que no direito privado as relações são horizontais, pois todos os sujeitos são tratados em pé de igualdade. Nas relações de direito privado, o Estado pode participar, mas com igualdade em relação ao polo oposto. Como exemplo de ramos do direito privado, citamos o Direito do Trabalho, Direito Empresarial e, como exemplo clássico do direito privado, o Direito Civil. Figura 2 - Estado (para fins didáticos, aqui) A um conjunto determinado de regras, chamamos “regime”; assim, podemos dizer que tal caso está enquadrado no regime público, no regime de direito privado etc. Fico incomodado quando, ao ler qualquer livro “moderno” de direito, deparo com a new wave de que “não mais existe direito público e privado”, que todo o direito privado está permeado de regras públicas e tal. Ora, isso é óbvio! O que não 2 “Poder de império” é a prerrogativa do Estado de fazer valer o interesse público sobre os interesses privados, podendo inclusive causar danos aos particulares em nome do interesse público. 18 fica óbvio é o erro de tais autores: não diferem a divisão de aplicação da divisão didática. Quanto à aplicação, não existe qualquer divisão entre direito público e privado NEM entre qualquer ramo de direito. Por isso o direito tributário precisa do direito civil para qualificar alguns fatos geradores; o direito civil precisa do direito empresarial, e assim por diante. Nessa acepção, definitivamente, o direito é um uno, um todo indivisível. Mas, no quesito didático, como explicamos no início do tópico, a divisão não só existe, mas também é necessária. Costumo comparar ao estudo do corpo humano na faculdade de medicina. Como a “aplicação” é uma só, mas, para ser estudada, existe Anatomia I (cabeça), Anatomia II (membros), Anatomia III (tórax) e Anatomia III (abdômen). Ah, e dizemos “direito público/privado” para diminuir palavras, mas o correto é dizermos RAMO do direitopúblico, RAMO do direito privado. 0.2 CONCEITO E CONTEÚDO DO DIREITO CIVIL Em algum momento em que se começou a se dividir didaticamente o direito, este era apenas “público” e “privado”. Nada mais. O direito privado, portanto, era o que regia as relações dentre iguais. Com o tempo, o direito privado foi se especializando, gerando outros ramos específicos a partir dele. Assim, do direito privado surgiu o direito comercial (depois tendo o nome trocado para empresarial), o direito do trabalho e o direito do consumidor – restando ao direito civil, portanto, tratar do direito privado não regulado em outros ramos de direito. Assim, em sala, conceituamos o direito civil como “o ramo do direito privado que regula as relações jurídicas privadas não reguladas por outros ramos do direito”. Sim, o direito civil é residual mesmo; trata de tudo o que for direito privado, e não for estudado por outro ramo. Isso não significa que é um “resto”; ao contrário, é bastante abrangente, o que aumenta ainda mais sua importância. Penso que a discussão sobre patrimonialização/despatrimonialização, constituição ou não do direito civil é pertinente, mas em um momento no qual já se conhece a matéria, podendo-se navegar nela com desenvoltura. Acho atécnico e cruel tratar de tal assunto quando o aluno ou o leitor ainda está se iniciando na matéria. Assim, a título de melhor didática, é sim necessária a divisão entre ramo de direito público e privado. O fato é que, como na economia e na história, digo que também vige a teoria dos ciclos: acham o direito civil muito patrimonial, então gritam para constitucionalizá-lo, até que décadas depois alguém vai achá-lo constitucional demais, e bradarão para patrimonializá-lo. O direito civil é o mais presente e importante em nossa vida, sem qualquer resquício de tendência. Desde as aulas de Civil I, já escuto perguntas sobre família 19 e sucessões; quando toco em casamento e união estável, então, um terço da sala tem perguntas sobre! É a prova de que não se pode separar o direito civil da própria vida; já se disse (Miguel Reale) que o Código Civil é a “Constituição das pessoas comuns”. Então, seja como estudante, seja como “simples” ser humano, aprenda-o! Figura 3 - O Código Civil regula toda a sua existência 0.3 DIREITO CIVIL E RELAÇÕES JURÍDICAS Tudo no direito civil gira em torno das relações jurídicas. O conceito de “relação jurídica” não é difícil. Quando queremos colher uma vantagem ou uma utilidade de algo ou de alguém, temos um “interesse”. Quando duas (ou mais) pessoas entregam algum sacrifício, abstenção (algo ruim) em troca da satisfação de algum interesse (algo bom), temos o conceito de relação. “Relação”, portanto, significa “troca de interesses”. Desde que temos a cognição formada, lá pela primeira infância, vivemos em relação, com a família, com a comunidade, com a escola etc. Existem dois tipos de relação, a jurídica e a não jurídica. A “relação não jurídica” (também chamada de comum) é aquela em que, se um componente descumprir sua parte do acordo, o Poder Judiciário nada poderá fazer para forçar o cumprimento ou para punir essa pessoa. Exemplo de relação comum: amizade, coleguismo e namoro. Note que, se um amigo trair a confiança do outro, não existe ação judicial apta a punir esse mau amigo ou forçá-lo a manter-se confiável. Mas pense em uma compra e venda, aluguel, contrato de trabalho: são relações. Mas aqui o componente que descumprir sua parte no acordo será forçado ou sancionado pelo Poder Judiciário. Assim, uma relação é chamada de “jurídica” quando o Poder Judiciário possui algum meio (mediante ação) para forçar o cumprimento ou para punir quem descumpriu. 0.4 PRINCÍPIOS DO DIREITO CIVIL Princípios são as bases fundamentais sobre as quais se erguem todos os conceitos e normas de um instituto. São as diretrizes básicas de uma ciência. Os princípios se direcionam ao legislador, orientando a elaboração da norma; ao 20 julgador, facilitando a hermenêutica das normas; à administração e ao povo em geral, como parâmetros de melhor aplicação das normas. O Direito Civil possui Princípios Fundamentais; todos os outros princípios eventualmente indicados por outros autores decorrem destes. São eles: Princípio da “Circulação de Riquezas”, da “Boa-Fé”, da “Função Social”, do “Equilíbrio” e da “Autonomia da Vontade”. Princípio da Circulação de Riquezas – O Estado Brasileiro dá a todos os seus habitantes a possibilidade de auferir riquezas. Desde que o faça licitamente, não existe limite ao montante de riqueza que um indivíduo possa amealhar em nosso país. A riqueza (no sentido de patrimônio economicamente valorado), quando em circulação, faz nascerem outras riquezas, razão pela qual o ordenamento jurídico prestigia a troca de riquezas de mão em mão. Daí o dirigismo legal em simplificar a abertura de empresas, a locação de bens e os contratos em geral – passa a ser uma garantia ao cidadão de que o Estado interferirá o mínimo necessário para manter a justiça social no giro econômico. Princípio da Boa-Fé – Não é dado a nenhum sujeito enganar seu semelhante. A boa-fé pode ser subjetiva (ou seja, estado de inocência, estado de desconhecer a existência de qualquer mácula nas relações jurídicas) ou objetiva (situação em que o sujeito deve atuar no sentido de informar, colaborar e diligenciar diretamente para a manutenção da transparência nas relações jurídicas). A boa-fé subjetiva deve ser inerente a todas as relações jurídicas e sempre se a presume3. E a boa-fé objetiva informa os deveres das partes quanto à interpretação dos negócios, quanto à contratação e quanto à execução dos negócios. A boa-fé traz deveres principais e deveres anexos, o que significa a imposição de conduta honesta e leal nas negociações. O código nos traz várias aplicações obrigatórias do dever de boa-fé, a saber: boa-fé nos negócios (113), em todos os atos civis (187), na escolha da coisa incerta (243), nos contratos (422), na ilicitude que representa sua inobservância (927). Princípio da Função Social – O individualismo é limitado pelo interesse de toda a sociedade. Uma vez que o homem é um animal gregário, ou seja, não vive isolado, deve abrir mão de uma parcela de seus interesses particulares para prestigiar o interesse do todo, da sociedade. A essa observância do interesse de outros indivíduos da sociedade chamamos de Função Social. Nenhuma – absolutamente nenhuma – relação jurídica pode existir se trouxer prejuízo à sociedade em que está inserida. Logo o todo limita o particular. Princípio do Equilíbrio – Todos devem ganhar em uma relação jurídica. Não é dado a nenhuma pessoa enriquecer-se em detrimento de outra, ainda que esta “vítima” consinta em tal fato, visto que existe um princípio do equilíbrio informando a vida civil. 3 Trataremos sobre “presunção” ao estudar as provas no direito civil, em tópico próprio nesta obra. 21 Princípio da Autonomia da Vontade – O Estado deve interferir nas transações privadas o mínimo necessário para a garantia dos demais princípios. Os particulares têm a liberdade de fazer e de transacionar tudo o que não é proibido. Estabeleçamos aqui uma diferença entre o justo, o princípio e a regra. O justo nasce da própria consciência. O simples fato da existência da razão, o “sapiens”, já faz nascer a ideia de certo e de errado. Essa ideia do justo, quando segmentada, nos traz a ideia de princípio; um modo de se comportar para se atingir esse princípio chama-se regra. Assim... ▪ O sentimento inato de que viver é bom, importante e valioso para o outro tanto quanto o é para você é um instituto justo. ▪ Admitir, portanto, que todos têm direito à vida é um princípio. ▪ E obedecer ao mandamento de “não matar” é seguir uma regra. 0.5 FONTES DO DIREITO CIVIL “Fonte” é origem; não há muito oque conceituar aqui. Como “do nada, nada surge”, o que origina o direito civil? Os locais e os pontos que geram direito são chamados de fontes materiais: O Estado (mormente o Poder Legislativo), o povo, a história etc... ; os canais reconhecidos pelo direito como aptos a gerarem regras são chamados de fontes formais. Costumo dizer em sala que “fonte material é de onde; e fonte formal é do que”. São fontes formais a lei, os princípios, a doutrina etc. Tais fontes se dividem em fontes diretas e indiretas. A fonte direta (ou principal, ou imediata) é a lei, sendo todas as outras tratadas como fontes indiretas (ou secundárias, mediatas etc.). Em países onde vige a civil law (países de colonização europeia, exceto países colonizados pela Grã-Bretanha), a lei é a principal fonte normativa. Em países de common law (Grã-Bretanha e países por ela majoritariamente colonizados), o costume e a jurisprudência são as fontes diretas. No Brasil (tudo tem que ser mais complicado aqui?), temos um sistema misto (civil e common law), visto que jurisprudência, agora, desde que seja súmula vinculante, é norma. Trataremos do estudo da lei em capítulo próprio e deixaremos o estudo da súmula vinculante para os professores de direito constitucional. Tratemos sobre as fontes indiretas – que são usadas, segundo a teoria clássica, para suprir a lacuna da lei, para que não haja sentença non liquet, ou seja, que não decida o caso, quando o mérito o exigir. Costumes são preceitos de conduta seguidos por todos com consciência de obrigatoriedade (opinio necessitatis). Logo costume tem um elemento objetivo, que é o comportamento; e um elemento subjetivo, que é a consciência de 22 obrigatoriedade daquele comportamento. O exemplo clássico de costume é a “fila” (embora existam leis sobre tempo máximo de fila e sobre atendimento prioritário nela, não existe lei determinando que, onde há um servidor para atender a mais de um servido, um deva esperar depois do outro!); experimente furar uma fila, e a “sanção” virá. O que diferencia costume de hábito é que, neste, não há consciência de obrigatoriedade, não há “medo” de alguma sanção social. Um costume pode ser secundum legem quando acompanha a lei; pode ser contra legem quando contraria a própria lei (por exemplo: ultrapassar sinal vermelho de madrugada, com medo de assalto) ou praeter legem quando não existe lei normatizando o fato. Um exemplo de costume sendo protegido pela norma é encontrado no Artigo 326 do Código, o qual determina que os pesos e as medidas praticados em um lugar serão o parâmetro para os pagamentos de obrigações. O termo “bons costumes” indica padrões médios de moralidade de uma sociedade. Em verdade, o advento de positivar em lei os usos e os costumes não é novo; o Código Comercial (Lei n.º 556, de 25 de junho de 1850!), que ainda se encontra em vigor quanto à parte do seu comércio marítimo, já trazia: “Art. 750 – Todos os casos de abalroação serão decididos, na menor dilação possível, por peritos, que julgarão qual dos navios foi o causador do dano, conformando-se com as disposições do regulamento do porto e com os usos e as práticas do lugar. No caso dos árbitros declararem que não podem julgar com segurança qual navio foi culpado, sofrerá cada um o dano que tiver recebido”. Princípios Gerais do Direito são institutos que alicerçam o ordenamento jurídico. Os princípios informam o legislador, quando da elaboração das leis; informam o juiz, quando do julgamento; e devem informar qualquer aplicador ou destinatário da lei, quando existe qualquer dúvida quanto à prática desta. A Analogia, segundo a LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), seria fonte de direito, mas não o é; é método de integração de norma, ou seja, é forma de “tapar buraco” do ordenamento no qual não existe norma para tal. Dá-se a analogia quando o caso a ser julgado (sem lei para tal) guarda similitude com caso normatizado; nesse caso, utiliza-se a lei do caso normatizado para o caso semelhante, não normatizado. Elencamos analogia aqui porque não é raro ser considerado correto enquadrar “analogia” como fonte, em algumas provas. A analogia diferencia-se da interpretação analógica porque, nesta, a própria lei manda ao intérprete completá-la segundo uma orientação da própria lei. No direito civil pode existir analogia, em tese, para qualquer situação; no direito penal não se aplica analogia para prejudicar o réu. No direito administrativo e no tributário, a analogia também encontra suas limitações de uso. Assim, o Artigo 128 do Código Penal permite o aborto em caso de estupro. Mas costumo colocar a seguinte hipótese, criada por mim, em sala: “E se a mulher for imobilizada, vestida, e alguém, mediante uma seringa, injetar material genético em seu ovário?”. Houve 23 estupro? Não! Mas haverá uma gravidez consentida? Não! – É o caso típico, pensamos, de aplicação da analogia para se realizar o “aborto permitido”, praticado por médico. Doutrina é o conjunto de estudos desenvolvidos por jurisconsultos e publicados; tem a grande virtude de deitar soluções para situações nem de longe enfrentadas sequer pelo Judiciário, ainda. Entendemos só haver doutrina com publicação do texto; ao contrário do que possam pensar, não se precisa ter título ou ter nome de peso para ser doutrinador; basta resolver um problema jurídico segundo a lógica do direito e tornar tal solução acessível à consulta do público. A doutrina se torna especialmente importante pela sua rapidez de elaboração (em comparação às outras fontes). Uma ótima fonte de doutrina são os enunciados das jornadas de Direito Civil, eventos promovidos pelo Conselho da Justiça Federal, com o intuito de, mediante discussões de estudiosos, resolver lacunas e anacronismos do “novo” Código. Já ocorreram cinco. Concordamos com quase todos os enunciados; alguns dizem alguns absurdos que me pergunto como chegaram a conclusões tão malucas! Leia, por exemplo, essa monstruosidade: “Enunciado 286 – Art. 52: Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. Aqui e ali encontramos esses delírios, mas 99% dos enunciados são dignos de estudo e de aplicação. Jurisprudência é o conjunto de julgamentos reiterados por órgãos legitimados para tal. Existe uma polêmica sobre ser necessária certa estabilidade nas orientações dos julgamentos para que “surja” uma jurisprudência. Somos de opinião de que, onde não há julgamento, UM julgamento já é jurisprudência; e, com o nascimento, por meio da EC 45 da súmula vinculante, pôs-se pá de cal nessa discussão, visto que basta uma súmula vinculante para gerar efeitos em todo o País, quando gerada segundo os preceitos daquela emenda. Lembramos que a jurisprudência na forma de súmula vinculante já é norma primária, desde a Emenda Constitucional 45/2004. Brocardos são ditados e máximas tradicionais do mundo jurídico que, se não obrigam, orientam algumas situações em que não existe nenhuma das outras fontes tratando. Exemplo de brocardos: “O que abunda não prejudica”; “in dubio pro reo”; “quem pode o mais pode o menos”, “primeiro no tempo, melhor no direito” etc. 0.6 LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (LINDB) A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“LINDB”, Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942) nos ensina sobre obrigatoriedade, integração e ciclo de existência da lei. Costumo dizer em sala de aula que o primeiro artigo do texto da LINDB deveria ser o seu terceiro, que trata da obrigatoriedade do 24 conhecimento das leis4; é um enunciado utópico que alega que ninguém pode alegar ignorância da lei para deixar de cumpri-la; é o que chamamos de “presunção absoluta do conhecimento das leis”. O artigo quarto trata de “tapagem de buracos” no ordenamentojurídico quando da aplicação concreta da lei, a saber, mandando o juiz aplicar a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito5. É óbvio que não existe ordenamento legal perfeito. Ele sempre estará atrasado em relação aos fatos. Existem países onde o juiz pode deixar de julgar por não existir lei; são sentenças chamadas non liquet; no Brasil, tal não ocorre, pois o juiz deve julgar o caso existindo lei ou não. É o artigo quarto que determina os meios de integração (suprimento de lacunas) da lei. O artigo quinto da LINDB normatiza sobre hermenêutica, temperando a aplicação da lei. Manda que o juiz, em última análise, deve adequar a interpretação da lei ao caso concreto, e jamais o contrário, visto que enuncia que o julgador deve atender aos fins sociais aos quais a lei se destina. A interpretação da lei pode ser gramatical (sentido literal da escrita), sistemática (contextual), histórica (de acordo com o momento do nascimento da norma) ou teleológica (leva em conta a finalidade da norma). De acordo com a extensão da interpretação, esta pode ser declarativa (quando se prende aos exatos termos da norma), extensiva (quando a norma disse menos do que desejava o legislador) ou restritiva (quando o legislador em verdade quis dizer menos do que expressou na norma). O sexto artigo da LINDB trata da intocabilidade de alguns efeitos de leis revogadas. Esses casos serão tratados nesta obra ao estudarmos sobre o ciclo de existência das leis. A partir do artigo sétimo, a LINDB traz regras de Direito Internacional, matéria fora do objeto de estudo desta obra. 0.6.1 A LEI “Lei” é um conceito que possui várias acepções. Enquanto instrumento formal, significa norma geral e abstrata oriunda do órgão competente para emiti-la; nessa acepção, “lei” incorpora todas as espécies normativas originadas pelo Estado, a saber, Constituição, Lei Complementar, Lei Ordinária, Decreto-Lei, Decreto Legislativo, Lei Delegada etc. Outra acepção, que não será utilizada nesta obra, mas igualmente correta, considera o sentido estritamente técnico da palavra “lei” (“lei em sentido estrito”) e considera como tal somente Lei Complementar, Lei Ordinária e Lei Delegada. Para uma resposta simples, afirme que “lei” é norma jurídica geral e abstrata emanada do Estado”. 4 Em sala de aula, costumamos, ao explicar este artigo, repetir o bordão: “Se ignorância de lei alegar / No Judiciário você vai se ferrar!” 5 Trataremos sobre tais institutos ao estudar as fontes do direito civil. 25 Discorrendo um pouco sobre a diferença entre “lei” e “norma”, temos que a lei se origina do Estado; origina-se positivamente, ou seja, é posta, é expressa na forma escrita, após um procedimento. “Norma”, como já conceituado, é preceito de conduta seguido de sanção, seja ou não emanada do Estado. A lei pode ou não conter uma norma (já que existem leis meramente explicativas). Os costumes são normas jurídicas, mas não são leis. Teçamos algo sobre a tríade “codificação/consolidação/estatutos”: A forma mais rudimentar de se organizar determinada legislação é por meio de consolidação, que nada mais é do que a justaposição das leis, mudando-se somente a numeração dos artigos, para que fiquem em sequência. Quando no conjunto de normas uma passa a se relacionar com as outras, fazendo nascer um sistema, temos um código – um conjunto sistematizado de normas. Leis codificadas são mais fáceis de serem aplicadas, ensinadas e aprendidas, pois pertencem a um mesmo sistema, o do referido código. Mas, como nem todas as normas são codificadas, tais textos extracódigos chamamos de leis esparsas, que formam a legislação esparsa. As leis esparsas que tratam de assuntos constantes nos códigos são chamadas de leis extravagantes. As leis esparsas que tratam de assuntos não regulados pelos códigos são chamadas de leis especiais. O sistema não codificado é formado apenas por leis especiais, sem códigos; tem a vantagem de, em sendo menos engessado, haver mais normas escritas para maior número de situações, já que leis menores tramitam, em tese, mais rapidamente; e um sistema assim está mais sintonizado com seu tempo, já que os dogmas se prendem a leis menores. Modernamente observamos a profusão de “estatutos”, que são, como costumo dizer em sala de aula, “microcódigos”, pois tratam de determinado assunto, agregando um caráter principiológico e axiológico (leia-se valorativo) sobre tal assunto. 0.6.1.1 CICLO DE EXISTÊNCIA DA LEI A lei possui um ciclo que, no direito civil, inicia-se com a publicação. Lembramos que, para outros ramos do direito, a lei não se inicia necessariamente na publicação, visto que o Direito Constitucional, ao estudar o processo legislativo6, entende que essa é uma fase da vida da lei anterior à publicação; e reconhece a existência da lei a partir da promulgação. A publicação é ato pelo qual se dá ao povo o conhecimento da existência de uma nova lei. 6 O Processo Legislativo, objeto de estudo do Direito Constitucional, é um procedimento com as seguintes fases: alguém legitimado para tal apresenta um Projeto de Lei, que será discutido e votado no Congresso Nacional (nas duas casas, chamadas aqui de “casa iniciadora” e “casa revisora”, o Projeto de Lei é submetido à sanção ou ao veto do Presidente da República; caso seja sancionado, o projeto seguirá para a publicação; caso seja vetado, o projeto voltará ao Poder Legislativo para apreciação do veto que, se mantido, implicará o arquivamento do projeto; e, se derrubado, fará o projeto seguir para a publicação. 26 Pode a lei obrigar imediatamente ou não. A obrigatoriedade da lei chama-se “vigência” ou “vigor”. A obrigatoriedade será imediata se constar em seu texto “esta lei entrará em vigor na data de sua publicação” ou algo parecido. Mas pode acontecer de seguir-se à publicação um período e um tempo em que a lei ainda não obriga, embora já exista. Tal período é utilizado para que se estude a lei e para que o próprio Estado operacionalize a aplicação da lei. Esse período chama-se vacatio legis, “vacância da lei”, “vacância legal” ou “período de vacância”. Só ao fim desse período tal lei obrigará. Um exemplo é o do próprio Código Civil, a Lei n.o 10.406, de 10 de janeiro de 2002, publicada em 11/1/2002, que traz em seu Artigo 2.044: “Este Código entrará em vigor 1 (um) ano após a sua publicação”. Esse artigo, que descreve a vacatio legis, chamado de “Cláusula de vigência”, fez que o novo código civil entrasse em vigor em 11 de janeiro de 2003. Pode ser que não conste no texto legal uma cláusula de vigência, nem estipulando algum tempo, nem afirmando que vigerá imediatamente. Nesse caso, usa-se a “cláusula geral de vigência”, prevista no Artigo primeiro da LINDB, que determina que o texto será obrigatório após 45 dias de publicado e, em três meses, devrá estar vigente. Assim, é importante saber que só se recorre ao Artigo primeiro da LINDB se uma lei tiver vacatio legis e se tal vacatio não constar no texto. Além disso, a Lei Complementar 95/98 (Lei que trata sobre redação de leis) determina que nenhuma lei deve ser redigida sem cláusula de vigência expressa. 0.6.1.2 REVOGAÇÃO Uma lei não obriga para sempre. Uma lei, um dia, “morre”. A “morte” da lei chama-se “revogação”. Revogação é o término da vigência de uma lei. No Brasil, uma lei perde vigência por um dos dois motivos: a própria lei determina seu término (são as chamadas leis autorrevogáveis) ou, o que é mais comum, outra lei a revoga. A lei revogadora, para que opere tal efeito, precisa ser de hierarquia igual ou superior à lei revogada. Essa revogação operada por outra lei pode ocorrer de forma expressa ou tácita. Na revogação expressa, um dispositivo da norma (“cláusula revocatória”) expressamente enuncia que tal lei, ou parte dela, está revogadaa partir do início da vigência da nova lei. A LC 95/987, em seu Artigo nono, determina que “quando necessária a cláusula de revogação, esta deverá indicar expressamente as leis ou disposições legais revogadas”. Ora, imagine uma lei, como o Novo Código Civil, que revogou total ou parcialmente mais de 20 leis diferentes. Qual legislador se dará o trabalho de nomear uma a uma as normas revogadas? Nenhum! Tanto que o próprio código novo não o fez! 7 Esta lei trata sobre técnica de elaboração de leis. 27 A revogação é tácita quando a lei nova não contempla, em seu texto, dispositivo revogando a lei anterior, mas regula a mesma matéria de lei anterior, porém de forma diversa; ou, por haver incompatibilidade entre a lei nova e a lei antiga, esta última “morre”. A revogação pode ser ainda total ou parcial (a lei inteira ou apenas dispositivos dela); a revogação total chama-se ab-rogação, e a revogação parcial chama-se derrogação8. O Novo Código Civil Brasileiro ab-rogou o antigo e derrogou o Código Comercial, como se nota pela redação do Artigo 2.045 do codex: “Revogam-se a Lei n.o 3.071, de 1.o de janeiro de 1916; o Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei n.o 556, de 25 de junho de 1850”. 0.6.2 EFICÁCIA DA LEI NO TEMPO Uma lei, enquanto vige, produz efeitos. Uma vez que a lei é revogada, o que ocorre com os efeitos produzidos pela lei revogada? “Morre tudo”? Não. Até para que se preserve a estabilidade das relações jurídicas (chamamos a isso “segurança jurídica”), uma lei nova mantém incólumes três institutos: ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada. Ato jurídico perfeito é o ato praticado e de acordo com a lei de seu tempo. Se era legal no tempo em que foi praticado, tal ato continuará a ser legal, ainda que lei futura mude as condições iniciais para que tal ato seja, agora, praticado. Ou seja, é a manutenção da legalidade dos efeitos de um ato cuja prática era legal quando foi praticado. Direito adquirido é uma opção já possível de ser exercida conforme determinada condição exigida em lei. Então o “direito adquirido”, em verdade, é a possibilidade de exercer uma opção já adquirida segundo determinada lei. Difere- se da “expectativa de direito”, uma vez que esta não pode ser exigida, visto que não se incorporou ao conjunto de direitos do indivíduo. Coisa julgada é a causa judicial da qual não caiba mais recurso. Por três motivos: porque a parte se resignou, aceitando a decisão, decidindo não recorrer; porque já se esgotaram todos os recursos possíveis para o caso; porque tais recursos não foram ajuizados (perda de prazo) ou conhecidos para julgamento (falta de regularidade formal, como o não pagamento das custas devidas para o recurso, por exemplo); ou ainda porque a parte sucumbente (“a que perdeu”) simplesmente resignou-se, ou seja, decidiu não mais recorrer, conformando-se com a decisão. 8 Memorize o mnemônico TOAPADE , onde: TOtal = Ab-rogação e PArcial = DErrogação 28 0.6.2.1 REPRISTINAÇÃO Muita atenção a esta palavra: “repristinação”. É que se torna comum confundir- se “repristinação” e “efeito repristinatório”. O parágrafo terceiro do Artigo segundo da LINDB determina que “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.” A questão é: existe ou não a repristinação no Brasil? O instituto significa “retorno à vigência de uma lei revogada, pela revogação da lei revogadora". Mas a LINDB é dúbia quanto à existência ou não do instituto no Brasil. Bem, o que não existe no Brasil é a repristinação automática (ou implícita, ou tácita), podendo, sim, haver o “efeito repristinatório”, também chamado de repristinação expressa ou explícita. O efeito repristinatório ocorre em duas situações: quando uma lei nova expressamente determina que lei antiga, ou parte dela, volte a viger; e, quando uma lei é declarada inconstitucional, pode o STF determinar que a lei atingida pela recém-inconstitucional lei volte ou não a viger. O problema fica grave quando a doutrina começa a se debater. Para parte da doutrina, sequer existe efeito repristinatório do Brasil, pois, se uma lei volta a viger por lei nova, se estão tão somente cumprindo uma lei nova, a lei antiga continua revogada; o seu conteúdo é que voltou à vigência; e, se lei é inconstitucional, não chegou, validamente, a existir, nunca tendo revogado, portanto, de fato, alguma outra lei (o que o STF modula são os efeitos da vigência da lei inconstitucional; não sua existência ou validade). Mas a pergunta permanece: há ou não repristinação no Brasil? Como entendemos que repristinação é a volta automática (e não provocada) de lei já revogada, simplesmente NÃO existe tal instituto em nosso país. 0.6.3 EFICÁCIA DA LEI NO ESPAÇO Em regra, a lei brasileira vige no território brasileiro; é a regra da territorialidade. Por exceção temos a ultraterritorialidade e intraterritorialidade. Ultraterritorialidade (ou extraterritorialidade) é o fenômeno em que a lei brasileira tem vigência em território estrangeiro. Intraterritorialidade é a situação na qual lei estrangeira vige no território brasileiro. Alguns exemplos de intraterritorialidade são encontrados na LINDB, como a sucessão de estrangeiros no Brasil, institutos de direito de família e regência de obrigações constituídas em território estrangeiro. 0.6.4 CONFLITOS DE LEI O sistema jurídico é um todo unitário, no qual suas peças devem funcionar perfeitamente; ainda assim, nada impede que haja conflito pelo fato de existir mais de uma norma a regular o mesmo aspecto de um mesmo fato. Norma surge a partir de nomos, reta. “Antinomia” é a existência de mais de uma lei regulando um mesmo fato. Os casos de antinomia são resolvidos pelos seguintes critérios: 29 “critério hierárquico”, em que a lei superior prevalece sobre a lei inferior; o critério da “especialidade” (ou da “amplitude”), em que a lei especial prevalece sobre a lei geral. E o critério “cronológico”, em que a lei posterior prevalece sobre a lei anterior. Ainda assim a resolução da antinomia não é pacífica. Quando se chocam os princípios da especialização e os cronológicos, há doutrinador que sustente que um e outro método devem preponderar sobre o outro. Entendemos que o critério da especialidade deve sempre preponderar. Em tempo: a falta de lei chama-se “anomia”. 0.6.5 ESTRUTURA DA LEI Existe uma regra para a redação das leis. A grafia da lei inicia-se pela epígrafe, que indica a espécie normativa, o número e a data da lei; logo depois haverá a ementa, que é a indicação do que será tratado na lei. O preâmbulo indica a origem da lei e o fundamento do poder para a emissão daquela norma. Segundo a Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998 (é esta a norma que regulamenta a redação das leis), cada lei deve ter um único objeto. São comuns armadilhas de esconder normas em leis que não tratam daquele assunto específico; é a famosa “... e dá outras disposições”. Embora o Art. 9.º da LC 95/98 enuncie que “a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou as disposições legais revogadas”, às vezes isso é impossível, principalmente em leis tributárias, nas quais uma lei se refere a dezenas; quando não a centenas de outras leis. A estrutura do texto geral da lei é: Parte Livro Título Capítulo Seção Subseção. Deixamos claro que o leitor só encontrará todas essas divisões em grandes leis, e tal sequência só é fielmente seguida em leis pós-1998. São as divisões da lei. Temos, então, as unidades normativas. Inicialmente em artigos9, que se desdobrarão em parágrafos ou em incisos; os parágrafos em incisos, os incisos em alíneas, e as alíneas em itens. Os artigos são enumerados em ordinais até o nono, e em cardinais dodez adiante. Os parágrafos são representados pelo sinal gráfico “§”, seguido de numeração ordinal até o nono; e cardinal a partir de dez. Aliás, outra leseira tipicamente brasileira: O símbolo “§” se chama section; isso mesmo! “Seção” em inglês! (o símbolo é a junção de duas letrinhas “S”, uma em cima da outra). É um símbolo anglo-saxônico para indicar “seção” de uma lei; e aqui é usado como... “parágrafo”! Aliás, quando só existe um parágrafo em um artigo, o correto é usar a expressão “parágrafo único" (por extenso, e não como usamos até inadvertidamente no cotidiano: “§ ún.”). 9 O artigo segue ordinal até o nono; e cardinal a partir deste. 30 A lei é estruturada em disposições preliminares, em disposições gerais e em disposições finais e/ou transitórias; essas últimas disposições são necessárias para reger os fatos cujos efeitos transitam entre uma lei antiga e uma nova. 0.6.6 O CÓDIGO CIVIL – SUA HISTÓRIA E CRÍTICAS Nossa legislação civil foi, inicialmente, portuguesa, óbvio; até depois da Independência, continuou a sê-lo, já que internalizamos, na emancipação, arcabouço normativo naquele momento existente. E não tínhamos código, já que a legislação civil portuguesa estava espalhada em vários diplomas (Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas). Continuamos a não ter, no Império, um código civil, mas não faltaram tentativas, a saber: Projetos de Teixeira de Freitas (1859), Nabuco de Araújo (1872), Felício dos Santos (1881) e Coelho Rodrigues (1893); mas o que vingou foi o Projeto de Clóvis Beviláqua, entregue para discussão em 1899, sendo aprovado e publicado em 1916, para entrar em vigência a partir de 1.º de janeiro de 1917, só então ocorrendo a revogação da lei civil vigente (Ordenações Filipinas). O nosso primeiro código, portanto, já nascia “velho” até para a sua época; tanto que já a Lei 3.274, de 25/1/1919, fez diversas modificações no Código, seguidas por tantas outras. E, logo na metade do século XX, reconheceu-se a necessidade de um novo código, visto que o Código de 1916 foi escrito sob a influência do ambiente do século anterior, não contemplando muitas das novas situações de fato existentes. Em 1963 tivemos o primeiro projeto de um novo código, apresentado por Orlando Gomes e Caio Mário. Em 1969, sob a coordenação de Miguel Reale, começou a ser escrito o projeto do nosso atual código, juntamente com os juristas Arruda Alvim, Sílvio Marcondes, Herbert Chamon, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro. O projeto foi concluído em 1972, seguindo para votação na Câmara dos Deputados em 1975, ficando lá até 1984, quando então foi encaminhado ao Senado, onde permaneceu até 1998; retornou à Câmara, sendo aprovado definitivamente em 2001. Foi promulgado em 10 de janeiro de 2002, sendo publicado no dia seguinte, entrando em vigor 11 de janeiro de 2003. Talvez pelo fato de ser fruto do trabalho de muitas pessoas (Miguel Reale foi o relator, mas não o único autor!), entendo que o Código Civil Brasileiro sofre com quatro grandes defeitos: É anacrônico – Nosso CCB revela uma sociedade que não mais existe; uma sociedade dos anos 60. Talvez a extensão do texto tenha gerado preguiça em sua atualização durante sua tramitação no Legislativo (26 anos!); a impressão que se tem é que um terço do texto está fora do tempo. É lacunoso – Ok! Toda a lei o é... mas precisava ser tanto?! Biodireito? Nascituro? União homoafetiva? Sucessão na união estável (que não gere dúvidas)? Esqueça! A doutrina e a jurisprudência que se virem para regular... 31 É copiado – É chamado de “novo” em contraposição ao “antigo”, mas, de novo tem quase nada; o pecado maior é que, ao invés de o legislador escrever um Código realmente novo, simplesmente tomou o texto do Código de 1916 e saiu “atualizando” o texto aqui e ali; resultado: já não basta o primeiro defeito (ser anacrônico), ainda é uma cópia reciclada do que já existia. É enrolado – Responsabilidade civil é tratada lá pelo Artigo 186, depois lá pelo 402, depois voa lá para o 927. Pow, legislador! Não dava para ser menos complicado, não? E os livros dos “Fatos jurídicos” (Arts. 104 a 232) então? Existem livros e livros só para tentar “explicar” aquilo ali. A coisa é tão maluca que o CCB trata sobre validade dos negócios jurídicos (ao tratar dos defeitos); depois trata sobre eficácia; e depois.... volta a tratar sobre validade novamente! Dava para ser mais linear, não? Ah! Lembre-se de que, embora ele seja nominado de “Código de 2002”, em verdade só vigeu a partir de 2003, pois tivemos um ano de vacatio legis. Assim, em 2002, tínhamos dois CCBs! Um ainda vigendo e outro já publicado, esperando viger. 0.7 RELAÇÕES JURÍDICAS O conceito de relação jurídica não é difícil; apenas precisamos construir um raciocínio até seu entendimento, partindo da noção de “interesse”, que é o que temos quando queremos colher uma vantagem ou uma utilidade de algo ou de alguém. Quando duas ou mais pessoas entregam algum sacrifício, abstenção (algo ruim) em troca da satisfação de algum interesse (algo bom), temos o conceito de relação. “Relação”, portanto, significa “troca de interesses”. Desde que temos a cognição formada, lá pela primeira infância, vivemos em relação. Com a família, com a comunidade, com a escola etc. Na etimologia, a palavra “relação” vem de relatio, cuja origem é relatus, particípio passado de referre, formado este verbo de ferre, levar ou trazer, mais a partícula re (significando repetição), o que dá ao verbo referre o sentido de levar ou trazer de novo; e à palavra “relação” o sentido de ida e volta, de reciprocidade.10 Existem dois tipos de relação, a jurídica e a não jurídica. A relação não jurídica (também chamada de comum) é aquela em que, se um componente descumprir sua parte do acordo, o Poder Judiciário nada poderá fazer para forçar o cumprimento ou para punir essa pessoa; exemplo de relação comum: amizade, coleguismo e namoro. Note que, se um amigo trair a confiança do outro, não existe ação judicial apta a punir esse mau amigo ou forçá-lo a manter-se confiável. 10 BERMUDES, Sergio. Introdução ao processo civil. 2.a ed. revisada e atualizada. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 1996. p. 75. 32 Mas pense em uma compra e venda, aluguel, contrato de trabalho: são relações. Mas aqui o componente que descumprir sua parte no acordo será forçado ou sancionado pelo Poder Judiciário. Assim, uma relação é chamada de jurídica quando o Poder Judiciário possui algum meio (mediante ação) para forçar o cumprimento ou para punir quem descumpriu. As relações jurídicas são formadas por sujeitos e objetos. Sujeitos são os seres que atuam na relação jurídica existente. Objetos representam aquilo sobre o que recai a relação jurídica. 0.8 “ESQUEMA” DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO Já aprendemos o que é uma “relação jurídica” e que é formada por sujeito e objeto. Os sujeitos das relações jurídicas são as pessoas. Os objetos, direta ou indiretamente, são bens (pois, mesmo quando o objeto é atividade, se descumprida, termina em perdas e em danos, o que resultará em bem). Mas, para que haja as relações jurídicas, precisamos de um método, de uma maneira, um modus-operandi. Pois bem! A maneira como se são as relações jurídicas são os “Fatos Jurídicos”. Temos, pois, sinteticamente: QUEM desenvolve as relações jurídicas – são as PESSOAS; O QUE é objeto das relações jurídicas – são os BENS; COMO se dão as relações jurídicas – são os FATOS JURÍDICOS. Figura 4 - Quem, o que, como? As pessoas e os bens são chamados de elementos estáticos das relações jurídicas, pois, por si sós, nada fazem acontecer no mundo jurídico. Já o elemento “Fatos Jurídicos” é dinâmico, pois são tais fatos fazem que as relações ocorram, fazem que as pessoas se relacionem e movimentem osbens; daí por que dizemos que são os fatos que movimentam as pessoas e os bens. A propósito, a parte geral do nosso Código Civil é justamente dividida em... Pessoas, Bens e Fatos Jurídicos! 33 O Código contém, em seus diversos livros, os mandamentos que regem a nossa vida desde antes do nosso nascimento; e continua regulando os atos existentes após a nossa morte, senão vejamos: desde a concepção o Código Civil já tutela os direitos da personalidade. Do nascimento com vida à morte, o Código regula os negócios jurídicos por nós praticados, com as obrigações, os contratos; regula também nossas relações com as coisas. Em algum momento de nossas vidas, normalmente, casamo-nos. Este ato é regulado pelo direito de família. E, após a nossa morte, as relações jurídicas envolvendo os sucessores de nosso patrimônio serão reguladas pelo direito das sucessões. O Código Civil possui duas partes: na Parte Geral, trata dos elementos das relações jurídicas (pessoas, bens e fatos jurídicos). Na Parte Especial, encontramos algumas relações jurídicas específicas. Assim foi montado o nosso Código Civil: na Parte Geral, Livro das Pessoas, dos Bens e dos Fatos Jurídicos. A Parte Geral é de importância primordial no estudo do direito civil brasileiro, visto que todos os demais assuntos jurídicos, nessa esfera, necessariamente dependem do conhecimento da teoria geral do direito civil: Pessoas, Bens e Fatos Jurídicos; isso é básico para o entendimento da Parte Especial do Código Civil Brasileiro, fruto da labuta de vários juristas, sob a coordenação de Miguel Reale11, que começou a ser escrito em 1969, entrando em votação em 1976, arrastando-se pelo Poder Legislativo até 2002. Na Parte Especial, temos o Livro do Direito das Obrigações, da Empresa, das Coisas, de Família, das Sucessões e um último, chamado Livro Complementar. Temos uma peculiaridade em nosso Código; se formalmente temos um único Código, materialmente temos dois: um Código Civil e um Código Empresarial. Este último fora enxertado no Livro II da Parte Especial (“Da Empresa”); bem poderia estar em lei própria, mas, seguindo inspiração italiana, o legislador optou por deixá-lo inserido no Código Civil. O Código Civil se alinha ao Direito Romano-Germânico, com influências ainda das Ordenações Filipinas, Encíclicas Papais, Código Alemão (chamado de “BGB”) e até dogmas religiosos. Deixamos claro que o direito civil é composto pelo Código Civil e pelas leis extravagantes (que se referem às normas já codificadas) e pelas leis especiais (que tratam de temas civis, mas não inseridos no Código), além das regras constitucionais que, em verdade, são as primeiras e mais importantes a nortear o direito civil. 11 Miguel Reale, um dos papas do direito brasileiro, nasceu em São Bento do Sapucaí, em 6 de novembro de 1910, e faleceu em São Paulo, em 14 de abril de 2006 (Fonte: http://pt.wikipedia.org) http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Bento_do_Sapuca%C3%AD http://pt.wikipedia.org/wiki/6_de_novembro http://pt.wikipedia.org/wiki/6_de_novembro http://pt.wikipedia.org/wiki/1910 http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Paulo_%28cidade%29 http://pt.wikipedia.org/wiki/14_de_abril http://pt.wikipedia.org/wiki/2006 34 1 Teoria Geral 35 1 TEORIA GERAL Após estudarmos a localização do direito civil entre os ramos (didáticos!) do direito, adentremo-nos agora no estudo da nossa matéria-objeto: o Direito Civil; e vamos fazê-lo seguindo a sua principal lei infraconstitucional: o Código Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Demos o nome de “Teoria Geral” ao capítulo que tratará sobre a Parte Geral do Código. A Parte Geral é de importância primordial no estudo do direito civil brasileiro, visto que todos os demais assuntos jurídicos, nessa esfera, necessariamente dependem do conhecimento da teoria geral do direito civil: Pessoas, Bens e Fatos Jurídicos; isso é básico para o entendimento da Parte Especial do Código. 1.1 PESSOAS Embora o ser humano esteja localizado no centro do direito, descobriremos que, no direito civil, os humanos são “apenas” uma das duas espécies de pessoas. Passemos ao estudo dos atores do mundo jurídico. 1.1.2 CONCEITO DE “PESSOA” Tudo o que existe no universo é chamado de “ente”. Quando um ente pode ter direitos e/ou obrigações, passa a se chamar “pessoa”. Pessoas são, portanto, os sujeitos de direitos e de obrigações. São os elementos ativos das relações jurídicas; são os atores. A essa característica (ter aptidão para ter direitos e obrigações) chamamos “personalidade”. As pessoas, no direito brasileiro, se dividem em pessoas naturais e pessoas jurídicas. Pessoas naturais são as existentes a partir de gametas humanos, e as pessoas jurídicas são entes não humanos, criados pela mente humana. Estudaremos cada uma a seguir. 1.1.3 PESSOA NATURAL É a pessoa gerada, concebida a partir de gametas humanos masculino e feminino, daí o nome de “natural”. É chamada de “pessoa física” por outros ramos do direito, já que possui existência tangível, corpórea. Ao estudarmos a “pessoa natural”, aproveitaremos o ensejo de desenvolver o estudo sobre personalidade e seus institutos afins. Vários são os elementos de identificação da pessoa natural: nome, estado civil, domicílio. Como já estudamos, é o atributo da “personalidade” que torna um ser humano uma pessoa. O próximo capítulo trata sobre a personalidade da pessoa natural. 36 1.1.3.1 PERSONALIDADE É a personalidade que distingue as pessoas dos demais entes. Ocorre que a palavra “personalidade” no direito não é utilizada como o é nos termos do dicionário ou na psicologia. Para o direito, personalidade é a aptidão para se ter direitos e obrigações. Para o direito, o que nos distingue dos animais irracionais é a personalidade. Não é a razão ou a capacidade de pensar. É de triste memória que, até quase fim do século retrasado, os escravos não eram dotados de personalidade. Um dos requisitos até 1888 para que um ser humano tivesse personalidade era ser “livre”. Ou seja, personalidade é um atributo dado pelo direito, por meio de lei, não pela natureza. Então, isso significa que, se uma lei brasileira atribuir personalidade aos animais irracionais (incluindo insetos e vegetais), estes passarão a ser pessoa? Exato! A personalidade possui vários atributos: atributos visuais, auditivos e imateriais. Tais atributos são tutelados pelos direitos da personalidade, que serão estudados em tópico próprio desta obra. Apresentamos alguns motivos pelos quais um nascituro (ser humano já concebido, mas ainda não nascido) é pessoa. Embora ainda haja alguma resistência a tal ideia, lembramos que algo que hoje é óbvio um dia foi absurdo; e as discussões sobre o que era absurdo fizeram mudar algum paradigma; depois a mudança foi aceita, até se tornar óbvia. E depois nos perguntamos como pôde o atual óbvio já ter sido considerado absurdo um dia. Nascituro (mórula, blástula, embrião, feto) possui personalidade jurídica, já que “personalidade” é a aptidão para ter direitos e obrigações”; e são direitos do nascituro: receber doação, receber herança, reconhecimento de sua paternidade, ter a vida protegida; bem, se “pessoa” é o ente apto a ter direitos e obrigações, e a própria lei confere direitos ao nascituro, pela conclusão lógico-matemática, nascituro só não seria pessoa se o conceito de pessoa fosse mudado; o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, enuncia que “todo ser humano é pessoa”; então, para se afirmar que feto não é pessoa, precisamos mudar também o conceito de “ser humano”; o referido pacto (em verdade, uma “Convenção Americana sobre Direitos Humanos”), de 1969, foi internalizado no Brasil por meio do Decreto Legislativo n.o 27, de 26 de maio de 1992; embora o Artigo segundo do CCB enuncie em seu início que“a personalidade começa com o nascimento com vida”, a continuação da leitura do próprio Artigo grita “mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Bem! Ou há direitos ou não; se houver direito, haverá personalidade. No Código Penal, o aborto consta como “Crimes contra a pessoa”; e, antes que você diga que a vítima do aborto é a mãe, lembre que uma das modalidades de aborto é justamente o “provocado pela gestante”; e não se pune autolesão (exceto 37 para fraudar seguro!), certo? Ou seja, a pessoa protegida pelo Código Penal, nesse caso, é o próprio nascituro! Ah! E para os legalistas de plantão que batem o pé (de vez em quando há algum nas minhas aulas também) dizendo “mas o Artigo segundo do CCB diz que a ‘personalidade começa com o nascimento com vida!’”, bem! Lei por lei, leia o que escrevi acima sobre o Código Penal. Se o CCB diz isso no início do Artigo segundo, o CP textualmente o chama de pessoa; e, como as duas leis são Leis Ordinárias, sem hierarquia entre elas, far-se-ia prevalecer, em última análise, o Código Penal, visto que este tutela a vida (no caso do aborto), em contraposição ao Código Civil, que basicamente tutela o patrimônio. Hans Kelsen já aceitava, no início do século passado, que personalidade é um “feixe” de direitos e de obrigações, haja ou não um sujeito. Lembramos que, uma vez que ainda é dominante o entendimento de existência de personalidade única e que “surge com o nascimento com vida e termina com a morte”, no caso de provas de concurso em que não haja o vocábulo “formal” ou “material” atrelado à “personalidade”, deve o examinando responder, por óbvio, com base na teoria da personalidade única. 1.1.3.1.1 INÍCIO E FIM DA PERSONALIDADE Nas pessoas naturais, a personalidade formal inicia-se com o início de geração humana viável. No caso de gravidez natural, a personalidade formal inicia-se no exato momento em que passa a existir possibilidade de existência de gestação. Foi essa a conclusão do SFT na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 3510 (ADI 3510), mediante a qual ficou decidido que embriões in vitro podem ser destruídos, mas não são pessoas ainda; ou seja, uma vez implantados são, para o direito, pessoas. Para alguns, tal possibilidade se dá com a nidação, que é o acoplamento do óvulo fecundado na parede uterina. Mas não podemos esquecer que pode ocorrer uma gravidez tubária, que é uma das espécies de gravidez extrauterina. E, no caso da geração in vitro, existe personalidade? Nossa posição, até por coerência com o nosso conceito exposto há pouco, é que, assim como não poderá haver a geração humana, ao menos até o presente, fora do corpo humano, com a implantação do embrião no corpo humano para viabilidade da gravidez, não existe personalidade. Deixamos claro, que no caso da geração in vitro, vários outros conceitos que não jurídicos são discutidos quando se determina a existência da personalidade, a saber: religião e ética médica. O Enunciado 1 da 1.a Jornada de Direito Civil (1JDC) nos diz que “a proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura”. 38 O tema permanecerá por longo tempo ainda em aberto; e, ainda quando houver uma sedimentação formal sobre a questão, as discussões sobre tal instituto nem por isso cessarão, visto que chegam a extrapolar o mundo jurídico. A personalidade do nascituro é chamada de “personalidade formal”. O que normalmente se conhece classicamente como “personalidade”, em verdade, é a Personalidade Material, ou seja, personalidade atrelada a um substrato, a saber, um ente físico, uma matéria e, no caso de ser humano, nascido com vida. A personalidade formal existe e pode ser provada; os tribunais decidem diuturnamente com base nela. Figura 5 - Personalidade formal e material Uma vez que ocorra o nascimento com vida do ser humano, tem início a personalidade material. Em verdade, a personalidade até então existente ganha matéria, ou seja, um ser com existência autônoma, daí a personalidade transmudar- se para “Personalidade Material”. E continuará sendo personalidade material até o momento da morte. O “nascimento com vida” ocorre com o funcionamento autônomo do aparelho cardiorrespiratório. Uma única respiração autônoma do recém-nascido basta para caracterizá-lo como nascido com vida. Em verdade, basta uma inspiração, que é o movimento voluntário (respiração é o ciclo inspiração-expiração). Entendemos que a personalidade material termina com a morte. Uma vez que alguns direitos da personalidade permanecem existentes mesmo após a morte do corpo da pessoa humana, concluímos que, após a morte, o ente humano continua com uma personalidade formal (tanto que a lei tutela a honra dos mortos); dessa feita, eterna. O fim da personalidade da pessoa jurídica, como aprenderemos futuramente neste livro, se dá com a extinção desta, mais especialmente com o cancelamento de seu registro. 1.1.3.1.1 TEORIAS QUE TENTAM DETERMINAR O INÍCIO DA PERSONALIDADE 39 Existem basicamente duas teorias que tentam explicar o momento em que a personalidade tem início: a concepcionista, que enuncia que a personalidade se inicia a partir da concepção; e a natalista, em que a personalidade iniciaria com o nascimento com vida. Não concordamos nem com uma, nem com outra. Tais teorias furam por se referirem somente à personalidade material; e esta já não inicia com a concepção, mas sim com a viabilidade da gestação. 1.1.3.2 CAPACIDADE “Uma coisa é ter; outra coisa é usar o que se tem”. Essa frase resume o conceito de capacidade. Se todas as pessoas possuem personalidade (a ideia de pessoa e personalidade, no direito, estão diretamente ligadas), nem todas possuem capacidade, pois “Capacidade” é a aptidão para exercer os direitos e as obrigações que se possui. É a capacidade que confere a alguém o poder de exigir um direito que lhe cabe e a aptidão de ser cobrado no cumprimento dos deveres que lhe são exigíveis. A capacidade é instável, ou seja, não surge com o nascimento e não se extingue, necessariamente, só com a morte; ou seja, nascemos sem a capacidade, e podemos perdê-la antes da morte. Alguém pode continuar sendo pessoa e tornar-se incapaz em alguma idade. Ou seja, a capacidade possui “graus”. A aferição do grau de capacidade depende de dois parâmetros: o parâmetro cronológico e o parâmetro condição individual da pessoa. De acordo com o parâmetro cronológico, de zero aos 16 anos incompletos, o ser humano é incapaz; dos 16 aos 18 incompletos, o ser humano é relativamente capaz; e a partir dos 18 anos o homem é plenamente capaz. Mas não basta o parâmetro cronológico para se aferir a capacidade de alguém, pois um homem pode ter 30 anos e, ainda assim, ser incapaz. Tudo por conta do segundo parâmetro de aferição de capacidade, a saber, a “condição pessoal do indivíduo”. Essas condições dizem respeito à possibilidade de, conscientemente, possuir vontade e poder manifestá-la. O parâmetro cronológico de aferição de capacidade está presente nos Arts. 3.a I; 4.a, I e 5.a, caput; e o parâmetro de condição pessoal do indivíduo para aferir sua capacidade está presente nos Arts. 3.a II e III; e 4.a, II a IV. 40 Figura 6 - Capacidade 1.1.3.2.1 GRAUS DA CAPACIDADE DA PESSOA NATURAL São os seguintes os “graus” ou “níveis” de capacidade12: incapacidade, capacidade relativa e capacidade plena (ou absoluta). Se capacidade plena é o poder da pessoa de exercer TODOS os seus direitos e as suas obrigações, “incapacidade” é a ausência de tal poder. Os incapazes por condição pessoal são os portadores de enfermidade ou de deficiência mental em grau tal que não lhes dê discernimento. Figura 7 - Condição mental A deficiência mental é resultado de uma má formação do cérebro. A doença mental é algo que se acopla a umcérebro perfeito; tanto que pode haver cura ou tratamento. E o desenvolvimento mental incompleto (ou desenvolvimento retardado) é um cérebro perfeito até onde se desenvolveu, mas não completando 12 Muito cuidado com a palavra “capacidade”, pois pode esta se referir ao gênero ou à espécie, ou seja, ao grau “capacidade plena”, 41 sua formação. Temos no Brasil, inclusive, uma definição legal de deficiência mental, segundo a letra do Decreto n.º 3.298, de 20 de dezembro de 1999: “Art. 3.o Para os efeitos deste Decreto, considera-se: I – deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano; Art. 4.o É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias: (...) IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação, b) cuidado pessoal, c) habilidades sociais, d) utilização dos recursos da comunidade, e) saúde e segurança, f) habilidades acadêmicas, g) lazer, e h) trabalho”. Podemos ficar incapazes a qualquer tempo, mas a declaração de incapacidade superveniente nunca é automática; dá-se por meio de uma ação chamada de “Interdição”; tal interdição pode ser promovida pelo pai, mãe, tutor, cônjuge ou algum parente próximo ou em caso de anomalia psíquica; ou não havendo/não podendo nenhuma das pessoas indicadas pedir interdição, o órgão do Ministério Público pode fazê-lo. Figura 8 - Excepcional, sem desenvolvimento mental completo A curatela dos interditos é regulada, quanto ao procedimento de instituição, pelos Artigos 1.177 a 1.186; o interditando deve comparecer a um juízo, e o juiz e o perito o examinarão quanto às faculdades mentais, interrogando-o minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens e do mais que lhe parecer necessário para ajuizar do seu estado mental; tais perguntas e respostas são transcritas para os autos, para análise; ou seja, é de muita dificuldade se obter interdição de alguém; não são caprichos de família que levarão a tal decisão drástica. A interdição é sempre temporária e cessará assim que terminar a causa que a determinou. A prova de que tal “incapacidade” é meramente formal é o enunciado 138 da Terceira Jornada de Direito Civil (3JDC): “A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do Art. 3.o, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto”. Uma vez decretada a interdição, 42 não há que se falar em “intervalos lúcidos”, ou seja, todos os atos praticados pelo interditado são qualificados como atos de alguém incapaz ou relativamente capaz, a depender da interdição. Genericamente, o desprovido de suas plenas faculdades mentais é chamado de “amental”. Figura 9 - Amental É considerada incapaz ainda qualquer pessoa, mesmo que maior e mentalmente sã, mas que não possa expressar sua vontade (como no estado de coma, por exemplo). Figura 10 - Impossibilitado de manifestar vontade 43 Ao contrário do que possa parecer, “capacidade relativa” não significa meia- capacidade! Capacidade, na prática, em verdade, é como gravidez: ou existe ou não existe! Mas como assim? Mas o termo não é “Capacidade Relativa”? Bem, em verdade existem direitos e deveres que podem e que não podem ser exercidos pelo sujeito em questão. Os relativamente capazes (por questão de idade) podem votar, propor ação popular, fazer testamento e reconhecer filho. E não pode o relativamente capaz alegar tal condição para eximir-se de obrigação que contraiu mentindo a idade. O que é “relativo” é que alguns atos podem, outros não; e alguns desses atos que podem ser exercidos precisam de uma formalidade diferenciada para tal. São relativamente capazes os ébrios habituais (alcoólatras), e os toxicômanos (adictos). Figura 11 - Ébrio habitual 44 Figura 12 - Toxicômano Os pródigos, ou seja, aqueles que dissipam sua riqueza sem noção de limite, podendo se levar à própria ruína financeira, são considerados relativamente capazes, independentemente da idade. Os portadores de enfermidade ou deficiência mental são considerados relativamente capazes, se tiverem algum, mas não total discernimento. Figura 13 - Pródigo É comum, na fala dos profanos13, a confusão entre os termos “enfermidade mental”, “deficiência” e “retardamento”. São desígnios distintos, a saber: Enfermidade Mental – O cérebro é perfeito, completou todos os estágios de sua formação física, mas nele se agrega uma anomalia. A enfermidade é um plus ruim 13 Profano é aquele que não conhece o direito; é o leigo. Segunda o Dicionário Houaiss, “Profano” também é “indivíduo que não é iniciado em certos conhecimentos” (http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=profano&stype=k&x=9&y=6); Edmond Mezguer, jurista alemão, já utilizava o termo “profano” para designar os não iniciados na ciência jurídica. http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=profano&stype=k&x=9&y=6 45 em algo sadio; tanto isso é verdadeiro que pode ser curado em alguns casos, ao contrário da Deficiência e do Retardo, em que há adaptação à vida normal, mas não cura. Na deficiência mental o cérebro é imperfeito; há uma má formação. O cérebro chegou ao último estágio de formação, mas se formou imperfeito (se não completou a formação, dizemos que há um retardamento mental); já no desenvolvimento mental incompleto, ou retardamento mental, o cérebro não terminou o procedimento de geração completa; até onde gerou, foi perfeito, mas não completou o processo. Por isso nada impede que alguém tenha retardamento mental juntamente com enfermidade e/ou deficiência mental. Em estado de capacidade plena, alguém pode exercer, diretamente, todos os seus direitos, e ser cobrado por suas obrigações; por exclusão, são capazes todos aqueles que não são incapazes ou relativamente capazes. Atenção: é importante não misturarmos a capacidade civil com a capacidade penal ou previdenciária! Conforme o Enunciado 3 da 1JDC (já entendeu a sigla, né? “Primeira Jornada de Direito Civil”), “a redução do limite etário para a definição da capacidade civil aos 18 anos não altera o disposto no Art. 16, I, da Lei n.o 8.213/91, que regula específica situação de dependência econômica para fins previdenciários e outras situações similares de proteção, previstas em legislação especial.” – Ou seja não confundir “capacidade” com “imputabilidade”. A capacidade do índio é regulada pelo “Estatuto do Índio” (Lei n.º 6.001/73); o conceito de “índio” nos é trazido pelo inciso um do terceiro Artigo do Estatuto, ao afirmar que é índio “todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. O Artigo oitavo do Estatuto nos diz que os índios “não integrados à comunhão nacional” (é um eufemismo para índios não integrados à sociedade dita “civilizada”) têm seus atos jurídicos nulos (o Estatuto deixa claro que não são nulos tais atos quando “o índio revele consciência e conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efeitos”), só dando validade a estes quando praticados por índios sob a tutela da União, por meio de órgão próprio, que, atualmente, é a FUNAI – Fundação Nacional do Índio (Artigo sétimo, parágrafo segundo da referida norma). A capacidade plena dos índios virá com a emancipação destes, sempre por via judicial, uma vez atendidos os requisitos doArtigo nono do Estatuto (idade mínima de 21 anos – que entendemos ser 18 anos desde janeiro de 2003 pelo advento no novo CCB; conhecimento da língua portuguesa; habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional; e razoável compreensão dos usos e dos costumes da comunhão nacional). Ou seja: o grau de capacidade do índio, além de levar em conta idade e condição mental, considera igualmente sua “integração” à sociedade dita “civilizada”. 46 Figura 14 - Índio Terminando essa nossa primeira conversa sobre capacidade, informamos que a doutrina costuma chamar a “personalidade” também de “capacidade de direito, de aquisição ou de gozo”; e a “capacidade” de “capacidade de fato, de ação ou de exercício” – daí a aparentemente estranha expressão do Artigo primeiro do Código: “Todos são capazes de direitos e obrigações na ordem civil” – nesse sentido, essa “capacidade” do texto é a “de direito”, ou seja, de “personalidade”. 1.1.3.2.2 SUPRIMENTO DE CAPACIDADE Os absolutamente incapazes são representados, ao passo que os relativamente capazes são assistidos. É assim que conseguem “praticar” os atos da vida civil. Agir em nome do incapaz é o que chamamos de “suprimento de incapacidade”. Esta pode ocorrer na forma natural ou na forma civil. O suprimento natural de capacidade, sendo o incapaz ou relativamente capaz menor, é dado pelos pais, qualquer deles. Quando for necessária a atuação de todos os pais para determinado ato, a lei será expressa quanto a isso. Pode ocorrer de os pais estarem mortos, não localizados ou, naquele momento, impossibilitados de agir em nome dos filhos, por qualquer motivo. Surge, então, o suprimento civil da capacidade, que poderá ser tutela, curatela ou guarda. Embora afeto ao direito de família, a tutela e a curatela serão agora abordadas por representarem formas de suprimento de capacidade na ausência dos pais. Sempre que houver incapacidade por motivo cronológico suprido por outrem que não os pais (por falecimento ou destituição de pátrio poder, por exemplo), entrará em campo o instituto da tutela. O suprimento de capacidade decorrente de estado pessoal do indivíduo (causas mentais) chama-se curatela. É cabível curatela também para o nascituro e para o pródigo. O curador pratica em nome do curatelado os atos da vida civil. 47 Se a tutela e a curatela são situações estáveis, a situação provisória enquanto não se decide por tutela ou curatela chama-se guarda. Não confundir essa aguarda aqui, suprimento de capacidade, com a guarda de filhos em divórcio, que é um instituto diverso, ainda que com o mesmo nome. 1.1.3.2.3 EMANCIPAÇÃO Uma vez que as condições pessoais permitam, os efeitos da capacidade plena podem ser antecipados antes de o sujeito contar com 18 anos de idade. Tal operação chama-se Emancipação. É erro comum dizer-se que “emancipação” é “antecipação da maioridade”. Ora! O que pode emancipar maioridade ou é uma máquina do tempo ou uma mudança na lei. A Emancipação antecipa os efeitos da capacidade plena! A emancipação pode ser voluntária, legal ou judicial. A emancipação voluntária (ou convencional, ou ainda consensual) é aquela promovida pelos pais do emancipando, ou na falta do outro. O emancipando deve contar com 16 anos completos para ser emancipado dessa forma. É movida em via administrativa: elabora-se uma escritura pública de emancipação e averba-se o documento no registro de nascimento do emancipando. Assim, diz-se “voluntária” por depender da vontade dos pais, não do emancipando! A emancipação legal ocorre no momento em que se implementa uma das condições existentes nos incisos II a V do parágrafo único do Artigo quinto do codex. São as seguintes as causas de emancipação legal: “pelo casamento”, afinal já demonstraria o menor senso enorme de responsabilidade para gerar uma nova família, sendo-lhe cabível o poder de não mais depender de outrem para a prática dos atos da vida civil; e lembramos que é o ato de casar, e não o de permanecer casado, que gera a emancipação; assim, um casal que se divorcie ainda menores de idade continuará emancipado. Ocorre emancipação “pelo exercício de emprego público efetivo”, o que significa já ser portador da confiança do Estado para determinada função, o que o habilita, por via de consequência, a praticar já os atos da vida civil. A “colação de grau em curso de ensino superior” indica já nível mental compatível com a capacidade plena; lembramos que, com o surgimento de cursos superiores com duração de dois anos, não é impossível que haja menores formados em curso superior, nem que isso seja a poucos dias da maioridade; também “estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria” denota independência de vida em relação aos seus pais, não mais justificando que necessite destes (ou de tutores) para nortear sua vida civil. 48 Figura 15 – Casamento Figura 16 - Colação de grau em curso superior Figura 17 - Emprego público efetivo 49 Figura 18 - Economia própria Em havendo divergência entre os pais na emancipação voluntária, ou em caso de negativa de efeitos da emancipação legal (por falta de documento comprobatório em algum caso), o Estado-Juiz poderá dirimir o conflito emancipando o sujeito à baila, por meio da emancipação judicial, ou seja, aquela promovida por sentença. Importante é saber que o instituto da “capacidade” tem efeitos exclusivamente civis; assim nunca confundir com “imputabilidade”. Um ser plenamente capaz aos 17 anos (porque foi emancipado) continua inimputável penalmente; e não pode dirigir, por exemplo. 1.1.3.2.4 LEGITIMIDADE Para a prática de atos da vida civil, não basta personalidade e capacidade; precisa-se, igualmente, da legitimidade, ou seja, da aptidão para a prática daquele determinado ato da vida civil. Sim! Mesmo as pessoas plenamente capazes não possuem aptidão para realizar TODOS os atos da vida civil: imagine que você encontra a pessoa da sua vida; ambos são maiores, capazes, solteiros e se apaixonam. Querem casar. Podem casar? NÃO! Porque, nesse nosso exemplo, essa pessoa é filha dos mesmos pais que os seus (entendeu, né?). Ou seja, não poderão casar, visto que a lei não admite casamento entre irmãos. Logo você não possui legitimidade para casar com essa pessoa. Chama-se também “impedimento” à ilegitimidade. 1.1.3.2.5 REPRESENTAÇÃO Sempre que alguém não puder ou não quiser praticar pessoalmente determinado ato jurídico, praticá-lo-á por meio de outra pessoa, um representante. A representação pode ser legal ou convencional. A representação legal, advinda da lei, é a que permite ao incapaz ou ao relativamente capaz praticar determinado ato; é o caso dos pais, tutores e curadores em relação aos filhos, tutelados e curatelados. A representação convencional advém da vontade das partes. Imagine que você não quer ou não pode estar em determinado ato; para tanto, você designa alguém para, em seu nome, praticar determinado ato; é a representação 50 convencional. Tal representação dá-se mediante contrato de mandato e, para que o representante pratique o ato, utiliza-se de um instrumento desse contrato, chamado “procuração”. É o procurador que deve provar sua qualidade e a extensão dos poderes que possui, com quem tratar. Daí dizermos que o representante é um longa-manus do representado. Advertimos ao leitor para ter cuidado com a expressão “representante legal”, que, como foi notado, admite diversas acepções. “Representante legal” pode ser o termo genérico do que são espécies os pais, tutores, curadores e procuradores em geral; como pode restringir-se somente a pai, tutor ou curador. O ato do representante é imputado ao representado. Veja o desenho da representação no tópico do contrato de mandato.Eu mesmo colei grau por procuração, em julho de 2008, no curso de administração. Eu estava cursando o Doutorado na Argentina enquanto, em Manaus, colava grau. Costumo dizer que por meio da representação podemos nos tornar “onipresentes”. 1.1.3.2.6 ESTADO CIVIL A posição que alguém ocupa em relação à liberdade perante a disposição de seus bens chama-se “estado civil”. Pode parecer estranho, já que nos acostumamos a ligar “estado civil” a alguma relação afetiva. Ocorre que, a depender do estado civil, alguém pode ver diminuída sua possibilidade de disposição autônoma de seus bens. Se alguém é solteiro, pode dispor livremente de seus bens, mas, se alguém é casado, já não terá a mesma liberdade, dependendo da outorga do outro cônjuge para transacionar seus bens. O motivo pelo qual precisamos saber o estado civil da pessoa com quem transacionamos civilmente é que o cônjuge tem interesse em alguns negócios, mormente quando envolver imóveis; daí, quando alguém se declara, em um negócio, “casado”, está afirmando que terceiro, além dos negociantes, pode precisar anuir no negócio. Os estados civis reconhecidos expressamente por lei são solteiro, casado, separado judicialmente, divorciado, em união estável e viúvo. No capítulo referente a direito de família, trataremos pormenorizadamente sobre cada um desses estados civis. Permanece em zona cinzenta ser a “união estável” um estado civil ou não. Entendemos que sim, visto que o novo Código trouxe regime de bens para tal situação de fato; deve tal estado ser grafado “convivente” ou “em união estável”, mas que fique claro que nossa opinião ainda é minoritária. 1.1.3.2.7 NOME Nome é o sinal distintivo da personalidade. Uma personalidade é distinguida da outra por vários aspectos, como o visual (imagem), o auditivo (como a voz), mas o 51 principal sinal distintivo da personalidade é o nome. Todas as pessoas devem possuir um nome. É um direito e um dever subjetivo. Tem natureza jurídica14 de direito da personalidade. “Nome”, em verdade, é um conjunto de palavras chamadas partículas; algumas partículas do nome são obrigatórias; outras, facultativas. 1.1.3.2.7.1 PARTÍCULAS DO NOME Imaginemos o seguinte nome: “Dom Lázaro João Barqueiro da Silva Souza Júnior”; são as seguintes as partículas desse nome tomado por nós como exemplo: Axiônimo (Dom), prenome (Lázaro João), nome do meio (Barqueiro), sobrenome (da Silva Souza) e agnome (Júnior). As únicas partículas obrigatórias do nome são o prenome e o sobrenome. O prenome pode ser simples ou composto; no nosso exemplo, temos um prenome composto: “Lázaro João”. Em caso de gêmeos, os prenomes não podem ser iguais. O sobrenome, também chamado de “apelido de família” ou “patronímico”, é o sinal distintivo do tronco ancestral de onde provém a pessoa natural (tronco natural ou civil, decorrente de adoção). Ao contrário do que os profanos pensam, não existe a obrigatoriedade de o sobrenome ser o do pai. Pode ser o do pai, o da mãe, ou os dos dois. O sobrenome também pode ser simples ou composto. Quaisquer partículas existentes entre prenome e sobrenome, ou entre palavras de prenomes compostos, são chamados de nomes do meio. A partícula, facultativa, que antecede ao prenome, é chamada de axiônimo. (Ex.: Dom, Doutor, etc., quando assentados no registro civil). A partícula, também facultativa, que sucede ao sobrenome, e é utilizada, normalmente, para diferenciar o nome, quando é igual às dos ancestrais, é chamada de agnome. (Ex.: Júnior, Neto, Bisneto, Segundo, Filho, etc.). 1.1.3.2.7.2 MUDANÇA DO NOME Em regra, o nome é imutável. Pode ser mudado em algumas situações. As causas de mudança do nome podem ser Voluntárias ou Legais (também chamadas obrigatórias ou necessárias). 1.1.3.2.7.2.1 CAUSAS VOLUNTÁRIAS DE MUDANÇA DE NOME 14 Natureza jurídica é a qualificação de um instituto que o faz inserir-se num regime normativo determinado. Dependendo da natureza jurídica do instituto, este ou aquele conjunto de normas será aplicado ao caso. Logo, ao perguntarmos a natureza jurídica de algo, estamos perguntando, em verdade, “Para o direito, o que isso representa?”. 52 Por exceção e em casos determinados, o nome pode ser mudado, inteiro ou em parte. A mudança voluntária pode ser imotivada ou motivada. A mudança voluntária imotivada pode ocorrer no primeiro ano, após a maioridade, conforme o Artigo 56 da Lei de Registros Públicos (LRP). Aqui se pode mudar o prenome, visto que a lei especifica que “os apelidos de família não podem ser mudados”. Ora! Se a lei textualmente diz o que não pode ser mudado, é porque o restante pode! Após o primeiro ano de maioridade, a mudança precisa ser motivada, sendo as seguintes as motivações possíveis: Acréscimo de Apelidos15 Públicos Notórios – nos termos do Artigo 58 da LRP, como “Xuxa”, “Lula”, “Maguila” etc., apelido, codinome, pseudônimo, alcunha e hipocorístico são a mesma coisa. Segundo encontramos no livro de Eliana Maltini16, “apelido hipocorístico” é designação atribuída a uma pessoa como modo de demonstração de carinho: Bel para Isabel, Nando para Fernando, Mundico e Mundinho para Raimundo, Chico para Francisco, Quico para Frederico, Tião para Sebastião etc. Nesse caso, a mudança é para adicionar tais apelidos, normalmente como partícula de “nome do meio”. Mudança de estado civil – Aqui falamos em mudança da partícula sobrenome. Casamento, divórcio e viuvez são situações que permitem a mudança do sobrenome. Tal mudança é facultativa e pode ser operada por qualquer dos nubentes, ou por ambos, acrescendo ao seu sobrenome o do outro. A perda do sobrenome do outro só dar-se em caso de culpa na separação do casal, mas, ainda assim, se o culpado comprovar que a mudança do nome ao estado anterior trará prejuízo à sua identificação, grande diferença entre seu nome e o da prole comum, ou qualquer dano grave, poderá manter o nome do ex-cônjuge. Pode-se mudar o nome também na união estável, desde que o outro convivente concorde com a mudança. (Artigo 57, §2.o, LRP). Desconforto objetivo – No caso de ridículo, o proprietário do nome pode mudá-lo, e a mudança aqui pode ser de qualquer partícula do nome ou, inclusive, do nome inteiro! Nos termos do Artigo 57 da LRP, desconforto subjetivo é aquele de você em relação ao seu próprio nome; esse não autoriza a mudança. O desconforto precisa ser tal que, em tese, qualquer pessoa se acharia desconfortável com aquele sobrenome. É operado por via judicial, e precisa-se convencer o magistrado e, para melhor resultado, membro do Ministério Público, que será ouvido no processo. Retificação de erros gráficos – Para alguns doutrinadores, a retificação não é mudança, uma vez que implica verdadeira mudança para uma nova grafia; não 15 A palavra apelido tanto quer dizer sobrenome (conforme a LRP) quanto pseudônimo! 16 CAPEZ , Fernando (coord.); MALTINI, Eliana Raposo. Direito Civil – Parte Geral (perguntas e respostas). Ed. Saraiva. São Paulo, 2007, p.47 53 deixa de ser, formalmente, uma mudança, razão pela qual a incluímos como causa aqui. Mudança de sexo – A Resolução CFM n.º 1.652/2002 autoriza, no Brasil, a cirurgia para mudança de sexo (transgenitalismo) e determina que “a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá à avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social”. A transformação de homem em mulher chama-se “neocolpovulvoplastia”; e o inverso, “neofaloplastia”. E os Tribunais têm aceitado a mudança de nome (e inclusive de gênero, no Registro Civil) após a realização de tais cirurgias, conforme dois julgamentos abaixo: NOME – Registro civil – Modificação de prenome masculino para feminino – Pretensão manifestada por transexualque se submeteu à cirurgia de mudança de sexo – Admissibilidade, ainda que não se admita a existência de erro no registro – Circunstância que expõe o requerente ao ridículo – Interpretação do Art. 55, par. ún., c/c o Art. 109 da Lei 6.515/73 (TJSP) – RT 790/155. REGISTRO CIVIL – Alteração do estado sexual no assento de nascimento – Admissibilidade – Pretensão de transexual primário, submetido à cirurgia de mudança de sexo, que teve seu pedido de alteração de prenome deferido – Requerente que– após a intervenção cirúrgica– passou a ter as principais características morfológicas de uma mulher (TJSP) – RT 801/195. Tal mudança de nome também é embasada pelo enunciado 276 da 4JDC. “O Art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil”. Testemunha sob proteção voluntária – O Artigo 9.º da Lei de Proteção à Testemunha17 enuncia que, “em casos excepcionais, e considerando as características e a gravidade da coação ou da ameaça, poderá o conselho deliberativo encaminhar requerimento da pessoa protegida ao juiz competente para registros públicos objetivando a alteração de nome completo”. É possível, nesse caso, inclusive haver mudança de nome dos filhos menores também. Tal mudança perdurará até a cessação da coação ou da ameaça que deu causa à proteção. Nota-se que o nome só é compulsoriamente mudado caso o conselho deliberativo assim o determine, motivo pelo qual alocamos tal espécie de mudança em causa obrigatória de mudança de nome. 17 Lei n.º 9.807, de 13 de julho de 1999, que “estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas; institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas” (sic Ementa da Lei) 54 “Nome social” – Alguns estados-membros e municípios permitem que seus servidores adotem “nome social” em suas identificações funcionais. É o nome adequado a pessoas que mudam seu fenótipo para o sexo oposto, mas não fizeram cirurgia de transgenitalização. 1.1.2.3.7.2.2 CAUSAS OBRIGATÓRIAS DE MUDANÇA DE NOME Adoção – A lei determina que o adotado terá seu nome trocado; o sobrenome obrigatoriamente será o dos novos pais, e existe a possibilidade da mudança do prenome do adotado, conforme o Artigo 47, parágrafo quinto, do ECA – o detalhe importante é que dependerá de aprovação do adotado se este contar com 12 anos ou mais. Inclusive, conforme enunciado 273 da 4JDC, “deverá ser averbado o cancelamento do registro originário de nascimento do adotado, lavrando-se novo registro. Sendo unilateral a adoção e sempre que se preserve o vínculo originário com um dos genitores, deverá ser averbada a substituição do nome do pai ou da mãe natural pelo nome do pai ou da mãe adotivos”. Já é um início de interpretação. Mudança de filiação – Nos casos de ações investigativas ou negatórias de paternidade/maternidade que resultam em mudança na filiação, e desde que se conheçam os verdadeiros pais, a lei determina a mudança do sobrenome dos filhos para o sobrenome dos pais biológicos, nos termos dos Artigos 1609 a 1615 do Código. Ressalte-se que pode inclusive ocorrer mudança de nome “por tabela”, no caso de haver mudança do nome dos pais, o que refletirá em mudança do nome dos filhos. Testemunha sob proteção compulsória – Vale aqui o que dissemos sobre a Lei de Proteção à Testemunha. Uma vez que o ingresso em tal programa é facultativo, mas também pode ser compulsório, temos que, nesse caso, há uma forma obrigatória de mudança de nome. 1.1.3.2.7.3 PROTEÇÃO AO NOME O uso do nome é livre, com uma proibição e uma restrição. Quanto à proibição, o nome não pode ser utilizado por outrem em publicações que tragam desprezo público ao titular do nome, ainda que quem o utiliza não tenha intenção de causar tal infortúnio – essa locução é perigosíssima, pois a noção do que seja “desprezo público” é dada pela suposta vítima; não por quem usou o nome desta. A restrição é que o nome só pode ser usado por propaganda com autorização do seu titular. A palavra “propaganda”, aqui, deve ser entendida como “uso que traga lucro para alguém”. Quanto ao limite do que seja identificável como uso do nome em publicidade, o enunciado 278 da 4JDC é claro ao dizer que “Art.18. A publicidade que venha a divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada pessoa, ainda que sem mencionar seu nome, mas sendo capaz de identificá-la, constitui violação a direito da personalidade”. 55 1.1.3.2.8 DOMICÍLIO Domicílio é a sede jurídica de uma pessoa. Assim como é dado a qualquer pessoa processar outrem (Artigo 5.º XXXV da CF), igualmente é proibido a qualquer pessoa furtar-se a ser encontrado. Ou seja, todos nós temos que ter uma localização geográfica. Domicílio é onde a pessoa pode ser encontrada para tratar de todas as consequências dos seus atos, quer boas, quer más. Segundo o nosso ordenamento jurídico, não há pessoa sem domicílio. Trataremos nesta obra apenas do domicílio civil, que se diferencia um pouco do domicílio tributário e do eleitoral, afetos àquelas esferas didáticas do direito. 1.1.3.2.8.1 ESPÉCIES DE DOMICÍLIO Lembramos que estamos no âmbito do domicílio civil. Este se divide em domicílio da pessoa natural e da pessoa jurídica. Este último será estudado no momento de explanação sobre aquele outro tipo de pessoa. Fiquemos aqui, portanto, no domicílio da pessoa natural. Este pode ser voluntário (subdividindo-se em único, plúrimo e eventual), profissional, legal (ou necessário), contratual e diplomático. O domicílio voluntário é aquele escolhido pela pessoa. Local de repouso é, para o direito, “moradia”. Repouso no mesmo local sempre gera o conceito de “residência”; assim, residência é a moradia estável. A residência com vontade de definitividade é o domicílio. Assim, alguém que vai morar cinco anos em um local para cursar faculdade está residindo, mas não está domiciliado. Se alguém tiver mais de uma residência, terá domicílio plúrimo ou múltiplo. Caso alguém não tenha residência física, onde for encontrado será considerado seu domicílio (é o caso do mendigo, andarilho, nômade, cigano etc.). O domicílio profissional é imponível a alguém para as relações jurídicas que versem sobre seu trabalho. O domicílio legal ou necessário não é escolhido pela própria pessoa; é escolhido pelo Estado, indicado por meio da lei. Está previsto no Artigo 52 do CCB. É o caso do domicílio do incapaz, do preso, do marítimo, do militar e dos servidores públicos. Costumamos usar, em sala de aula, o mnemônico ISMIMPRE (desenhamos uma imagem de um rapaz com a palavra “ismimpre” escrita na barriga, tendo na mão uma bandeira com o número 76) – ISMIMPRE = Incapaz, Servidor, MIlitar , Marítimo e PREso. 56 Figura 19 - IsMiMPre O incapaz terá o mesmo domicílio de seu responsável; o servidor público terá o domicílio na repartição onde trabalha, para que possa ser mais facilmente localizável (ser servidor público exige maior responsabilidade e comprometimento, na visão da lei). O militar do Exército terá domicílio onde servir; o domicílio da Marinha e o da Aeronáutica serão a sede do comando. O Marítimo terá domicílio no lugar de matrícula (registro) da embarcação; e o preso será domiciliado onde cumpre pena. Se a lei usou a palavra “pena”, entendemos que se trata somente do preso definitivo, já apenado. O domicílio mais complexo é o do diplomata, visto que tem um tipo especial de domicílio, a que chamamos“escalonado”: mais de um domicílio, mas com uma ordem de precedência entre eles; está previsto no Artigo 77 do Código. Basicamente, o domicílio dodiplomata é o local onde está atuando, mas pode ser que o diplomata queira esquivar-se da jurisdição Brasileira, utilizando o aparato do país em que atua (é isso que significa “alegar extraterritorialidade”!); ao fazer isso, surgem dois novos domicílios (por isso dizemos “escalonado”); cabendo ao demandante escolher entre o Distrito Federal (é óbvio que há de se indicar ONDE, no DF, o diplomata está lotado; com 99% de certeza, será o Ministério das Relações Exteriores) e, caso fique mais cômodo para o demandante, o logradouro, no Brasil, no qual por último habitou (residência), antes de sua partida para o exterior. As pessoas podem determinar um domicílio contratual, que é o foro de julgamento das questões conflituosas porventura emanadas daquele contrato entre elas, fazendo surgir a “cláusula de foro” ou “foro de eleição”. Por último (mas não menos importante) lembramos que o domicílio tem proteção constitucional, consoante o Artigo 5.o, inciso XI; no Art. 150 do Código Penal; e nos Artigos 94, parágrafos 2.o e 3.o, e 98, todos do Código de Processo Civil. 57 1.1.3.2.8.2 MUDANÇA DE DOMICÍLIO Existem duas formas de se mudar o domicílio: forma expressa ou forma tácita. A forma expressa, de rara ocorrência (embora, para as pessoas jurídicas, seja a forma devida, unicamente), ocorre quando a pessoa avisa ao município de saída sobre estar deixando-o e avisar ao município de chegada sobre sua instalação neste. A forma tácita, tão comum que até parece ser a única forma existente, ocorre quando a pessoa simplesmente se muda, ficando claro pelas aparências (levando todos os seus bens móveis, por exemplo) que está efetivamente deixando um município e transferindo-se para outro. 1.1.3.2.9 DIREITOS DA PERSONALIDADE Os “Direitos da Personalidade” são a aplicação, na esfera cível, dos “Direitos Fundamentais” da Constituição e dos “Direitos Humanos”, os chamados interesses difusos. São prerrogativas inerentes ao ser humano, que este possui pelo simples fato de existir. Assim, não importa se estamos tratando de uma freira carmelita ou de um fascínora homicida: um e outro gozam de tais direitos. Segundo pensamentos filosóficos, o homem é a união dos elementos Corpo-Mente-Espírito. Esses três elementos “contaminaram” o pensamento jurídico, de forma que os direitos da personalidade se dividem em três grupos, cada grupo tutelando um dos elementos expostos: o direito à integridade física tutela o CORPO; o direito à integridade psíquica tutela a MENTE; o direito à integridade moral tutela o ESPÍRITO. Assim, os direitos da personalidade se agrupam em “Integridade Física”, “Integridade Psíquica” e “Integridade Moral”. Estudemo-los. 1.1.3.2.9.1 INTEGRIDADE FÍSICA O direito à integridade física é a prerrogativa de todo ser humano de manter incólume a higidez e a coerência formal de seu corpo, de poder movimentá-lo e de dar-lhe destino. O grupo de direito à integridade física inclui vida, liberdade e corpo. Direito à vida é o direito de morrermos por uma causa natural, e não provocada. Logo direito à vida não é, como pode parecer, “direito de permanecer vivo”, visto que todos nós morreremos. Direito à vida é a garantia de que morreremos de senilidade mesmo, e não por ato de outrem. É o mais importante direito do ser humano, mas ainda assim possui várias limitações, como a pena de morte para o caso de guerra declarada18 e no caso de abortamento19 permitido pelo direito. 18 Segundo o Código de Processo Penal Militar, a pena de morte será aplicada por meio de fuzilamento. 58 Os abortamentos permitidos são sempre praticados por médico. São três; dois estão em lei; no caso, no Artigo 128 do Código Penal. O primeiro é o “aborto terapêutico” – também chamado de “necessário”; pela lei, é o praticado para salvar a mãe. A ideia é que a lei não deve, no confronto extremo, privilegiar uma nova vida que não se saberá viável em relação a uma vida já consolidada e com uma história já percorrida. Detalhe: não exige a lei vontade da gestante, o que nos leva a concluir que deverá (e não somente “poderá”) ser praticado, inclusive, contra a vontade da mãe – admitir o contrário seria legalizar a eutanásia, tecnicamente, já que a mãe estaria abdicando da própria vida. Em nossa opinião, esse abortamento será legal mesmo que praticado por qualquer pessoa, não somente por médico, já que quem o praticar estará em “estado de necessidade de terceiro”, ou seja, atuando em prol da vida da mãe. O segundo é o “Aborto sentimental”, que é o aborto para eliminar gravidez resultante de estupro; a mens legis aqui foi ajudar a apagar da mente e da alma da mãe as terríveis lembranças do fato. A jurisprudência permite o “Aborto de feto anencefálico” – Em decisões incidentais se tem permitido o aborto de feto sem cérebro. Os argumentos principais são dois: inviabilidade de vida pós-parto, o que geraria um desgaste físico inútil à gestante, gerando algo inviável; ou o fato de que, sem cérebro, não estaria sendo gerada, tecnicamente, uma pessoa, já que sequer teria autoconsciência. Nesse último caso, o STF, nos casos em que lá chegaram, permitiu o aborto. Mas falta ainda uma decisão definitiva. Parece que a espera chegou ao fim. Na manhã de 23 de março de 2012, surgiria a notícia: a insegurança quanto ao aborto de anencefálico chegará ao fim, pois, em 11 abril desse ano, seria, definitivamente, julgada tal permissão. Detalhe: já li doutrinadores afirmando que o certo é “abortamento”; pois “aborto” seria o produto do abortamento, ou seja, o feto já sem vida. E ainda se permite a retirada da vida nos casos extremos de legítima defesa, estado e necessidade, exercício regular de direito e caos, que serão estudados no capítulo referente à Responsabilidade Civil. Temos ainda direito ao corpo, seja este vivo, seja morto. Corpo é o suporte físico da personalidade material. No que toca ao direito ao próprio corpo vivo, é direito de fazermos com o corpo o que bem entendermos; até lesioná-lo, desde que não haja perda de membro, sentido ou função (lembramos que brinco, piercing e tatuagem são lesões!). A lei proíbe a aplicação de tratamento médico ou cirúrgico com risco de morte, sem consentimento do paciente. Mas lembramos que o médico está isento de tal proibição quando o paciente estiver em iminente risco de vida! (Art. 146, §3.o, I do 19 Embora coloquialmente usemos a palavra “aborto”, lembramos que aborto é o produto do ato chamado abortamento. 59 Código Penal). O Artigo 13 do CCB nos diz que, para alguém diminuir de forma permanente sua integridade física, precisa de exigência médica. O Enunciado 6 da 1JDC afirma que tal “exigência médica” do Artigo 13 refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente, e o Enunciado 403 da 5JDC nos diz que "O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante." Podemos dispor gratuitamente do próprio corpo, com finalidade científica ou altruística. A lei não nos diz qual “altruísmo” seria esse. No que tange à doação de órgão, só nos é permitido doar, em vida, órgãos dúplices ou autorregeneráveis. À exceção desses, a retirada somente pode ocorrer após a morte. A doação de órgãos após a morte depende de autorização do cônjuge ou deoutro parente em linha reta, ou colateral, até o segundo grau, ainda que o morto tivesse manifestado tal vontade em vida (é o chamado sistema de “Consenso Afirmativo”). O enunciado 277 da 4JDC entendeu que, “ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto a aplicação do Art. 4.º da Lei n.o 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador”. Complicado isso, pois a execução forçada da vontade do doador não ofenderia a dignidade dos seus entes vivos? Lembramos que no Brasil não é permitida a transferência onerosa de órgãos. Somente doação! Daí por que não pode existir “barriga de aluguel”; legalmente, somente pode haver “empréstimo de barriga”. Igualmente não pode haver, segundo a letra fria da lei, a “venda de cabelo”, embora saibamos que esse é um crime amplamente praticado e tolerado. O direito ao próprio corpo inclui o direito ao próprio corpo vivo e ao próprio corpo morto, visto que nos é dada a possibilidade de não só doar nossos órgãos, mas também de doar o nosso próprio cadáver! Como último (mas não menos importante) direito à integridade física, temos o “direito à liberdade”, que é o direito de “ir, vir e ficar” – Assim, permanecer onde a lei o permite é também o exercício de direito à liberdade. A liberdade do ser humano pode ser restringida ou cerceada validamente, quando aplicado o devido processo legal. 1.1.3.2.9.2 INTEGRIDADE PSÍQUICA 60 Esse grupo de direitos da personalidade abrange o direito à criação, à liberdade de manifestação e de pensamento. Em países como o nosso, não se costuma valorizar tais direitos que, em países totalitários, ainda estão sendo almeijados. O promotor Mário Ypiranga, com a usual lucidez de palavras, nos diz20: “Respeitar a liberdade de expressão, permitindo-se a exposição de ideias, conceitos, opiniões, doutrinas e críticas, traduz-se em respeito à democracia. O direito à exposição de ideias é sublime, devendo ser respeitado, assim como o direito à própria vida. Essa liberdade de manifestação do pensamento, no entanto, não autoriza a mentira, o boato, a maledicência”. Assim, o abuso do direito de expressão, como o de qualquer direito, pode levar a sanções na ordem administrativa, civil e penal. A sanção civil chama-se “responsabilidade civil” e será estudada em momento oportuno nesta obra. A lei permite ao jornalista o “sigilo da fonte”, que, longe de parecer qualquer imunidade, apelas lhe retira a obrigatoriedade de indicar a origem de sua informação, mas, em esta lesionando alguém, responderá ele, o jornalista, como sendo a origem da informação. 1.1.3.2.9.3 INTEGRIDADE MORAL Inclui os valores de uma pessoa: imagem, identidade, intimidade, vida privada, som, moral e honra. Esse grupo de direitos protege a imagem, o som (voz – Art. 5.o, XXVIII da CF), a intimidade e a vida privada. No que toca a esses dois últimos, lembramos que “Intimidade” é o segredo; e “Vida Privada” é o espaço físico dado a cada ser humano como sendo inviolavelmente seu. Sobre intimidade, o Enunciado 404 da 5JDC diz que "A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial, contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso consentimento para tratamento de informações que versem especialmente o estado de saúde, a condição sexual, a origem racial ou étnica, as convicções religiosas, filosóficas e políticas." Quanto ao Direito à Honra, precisamos, para entendê-lo, traçar uma ideia, prévia, de “moral”. Moral é o conjunto de valores de uma pessoa. Todos os valores de uma pessoa (amizade, lealdade, respeito, religião, pudor etc.) são chamados de “moral” da pessoa. Ocorre que todos nós elegemos alguns desses valores como mais importantes e os colocamos no topo da nossa moral. Ao conjunto dos valores mais importantes de uma pessoa, chamamos de “honra”. Identidade é o conjunto de características que tornam cada pessoa um ser único no universo. É formada por vários outros direitos, a saber: nome, imagem, som. 20 MONTEIRO NETO, Mário Ypiranga. Crônicas de um país chamado Brasil. Ed. da Universidade Federal do Amazonas – Edua. Manaus, 2003, p.115 61 No caso da imagem, esta se divide em Imagem-Retrato e Imagem-Atributo. Imagem-Retrato é a forma plástica de nossa personalidade (sim! É possível ver nossa personalidade! Olhe-se no espelho!); e Imagem-Atributo é o conjunto de características não plásticas que individualizam a pessoa, como a boa fama, respeitabilidade pública etc. É também chamada de “reputação”, pois a palavra putare em latim equivale a “imaginar” (expressões como “credor putativo” ou “legítima defesa putativa” se referem a fatos não ocorridos, mas que foram imaginados), daí dizermos que “reputação é o que pensam (imaginam) que somos”. O enunciado 279 da 4JDC nos dá um norte: “Art.20. A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”. 1.1.3.2.9.4 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Os direitos da personalidade gozam de alguns atributos: são absolutos, intransmissíveis, irrenunciáveis, inquantificáveis monetariamente, perpétuos, imprescritíveis, limitáveis e gerais. Os direitos da personalidade valem contra todos; nesse sentido, podemos dizer que eles são absolutos. Cuidado com essa palavra “absoluto”, pois é traiçoeira e possui mais de um sentido. No primeiro sentido, um direito é absoluto quando não pode sofrer espécie alguma de limitação, sendo plenamente exercitável em qualquer situação que se imagine. O direito até hoje não sabe se existe direito absoluto, visto que até o direito à vida pode sofrer limitações (como no caso da pena de morte em guerra declarada ou nos casos de aborto permitido). No segundo sentido, um direito pode ser relativo ou absoluto. É relativo se só for oponível e cobrável pela outra pessoa determinada (ou outras pessoas, desde que determináveis). Assim, a fidelidade no casamento é relativa, pois um cônjuge só pode cobrar fidelidade conjugal do outro e de mais ninguém. Os contratos são relativos, pois “fazem lei entre as partes”, e só entre elas. Um direito, aqui, é chamado de absoluto quando pode ser oponível erga omnes. O direito de propriedade, nesse sentido, é absoluto, pois nenhuma outra pessoa do universo pode atentar ilegalmente contra sua propriedade; você pode defendê-la contra todos. Sob essa acepção, os direitos da personalidade são absolutos, pois você pode defender sua integridade física, psíquica e moral contra ataque de qualquer outra pessoa. São intransmissíveis; podem até ser cedidos para uso de terceiros (como no caso de direito de imagem), mas não são transferíveis de forma definitiva a 62 ninguém, seja de forma gratuita, seja de maneira onerosa, voluntária ou involuntária; são irrenunciáveis, podendo até não serem exercidos, mas permanecem à disposição do titular para o exercício; são inquantificáveis monetariamente, daí por que são, também, impenhoráveis; são perpétuos, já que duram ad eternum; são imprescritíveis, pois, mesmo que o titular nunca utilize tais direitos, não os perderá; são limitáveis, pois podem sofrer limitações temporárias e determinadas, como nos deixa claro o enunciado 4 da 1JDC; e o enunciado 139 da 3JDC também toca no assunto: “Art. 11: Os direitos da personalidadepodem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes; e são gerais, visto que todas as pessoas os possuem (lembramos que até os nascituros e as pessoas jurídicas os possuem). 1.1.3.2.9.5 TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE A palavra “tutela”, aqui, é usada no significado de “proteção” – não significando o “suprimento de capacidade” que estudamos há pouco. “Tutela” são os meios judiciais para se garantirem os direitos da personalidade. É cabível às pessoas vivas e mortas, já que, como afirmamos, somos partidários da teoria da “personalidade formal”, em que a personalidade subsiste até após a morte do sujeito. Uma vez que um ou mais dos direitos da personalidade sofrem lesão ou ameaça de lesão, cabe a invocação de tutela. O Artigo 12, caput, do CCB nos diz que a tutela pode ser prévia ou posterior: “Pode-se exigir que cesse a ameaça ou a lesão a direito da personalidade e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Entendamos que a “cessação da ameaça” é ensejadora do requerimento de tutela prévia, “ou a lesão” posterior. Existe, portanto, a tutela prévia que visa a impedir que ocorra a lesão, e a tutela posterior que opera a cessação, a punição e a reparação da lesão já ocorrida. No que toca à vítima sendo uma pessoa viva, ela, e somente ela, pode defender tal direito, seja diretamente, seja por representante. No que toca à defesa de direito da personalidade do morto, o Artigo 12, parágrafo único, do CCB permite que os colaterais (tios, sobrinhos, irmãos) defendam a honra do seu ente falecido perante o Judiciário; diz o Artigo “qualquer parente...” – A questão é: inclui os afins? Afins são as pessoas que se tornam parentes (daí o termo “parentesco por afinidade”) pelo casamento – sogro, sogra, enteado, cunhado. Não adianta ler várias vezes: a redação do Artigo não ajuda: “Art. 12. (...) Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste Artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.” (no capítulo sobre direito de família ensinamos a contar os graus de parentesco). 63 Tudo depende do que está incluso no “qualquer”; pela semântica gramatical, qualquer parente é o natural ou por afinidade (e nisso incluiria o cunhado e a sogra); pela hermenêutica restritiva, trata-se de um “silêncio eloquente” no qual, se a lei quisesse ter incluído os afins, tê-lo-ia feito expressamente, o que excluiria os afins de exercitar a defesa em tela. Até dentre os que entendem incluir no Artigo os afins, há divergência: afirmam alguns que somente os afins em linha reta (sogro e sogra) poderiam defender a honra do morto; outros, entre os quais eu me incluo, afirmam que pode ser qualquer afim (assim, até os cunhados estariam legitimados a tal defesa). Já no que toca à tutela à integridade moral e psíquica dos mortos ou ausentes, a lei exclui os afins e foi clara quanto ao fato de que podem ser manejados, conforme o parágrafo único do Artigo 20, o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Lembramos que esse rol dos Artigos 12 e 20 inclui também o companheiro, como nos informa também o enunciado 275 da 4JDC: “O rol dos legitimados de que tratam os Arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil também compreende o companheiro”. 1.1.3.2.9.5.1 TUTELA PRÉVIA Imagine que você toma conhecimento de que na edição do jornal de terça-feira da semana que vem será veiculada uma matéria falsa e difamatória sobre você. E então? Vai esperar ser veiculada? Esperar ter a imagem arranhada? Até provar que “cabelo não dá em ovo”, que “jacaré não é golfinho” e que “19 não são 20”, sua imagem-atributo e sua honra subjetiva já terão ido para o espaço! Justamente para casos como esse, existem mecanismos de tutela prévia de direitos da personalidade. Em qualquer ação pode ser pedida uma antecipação de tutela que proteja o autor da ação contra a ocorrência de determinado dano cuja ocorrência iminente se consiga provar. Sempre que a ameaça de ofensa de direito provier de alguma autoridade pública, existe o Mandado de Segurança (MS) Preventivo, cuja liminar manda que não se venha a praticar o ato. O MS, embora rápido, tem como principal óbice a ser transposto a matéria probatória, visto que essa ação exige prova pré-constituída, ou seja, não existe dilação probatória; ou apresenta a prova exauriente, ou não consegue a medida. A ameaça ao direito à liberdade é protegida pelo Habeas Corpus preventivo, cujo resultado é um Salvo Conduto contra determinada ofensa por determinado motivo. Qualquer outro direito de personalidade pode ser tutelado judicialmente de forma prévia, mediante obtenção de uma liminar mandamental para que não se pratique tal ato, sob pena de alguma reprimenda (geralmente pecuniária). Se tal reprimenda for multa ou multa diária, não pode ser tão pequena que o transgressor 64 em potencial a ignore, nem muito grande para que a suposta vítima não passe a preferir a ocorrência do dano para ganhar um “prêmio de loteria”. 1.1.3.2.9.5.2 TUTELA POSTERIOR Ocorrido o dano, uma diferenciação precisa ser empreendida: no caso das ofensas instantâneas, há de se requerer a reparação do dano causado, seja por compensação, seja por indenização21 e/ou retratação. Caso haja ainda subsistência do dano, há de ser pedido o fim da prática danosa, por tutela específica/inibitória, que é a imposição de multa diária ou qualquer outra medida de coerção sobre o agente que pratica o dano para que o deixe de fazer. Caso o dano seja causado por autoridade pública, urge o Mandado de Segurança como medida hábil, desde que haja prova pré-constituída sobre a Conduta, o Dano e o Nexo Causal do fato. Igualmente é cabível o “HC” para o caso de ofensa à liberdade. Finda a prática danosa, ingressa-se com a ação de reparação de dano; lembrando que é possível e desejável, exceto nos casos de MS e HC, o ajuizamento de ação ordinária com pedido de antecipação de tutela para a cessação do dano. 1.1.3.2.10 MORTE Morte é o fim da personalidade material. Para os adeptos da teoria da personalidade única, morte é tão somente “o fim da personalidade” – de qualquer forma, “morte” é um conceito jurídico; não biológico. Nada mais errado do que afirmar que a morte “é o fim da vida”; não para o direito! Existem casos, como na morte presumida, em que o sujeito pode estar biologicamente vivo, e juridicamente morto, como aprenderemos no momento oportuno. A morte provoca consequências patrimoniais, obrigacionais, contratuais, matrimoniais e sucessórias. No mundo jurídico a morte pode ser real ou presumida. 21 A diferença entre compensação e indenização é explanada em nosso estudo sobre Responsabilidade Civil. 65 Figura 20 - Morte Morte Real é morte com cadáver. É contestada e atestada. Ocorre com término de atividade cardiorrespiratória do ser humano. Deixamos claro que a parada temporária de tais funções não representa, por óbvio, morte. O laudo médico é documento hábil à comprovação de tal morte. É importante ser lembrado que, para fins de transplante (e somente para tal fim!), o momento da morte é o término da atividade encefálica; é que a Lei n.º 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, diz textualmente: “Art. 3.º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicose tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.” (grifamos) Morte presumida é a situação em que não se sabe se alguém está morto, mas a lei permite que haja as consequências da morte do sujeito em tela. Assim, por questão de segurança jurídica, ou seja, para que haja uma estabilidade nas relações jurídicas, a lei permite que a morte, em determinadas situações, seja presumida, artificialmente “fabricada”, em três casos: A lei presume a morte de quem foi visto, pela última vez, em grave risco de vida, como no caso do corpo não encontrado de quem estava em uma aeronave que caiu. Logo depois do acidente, pode-se ingressar com Ação de Justificação para, mediante sentença, declarar-se a morte da vítima. A lei também presume a morte de quem é feito prisioneiro em guerra declarada, e não seja encontrado por pelo menos dois anos após o término desta, 66 cessadas as buscas. Note que aqui existe um prazo mínimo para a declaração judicial de morte. Nas situações acima, temos o elemento “risco” associado ao desaparecimento. Mas se alguém “foi comprar cigarros e nunca mais voltou?” – o risco, em princípio, inexiste. A lei presume a morte do sujeito que se encontra ausente por no mínimo dez anos (contados do início do processo de ausência). Estudaremos a ausência em tópico próprio, devido ao seu detalhamento legal. Quando dois sujeitos (ligados por qualquer relação jurídica em que importe a ordem do momento da morte entre eles para transferência de patrimônio) morrem sem se poder precisar qual morreu primeiro, a lei presume, para gerar estabilidade jurídica, que morreram simultaneamente. Tal fenômeno tem o nome de COMORIÊNCIA, e os sujeitos mortos “simultaneamente” são chamados de COMORIENTES. Se “A” morre antes de “B”, “A” é premoriente a “B”; se “A” morre depois de “B”, “A” é posmoriente a “B”; se morrem juntos, são comorientes. 1.1.3.2.10.1 AUSÊNCIA A ausência, situação em que alguém simplesmente desaparece, é tratada como morte presumida. No código antigo, os ausentes eram tratados como incapazes. Em verdade, a morte presumida é uma tranquilidade para os que ficam, visto que a incerteza da vida (melhor seria: “incerteza quanto à ocorrência da morte”) de um ente gera desconforto de toda a ordem: familiar, social e patrimonial. Uma “morte sem cadáver” tornaria alguém “viúvo de cônjuge vivo” como era chamado, ou seja, ficaria com sua vida familiar empatada, porque não poderia casar-se, já que estava “casada” com o ausente; nem estava claro se já havia a transferência ou não de herança. O procedimento de ausência é trifásico: curadoria de bens do ausente, sucessão provisória e sucessão definitiva. Figura 21 - Ausência 67 Assim que alguém desaparecer sem deixar procurador ou, deixando, este não queira ou não possa gerir o patrimônio do desaparecido, terá início o procedimento, com sua primeira fase, a saber, a “curadoria dos bens de ausente” (ou curadoria de ausente), em que será pedido ao juiz que nomeie um curador para tais bens; haverá a arrecadação dos bens e a expedição de edital conclamando o desaparecido a retornar. Esse curador será o cônjuge, se não estava separado de fato há menos de dois anos, ou os pais ou descendentes; na falta ou impossibilidade deles, o juiz nomeia um em quem confie. Caso ninguém questione tal fato, a arrecadação dos bens do desaparecido poderá ser promovida pelo Ministério Público. Tem início a fase de “sucessão provisória”, que começa com a declaração de ausência. Tal pedido pode ser formulado pelo cônjuge, herdeiro, credor, ou qualquer pessoa que tenha direitos nos bens do desaparecido e precise saber o estado deste para exercer ou não tais direitos. Nessa fase, faz-se a transmissão da posse dos bens para os prováveis herdeiros, mas a propriedade continua na titularidade do ausente. Uma vez que não se sabe o momento em que o ausente vai retornar; aliás, não se sabe nem se ele vai retornar, os bens podem ser convertidos em imóveis e em títulos, para que não se desvalorizem. Os prováveis herdeiros podem ingressar (tecnicamente: imitir-se) na posse dos bens, desde que prestem garantia (já que vão utilizar o bem, a lei diligenciou para que, na eventual volta do ausente, este não encontre seus bens desvalorizados ou deteriorados, daí a exigência da garantia). Uma vez imitidos na posse, tais pessoas ficam processualmente responsáveis por esses bens. O cônjuge, o descendente ou o ascendente não precisam prestar tal garantia para a imissão na posse. Se tais bens gerarem frutos, somente metade destes pode ser aproveitada pelos usuários dos bens, porque metade dos frutos deve ser depositada e capitalizada (gerar juros) em nome do ausente. Os bens deixados pelo ausente não podem ser vendidos, mas, caso ameacem perder-se ou deteriorar-se, o juiz pode autorizar a venda deles. Se o ausente aparecer, ou se ficar provada a sua existência com vida, a questão é descobrir se a ausência deste foi justa ou injusta. Se foi uma ausência injustificada ou por vontade do ausente (por pirraça mesmo, ou qualquer outro motivo fútil ou torpe), ele perderá aquela metade dos frutos que estavam guardados e os rendimentos destes. Mas, se a ausência foi justificada, os bens, os frutos e os rendimentos lhe serão entregues, e aqueles que se imitiram nos bens os entregarão livres ao ex-ausente. Passados dez anos, no mínimo, da abertura da sucessão provisória e continuando sem haver notícia do ausente, faz-se a abertura da sucessão definitiva (ou permanente), igualmente por sentença. Nessa mesma sentença já pode ser declarada a morte presumida do ausente, o que gerará um registro de óbito. Teremos, literalmente, alguém juridicamente morto, mas fisicamente talvez não. Tal instituto serve para dar estabilidade às 68 relações jurídicas. Se o ausente deixou cônjuge, este agora é considerado viúvo e pode casar novamente. Mas, a qualquer momento que se prove que o ausente tem mais de oitenta anos e se encontra desaparecido há mais de cinco anos, pode-se acelerar tal fase, assim como é claro que, se a qualquer momento ficar provada a morte natural22 do ausente, a ausência perde seu objeto, e passa-se, direto, à sucessão definitiva. Na sucessão definitiva, faz-se o levantamento (devolução) das cauções depositadas para as imissões na posse. Caso o ausente, nessa fase de sucessão definitiva, apareça, ele receberá os bens do jeito que estiverem, ou o preço destas, se foram vendidos (o que sobrar deles, em verdade), ou os bens que foram substituídos por tais bens (idem, o que restar deles). Após dez anos da abertura da sucessão definitiva, no caso de o ausente “continuar ausente”, nada mais receberá ainda que apareça. Ocorrerá como no filme “Náufrago”... O ausente terá que começar sua vida do “zero” absoluto. É dado ao ausente, obviamente, anular o registro de óbito e continuar com seus documentos civis, mas, quanto às questões patrimoniais e de família, terá que construir uma nova vida. Caso não haja herdeiros, ou não sejam estes conhecidos, os bens do ausente serão dados ao município. Pode-se ver que a “morte” de um ausente é um “parto”, de tão difícil! 1.1.4 PESSOA JURÍDICA Os entes conhecidos como pessoas jurídicas (PJs) são produtos da evolução humana; aliás, é um instituto que surgiu à medida que as relações jurídicas se tornaram mais complexas; estamos cercados de pessoas jurídicas onde quer que estejamos, nem que seja por estarmos utilizando um objeto fabricado por uma delas, por exemplo. 1.1.4.1 CONCEITO DE PESSOA JURÍDICA Não é de fácil o entendimento e a internalização da ideia de “Pessoa Jurídica”. Enquanto pessoa natural surge de gametas humanos masculinos e femininos, as Pessoas Jurídicas são entes criados! (costumamos explicar em sala que pessoa natural nasce de gametas, e pessoa jurídica “nasce” de “neurônios”...). 1.1.4.2 APLICAÇÃOQual é a utilidade, afinal, da existência de uma PJ? 22 A qualquer momento, pode-se fazer necessária em juízo a prova da morte do ausente, o que se dá por “ação de justificação”, e está regulada pelo Código de Processo Civil, nos Artigos 861 a 866. 69 O homem é um animal gregário, ou seja, não vive sozinho; vive em “bando”, em grupo, em sociedade. Já nasce em um grupo, chamado família, e se insere em diversos outros, de forma voluntária ou não, ao longo da vida. Imagine um grupo de pessoas que transacionem a entrega de um bem. No ato da entrega do bem, das duas uma: ou uma das pessoas naturais entregaria o bem a uma das pessoas naturais do outro grupo, ou todas as pessoas naturais do primeiro grupo, unidas, entregariam o bem ao segundo grupo, que receberiam o bem, igualmente unidas. O que existe de errado nas situações expostas acima? No primeiro caso, não teríamos um grupo entregando algo ao outro grupo; teríamos, sim, uma pessoa natural entregando algo a outra pessoa natural e; no segundo caso, haveria algo sem sentido: todos do grupo segurando o bem para que fique claro que é o grupo, e não só uma das pessoas que está transacionando; seria uma confusão geral. Para resolver situações como essas, é que o homem criou a ideia de Pessoa Jurídica; assim, tornou-se possível que os grupos, como entes próprios (e não mais como pessoas naturais!), transacionassem os bens; e aí, no caso de nosso exemplo, se uma pessoa natural de um grupo entregasse algo à pessoa natural de outro grupo, seria, sim, a entrega do bem de um grupo ao outro; o ordenamento jurídico assim permitiria que fosse. Resumindo: foi a existência do instituto Pessoa Jurídica que permitiu aos grupos sociais deixar de transacionar como “grupos” e passar a ter relações jurídicas com verdadeiras novas Pessoas, independentemente dos homens que formam tais grupos. A regulamentação surgiu a posteriori. É essa a razão da existência de teorias que procuram explicar juridicamente a existência da Pessoa Jurídica. 1.1.4.3 TEORIAS DA PESSOA JURÍDICA Tais teorias dividem-se em dois grupos: o grupo das Teorias Negativistas, que negam a existência das Pessoas Jurídicas; tais teorias hoje estão ultrapassadas. O outro grupo é o das Teorias Afirmativistas, que aceitam e enunciam a existência das Pessoas Jurídicas, mas por motivos diferentes. Eis as mais importantes teorias desse grupo: Teoria da Realidade Fática – Para esta teoria, a Pessoa Jurídica é uma situação de fato, em que o direito apenas regulamenta. Teoria da Realidade Jurídica – Para esta teoria, o direito não apenas regulamenta uma situação fática; o direito CRIA mesmo a Pessoa Jurídica. Teoria da Realidade Técnica – Esta teoria, utilizada no Brasil, enuncia que a Pessoa Jurídica é uma situação de fato, mas que só ingressa no mundo jurídico como entidade autônoma por conta do reconhecimento de tal realidade pelo direito. 70 Ou seja, é uma espécie de “teoria eclética ou mista” das Pessoas Jurídicas e, a nosso ver, mais coerente dentre todas as outras teorias. 1.1.4.4 CLASSIFICAÇÃO Enquanto só exista uma espécie de pessoa natural (aliás, é até ilegal discriminar pessoas físicas quanto à natureza), existem várias espécies de pessoas jurídicas (PJ). Figura 22 - Espécies de PJ Nos termos da lei, a PJ pode ser de direito público, ou seja, regidas por regras de direito público, tendo o Estado como um dos polos das relações jurídicas. Essas PJs de direito público podem ser externas e internas. PJs externas são os Estados estrangeiros (países, principados, reinos), ou Organizações Internacionais (ONU, UNESCO, OIT, OTAN etc.). PJ de direito público interno são as Pessoas Políticas (ou seja, pessoas com competência legislativa, a saber: União, Estados-Membros, Municípios e o Distrito Federal), as autarquias, as fundações públicas. As empresas públicas e as sociedades de economia mista são entes híbridos, com caracteres de PJ de direitos públicos e privados; tais entes possuem “o pior de dois mundos”, por terem todas as obrigações de pessoas jurídicas de direito privado, com as exigências administrativas de PJ de direito público. São civilmente responsáveis pelos atos de seus agentes, como estudaremos no capítulo sobre responsabilidade civil. As pessoas jurídicas de direito privado são de três espécies quanto à natureza, a saber: sociedades, associações e fundações. Sociedades são PJs formadas por pessoas com finalidade lucrativa; Associações são a união de pessoas para finalidades não lucrativas; Fundações são patrimônios afetados (destinados) a um fim específico. No fim de 2003, a Lei 10.825/03 desdobrou a associação em mais duas espécies novas de Pessoas Jurídicas: as Organizações Religiosas e os Partidos Políticos, que, uma vez que tratam de união de pessoas para atuação não lucrativas, nada mais são do que espécies de associação mesmo, mas, devido à especialização de suas atividades, lhes foram conferidos incisos próprios no Artigo 71 44 do Código. Recentemente, tivemos o advento da EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada), que será explicada no tópico próprio. Diz o enunciado 144 da 2JDC que “Art. 44: A relação das pessoas jurídicas de Direito Privado, constante do Art. 44, incs. I a V, do Código Civil, não é exaustiva.” E, segundo Eliana Maltini23, as pessoas jurídicas de direito privado se dividem em “corporações” (universitas personarum) e “fundações” (universitas bonorum). As corporações seriam união de pessoas; e as fundações, acervos patrimoniais. 1.1.4.4.1 SOCIEDADES O termo “Sociedade”, como utilizado na parte geral do Código, é união de pessoas para desempenho de atividades com fins econômicos. Quando o Código usa a palavra “econômico”, não se refere às Ciências Econômicas, visto que atividade econômica qualquer Pessoa Natural ou Jurídica desempenha; quer dizer “lucrativa” mesmo. Assim, temos como exemplo de sociedades as Limitadas, as Sociedades Anônimas, as Comanditas Simples, e assim por diante. Para aprofundar o estudo das sociedades, escrevemos a obra “Direito Empresarial imprescindível!”, que trata especificamente sobre o assunto. O ato constitutivo de uma sociedade é um Contrato Social (como em uma limitada) ou um Estatuto (como no caso das S/As); tais sociedades são chamadas, respectivamente, de contratuais e estatutárias. As sociedades podem ser “de pessoas” ou “de capital”, a depender se o que importa à PJ é a identidade do sócio (como nas limitadas) ou apenas seu dinheiro (como nas Sociedades Anônimas ou nas Comanditas por Ações). Muito cuidado, pois temos um “monstrinho” na legislação brasileira! Embora o conceito clássico de sociedade, como estudamos, seja união de pessoas que empreendem esforço e recursos partilhando o resultado, excepcionalmente, existe situação em que apenas UMA pessoa pode ser uma sociedade, com – pasme! – uma “sociedade unipessoal!). Ocorre quando, por algum motivo, um dos sócios (quando há dois, por exemplo) se torna incapaz, morre ou se torna ausente. Tecnicamente, seria impossível haver sociedade com apenas uma pessoa; mas, para preservar a estabilidade econômica, a lei permite que haja a sociedade (com uma pessoa!) por ainda 180 dias (Art. 1.033, IV do Código Civil). 1.1.4.4.2 ASSOCIAÇÕES 23 CAPEZ , Fernando (coord.); MALTINI, Eliana Raposo. Direito Civil – Parte Geral (perguntas e respostas). Ed. Saraiva. São Paulo, 2007, p. 54 72 A união de pessoas para a obtenção de interesse comum, sem finalidade lucrativa, chama-se associação. Tal interesse poderá ser externo (benemerência) ou interno (fortalecimento de alguma causa dos associados ou da classe). Cuidado com esse termo “finalidade não lucrativa”, pois existe lucro em uma associação (se não houver, ela quebra!); o que não existe é odirecionamento de tais lucros para o patrimônio dos associados, mas sim reinvestimentos do superávit na própria associação. As associações têm a função de congregar pessoas para fortalecer reivindicações, para unir colegas, para direcionar interesses etc. O ato constitutivo da associação é um Estatuto. Os integrantes dessa pessoa jurídica chamam-se associados, e podem ser de categorias diversas, mas, em cada categoria, é vedada a diferença entre direitos e obrigações. A leitura seca da lei pode levar ao equívoco de se acreditar que é vedado haver associados com diferentes direitos e obrigações. Pode sim! O que não pode haver é tal diferença dentro de uma mesma categoria de associados. Um exemplo clássico é o dos clubes, onde encontramos associados “remidos” e associados “contribuintes”, os quais, respectivamente, estão isentos de taxas de conservação e de outros contribuem com tal. A qualidade de sócio é personalíssima. O que importa é a pessoa do associado; por tal razão, não há transmissão da qualidade de associado para herdeiros. Para que haja uma ordem mínima nessa união de pessoas, a lei garante que cada associado possa livremente desempenhar suas funções. Qualquer associado pode ser excluído, havendo justa causa. “Justa Causa” é ato que coloque em risco a própria existência da sociedade. Só sabemos se a causa é justa ou não no caso concreto. Pode ser que uma associação não considere o incêndio da sede causada por um associado uma justa causa, visto que a associação pode se reunir em outro lugar, mas pode considerar justa causa a destruição dolosa de disquetes (ou, modernamente, um pendrive) contendo informações vitais para o funcionamento da associação. Cada caso é um caso. Para que se dê tal exclusão, faz-se necessária uma Assembleia Geral reunida para tal fim, ou seja, nenhum associado nem o associado imputado podem ser “flagrados” em uma assembleia associativa qualquer. Deve ser concedida ao imputado ampla defesa, e deve haver possibilidade de recurso da decisão da assembleia. Nessas normas para exclusão de associado nocivo vislumbramos os princípios constitucionais e radiais do “devido processo legal”, “ampla defesa e contraditório” e “duplo grau de jurisdição”. O órgão máximo de deliberação (tomada de decisões) da associação é a Assembleia; periodicamente se realiza a chamada Assembleia Geral Ordinária, e 73 aquelas promovidas para deliberação sobre determinada finalidade específica (por exemplo, exclusão de associado perturbador) chamam-se Assembleia Geral Extraordinária. Existe um “direito de revolução” nas associações. Dissidências e discordâncias sempre haverá quando o que se trata é diversidade de opinião. Geralmente, tudo se resolve com simples questão de maioria, mas, no que toca à associação, a lei é clara quanto à possibilidade até de uma minoria mudar o todo. É que a lei garante (Artigo 60 do Código Civil) a 20% dos associados o poder de convocar uma Assembleia Geral; e esta, como órgão máximo de decisão do ente, pode mudar qualquer coisa; sim: qualquer coisa! Diz a Lei: “Art. 60 – A convocação dos órgãos deliberativos far-se-á na forma do estatuto, garantindo a 1∕5 (um quinto) dos associados o direito de promovê-la”. É óbvio que esse quinto dos associados não tem o poder de votar por todos; não é isso! É o de convocar a Assembleia. Pode ser até que, em tal evento, saiam vencidos, mas, convenhamos, se tiveram articulação para convocarem a assembleia, é muito provável que tenham tal articulação, também, para se fazerem presentes em peso (eles, os discordantes) na assembleia para, aí sim, mudarem o que desejarem. É algo, portanto, a que todo dirigente de associação precisa estar atento: pode ser alvo de uma revolução, ou de um “golpe branco” dentro de sua própria entidade. A extinção da associação pode se dar por forma convencional (voluntária) ou forçada (involuntária); e, em qualquer caso, é dado aos associados se restituírem dos bens e valores colocados à disposição da associação, quando possível. O que sobejar deverá ser transferido a outra associação com finalidade semelhante, no município. Caso neste não haja, pode ser no Estado; e, por fim, caso neste não exista, na União. Partidos políticos e sociedades religiosas também são associações no que toca à sua natureza; tanto isso é verdadeiro (a natureza associativa dessas entidades) que o enunciado 142 da 3JDC diz: “Art. 44: Os partidos políticos, os sindicatos e as associações religiosas possuem natureza associativa, aplicando-se-lhes o Código Civil”. 1.1.4.4.3 FUNDAÇÕES Uma fundação é um patrimônio afetado a um determinado fim. Não é formado pela união de pessoas, mas sim pela destinação de um conjunto de bens a uma finalidade. É difícil para o profano aceitar essa ideia, mas é isso mesmo: “Fundação” é um conjunto de bens com personalidade! Ao contrário das sociedades e das associações, que podem ter seu ato constitutivo lavrado em um instrumento particular (em tese, até em “papel de pão” 74 mesmo), as fundações precisam, para ser instituídas, de escritura pública ou de testamento. Escritura Pública é o documento lavrado por tabelião; sua lavratura é regulada pela Lei de Registros Públicos. Testamento é o documento em que alguém manifesta suas disposições de última vontade; para que o testamento gere efeitos, é necessária a morte do testador. A finalidade da fundação, além de lícita (óbvio!), precisa ser uma das quatro: religiosos, morais, culturais ou assistenciais24. Eu sempre disse em sala que qualquer finalidade lícita não lucrativa poderia ser objeto de uma fundação, bastando encaixar na finalidade "moral". Nem a propósito, o Enunciado 8 da 1JDC nos diz que "a constituição de fundação para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente está compreendida no Código Civil, art. 62, parágrafo único." As fundações são mais controladas pelo Estado do que as sociedades e as associações. A lei incumbe ao Ministério Público exercer tal controle, que se dá, inclusive, desde a instituição dessa Pessoa Jurídica. Quanto qual órgão do Ministério Público será o competente para a fiscalização, acreditamos que tal resposta deve-se, também, à origem dos recursos utilizados na fundação. Assim, uma fundação de direito privado que utiliza verba federal pode ser fiscalizada pelo MPF. A formação da fundação possui quatro fases25: 1.a) Fase de dotação ou instituição; 2.a) fase da elaboração do estatuto ; 3.a) fase da aprovação dos estatutos; e 4.a) fase do registro. A instituição da fundação deve conter a discriminação dos bens destinados a ela. Caso tais bens se mostrem insuficientes para a finalidade a que se destinam, serão os bens destinados a outra fundação com igual finalidade. Essa regra garante, ou tenta garantir, que não haverá fundação “de fachada”. Uma vez instituída a fundação, é obrigatória a transferência da propriedade dos bens para a novel Pessoa Jurídica. A elaboração do estatuto pode ser feita de forma direta, quando o próprio instituidor o elabora, ou de forma fiduciária26, quando é elaborado por alguém indicado pelo instituidor. O instituidor deve indicar quem lavrará o estatuto da fundação; e, caso tal pessoa se recuse, o Ministério Público terá legitimidade para tal. A organização e a fiscalização das fundações têm seu procedimento regulado pelos Artigos 1.199 a 1.204 do Código de Processo Civil. 24 Memorize a palavra CRAM – Cultural, Religiosa, Assistencial ou Moral 25 GONÇALVES, apud Capez e Maltini 26 No direito civil, sempre que há uma relação de confiança, dizemos que há uma relação fiduciária, ou de fidúcia, que vem do latim fides, que significava fé, crédito, confiança. 75 A fundação terá um órgão de gerência que, por 2/3 dos votos, pode alterar o estatuto, contanto que não mude a finalidade daFundação. Entendemos que tal regra está incorreta, pois nada deveria impedir a mudança de finalidade desde que a nova finalidade fosse o “CRAM”. Qualquer alteração estatutária deve ter a “bênção” do Ministério Público. A extinção da Fundação se dá de forma voluntária ou involuntária: voluntariamente ocorrerá a extinção se o órgão responsável por sua administração assim o determinar; a extinção forçada da fundação se dá quando o objeto desta se mostra ilícito, impossível, inútil, ou ocorre o término do prazo previsto para a sua existência. Em qualquer dos casos de extinção, os bens serão destinados a outra fundação. Deve ficar ressaltado, portanto, que, ao instituir uma fundação, o instituidor, quando vivo, abre mão dos bens a ela destinados, uma vez que, em caso de extinção desta, a lei não prevê a restituição dos bens ao instituidor; é mais uma salutar regra que impede a criação de fundações simuladas. 1.1.4.4.4 ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS Organizações Religiosas são uniões de pessoas que congregam visando à busca de elevação e de perfeição espiritual conforme o ensinamento de alguma Entidade Superior. Tal ente superior muda de nome a depender da religião em que é buscado. O catolicismo foi a religião oficial do Brasil até a Constituição de 1891. Até aquela data, a Igreja (Católica) era parte do próprio Estado, havendo inclusive o instituto do padroado e do beneplácito como crivos das bulas papais, para vigerem no Brasil. Quando a igreja saiu do Estado, este se tornou laico, ou seja, sem religião oficial, e assim continua sendo na nossa Constituição atual, embora esta seja teísta (visto que há o nome de um deus, “Deus”, no preâmbulo da Constituição). Mas o envolvimento Estado/religião para no preâmbulo da Constituição, já que a lei torna livre a criação, a organização, a estruturação e o funcionamento das organizações religiosas, quaisquer que sejam. Não pode o poder público negar registro ou reconhecimento a qualquer organização religiosa desde que suas práticas religiosas não firam alguma lei. Assim, não é ilícita uma prática religiosa que sacrifique animais, desde que não sejam animais ameaçados de extinção, por exemplo. 1.1.4.4.5 PARTIDOS POLÍTICOS Os partidos políticos são regidos pela Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995; têm a finalidade de legítima e democraticamente tomarem o poder para geri-lo de acordo com as leis e com seu estatuto. 76 É vedado aos partidos exigir uso de uniformes para seus membros, bem como ter qualquer caráter militar. Quanto à sua constituição, tão logo tenha seu ato constitutivo registrado (no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas da capital federal), devem obter registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral para que possam participar de eleição, ter acesso a horário gratuito e ter regularidade financeira. Todo partido político deve ter caráter nacional, e para seu registro é exigido um mínimo de 101 membros com domicílio eleitoral em pelo menos um terço dos estados-membros; deve também ter um apoiamento mínimo, nos termos da citada lei. 1.1.4.4.6 As “EIRELI” A EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, no Artigo 980-A do Código Civil) surge quando um empresário individual é tratado sob égide das normas da Sociedade Limitada. Com um capital mínimo de 100 salários-mínimos, o empresário pode tornar-se ou adequar-se aqui. Em caso de malogro no negócio, o que terá a perder é o patrimônio aportado ao negócio, e não seu patrimônio pessoal. 1.1.4.5 CICLO DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS JURÍDICAS Como qualquer ente, as PJs têm início e fim. Tecnicamente, diz-se que as PJs têm constituição e extinção (em analogia ao “nascimento” e à “morte”, aplicados às pessoas naturais). Discorramos sobre o ciclo vital de uma Pessoa Jurídica: O início legal da pessoa jurídica se dá por lei, pelo registro, ou por “autorização + registro”. As Pessoas Políticas e as Autarquias são criadas por Lei, e esta é o seu ato constitutivo. (Ato Constitutivo é o documento-gênese da pessoa jurídica; é a materialização da vontade de sua criação). As demais pessoas jurídicas iniciam sua existência legal com o registro de seus atos constitutivos no órgão competente. Algumas pessoas jurídicas dependem de autorização do Poder Público para existirem; nesse caso, tal autorização integra os requisitos para o seu início, de forma que não basta apenas o registro para existirem legalmente; faz-se necessário o permissivo formal do Estado. É por essa razão que o registro, para as pessoas naturais, tem natureza declaratória, pois, mesmo sem registro, a pessoa natural existe, ao passo que para a Pessoa Jurídica o registro é constitutivo, pois é o registro que faz existir a pessoa jurídica! Exceto para as pessoas políticas, as Pessoas Jurídicas podem, no interregno de três anos a contar do registro de seu ato, ter declarada a nulidade de sua criação. 77 Os requisitos para que uma pessoa jurídica exista são três: 1-Vontade humana; 2-Licitude de finalidade e 3-Forma prescrita em lei. Uma vez publicado o registro da Pessoa Jurídica, inicia-se o prazo de três anos para que seja apontada alguma irregularidade em sua constituição. 1.1.4.5.2 FIM DA PESSOA JURÍDICA Tratemos sobre a extinção das Pessoas Jurídicas. As PJs se extinguem por quatro grupos de motivos: motivos convencionais, motivos automáticos (ou, como consta no texto da lei, “de pleno direito”), motivos judiciais e motivos administrativos. Os motivos convencionais, como o nome indica, são frutos de acordo entre os próprios membros formadores. A qualquer momento podem os membros deliberar sobre a extinção da PJ, sendo tal decisão causa suficiente para deflagrar o procedimento de extinção. Os motivos automáticos são de duas ordens: Internos e Externos. Os motivos automáticos internos são todos aqueles previstos no ato constitutivo e que venham a ocorrer; podem ser uma condição ou um termo. Assim, um Contrato Social pode prever que a sociedade se extinguirá no caso de falecimento de qualquer dos sócios; ou, no caso de termo, temos o caso das sociedades com determinado prazo de existência, visto que um Estatuto pode prever que a Associação durará quinze anos, por exemplo. Os motivos automáticos externos estão no mundo puramente dos fatos que forçam o fim da PJ, como no caso de impossibilidade de objeto: imagine que uma Sociedade tem como objeto social a manutenção de determinado edifício. Imagine que por qualquer infortúnio o edifício venha a ruir; teremos uma extinção automática por causa externa. Também como causa externa, mas decorrente de lei, temos, para o caso das sociedades, a falta de pluralidade de sócios por mais 180 dias. Os motivos judiciais são basicamente de três ordens: declaração de falência ou insolvência da PJ, anulação de ato constitutivo, ou por sentença nos demais casos em que a extinção é levada à seara judicial para discussão. Assim, uma causa automática, quando questionada em juízo, deixa de ser “automática” e passa a ser “judicial”. Os motivos administrativos provêm da administração pública, podendo ser de duas ordens: Atos Gerais ou Ato Específico. Atos gerais são as determinações que geram efeitos em toda uma atividade, como no caso do fato do príncipe, em que a administração pública passa a não mais permitir determinada atividade em um município por exemplo. Os atos específicos são aqueles direcionados a certa e individualizada PJ. A extinção das PJs tem três fases; o Código trata de tais fases a partir do Artigo 1.102; especificamente tal procedimento é aplicável, nos termos da lei, às 78 Sociedades; ocorre que é, latu sensu, o mesmo procedimento de extinção de qualquer pessoa jurídica. As fases são Dissolução, Liquidação e Cancelamento. Nomeia-se um liquidante, que será o condutor administrativo da extinção da PJ. De plano será feita a averbação do ato extintivo,seja qual for, no registro da PJ. Após amealhar documentos e balanços da PJ, deve o liquidante ultimar os negócios pendentes (negócios no sentido do Direito Civil; não apenas no sentido empresarial). Deve então proceder à realização do ativo e do passivo da PJ, que é a pior fase na prática. Significa cobrar os créditos e pagar os débitos; é geralmente quando toda extinção de PJ emperra. Durante todo o procedimento, deve o liquidante dar ampla publicidade dos seus atos aos membros e aos demais interessados na sociedade. Tal publicidade ocorre por meio de reuniões ou de assembleias. Após encerrada a liquidação, a PJ (que ainda existe!) está apta à terceira fase de extinção, que comporta um único ato, que é o cancelamento do registro da Pessoa Jurídica. Só então se considerará a PJ extinta. 1.1.4.6 ADMINISTRAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA Conversemos um pouco sobre a administração da pessoa jurídica, que pode ser individual, conjunta ou colegiada. A administração individual contém uma vontade, apenas. A administração colegiada contém várias vontades, e guiará(ão) o rumo da pessoa jurídica aquela(s) vontade(s) que alcançar maioria de votos no órgão colegiado. A administração conjunta possui apenas uma vontade, mas emanada de mais de uma pessoa, que aquiesce em apenas uma determinação. Aqui não existe votação; existe acordo em que se procura uma vontade acordada por todos os administradores, conjuntamente. A lei determina que, na falta de administrador, o juiz pode suprir tal falta. Qualquer decisão coletiva pode ser anulada no prazo de três anos no caso de, em sua deliberação, ter ocorrido erro, dolo, simulação ou fraude. Trataremos de pormenores sobre tais defeitos quando estudarmos, nesta obra, os “vícios dos negócios jurídicos”. Algo que percebo é que os conceitos de “administração” para o direito e para a ciência administrativa são bem diferentes. Para a ciência da Administração, esta é conceituada como “o direcionamento de pessoas e bens para a consecução de objetivos determinados”. Já para o direito, temos dois sentidos desse termo: um interno e um externo. No sentido interno, é o mesmo da ciência própria, trazendo inclusive as três funções básicas da administração, que são deveres de diligência (cuidado com o quando agir e como se deve agir), de lealdade (não trair confiança e não agir em conflito de interesse) e de informação (na forma ativa: comunicar o que deva ser comunicado; e na forma passiva: não sonegar informação quando requerida e com 79 possibilidade de divulgação). Pode ser individual, coletiva (várias vontades, com a vontade determinante aferida por votação) ou conjunta (várias vontades, de vários administradores, de forma que a vontade determinante é alcançada por argumentações, convencimentos e articulações). Caso momentaneamente a sociedade fique acéfala, ou em litígio dentro da administração, o juiz nomeará administrador substituto. Mas existe outro sentido da palavra “administração”: o externo. No sentido externo, significa representar a sociedade perante terceiros. Nos termos dos Artigos 116 e 47 do CCB, o ato do administrador obriga à sociedade: “Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo”. Assim, no sentido externo, o administrador atua como se toda a organização fosse. 1.1.4.7 DOMICÍLIO DA PESSOA JURÍDICA As pessoas políticas possuem como domicílio as suas capitais no caso da União e dos estados-membros. No caso dos municípios, o domicílio será a sede da administração. Note que o Código não enunciou que é a prefeitura! Se em determinado município o prefeito deslocar a administração municipal para a sua residência, nesta funcionará, também, o domicílio do município. No caso das pessoas jurídicas de direito privado, o domicílio é onde elegerem ou onde funcionarem as suas administrações. Em caso de pluralidade de estabelecimentos, cada um deles terá um domicílio. Uma pessoa jurídica estrangeira, com instituição no Brasil (uma salinha que seja), terá nesse local o seu domicílio no País. Lembramos que uma PJ também pode ter domicílio contratual (foro de eleição), onde as partes elegem determinado local para discussão das questões envolvendo determinado negócio jurídico. 1.1.4.8 DIREITOS DA PERSONALIDADE DA PESSOA JURÍDICA O Artigo 52 do Código é claro ao atribuir às pessoas jurídicas direitos da personalidade; nem poderia ser diferente. Tal expressão legal coloca uma pá de cal em outrora infindável discussão sobre existência de tais direitos a esse tipo de pessoa. Lembramos que nem todos os direitos da personalidade são atribuíveis à pessoa jurídica; por exemplo, não é cabível às pessoas jurídicas o “direito à liberdade”. A nosso ver, erram gravemente os doutos estudiosos da Quarta Jornada de Direito Civil do CJF, ao afirmarem, no Enunciado 52, que “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos.” Ora, o erro 80 técnico está em ligarem a palavra “pessoa” à “pessoa humana” quando, como já estudamos, pode esta ser também uma PJ. 1.1.4.9 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Uma vez que um dos requisitos para a existência das Pessoas Jurídicas é a liceidade (ou licitude) de finalidade, há de existir no ordenamento jurídico um mecanismo de coibir o mau uso das pessoas jurídicas. Tal mecanismo, originado do direito norte-americano, chama-se Desconsideração da Pessoa Jurídica e permite que a consequência patrimonial de atos ilícitos recaia não apenas sobre o patrimônio da sociedade, mas também sobre o patrimônio dos sócios e dos administradores. Não é qualquer prejuízo que será suportado pelos patrimônios dos sócios e dos administradores, mas tão somente aqueles advindos de atos tipificados em lei, conforme também afirma o Enunciado 7 da 1JDC, o qual indica que deve tal despersonalização atingir o patrimônio dos sócios ou dos administradores que em tal ato houverem incorrido. Os principais casos de desconsideração da personalidade jurídica são encontrados no Artigo 50 do Código Civil, no Artigo 28 do Código do Consumidor; no Artigo 4.o da Lei de Crimes Ambientais; no Artigo 18 da Lei Antitruste (Lei 8.884/94); nos Artigos 117 e 158 da Lei das S/As (Lei 6.404/76); no parágrafo segundo do Artigo segundo da CLT; e nos Artigos 134, VII e 135, III do CTN. Assim, podemos afirmar que existem várias espécies de desconsideração da Pessoa Jurídica. Existe a despersonalização civil, consumerista, ambiental, antitruste e tributária – a depender da lei que a rege; (há quem afirme haver também a trabalhista, mas, pela CLT, esta apenas é remetida à execução tributária, sendo esta aplicável àquela, em verdade); divide-se ainda em direta e indireta (ou invertida) – a depender se a despersonalização ocorre por dívida da própria PJ, recaindo a execução sobre os bens dos sócios; ou se existe para se “naturalizar” o bem da PJ, ou seja, caso se executem bens da PJ por dívida pessoal do sócio; divide-se, também, em voluntária e involuntária – a depender se foi requerida por um ente externo à PJ, contra esta, ou se foi requerida pela própria PJ! Aliás, até o nome do instituto, é múltiplo: “Desconsideração da pessoa jurídica (ou da personalidade jurídica)”; “Disregard doctrine”; “Disregard of legal entity”; “Piercing the corporate veil” e “Lifting the corporate veil”. (E pasme! Tais nomes em inglês são utilizados em decisões brasileiras!) Em geral, os atos que permitem o atingimento do patrimônio dos sócios e dos administradores são os atos eivados de dolo, com vontade de causar dano a outrem, ou oriundos de má administração da sociedade. 81 Em atenção ao princípio da boa-fé, não podem os responsáveis por tais atos dolosos se esconderem atrás de umanorma legal para garantir a própria impunidade (uma das consequências do princípio da boa-fé é o enunciado de que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza). Um importante ponto a ser discutido é a desconsideração “inversa”. Diz o enunciado 283 da 3JDC que “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”. Aqui, os bens da pessoa jurídica respondem por ato ilícito do sócio. Sim, tal possibilidade existe, conforme a seguinte decisão do TJ/SC27: “Desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’. Art. 50 do CC/2002 e Enunciado n.o 283 da IV Jornada de Direito Civil do CJF. O interlocutório que desconsidera inversamente a personalidade jurídica de sociedade comercial, fazendo que a empresa responda com seu patrimônio pela dívida pessoal do sócio, está circunscrito aos pressupostos do Art. 50 do atual Código Civil, cabendo ao juiz, fundamentadamente, apontar as razões do seu convencimento, seja pelo acolhimento, seja pela rejeição do pedido, sob pena de vulneração aos Arts. 93, IX, da CRFB, e 165, do CPC, dispositivos que transmitem a necessidade de motivação nas decisões judiciais, ainda que concisa, sob pena de nulidade. Conheça, também, o Enunciado n.o 283 da IV Jornada de Direito Civil do CJF, que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica "inversa": É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros. (Agravo de instrumento n.o 2005.031945-4, de Canoinhas, SC)”. Ainda segundo o enunciado 285 da 4JDC, “Art. 50. A teoria da desconsideração, prevista no Art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”, ou seja, os demais sócios podem deliberar que o patrimônio de outro determinado sócio responda pelo ato ilícito causado por este, por meio da pessoa jurídica. 1.1.4.10 O “Terceiro Setor” É uma espécie de instituição sem fim lucrativo. Esse “terceiro setor” é um conceito moderno para algo que existe desde épocas idas, seja como resultado da bondade humana, seja por purainoperância do Estado. O primeiro setor da economia é o setor público; deve usar dinheiro público para a consecução do interesse público, ou seja, o bem comum (a pura doutrina do “wellfare state”, Estado-Providência). 27 http://mjcatalan.blogspot.com/2007/07/teoria-da-penetrao-inversa-ou-s-avessas.html 82 O segundo setor da economia é o setor privado. Aqui, as economias privadas são utilizadas para resultados lucrativos particulares. Nada há nada de errado nisso, desde que gerada honestamente. O terceiro setor, então, é o mix dos dois setores acima: é a instituição que utiliza recurso privado para consecução de finalidade pública. O terceiro setor é assim chamado nas ciências econômicas, tendo outra designação no direito: OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e, na mídia, é chamado de ONG (Organização Não Governamental). Uma ONG pode ou não obter o status de uma OSCIP; se obtiver, poderá receber doações via imposto de renda de outras pessoas. Celebra convênios com entes públicos; a lei de regência das OSCIPs é a Lei 9.790, de 23 de março de 1999. 1.2 BENS O advento da “pinça” fez que alguns animais passassem a utilizar objetos para algumas utilidades, mormente os primatas e os humanos. O uso de tais objetos pelos primatas não é regulado, mas por parte dos humanos, sim. Nosso Código Civil trata dos bens em duas oportunidades: classifica-os em sua Parte Geral e regula a atuação dos humanos sobre os bens na Parte Especial. Podemos inferir que os bens são um dos objetos das relações jurídicas (estas recaem sobre um comportamento – atividade ou inatividade – ou sobre bens) – em verdade, mesmo quando envolvem somente atividade, seu descumprimento resulta em perdas e em danos, o que pode resultar em dinheiro, que é bem. Daí não ser incorreto afirmarmos que os bens são verdadeiramente os objetos das relações jurídicas (aquilo sobre o que recaem as relações jurídicas; aquilo sobre o que os sujeitos atuam), seja de forma direta (imediata), seja indireta (mediata). Para que entendamos a ideia de “bem”, partamos inicialmente da ideia de patrimônio. 1.2.1 NOÇÃO DE PATRIMÔNIO Socorrendo-nos das ciências contábeis, afirmamos que patrimônio é o “conjunto de bens, direitos e obrigações de uma pessoa”. Ao conjunto de componentes tutelados juridicamente pertencentes a uma pessoa, chamamos de “patrimônio”. É tão importante que existe um ramo do Direito Civil para regulá-lo no pós-morte do seu dono, o Direito das Sucessões; e é a maior fonte de conflitos da humanidade. Em sua parte positiva, contém os bens (o outro componente da parte positiva são os “direitos”). Logo todo bem pertence a um patrimônio, mas este não é apenas formado por bens. 1.2.2 CONCEITO DE “BENS” Tudo o que existe no universo é chamado de “Ente”. Um ente se divide em pessoa e coisa. Será pessoa caso tenha personalidade (aptidão para ter direitos e 83 obrigações); e será coisa caso não tenha personalidade (ok! Algo que não seja pessoa, mas formado por pessoas não será uma coisa, mas sim um “ente despersonalizado”, que terá personalidade processual (como o condomínio ou uma sociedade não personalizada, estudada em direito empresarial) e não será necessariamente coisa. Mas, como é formada por pessoas, não foge à regra de divisão “pessoas/coisas”. Dentre as coisas, algumas são úteis, outra não. Uma coisa útil (que satisfaça alguma necessidade humana) é chamada de “bem”. Assim, todo bem é coisa, mas nem toda coisa é bem (lembro que tal definição não é unânime, mas é bem difundida e é aquela com a qual nos alinhamos!). Bem! Se é assim, porque o Código Civil (CCB) optou por, na sua parte especial (Art. 1.196), chamar de “direito das coisas”, e não de “direito dos bens”? A resposta é simples: algo pode ser bem para um e não ser para outro (o ponto de vista, subjetivo, enquadrará o ente a partir de uma noção individual de utilidade) – mas será coisa para todos. Assim, um batom para um homem é uma coisa; para a mulher é um bem, mas, como todo bem é coisa, será coisa para os dois, necessariamente. Para que o direito não regule o batom para a mulher, mas o deixe sem regulamentação para o homem, preferiu a lei, sabiamente, chamar de “direito das coisas” (que valerá para todos), e não “direito dos bens”, o que regularia o batom para a mulher, mas não para o homem. Lembramos que coisa ou bem não têm direitos. Quando o CCB se refere a “direito das coisas”, quer dizer “direito das relações entre pessoas envolvendo coisas como objeto desta relação”. Como dissemos há pouco, existe uma controvérsia doutrinária sobre o conceito de bens, mormente quando à diferenciação entre “bens” e “coisas”, vejamos: Para outra teoria, seguida por respeitadas vozes, enunciam que os objetos, que não sejam pessoas, reconhecidos pelo direito, são bens. E os bens corpóreos são chamados de “coisas”. Para uma terceira teoria, ainda, um bem é uma coisa tornada objeto de relações jurídicas; assim, ainda que uma coisa se torne útil, se não for transacionada juridicamente, não é um bem. Não nos filiamos a nenhuma das duas últimas teorias explanadas. 1.2.3 CLASSIFICAÇÃO Agora que sabemos o que é “bem”, vamos classificá-lo. Classificar significar utilizar as peculiaridades semelhantes de um conjunto de elementos para agrupá-los segundo tais características, podendo assim aplicar os regimes jurídicos próprios a cada grupo. Os bens podem ser classificados conforme se considerem em si mesmos, um em relação ao outro, quanto à titularidade e quanto à comerciabilidade.84 São os seguintes os quatro grupos de classificação: na classificação dos “Bens Considerados em Si Mesmos”, podem os bens ser corpóreos ou incorpóreos; móveis ou imóveis; fungíveis ou infungíveis; consumíveis ou inconsumíveis; divisíveis ou indivisíveis; singulares ou coletivos; na classificação dos “Bens Reciprocamente Considerados”, podem os bens ser principais ou acessórios; na classificação dos bens quanto à “Titularidade”, os bens podem ser particulares ou públicos; e na classificação quanto à “Comerciabilidade”, podem os bens ser comercializáveis ou fora do comércio. 1.2.3.1 BENS CONSIDERADOS EM SI MESMOS Nesta classificação, toma-se somente o bem sem relação com qualquer outro; “isola-se” o bem, levando em conta somente suas características próprias. Podem ser corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou inconsumíveis, divisíveis ou indivisíveis, singulares ou coletivos. Corpóreos são os bens que sugestionam os sentidos. Tais bens possuem forma, ou gosto, ou cheiro, ou temperatura que podem ser percebidos pelo homem. O senso profano nos induz a pensar que corpóreo é só o que “possui corpo” no sentido de altura, largura e profundidade; isso não é verdade. Um gás é um bem corpóreo, por exemplo. Incorpóreos são os bens que não sugestionam os sentidos, daí também serem chamados “ideais”. São exemplos de bens incorpóreos: marcas, patentes e direitos atorais. Bens móveis precisam de uma explicação prévia: inicialmente, deixemos claro que a divisão de bens entre móveis e imóveis é uma divisão no plano jurídico, visto que, no mundo físico, não existe bem imóvel ou, como aprendemos no colégio, um bem pode ser móvel ou imóvel dependendo do referencial de observação. Nada no cosmo é imóvel. Mas, no mundo jurídico, um bem é considerado móvel de acordo com um dos seguintes critérios: Móvel por sua própria natureza, ou Móvel Natural – É aquele que pode ser movimentado de um local para outro sem perda de sua destinação econômica, de sua substância, ou de sua identidade. É a quase totalidade dos bens móveis existentes no mundo. Os móveis dotados de movimento próprio (aquele seu cachorro de estimação) são chamados de semoventes; Móvel por determinação legal, ou Móvel Legal – São aqueles bens que fisicamente não importam se são móveis ou imóveis. A lei diz que são móveis, e pronto! O exemplo clássico é o das energias com valor econômico (energia elétrica, sinal de TV a cabo, sinal de telefonia etc.). A finalidade prática dessa equiparação é a possibilidade que a lei expressamente dá a tais bens para que possam figurar como objeto de relações jurídicas e possam ser objeto de tutela penal. Já notaram que o 85 crime de furto (Artigo 155 do Código Penal) tem como tipo penal “Subtração de coisa alheia móvel”? Pois é! Eis a tipificação penal do “gato”...; e Móvel por antecipação – São os bens que “nascem” para serem móveis, mas, para isso, passam por um estágio em que são fisicamente bens imóveis. O exemplo clássico são as árvores plantadas para serem matérias-primas de indústria de papel. Bens Imóveis são subdivididos em Imóvel por sua própria natureza, ou Imóvel Natural – Basicamente é o solo e tudo o que lhe é acrescido. São bens que não podem ser movimentados de um local para outro sem perda de sua destinação econômica, de sua substância, ou de sua identidade. Lembramos ao leitor que, no mundo físico, absolutamente NADA é imóvel. O que torna um bem juridicamente imóvel é a incapacidade de manter sua coerência formal quando movimentado. Sempre que eu explico sobre imóvel natural, uma pergunta clássica surge de alguém da sala: “Professor, e aquelas casas que são transportadas inteiras de um lugar para outro? São o quê?” O que importa para se classificar um bem considerado em si mesmo não é como ele está, mas sim o que ele É. Assim, uma casa inteira em transporte é tão imóvel quanto se estivesse presa às pilastras da fundação. Em algum momento um prefeito resolveu plantar palmeira imperial em Manaus e as trouxe inteira, de balsa. Pois bem. Enquanto estavam transportando as palmeiras, elas eram imóveis, igualmente. Assim como o próprio imóvel enquanto transportado não deixa de ser imóvel; igualmente, partes desse imóvel continuam imóveis mesmo quando temporariamente deslocadas. Assim, imagine que a porta de um prédio é retirada para que seja envernizada. Enquanto a porta está na marcenaria, em reforma, ainda assim ela É um imóvel. O Código Civil é claro: “Art. 81. Não perdem o caráter de imóveis: I – as edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local; II – os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem”. O segredo é não tentar encontrar no direito lógica da física, visto que o direito tem sua própria lógica; Imóvel por determinação legal, ou Imóvel Legal – São aqueles bens que fisicamente não importam se são móveis ou imóveis. A lei diz que são imóveis. Amém! A finalidade prática dessa equiparação é o encaixe de tais bens ao regime dos bens imóveis. Ao tratarmos sobre Direitos Reais, o leitor saberá, em pormenores, as peculiaridades de tal regime (um exemplo de consequência do regime imobiliário é a obrigatoriedade de registro público para caracterizar a propriedade). Fungíveis são bens plenamente substituíveis por outros de igual gênero, que não desagradarão dos sujeitos neles interessados. Em verdade, desde que seja O QUE e QUANTO de acordo com o que os sujeitos desejam, não existe problema algum. Por exemplo, imagine que você está no supermercado e quer comprar um quilo de arroz marca X. Você se posiciona da gôndola onde existem vários sacos 86 contendo um quilo do referido arroz. Qual saco você escolhe? Pois é! Em tese, qualquer saco do arroz da dita marca satisfará seu desejo de consumo, não é mesmo? Bens fungíveis são identificados por “O QUE” e “QUANTO”. Mas jamais por “QUAL”. Há de se ter cuidado com a confusão existente entre os termos “bem fungíveis x bens sub-rogados”; ambos evocam a ideia de “troca", mas a semelhança para por aí. Um bem fungível, como dissemos, é coisa sem identidade, algo que possa sertransacionado “quanto do que” ou, como está no Código Civil, “indicado pelo gênero e quantidade”. É o caso de “mil reais”: não importa se são dez notas de cem, vinte notas de cinquenta ou cem notas de dez; continuará a ser o mesmo bem: cem reais. Bens sub-rogados, que surgem às vezes no texto do Código: “Art. 39. Regressando o ausente nos dez anos seguintes à abertura da sucessão definitiva, ou algum de seus descendentes ou ascendentes, aquele ou estes haverão só os bens existentes no estado em que se acharem, os sub-rogados em seu lugar, ou o preço que os herdeiros e demais interessados houverem recebido pelos bens alienados depois daquele tempo”; “Art. 1.446. Os animais da mesma espécie, comprados para substituir os mortos, ficam sub-rogados no penhor”; “Art. 1.668. São excluídos da comunhão: I – os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar”. Significam bens que foram comprados com valores obtidos a partir da venda de outros bens. Assim, se alguém possui um carro, vende-o e compra quatro motos, essas quatro motos são sub- rogadas do carro vendido. Assim não existe relação de identidade qualquer entre fungibilidade e sub-rogação. Infungíveis são bens insubstituíveis; bens únicos no universo. Imagine você acessando um site de leilões em que um dos objetos vendidos é um livro de Rui Barbosa, autografado pelo próprio. Você compra o livro, mas é surpreendido no outro dia com um e-mail em que o vendedor explica que não mais possui o livro, mas pergunta se pode repor a remessa com outro livro, novo, edição atual e, obviamente, sem o autógrafo do autor. Você aceitaria? Por que não? Por que você não comprouum título da obra do mestre apenas? Você comprou uma peça histórica, de colecionador, sem igual. Deu para notar o que é um bem infungível? Mas nem precisamos ir tão longe; um exemplo clássico de bem infungível é o seu automóvel; tem até placa individual, não é? Em tese, qualquer bem individualizado para alguém, ainda que o valor seja puramente sentimental, é um bem único no universo e, como tal, infungível. Atenção: é importante lembrar que a ideia de fungível ou infungível leva em consideração o sujeito que se interessa pelo referido bem. A qualificação é subjetiva. O que é infungível para alguém pode ser fungível para outra pessoa. Alguém pode adquirir uma dúzia de aparelhos telefônicos antigos para retirar peças para reparo de outros aparelhos; tais aparelhos serão fungíveis. Mas um daqueles aparelhos antigos, adquirido por outra pessoa, em um antiquário ou museu, será, para o adquirente, um bem infungível. A relevância de 87 tal classificação é que, em sendo o bem fungível ou infungível, seu empréstimo será um mútuo ou um comodato (respectivamente); as compensações de dívidas com tais bens podem ou não ocorrer (respectivamente) e, em tese, os bens imóveis são sempre infungíveis; dizemos em tese porque um imóvel, sob o ângulo de uma construtora, incorporadora ou imobiliária, pode ser tomado como bem fungível. Consumíveis são bens que se destroem quando são utilizados. Deixamos claro que a palavra “destruição” é no sentido jurídico da palavra (identidade-substância- destinação econômica). Por exemplo, a tinta de parede é consumível: uma vez aplicada à parede, não mais pode ser utilizada para a mesma finalidade; mas perceba que ela não se “destruiu”, tanto que está lá, na parede! E é importante lembrar que, no mundo físico, NADA é indestrutível, Lavouisier já enunciava que “tudo se transforma”. Um bem comprado para revenda se consome quando esta ocorre. Inconsumíveis são bens que não se destroem na sua utilização; apenas se desgastam. Um exemplo clássico é o automóvel. Um automóvel não se destrói no uso, mas se desgasta com os usos sucessivos. Mas são considerados bem não consumíveis por permitirem indefinidos usos. Atenção: igualmente importante é lembrar que as ideias de consumíveis ou não consumíveis estão diretamente ligadas à finalidade para a qual se considera o bem. Por exemplo: uma revendedora de automóveis adquire automóveis para quê? Para rodar, não é mesmo? É claro que não! Adquire-os para vender. Pois bem, no momento da venda, tais bens foram “utilizados” e “destruídos”, visto que não podem vender o mesmo automóvel duas vezes, obviamente. Assim, os automóveis, para a revendedora, são bens consumíveis. Uma das importâncias de se classificar os bens como consumíveis ou inconsumíveis é para o instituto do usufruto, que só recai sobre bem inconsumível. O usufruto que recai em bem consumível é chamado de usufruto impróprio ou quase-usufruto. No que toca aos bens divisíveis e indivisíveis, melhor entendermos, de antemão, o que significa a indivisibilidade. A indivisibilidade pode ser de três espécies: natural, legal ou convencional. A indivisibilidade natural ou física é aquela que decorre da própria natureza (daí também ser chamada de “indivisibilidade pela própria natureza”); é aquela em que, se o bem for dividido, perde-se sua essência, sua identidade, ou sua destinação econômica. Assim, um boi dividido ao meio não é mais boi; é carne bovina. Uma árvore dividida ao meio não é mais árvore; é madeira. Um automóvel dividido ao meio não é mais automóvel; é sucata. Que fique claro que, no mundo das ciências físicas, TUDO é divisível, daí, quando falamos em indivisibilidade física, usamos o parâmetro identidade-essência-utilidade da coisa, que fica destruída ou modificada. A indivisibilidade legal é a que decorre da lei; e não adianta muito tentarmos encontrar lógica, visto que é uma indivisibilidade ideal, no mundo jurídico. Assim, 88 a herança é indivisível até a partilha. A massa falida é indivisível até a liquidação desta; as debêntures emitidas por uma Sociedade Anônima formam um todo indivisível. São exemplos de indivisibilidade legal. Indivisibilidade convencional é a que decorre de decisão das partes. Assim, dois contratantes podem tornar um lote de terra indivisível para fins de compra e venda, podem tornar indivisível uma determinada safra comprada, ou qualquer grupo de bens que fisicamente ou legalmente seriam até perfeitamente divisíveis, mas a vontade das partes simplesmente a afasta. Uma vez desvendada a indivisibilidade, é-nos suficiente saber que o que não for indivisível por qualquer dos três motivos expostos é divisível – a divisibilidade é por exclusão, ou seja, a ela não se opõem as partes, a lei; e a coisa dividida não perde sua identidade, substância ou prejuízo em sua destinação. Tratando sobre bens singulares e coletivos, podemos afirmar que bens singulares podem ser tomados à unidade para negócios jurídicos; são considerados individualmente, ao passo que os bens coletivos (ou universais), que são compostos por várias unidades físicas em sua formação, só podem ser tomados para negócio conjuntamente, como um todo unitário; é o caso da herança, espólio, biblioteca, frota, safra, e assim por diante. As universalidades são chamadas de “de fato” e “de direito”. Universalidade de fato é o conjunto de coisas materiais singulares, simples ou compostas reunidas em coletividade pela vontade da pessoa. É o que conhecemos como bens coletivos no colégio, mas com um componente a mais: o desejo de destiná-los a finalidade específica; e Universalidade de direito é o conjunto de coisas (materiais ou imateriais) corpóreas ou incorpóreas que têm seu caráter coletivo, mas a que a lei atribui caráter unitário, como um patrimônio, uma herança, uma massa falida, bem como direitos e obrigações.28 1.2.3.2 BENS RECIPROCAMENTE CONSIDERADOS Nesta classificação, toma-se somente um bem em relação a outro bem. Ou seja, dependendo do outro bem ao qual se compare, a classificação desse bem pode mudar. Aqui se classifica um bem em Principal ou Acessório. Bem Principal é o bem que existe por si só, não dependendo de nenhum outro, tendo destino próprio. Bem Acessório é o bem cuja existência nos faz concluir que existe um bem principal. Seu destino segue o do bem principal. O titular da relação jurídica que contém a coisa principal detém também a acessória. São espécies de bem acessório os frutos, as benfeitorias, os produtos e as pertenças. Os frutos são utilidades geradas pela coisa, os quais podem ser retirados sem que esta perca sua substância. Possuem duas classificações: quando à natureza e 28 In www.advocaciaassociada.com.br/informacoes.asp?IdSiteAdv=2803&action=exibir&idinfo=1783 89 quanto ao tempo. Quanto à natureza dos frutos, estes podem ser naturais, quando não precisam de ingerência humana para serem gerados pela coisa; industriais (ou artificiais), quando dependem de atuação humana para existirem; e civis, que são rendimentos e demais utilidades legais decorrentes da atuação de terceiros que não são titulares da coisa; por exemplo, juros e aluguéis. Quando ao tempo, o fruto pode ser pendente, quando ainda se encontra ligado à coisa principal, ou seja, não foi ainda destacado; percipiendo é o fruto que já devia ter sido colhido, e não o foi; fruto percebido é o fruto já destacado da coisa; consumido é o fruto que já foi utilizado segundo sua identidade; e estante é fruto já colhido e armazenado. Existem ainda os frutos “colhidos por antecipação”, que são simplesmente os que são separados da coisa antes do momento adequado. 90 Figura 23 - Frutos quanto ao momento 91 Produtos são utilidades geradas pela coisa cuja retirada importa em destruição da própria coisa, não se renovando. Por exemplo: petróleo edemais recursos naturais não renováveis. Benfeitorias são obras executadas na/sobre a coisa; dividem-se em benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias. Benfeitorias necessárias são obras de conservação da coisa; garantem a própria coerência formal desta. Benfeitorias úteis são as que trazem maior conforto e funcionalidade no uso da coisa; e Benfeitorias voluptuárias são as que aformoseiam a coisa, tornando-a mais bonita e suntuosa. Atenção: uma obra só é benfeitoria quando se acresce a ela outra já existente. Quando se constrói onde nenhuma obra anterior existe, temos uma acessão! Quanto aos efeitos das benfeitorias, explicamos que, sempre que um possuidor precise ser desapossado, pode reter o bem até ser indenizado pelas benfeitorias necessárias. As benfeitorias úteis são igualmente indenizáveis, mas não dão direito à retenção. As benfeitorias voluptuárias não geram direito à indenização nem à retenção. Se o possuidor puder levá-las consigo, pode fazê-lo, mas, se não conseguir removê-las, perdê-las-á. Por ato da entrega, o locador pode reter a coisa até receber o pagamento do que gastou com benfeitorias necessárias, sempre; e das úteis se, quanto a estas, houve disposição no contrato. Os Artigos que tratam sobre benfeitorias, 1216 e 1220, visam garantir ao possuidor que sai da coisa uma indenização pelas despesas de produção dos frutos (Art. 1.216) e das benfeitorias necessárias (Art. 1.220). A vontade da lei foi até nobre: vedar o enriquecimento ilícito do proprietário. A besteira do legislador foi ter garantido a aplicação desses artigos ao possuidor de má-fé. Estranho! O cara invade o imóvel e, ao sair (à força, né?), ainda vai ser indenizado? Ok! ok! E o papo de vedação ao enriquecimento ilícito? Bem! Invasor tem que indenizar; e pode acontecer de ele ter consigo nenhum patrimônio para operar tal reparação, assim se deixa claro na lei que o possuidor de má-fé tem direito a NENHUMA indenização; garante-se ao proprietário, pelo menos, um mínimo de “indenização” ainda que nada reste ao invasor. O legislador quis garantir um princípio; acabou protegendo pilantra! P.S.: Eu sei que o correto gramaticalmente seria “não tem direito a nenhuma indenização”, mas, pelas regras de raciocínio lógico, a negação da negação é uma afirmação, então acho que escrevi correto e que errada está a gramática, nesse caso. Como o blog é meu... Alguns outros efeitos das benfeitorias são os seguintes: em um condomínio, se houver benfeitorias indivisíveis e se não houver acordo dos condôminos (no sentido de nenhum condômino desejá-las, visto que, no conflito de mais de uma vontade, a lei dá prevalência ao condômino com benfeitorias mais valiosas) quanto à divisão destas, a lei determina que sejam vendidas e que seu valor seja repartido entre os condôminos; no direito de família, onde houver o regime de comunhão 92 parcial, não se excluem as benfeitorias de cada cônjuge na massa patrimonial do casal; e, nas sucessões, excluem-se da partilha as benfeitorias acrescidas em bens doados antes da morte do de cujus. Pertenças são bens acessórios não agregados fisicamente à coisa, mas que existem para servi-la e integrá-la de modo duradouro. Têm autonomia física em relação à coisa, portanto. Essa figura foi trazida pelo novo Código. A ideia mais próxima de pertença existente no Código antigo era a de “bem imóvel por acessão intelectual” e se referia à atual ideia de pertença, mas somente quando o bem principal fosse imóvel. As pertenças só seguem o bem principal se assim constar no contrato; no silêncio deste, a transmissão do bem não inclui as suas pertenças. É o caso do macaco e da chave de roda em relação ao carro; o extintor de incêndio dependurado na parede do prédio, e assim por diante. Podem ser livremente destacados e não se irão desnaturar por isso, mas têm a função de auxiliar o uso de outro bem. Na égide do Código antigo, as pertenças de imóvel eram chamadas de “imóvel por acessão intelectual”; hoje, entendem os doutos, conforme o Enunciado 11 da 1JDC, “não persiste no novo sistema legislativo a categoria dos bens imóveis por acessão intelectual”. É corriqueira a confusão entre dois institutos: “Pertença” x “Imóvel por acessão intelectual”. Um bem móvel que exista em função de um imóvel é chamado de “imóvel por acessão intelectual”, já que, mesmo sendo um bem autônomo, nosso cérebro liga (acede) ao imóvel aquele móvel. É o exemplo clássico do extintor de incêndio, que, embora sendo um bem móvel, destacável, fisicamente separado do imóvel, nossa mente o transforma em parte integrante do imóvel. Ocorre que o Código Civil de 2002 trouxe a figura das “pertenças: “Art. 93 – São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço o ao aformoseamento de outro”. Estava montada a discussão: ainda continuam a existir os bens “imóveis por acessão intelectual”? O imóvel por acessão intelectual é um móvel servindo a um imóvel. Quando um móvel serve a um móvel, é pertença. Mas nossa posição é que as pertenças incluem os imóveis por acessão intelectual, por dois motivos: 1) ser mais abrangente; e 2) não haver incompatibilidade desta tese com a redação do Artigo 93 do CCB. Tentando resolver a questão, o Enunciado 11 da 5JDC diz que "Não persiste no novo sistema legislativo a categoria dos bens imóveis por acessão intelectual, não obstante a expressão ´tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente´, constante da parte final do art. 79 do Código Civil." - Mas como pode ser pedido em alguma prova, fazemos questão de explanar o conceito. 93 1.2.3.3 BENS QUANTO À TITULARIDADE Quanto à titularidade, um bem pode ser público ou particular. Bem públicos, em verdade, já constituem uma classificação do terceiro grupo, que leva em conta a titularidade do bem, que pode ser particular ou público. Bens particulares são definidos por exclusão: o que não é bem público é bem particular. Por essa razão, passaremos a explicar, portanto, apenas o que sejam bens públicos: Existem bens públicos de diversas espécies; apenas alguns deles são disciplinados pelo Código Civil. Lembramos que existem outros bem públicos que não constam no rol do Artigo 98 do codex, mas tal classificação é mais afeta ao direito administrativo. Os bens públicos podem ser classificados como Bens de Uso Comum do Povo; Bens de Uso Especial e Bens Dominicais. Os bens de uso comum do povo são aqueles que qualquer particular pode utilizar; podem ser de uso remunerado ou não. Bens de Uso especial são aqueles de utilização privativa da Administração Pública. É possível a qualquer do povo adentrar até algumas dependências dos bens de uso especial, mas não na sua totalidade. Exemplo: fórum, delegacia e repartições públicas em geral. Um particular pode adentrar uma repartição no setor de informações, mas não pode ingressar livremente nos gabinetes das autoridades e em áreas de trabalho privativas dos servidores. Os bens públicos sem destinação específica são chamados de dominicais (ou dominiais). O Enunciado 287 da 4JDC dá uma interpretação extensiva: "O critério da classificação de bens indicado no art. 98 do Código Civil não exaure a enumeração dos bens públicos, podendo ainda ser classificado como tal o bem pertencente a pessoa jurídica de direito privado que esteja afetado à prestação de serviços públicos." As chamadas terras devolutas nada mais são do que terras sem registro, mas que pertencem à União, em princípio. São assim chamadas porque todo o território nacional, um dia, já foi dado a alguém, por meio das capitanias hereditárias; e depois foram devolvidas ao Estado (na época, Portugal). Daí serem chamadas de devolutas. Os bens públicos são inusucapíveis, visto que permitir tal forma de aquisição de propriedade seria privar toda uma coletividade, e não uma pessoa específica, de uso,efetivo ou potencial, daquele bem. Alguns bens públicos podem ser alienados, desde que por meio de procedimento legal específico, que inclui a desafetação do bem; e somente podem ser alienados os bens dominicais. Ou seja, enquanto um bem público tiver finalidade específica, não pode ser alienado. 1.2.3.4 BENS QUANTO À COMERCIABILIDADE Aqui, igualmente, estamos tratando de uma classificação de um grupo específico, a saber, da classificação quanto à comerciabilidade do bem, que pode ser “Comercializável” ou “Fora do Comércio”. 94 Determina-se por exclusão: o que não está “fora do comércio” é comercializável. Devido a isso, iremos tratar apenas sobre os bens fora do comércio, que são os que não podem se movimentar juridicamente de um titular para outro, pois possuem inalienabilidade. Podem ser inalienáveis por natureza (Sol, Lua, direitos da personalidade...); legalmente inalienáveis (alguns bens públicos, bem de família, de índios...) e inalienáveis por vontade das partes (os doados com cláusula de inalienabilidade). Ou seja, por três razões um bem se torna fora do comércio: ou por ser naturalmente imprecificável (não se pode avaliá-lo economicamente, ou até o é, mas é intransacionável onerosamente), ou a lei proíbe a comercialização, ou as partes simplesmente o convencionaram como tal. O corpo humano é um bem imprecificável. Pode ser doado, mas não pode ser vendido. Um bem público é até precificável, mas por força de lei não é comercializável. Uma doação com cláusula de incomunicabilidade é precificável, é naturalmente comercializável, mas a convenção proíbe a comercialização. Assim, todos os bens que licitamente possam ser precificados e transacionados onerosamente são chamados de bens “comercializáveis”. 1.2.4 BEM DE FAMÍLIA Inspirado na motivação do Homestead Act estadunidense (1839) de garantir ao cidadão ao menos o abrigo como mínimo existencial, no Brasil existe o instituto do “bem de família”, que pretende proteger a dignidade da pessoa humana, por meio da impenhorabilidade de um conjunto mínimo de bens necessários à vida com dignidade. O bem de família pode ser classificado em duas espécies: voluntário e legal. O bem de família voluntário, mais antigo em nossa legislação, começa a ser disciplinado no Artigo 1.711 do Código Civil. Como o nome diz, é instituído pela vontade do casal ou de entidade familiar, em bens que correspondam a, no máximo, um terço do patrimônio líquido (patrimônio livre de dívidas) dos proprietários. Deve ser registrado. A inscrição do bem de família está disciplinada nos Artigos 260 a 265 da Lei de Registros Públicos. Inicia-se com a lavratura de uma Escritura Pública. Dever-se-á seguir o registro desta; o oficial de registro determinará a publicação em jornal de grande circulação e no Diário Oficial da intenção. Haverá 30 dias de espera para eventual impugnação. Em não havendo, encontra-se instituído o bem. Se houver reclamação, suspende-se o procedimento. Caso se insista judicialmente, o reclamante ganhará o direito de executar o bem. A impenhorabilidade desse instituto não abrange dívidas passadas, obrigações tributárias referentes ao bem e despesas condominiais; tal bem só é alienável com 95 autorização dos proprietários e, havendo incapaz residindo no imóvel, far-se-á com autorização do Ministério Público. Com relação ao bem de família legal, a lei de regência é a 8.009/90; independe de inscrição voluntária em cartório. Institui bem de família em “imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar”, compreendendo também “a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”; e possui uma série de exceções: dívidas trabalhistas e previdenciárias dos trabalhadores domésticos da residência; débitos de financiamento do imóvel; pensão alimentícia; tributos do imóvel e taxas condominiais; hipoteca; adquirido para o produto e o crime; indenização ou perdimento – por sentença penal; e fiança locatícia. Desde outubro de 2008, pela Súmula 364 do STJ – são “famílias” também as pessoas solteiras, separadas e viúvas, o que corrobora que a proteção do “bem de família” é para a pessoa, o indivíduo (dignidade da pessoa humana), e não necessariamente para a família. Tal Súmula consolidou também a existência da “família unipessoal”, por mais estranho que possa parecer inicialmente. Quanto às vantagens e desvantagens: o bem de família voluntário possui menos exceções (somente duas), mas é mais burocrático e semi-inalienável, enquanto que o bem de família legal é automático e alienável, mas possui várias (nove, pelo menos) exceções à impenhorabilidade. Caso haja promessa de compra e venda, para aquisição de bem de família, também tal direito é impenhorável, conforme o enunciado 325 da 4JDC: “É impenhorável, nos termos da Lei n.o 8.009/90, o direito real de aquisição do devedor fiduciante”. 1.2.5 REGISTRO CIVIL A Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973) dispõe, em seu primeiro Artigo, que o registro é o procedimento que confere autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos. Autenticidade, pois, é a garantia de origem; é a prova cabal de que tal ato realmente emanou de tal pessoa; Segurança é a garantia da estabilidade das relações jurídicas, por meio de atributo da publicidade dos registros; assim, em tese, qualquer indivíduo tem acesso a qualquer ato registrado. Quem pratica um ato sob crivo dos registros públicos goza da segurança de que ninguém poderá alegar ignorância do ato que o referido indivíduo praticou, gerando, assim, “tranquilidade” em sociedade no que tange aos atos registrados; e Eficácia é a prova de que o ato está apto a gerar todos os efeitos conferidos por lei. É também o atributo que confere perfeição ao ato (lembre-se de que uma das incolumidades dos atos jurídicos é exatamente a sua perfeição, ou seja, ser praticado de acordo com a lei vigente em sua época!). 96 O Oficial de Registros goza de fé pública, ou seja, o que ele afirmar não está sendo afirmado pela sua pessoa natural, mas sim afirmado pelo próprio Estado! São os seguintes os registros públicos: Pessoas Naturais, Pessoas Jurídicas, Títulos e Documentos e Imóveis. Os atos atinentes às Pessoas Naturais que devem ser levados a registro são nascimento, casamento, separação, óbito, emancipação, filiação, interdição, ausência, opção de nacionalidade, adoção e alteração de nome. Os atos de Pessoas Jurídicas, tais como início, extinção e modificação, devem ser registrados no cartório de Pessoas Jurídicas. Os atos referentes a documentos em que se deseja ou se imponha publicidade, tais como contrato de locação, fiança, garantias diversas, compra e venda, cessão de crédito etc., são registrados nos Cartórios de Títulos e Documentos. Os atos que envolvam Direitos Reais29 sobre imóveis devem ser registrados no registro de imóveis. Leis esparsas ainda instituem os cartórios de Protesto de Títulos e Letras e os Cartórios Marítimos. O termo “registro”, em verdade, é uma designação genérica do que são espécies: a inscrição, a averbação, o cancelamento e a anotação. Inscrição é o assentamento do ato no livro registral. No caso de imóvel, a inscrição é chamada de Matrícula. Averbação é qualquer modificação do ato assentado; é lançada à margem do assentamento e daí o motivo de ser chamada averbação. Cancelamento é o “registro” da extinção do motivo que originou o ato; e Anotação são notas remissivas entre diversos registros que tenham relação entre si. O registro (termo genérico), em verdade, é um procedimento composto pelos seguintes atos: Prenotação (ou protocolo), Análise do ato quanto à forma e à legalidade, pelo cartorário, e Registro propriamente dito (que, como visto alhures, pode ser inscrição, averbação,cancelamento ou anotação). Teçamos umas palavras sobre a análise de legalidade empreendida pelo cartorário: caso o oficial de registro entenda que o título levado a registro esteja desconforme com as normas legais, deve este, se provocado, “suscitar dúvida” ao juiz. O “princípio da instância” determina que, para que o oficial de registro suscite dúvidas ao juiz, deve ser provocado pelo interessado, nem que seja de forma verbal. (Arts. 13 e 198 da LRP). Esse julgamento, embora realizado pelo juiz, não tem natureza jurisdicional, mas sim administrativa, porque o cartório está subordinado ao Tribunal de Justiça, agindo por delegação concedida; e age o juiz aqui não como Estado-juiz, mas sim como superior hierárquico do cartório. 1.3 FATOS JURÍDICOS Já estudamos os elementos estáticos das relações jurídicas, a saber, as “Pessoas” e os “Bens”. Estudaremos agora aquele que é responsável pelo 29 Trataremos sobre Direitos Reais em capítulo próprio, nesta obra. São exemplos de direitos reais: propriedade, hipoteca, enfiteuse etc. 97 movimento das relações. Trata-se dos “Fatos Jurídicos”. O elemento dinâmico, o elemento que faz acontecerem as relações, o “COMO”; o elemento que define a maneira pela qual as pessoas se relacionarão umas com as outras, utilizando ou não os bens nessas relações. Figura 24 - Fato e negócio jurídico “Fatos” são acontecimentos; aqui o conceito é do dicionário; a acepção da palavra aqui é do mundo profano mesmo. Qualquer evento, seja advindo da natureza, seja do homem, é um fato, o qual pode ou não interessar ao direito. Se o fato interessar, dizemos que se trata de um “Fato Jurídico”. Quando dizemos que um fato interessa ao direito? Quando suas consequências criam, modificam ou extinguem direitos e/ou relações jurídicas. São fatos relevantes ao mundo jurídico. Exemplo: nascimento, morte, casamento, compra e venda etc. Ocorre que a maioria dos fatos do universo não interessa ao direito. Aliás, já pensou o inferno que seria se todos os fatos do mundo tivessem consequências jurídicas? Para a nossa sorte, os fatos jurídicos, em verdade, representam uma parcela mínima dos acontecimentos no globo. Quando um fato é irrelevante para o direito (voo de um passarinho, quebra de onda na praia, queda de folha das árvores etc.), diz-se que são Fatos Comuns, que são os objetos de estudo do direito; são estudados por outras ciências. Atenção: se você notou nossos exemplos de fatos comuns, assumimos que eles não tiveram qualquer consequência maior. Imagine que o “voo do passarinho” se dá em direção à turbina de um avião em voo (dramático esse exemplo...) e venha causar um acidente aéreo... nesse caso, o fato não será comum; será jurídico! Imagine que a 98 onda que quebrou na praia era um... tsunami (ou uma onda como a do filme “Poseidon”)! Nesse caso, devido aos bens juridicamente tutelados que tal onda atingiu, não teremos um fato comum, mas sim um fato jurídico, e assim por diante. O que queremos deixar claro é que, para o fato ser considerado comum ou jurídico, precisa ser considerada a sua consequência, e não apenas o fato em si mesmo. Os fatos jurídicos (fatos relevantes para o direito) se subdividem em Fatos Naturais e Fatos Humanos; tal divisão leva em conta a causa do fato: se fora causado pela natureza, sem intervenção direta do homem, temos o fato jurídico natural. Caso o fato jurídico tenha intervenção humana em sua causa direta, temos o chamado fato jurídico humano. Os fatos jurídicos naturais se subdividem em fatos naturais ORDINÁRIOS e fatos jurídicos naturais EXTRAORDINÁRIOS. O fato jurídico natural pode ser corriqueiro; e, embora possa causar até danos, ninguém se assusta quando isso ocorre, visto que é de senso comum essa possibilidade. Exemplo: durante uma tempestade, é aceitável, até esperado, que caiam raios; em chuvas intensas, ninguém se assusta com alagações de ruas etc. Mas existem fatos jurídicos naturais que não ocorrem normalmente, a exemplo de tornados (no Brasil), geada (na Região Norte e no Nordeste), tsunamis, terremotos, quedas de meteoros etc. Esses fatos, caso gerem consequências nas relações jurídicas, são chamados de fatos jurídicos naturais extraordinários, por não serem normais, corriqueiros, esperados pelas pessoas do local onde ocorrem.30 Um exemplo real: dia primeiro de outubro de 2010, estava eu ministrando aula na turma de quinto período vespertino (responsabilidade civil), em uma das faculdades em que ministro quando, em meio a um temporal, ouvimos pedrinhas atingindo as janelas da sala. Naquela noite, soubemos que havia chovido granizo em Manaus. Chuva de granizo! Em Manaus! – desde então, esse é o melhor exemplo de fato jurídico natural extraordinário que possa existir, em plenos 36 graus à sombra de Manaus... Choveu gelo! Os fatos jurídicos naturais extraordinários ainda se subdividem em caso fortuito e força-maior. Tais institutos serão por nós estudados ao tratarmos sobre Responsabilidade Civil. Os fatos jurídicos humanos, ou seja, os que dependem de atuação humana direta para a sua existência, se dividem em fatos jurídicos humanos LÍCITOS e ILÍCITOS. Costumo explicar em sala que lícito é “inconceituável”. E é mesmo! O máximo que podemos afirmar é que é uma ideia excludente, ou seja, que lícito é tudo aquilo que não é ilícito. Agora, o ilícito, esse sim, pode ser conceituável. Ilícito é tudo aquilo que ofende a um dos seguintes institutos: o justo, o legal, a moral e o costume. O 30 Notem que a expectativa de referência é a do local onde o fato ocorre! Se é um local, é corriqueira a ocorrência de tornados; tal fato não é considerado extraordinário. 99 “justo” é perfeitamente identificável, mas é quase impossível explicá-lo com palavras. É o sentimento de estabilidade, de que o mundo está em ordem, e sentimos paz interior quanto a isso. É algo ligado à origem do Direito Natural. O legal é aquilo que está na lei, positivado pelo Estado em normas escritas. Sua finalidade é regular as relações segundo o justo embora saibamos que nem sempre tal acontece; e o costume é aquilo que seguimos com uma consciência inata de obrigatoriedade; um comportamento repetido sob medo de sanção social. A moral é o nível de pudor de uma sociedade – sim! A “moral” a que nos referimos é a moral média da sociedade, e não a moral individual – esta é infinitamente variável. Lembro que a ideia que trouxe aqui é a do direito privado, em que “tudo o que não é proibido é permitido” (Artigo quinto, inciso dois, da Constituição); é que, no direito administrativo, dá para afirmar, corretamente, que lícito é tudo aquilo expressamente permitido, pois naquela esfera só se torna lícita a conduta declarada na lei como tal. A regra é a liberdade de atuação; as exceções são as proibições. Vale aqui a inversão quanto ao direito administrativo, exposto no parágrafo anterior. Os fatos jurídicos humanos ilícitos se dividem ainda em ilícitos dolosos e culposos, que serão estudados no tópico “responsabilidade civil”. Os fatos jurídicos humanos lícitos se subdividem ainda em “ATOS jurídicos” e “NEGÓCIOS jurídicos”. Sempre que o ser humano pratica um fato jurídico lícito “obrigado” pela lei, dizemos que está praticando um Ato Jurídico. Existem práticas que empreendemos “somente” porque somos obrigados pelo Estado; algo como tirar RG, pagar tributo, registrar nascimentos e óbitos, ser mesário em eleição etc. Logo dizemos que Atos Jurídicos são atuações humanas nas quais não existe liberdade de escolha entre praticar ou não o ato. Existem, no entanto, atuações humanas em que há liberdade entre praticar ou não o ato; e, na prática do ato, existe liberdade quanto ao conteúdo e quanto à consequência da atuação. Tais atuações, verdadeiros motores do mundo moderno, sãochamadas “Negócios Jurídicos”. Uma vez que nosso Código determina que as normas dos Atos Jurídicos são as mesmas aplicáveis aos negócios jurídicos, ao estudarmos estes, estamos estudando aqueles. Os “atos-fatos jurídicos”, figuras puramente doutrinárias e acadêmicas, são aquelas ações humanas sem intenção, lícitas (senão seriam atos ilícitos culposos) e que geram consequências jurídicas. Exemplo: achado natural de um tesouro por pessoa privada de discernimento31. 31 O exemplo é de Murilo Schieri Costa Neves. 100 1.3.1 ATOS E NEGÓCIOS JURÍDICOS Essa confusão entre “ato” e “negócio” jurídico sempre surge logo no início das conversas sobre “fatos jurídicos”. Posso garantir que tal imbróglio é só aparente; com a apreensão de um detalhezinho, tudo fica fácil. Vamos por partes: Já aprendemos o que é fato jurídico humano lícito; e este se divide em ato e negócio. Mas existe outra classificação que, embora não mude o conteúdo do que dissemos, altera um pouco a nomenclatura. Dissemos que um Fato Jurídico Humano pode ser um ATO ou um NEGÓCIO. Mas, segundo doutrina mais antiga, o fato jurídico humano é chamado de ATO, que se divide em ATO STRITO SENSU e NEGÓCIO. Então, esteja atento para a palavra “ato”, que tanto pode significar “fato jurídico humano”, como modernamente é dito, quanto pode ser o gênero de atuação humana. Uma vez que o Artigo 185 do CCB igualou (ainda bem!) as regras para “ato” e “negócio”, é importante que se saiba que, ao tratarmos de um instituto, estamos igualmente já nos referindo ao outro. 1.3.1.1 CLASSIFICAÇÃO Uma vez que a classificação dos negócios jurídicos se assemelha muito à classificação dos contratos, remetemos o leitor à classificação daqueles, quando traçaremos as linhas necessárias. 1.3.1.2 PLANOS DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS Os negócios (jurídicos), para serem entendidos, precisam ser analisados. A análise dos negócios jurídicos compreende três planos. A palavra “plano” aqui quer dizer estágio. Significa uma “fase” de análise, em que se passa à análise de um estágio (plano) após o estudo do estágio anterior. 101 Figura 25 - Planos dos negócios jurídicos Para que o negócio jurídico goze de plena proteção judicial, precisa de PERFEIÇÃO. É a perfeição que torna o negócio “bom”, ou seja, exigível perante o Poder Judiciário em caso de descumprimento. Para que um negócio jurídico seja perfeito, precisa, necessariamente, passar pelos três planos de análise; precisa vencer os três estágios. Se passar incólume pelos três planos de análise, dizemos que o negócio está perfeito. Tais estágios (ou planos) são três: existência, validade e eficácia. A escada mostrada no desenho foi desenhada por mim, mas criada por Pontes de Miranda. Um negócio que atingiu todas as exigências de existência, validade e eficácia diz-se perfeito. De onde surgiu essa expressão “Negócio perfeito”? É que a LINDB traz a expressão “ato jurídico perfeito”, em seu Artigo sexto, que é aquele que já reuniu todas as exigências segundo a lei de sua época. O Artigo 185 do CCB igualou as regras de “ato” e “negócio”; assim, o termo legal “ato jurídico perfeito” é igualmente indicador de “negócio jurídico perfeito”. Obs.: outra versão para a semelhança do “ato jurídico perfeito” do Artigo sexto da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) é o fato de, para uma classificação mais antiga, o fato jurídico humano já ser tratado, genericamente, como “ato”. 102 Figura 26 - Planos dos negócios jurídicos (detalhado) 1.3.1.2.1 PLANO DE EXISTÊNCIA Aqui, o negócio “ou é ou não é”. Ou existe ou não existe. É tudo ou nada. Caso um negócio seja inexistente, nem se continua a análise nos outros planos; “acaba” aqui a discussão sobre o negócio sob análise. O Código Civil não tratou de plano de existência com tais palavras diretamente. Sim! Convenhamos! Se não existe, como pode ser objeto de regulamentação legal? Em verdade, existem até grandes doutrinadores que não consideram esse plano de análise. Entendemos que há um plano de existência; tanto que para um ato inexistente ajuíza-se uma “Ação declaratória de inexistência de ato jurídico”. O negócio jurídico não é um todo indivisível. É formado por partes integrantes. Existe uma controvérsia entre os doutrinadores sobre a quantidade de partes que integram os negócios jurídicos: três, quatro ou cinco partes. Segundo a nossa lógica, são QUATRO os elementos dos negócios jurídicos, a saber: Sujeito, Objeto, Declaração e Forma. Sujeito – Sem esse elemento, sequer se cogita a existência dos outros. Uma vez que o leitor já sabe que os sujeitos são o “QUEM” dos negócios jurídicos, são os atores, podemos dizer que o sujeito é o elemento mais importante dos negócios 103 jurídicos. Os sujeitos dos negócios jurídicos são as pessoas, seja natural, seja jurídica. Objeto – É aquilo sobre o que recaem os negócios jurídicos. TODO negócio jurídico é sobre um objeto! Ao tratarmos sobre Direito das Obrigações, o leitor descobrirá que tal objeto ora é uma coisa, ora é um comportamento. O objeto precisa ser lícito, possível e determinado ou determinável. Objeto lícito é aquele que não ofende nem o direito nem a moral (e a moral inclui os bons costumes). A possibilidade pode ser de três espécies: possibilidade física e possibilidade jurídica. Possibilidade física significa ser exequível segundo as leis na natureza; e possibilidade jurídica é o estado do que não ofende a lei escrita. Difere-se a possibilidade jurídica da licitude pelo fato de esta açambarcar direito e moral; é bem mais amplo que possibilidade jurídica, que se detém à não colisão com a lei escrita. O objeto precisa ser determinado, ou seja, identificado; ou ao menos determinável, ou seja, há de haver elementos no negócio que levem à identificação da coisa, ainda que em momento futuro. Ao estudarmos sobre os requisitos do objeto em sala de aula, usamos o macetinho: “Para se descobrir se algo pode ser objeto de negócio jurídico, fazemos a pergunta: – Isso pode ser objeto de negócio jurídico? Se a resposta for: “Sim, eLiPoDe!”, é porque o é, visto que, se “eLiPoDe” ser objeto de negócio jurídico, é porque ele é LÍcito, POssível e DEterminado(vel).” Declaração – É a manifestação da vontade do sujeito. É a transmissão do pensamento volitivo dos atores dos negócios. Não pode ser feita sob reserva mental. A reserva mental é uma diferença entre o que é manifestado e o que é realmente querido pela pessoa. Uma vez que “Declaração” é uma manifestação de vontade, e na reserva mental a vontade não é manifestada, em princípio, seria causa de ausência de declaração, o que resultaria em inexistência do negócio/ato em que figura. Mas, aqui, o Código não seguiu a teoria linear, tirando o foco do manifestante e colocando no receptor da manifestação da vontade. A reserva mental desconhecida da outra parte faz que exista negócio; aqui a lei tutela a boa-fé do receptor da manifestação. Mas, se o outro sabia da reserva mental do seu interlocutor, temos caso de inexistência de negócio, por falta de declaração. Não sabemos se essa é a melhor solução, mas é a que encontramos no Artigo 110 do Código Civil Brasileiro. Sabemos que a reserva mental se refere à existência por dois motivos: pela palavra “subsiste” presente no texto do Artigo e porque ela está prevista no Capítulo I do Livro III do CCB (Arts. 104 a 114), que trata justamente sobre o Plano de Existência dos negócios jurídicos. 104 Figura 27 - Reserva mental Forma – É a maneira pela qual a declaração é emitida; é a aparência externa da manifestação dos sujeitos. Os negócios podem ser informais (que podem ser realizados por qualquer meio lícito) ou formais, que se subdividem em forma única (que tem uma única forma prescrita), pilórico (que possui mais de uma forma possível).32 As espécies deformalidades são formalidade ad solemnitatem, quando a formalidade é condição de validade do negócio; e formalidade ad probationem tantum, quando a solenidade integra a própria substância do ato. Os negócios solenes são, no mínimo, lavrados por tabelião ou por oficial de registro. Os negócios não solenes ocorrem quando, embora formais, possam ser materializados por instrumento particular. Alguns doutrinadores se inclinam a considerar apenas três elementos. Em verdade é tudo uma questão de forma, de como se “arrumam” os elementos. Assim, pode-se dizer que o primeiro elemento é a “Declaração do Sujeito”, e a quantidade de elementos cai de quatro para três; assim como se pode considerar que a “forma” é, de fato, mera qualificação da declaração. Ou seja: na essência, são quatro elementos mesmo. Aos elementos específicos de determinado negócio jurídico, chamamos de “elementos categoriais”; por exemplo, para a existência do casamento, é imprescindível a diversidade de sexos33. São os seguintes os Artigos da parte geral que tratam sobre os quatro elementos dos negócios jurídicos: quanto ao “agente”, temos os Artigos 104, I; 105; referente ao “objeto”; temos os Artigos 104, II; e 106; no que toca à “declaração”, os Artigos 107, 110, 111, 112, 113 e 114; e, no que toca à “forma”, os Artigos 104, III; 108 e 109. 32 O contrato de empreitada tem que ser por escrito; é por isso alguns doutrinadores afirmam que esse contrato tem forma “genérica”. 33 NEVES, Murilo Sechieri, apud Capez e Maltini 105 No momento do negócio, o objeto pode até nem existir; é o caso da venda de safra que sequer foi planada ainda, ou a compra de produção futura de fábrica. Sempre que alguém fizer negócio que beneficie somente ao outro, a interpretação desse negócio, se gerar dúvida, será contra o beneficiário. Na dúvida entre o que foi escrito e o que foi desejado, vale o que foi desejado (lembramos que, no caso do CDC, é o contrário! No confronto entre o desejado e o que está escrito, vale o que está escrito!). Se uma parte firmar negócio não o querendo, e se a outra parte sabia que a primeira não quis o negócio, tal ato é inexistente. A palavra usada pela lei é “reserva mental”. A reserva mental é um “gap” entre o que é declarado e o que é realmente querido pela pessoa. A reserva mental desconhecida da outra parte é irrelevante para o direito e faz que exista negócio, mas, se o outro sabia da reserva mental do seu interlocutor, temos caso de inexistência de negócio por falta de declaração, visto que a “declaração a que nos referimos deve ser livre”. E, se uma parte fizer negócio com relativamente capaz, não pode depois querer alegar essa incapacidade relativa do outro para eximir-se de cumprir sua parte no negócio. É importante ter cuidado com o Artigo 104 do CCB, pois, sozinho, ele indica DOIS planos dos negócios jurídicos. É a dicção do dispositivo: “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei”. A primeira palavra de cada inciso não se refere à validade, mas sim à existência! À primeira lida, parece que o Artigo se refere à validade. Não é verdade! A “validade” é o requisito presente em cada inciso a partir da segunda palavra de cada período! Sério! Assim, o 104 precisa ser lido: “A EXISTÊNCIA do negócio jurídico requer: I – AGENTE...; II – OBJETO...; III – FORMA...”; e, no mesmo Artigo, a outra informação se faz presente: “A VALIDADE do negócio jurídico requer: I – agente CAPAZ; II – objeto LÍCITO, POSSÍVEL, DETERMINADO OU DETERMINÁVEL; III – forma PRESCRITA OU NÃO DEFESA EM LEI.” Ou seja, a capacidade, a licitude, a possibilidade, a determinabilidade, a prescrição de forma não é questão de existência, mas sim de validade. Sim, é verdade que tal entendimento não é unanimidade, mas é dominante. 106 Figura 28 - Existe negócio? 1.3.1.2.2 PLANO DE VALIDADE Uma vez que o negócio existe, perquire-se agora se ele está livre de defeitos. Tal análise se faz no plano da validade. O que é um defeito? No mundo das relações jurídicas, defeito é uma situação que não permite que o negócio jurídico atinja o plano de eficácia, ou seja, é uma mácula que se encontra no plano de validade. Para um negócio jurídico ser defeituoso, é porque ele existe, mas é inválido. Se um defeito não tiver conserto, dizemos que aquele torna o negócio NULO; e, se o defeito for passível de conserto, dizemos que o negócio é ANULÁVEL34. Logo nulidade e anulabilidade nada mais são do que graus de consequências de eventuais defeitos de um negócio. A Nulidade também é chamada de nulidade absoluta, que é um defeito insanável. Ocorre em três situações: negócio celebrado com incapaz, ato simulado ou qualquer ato proibido em que a lei não diga qual é a sanção; e a anulabilidade também é chamada de nulidade relativa. O negócio anulável ocorre em três casos: quando se dá negócio com relativamente capaz; quando se pratica negócio com um dos seis defeitos (erro, dolo, coação, perigo, lesão e fraude contra credores); e nos casos em que a lei expressamente indica que é anulável. Algumas diferenças entre os dois institutos: a nulidade é irratificável, é de ordem pública, é ex tunc, seu reconhecimento é de ofício e não tem prazo; a ação cabível é “declaratória de nulidade”; a anulabilidade é ratificável, é de ordem privada, tem efeito ex nunc, não é reconhecível de ofício e tem prazo para arguição; a ação cabível é a “de anulação” ou “anulatória”. 1.3.1.2.2.1 ANULABILIDADE 34 A anulabilidade é também chamada de “nulidade relativa”, ao passo que a nulidade também é conhecida como “nulidade absoluta”. 107 O Artigo 104 do CCB contém, simultaneamente, casos de nulidade e de anulabilidade (como já explicamos); rememoremos: “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei.” Decompondo o Artigo, temos que agente, objeto e forma são requisitos de existência; são requisitos de validade a capacidade do agente, a licitude, a possibilidade e a determinabilidade do objeto, e adequação ou não proibição da forma35. Ou seja: se não houver agente, o negócio é inexistente; se o agente não for capaz, o negócio é inválido. Se não houver objeto, o negócio é inexistente; se o objeto for ilícito, impossível ou indeterminável, o negócio é inválido. Se o negócio não contiver uma forma, é inexistente; se tal forma não for a prescrita ou for proibida, temos a invalidade do negócio. Umas rápidas palavras merece a questão da invalidade por incapacidade do agente: se o agente for relativamente capaz, o negócio é anulável (Art. 171, I). Mas, se o agente for absolutamente incapaz, o negócio é nulo (Art. 166, I). Se um menor dolosamente mentir sobre sua idade para convencer que é maior, não pode, depois, querer anular o negócio por falta de idade hábil, claro! São alguns casos de anulabilidade da Parte Especial do CCB: negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo. (Art.117); negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou. (Art.119); negócio jurídico contraído com/por agente relativamente capaz. (Art. 171, I); venda de ascendente a descendente, salvo com consentimento expresso dos outros descendentes e do cônjuge do alienante. (Art. 486); troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante. (Art. 533, II); casamento de quem ainda não possui a idade ou, ainda com esta, sem a autorização de seu representantelegal; com vício de vontade, com incapacidade de manifestar a vontade; realizado por procurador já havendo revogação do mandato e ainda não havendo coabitação entre os cônjuges; e celebrado por autoridade incompetente. (Art. 1.550, incisos I a VI); casamento realizado sob coação36 37. (Art. 1.558); e disposições de testamento inquinadas de erro, dolo ou coação38. (Art. 1.909). 35 É importante sabermos que, no que tange à forma diversa da prescrita em lei, ou forma proibida, teremos nulidade. Art. 166, IV e VII 36 Entendemos que tal norma é desnecessária, pois a coação já é, genericamente, um caso de anulabilidade. 37 Foi o caso do casamento do Ujuara, no filme “O homem que desafiou o Diabo”. 38 Uma vez que testamento é negócio jurídico, entendemos também que tal norma é apenas uma redundância, visto que tais casos de anulabilidade deste Artigo já se encontram, genericamente, na parte geral do CCB. 108 1.3.1.2.2.2 NULIDADE No caso da nulidade, nosso Código diz que o negócio jurídico é nulo por quatro motivos: 1 – Contiver simulação; 2 – Estiver enquadrado no Artigo 166 do CCB; 3 – Estiver indicado como tal na Parte Especial do CCB; e 4 – Qualquer outra lei indicá-lo como nulo. Negócio jurídico simulado será estudado quando tratamos sobre os defeitos dos negócios jurídicos. Já os casos do Artigo 166 do CCB são os que seguem, textualmente: “I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV – não revestir a forma prescrita em lei; V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção”. O leitor já percebeu que o inciso V é uma redundância, visto que “solenidade” é, simplesmente, uma espécie de forma; logo o conteúdo do inciso V está inteiramente contido no inciso IV. Dentre os casos de nulidade expressos na Parte Especial do CCB, podemos indicar: contrato de compra e venda em que se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço (Art. 489); contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário ou de representante de um ou de outro (Art. 762); título ao portador emitido sem autorização de lei especial (Art. 907); endosso parcial em título de crédito (Parágrafo único do Artigo 912); registro civil de casamento religioso, quando, antes de sua realização, qualquer dos nubentes casou civilmente com outra pessoa (Art. 1.516); casamento contraído por doente mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil; ou contraído por pessoas sãs que infringiram algum impedimento (Art. 1.548, I e II); pacto antenupcial se não for feito por escritura pública (Art. 1.653); e fideicomissos além do segundo grau. (Art. 1.959) Note que a lei trata como nulidade vários casos de inexistência, reforçando a ideia de que o “plano de existência” é apenas doutrinário. 1.3.1.2.2.2.3 DEFEITOS (OU VÍCIOS) DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E quais são os defeitos dos negócios jurídicos? São vários possíveis, mas o nosso Código Civil tratou de sete39, em especial: erro, dolo, coação, estado de 39 Em nossas aulas, costumamos comparar os vícios do negócio jurídico a um diabinho. Esse diabinho é chamado de Esidocopelef. Pelo processo mnemônico, encontramos os vícios dos negócios jurídicos no nome do capetinha, a saber: Erro, SImulação, DOlo, COação. Estado de PErigo, Estado de LEsão e Fraude contra credores. 109 perigo, estado de lesão, fraude contra credores e simulação. Basta lembrar do capetinha dos negócios jurídicos, o “Esidocopelef”. Figura 29 - ESiDoCoPeLeF Tais defeitos se dividem em dois grupos: Vícios de Consentimento – São os que decorrem de uma não conformidade entre o que o agente desejou e o que praticou. Aqui o agente quer uma coisa e pratica outra, ou pratica algo sem nada querer. São cinco os vícios de consentimento: erro, dolo, coação, estado de perigo e estado de lesão. Vícios Sociais – São aqueles em que o agente sabe muito bem o que queria e praticou o ato exatamente como queria, mas com a finalidade de lesar outrem, de trazer deliberado prejuízo a alguém. São dois os vícios sociais: fraude contra credores e simulação. Dentre os sete efeitos acima, apenas UM não possui remédio (ou seja, torna o negócio nulo quando surge): é a Simulação. Os outros seis defeitos tornam o negócio anulável quando o maculam, ou seja, ainda dá para consertar. Tratemos dos vícios dos negócios jurídicos um a um. 1.3.1.2.2.2.3.1 ERRO “Erro” é a falsa percepção da realidade. Quem erra faz algo achando que está fazendo outra coisa. Um negócio realizado sob erro é anulável. O erro é sempre espontâneo, ou seja, o agente “se engana sozinho”. Não é qualquer erro que invalida o negócio; somente o chamado “Erro Substancial”. Diz-se substancial o erro que recai sobre a natureza do negócio (error in negotio), objeto (error in corpore rei) ou pessoa (error in persona), ou na interpretação do próprio negócio (error juris). 110 Erro acidental, que não anula o ato, incide sobre qualidades secundárias ou acessórias do objeto ou pessoa. Erro inescusável, ou seja, o erro bisonho, aquele que com um mínimo de diligência não ocorreria. Para se aferir o que seja “erro inescusável”, duas correntes se digladiam na doutrina: a que enuncia que o parâmetro é o homem médio e a que indica que o parâmetro é o caso concreto, levando-se em conta o nível de entendimento da pessoa que errou. Esposamos esta segunda corrente, como homenagem à busca da realidade real, sempre que possível. Erro de cálculo (quase a totalidade dos erros envolvendo números!) não invalida o negócio; apenas autoriza a retificação da declaração de vontade. O motivo não precisa ser declarado pelas partes negociantes, mas, se for declarado, vincula o negócio e gera um núcleo onde pode incidir o erro. Uma espécie de erro é a ignorância, conceituada como a ausência de percepção da realidade; é tratada da mesma espécie que o erro. Figura 30 - Erro 1.3.1.2.2.2.3.2 DOLO É o engano causado/induzido por outrem. O dolo é um erro não espontâneo, ou seja, alguém induziu o agente ao erro, por meio de um ardil, um estratagema. Para que haja dolo, essa indução precisa ser consciente, ou seja, há de haver a vontade de enganar, por parte do indutor ao erro. O dolo que invalida o negócio é o dolo quando à essência do negócio, aquele que, se não existisse, a vítima não teria feito o negócio. Dolo periférico, que se restringe a um detalhe do negócio e que, mesmo se o agente soubesse, ainda assim faria o negócio, não o invalida. Para se caracterizar o dolo, obviamente se faz necessário que uma das partes tenha ciência da malícia (tal ciência é inerente ao próprio conceito de “dolo”!), senão teremos um erro bilateral, que até invalida o negócio, mas por erro, e não por dolo, ou seja, não fica caracterizada a má-fé. 111 Uma situação a ser aprendida é o caso do dolo de terceiro. Nesse instituto, temos três pessoas envolvidas: um terceiro, que é o autor do dolo, uma vítima, que sofre a consequência do dolo, e um beneficiário, que lucra com tal defeito. Se o beneficiário tinha conhecimento do dolo causado pelo terceiro, o negócio pode ser anulado, e a vítima ainda faz jus a perdas e danos; mas, se o beneficiário estava “inocente na parada”, ou seja, não sabia do dolo causado pelo terceiro, o negócio não se anulará (a menos que ele próprio assim o queira), mas a vítima receberá perdas e danos igualmente. Caso esse terceiro seja um representante do beneficiado com o dolo, igualmente temos duas soluções possíveis. Se esse terceiro era umrepresentante legal40, o representado só responderá até o montante em que ganhou com o dolo do representante; assim, se o representante enganou terceiro e, por meio de tal ardil, obteve mil reais de ganho, entregou apenas trezentos reais ao representado, significa que, caso o representado seja demandado, só arcará até o montante de trezentos reais. Mas, se o representante era convencional, o representado (beneficiado) responderá em solidariedade com o representante pela totalidade do dano causado à vítima. Na lei existe a figura da omissão dolosa, colocando óbice ao ditado “eu não minto; omito!”. Para a lei, omissão maliciosa equivale a dolo mesmo. O dolo a invalidar o negócio jurídico é o dolus malus, ou dolo próprio, que é o dolo com vontade de enganar (costumamos dizer em sala de aula que é o “dolo- dolo” mesmo!). O dolus bonus é a enganação na qual a pessoa enganada “sabe” que está sendo “enganada”. Parece incrível, porém é verdade; e isso é aceito socialmente. Quer um exemplo? Quando foi a última vez em que você esteve naquela lanchonete... viu a foto daquele sanduíche suculento lá na parede (até com retroiluminação!), pediu o dito sanduíche e, quando olhou para ele ali na bandeja, ele era sem graça... meio chocho... diferente daquela foto que estava lá na parede e que enchia o apetite... Pois é! Você acabou de ser “vítima” do dolus bonus. Mas, como você sabe que aquela foto estava mesmo incrementada para atrair o consumo, nem liga. (e come logo o sanduíche que comprou, antes que esfrie!). 40 Ao estudarmos mais adiante sobre “representação”, discorreremos sobre a diferença entre representante legal e convencional. 112 Figura 31 - Dolo Figura 32 - Dolo de terceiro 1.3.1.2.2.2.3.3 COAÇÃO Coação é a ameaça dirigida à prática de um ato. Ato praticado sob coação é ato anulável, visto que quem o praticou não tinha a vontade livre no momento da prática. A coação diferencia-se do erro e do dolo, uma vez que, nestes, a diferença entre o ato pensado e praticado não é percebida pelo agente. Já na coação, a diferença é percebida; o agente sabe que não pratica o que realmente quer, mas o faz assim mesmo, pois está sob ameaça, ou seja, sob promessa de prática de um mal injusto, perpetrada por outrem (o coator), cuja consequência seja sofrida pelo agente (coacto). A coação pode ser física ou moral. A coação física, em verdade, torna o ato inexistente, visto que de fato foi o coator que o praticou. A verdadeira coação para fins de invalidade é a coação moral, ou seja, o coator não tem contato físico direto com o coacto, mas lhe promete um mal injusto e insuportável. 113 Além de tornar o ato anulável, a coação pode tipificar crime de constrangimento ilegal. Figura 33 - Coação 1.3.1.2.2.2.3.4 ESTADO DE PERIGO Ocorre Estado de Perigo quando alguém se aproveita de uma desventura alheia para tirar vantagem. E a vítima pratica um ato para salvar-se. A diferença do Estado de Perigo para a ameaça é que nesta o mal é criado pelo coator, ao passo que, no Estado de Perigo, o agente de má-fé se beneficia de um mal já existente ou eminente para tirar vantagem. O exemplo clássico que costumamos utilizar, que, embora absurdo, é de clareza solar, é a situação na qual alguém de posses está se afogando, e alguém de bote se aproxima afirmando: “Se você assinar uma nota promissória de R$ 100.000,00 para mim, salvo você!”; o rico se afogando fala “Eu assino qualquer coisa!”. O homem do bote então (não nos pergunte como) faz que o rico assine o título e depois o salva. Pois bem. Essa Nota Promissória foi assinada sob Estado de Perigo e é anulável. Figura 34 - Estado de perigo 114 1.3.1.2.2.2.3.5 ESTADO DE LESÃO No Estado de Lesão, a vítima realiza negócio ruinoso por estar em grave risco de dano patrimonial (não pessoal!). Também há estado de lesão quando alguém se aproveita da inexperiência, da ingenuidade alheia, para auferir vantagem. Diferencia-se da coação por não haver promessa de prática de mal. Diferencia-se do dolo pelo fato de o aproveitador não enganar a vítima (é até sincero, já que a vítima é ingênua e não vai entender mesmo ou precisa aquiescer com o ato). Diferencia-se do Estado de Perigo por não haver, obrigatoriamente, um risco físico de vida ou de segurança à vítima ou de alguém que lhe é próximo. Embora o estado de lesão leve à anulabilidade do contrato, o enunciado 149 do 3JDC nos informa que, “em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico, e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do Art. 157, § 2.º, do Código Civil de 2002”; o enunciado 150 da 3JDC nos diz que “a lesão de que trata o Art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento” – Ou seja, não necessariamente precisa haver o animus de tirar vantagem alheia, podendo a lesão ser analisada puramente sob a ótica da vítima. Muito perigoso é o enunciado 290 da 4JDC, que informa como único componente capaz de indicar a lesão à desproporção entre as prestações: “Art. 157. A lesão acarretará a anulação do negócio jurídico quando verificada, na formação deste, a desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado”. 115 Figura 35 - Estado de lesão 1.3.1.2.2.2.3.6 FRAUDE CONTRA CREDORES Aqui ocorre um ato consciente de alguém, ou o conluio de mais de uma pessoa, para fraudar uma ou várias pessoas. É o exemplo do devedor que transfere seus bens para que seus credores nada consigam, em eventual execução. Tem um elemento objetivo (realização do ato) e um elemento subjetivo (dolo contra terceiros). A lei presume que exista tal fraude em algumas situações, como transmissão gratuita de bens (que é para ficar sem bens para satisfazer execução...), a remissão de dívida (que é para, não recebendo de quem lhe deve, ficar sem dinheiro para pagar a quem deve), a realização de contratos onerosos (até porque já está afogado em dívidas, então que primeiro satisfaça estas para então...), efetue pagamento antecipado de dívidas (porque aí estará privilegiando alguns credores, seus amigos, em detrimento de outros; talvez até forjando dívidas com tais amigos para ter o que lhe resta de dinheiro em boa guarda...). Existe uma ordem de créditos a serem pagos em insolvência e em falência. Caso o insolvente faça algum credor seu “subir” na ordem de preferência creditória, estará também em presunção de fraude contra credores. Os credores quirografários têm legitimidade para demandarem pela anulação do negócio, por meio de “ação revocatória”, também chamada de “ação pauliana” (os credores com garantia também podem manejar tal ação caso a garantia se mostre insuficiente); e o que for obtido de restituição patrimonial não será entregue ao demandante, mas sim retornará ao conjunto de bens do devedor, para ser rateado 116 entre todos os credores. Entende o enunciado 292, da 4JDC, que, “para os efeitos do Art. 158, § 2.º, a anterioridade do crédito é determinada pela causa que lhe dá origem, independentemente de seu reconhecimento por decisão judicial”. Explicando melhor o que é “credor quirografário”: embora haja uma extensa divisão de classes de credores, estes se agrupam em dois: credores COM garantia, credores SEM garantia. Os credores que possuem garantia as têm de forma legal ou contratual. São exemplo de credores com garantia legal: os trabalhistas e os tributários. Credores com garantia real ou pessoal são exemplos dos de garantia contratual. E aqui surge o nosso personagem: os credores quirografários; são aqueles que... não possuem garantia! Isso mesmo! Nada possuem para assegurar que receberão algo, a não ser a fé,a esperança, a confiança e, também, a sorte. São chamados “quirografários”, pois tudo o que existe (teoricamente) para provar juridicamente a dívida é algo assinado (“quiro” = mão ; “graphos” = grafia/escrita). Não confundir “fraude contra credores” com “fraude à execução”, pois quanto à natureza, a fraude contra credores é um vício de negócio jurídico, ao passo que a fraude à execução é ato atentatório à dignidade da Justiça. No que toca à necessidade de ação, a fraude contra credores depende de ação pauliana para ser decretada, ao passo que a fraude à execução pode ser reconhecida na própria ação de execução já existente. No que se refere à consequência do reconhecimento, a fraude contra credores leva à anulação do negócio, enquanto na fraude contra credores há mera ineficácia do ato perante o processo de execução. Por fim, quanto à má-fé do adquirente, na fraude contra credores, esta é presumida (consilium fraudis), enquanto, na fraude à execução, sequer precisa existir má-fé para que se considere um ato fraudatório à execução. Figura 36 - Fraude contra credores 117 1.3.1.2.2.2.3.7 SIMULAÇÃO Ocorre a simulação quando se encobre um ato por meio da prática de um ato diferente, ou quando se faz a aparência de prática de um ato em que, em verdade, nenhum ato houve. Costumamos utilizar o seguinte exemplo clássico. Mircléubio é esposo de Chifronésia. Mircléubio tem um relacionamento extraconjugal com sua amante Patrícia. Mircléubio quer dar um carro a Patrícia, mas Chifronésia, iniciada em ciências jurídicas, sabe que a doação à concubina pode ser anulada (Artigo 550 do Código). Mircléubio, então, compra um automóvel, faz uma doação para Ualdo, seu amigo, que o doa a Patrícia. Então, caso não se prove o ardil, Chifronésia não terá como anular a “doação”. No exemplo citado, houve uma simulação, porque, de fato, Mircléubio doou um automóvel a Patrícia, mas, no mundo jurídico, fez-se parecer que tal doação fora feita por Ualdo. Na simulação há um conluio, uma declaração bilateral; é um ajuste que maqueia uma situação de fato para prejudicar terceiros. “São duas pessoas com ‘espírito de porco’ ludibriando um ‘Mané’”. A lei presume que existe simulação em qualquer ato que transmita direitos a pessoas diversas do real (como no nosso exemplo); atos que emitam declaração mentirosa; atos que declarem valor a menor; ou lançamento de data anterior ou posterior ao dia verdadeiro em documentos (antedatar ou pós-datar documento). A simulação em que se cria negócio fictício para se auferir vantagem chama-se “simulação absoluta”; e a simulação que se perpetra visando encobrir ato/negócio ilícito chama-se “simulação relativa” ou “dissimulação”. A doutrina nos traz o conceito de uma simulação que não objetiva causar danos a terceiros, chamada de “simulação inocente”; ocorre que, segundo o enunciado 152 da 3JDC, “toda simulação, inclusive a inocente, é invalidante”. Assim, existe uma diferença entre “simulação”, em que se aparenta o que não existe, e “dissimulação”, onde se omite um ato verdadeiro. 118 Figura 37 - Simulação 1.3.1.2.2.2.4 VALIDAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO Aprendemos que um ato defeituoso é nulo ou anulável. Um ato nulo não tem conserto; a qualquer momento poderá ser desfeito. O negócio anulável pode ser consertado, podendo ficar “purificado”. Mas como se dá tal conserto? Isso é possível por meio da convalidação, que pode acontecer de duas formas diferentes: decurso do prazo ou confirmação. Explico como cada um funciona: 1 – Decurso do tempo – É a forma mais simples e demorada de convalidar os atos jurídicos. Os atos anuláveis possuem prazos para serem arguidos como tal (por meio de “ação de anulação” ou “anulatória”); ficando a vítima silente em tal prazo, aceita o ato como bom. O prazo geral para pedir desfazimento (anular) de ato anulável é de quatro anos (Art. 178 do CCB) para erro, dolo, coação, estado de perigo, de lesão e fraude contra credores; a) o prazo ditado por lei para a anulabilidade em questão, quando indicado; ou c) Se não for o caso “a” e não constar prazo especial para o caso específico, será de dois anos tal prazo. 2 – Confirmação – Como nome diz, é refazer (com = encontro) e (firma – assinatura). É algo como “reassinar” o acordo; pode-se dar na forma expressa ou tácita: a) Na confirmação expressa, as partes simplesmente refazem o acordo, da mesma forma que deveriam ter feito, mas, dessa vez, sem o defeito que o atacava. b) Na confirmação tácita, a vítima ”perdoa”, cumprindo espontaneamente e de bom grado o que se obrigou, mesmo já ciente do defeito que havia. 119 E assim um ato/negócio anulável se torna válido. Não significa que está perfeito ainda, pois, para isso, devemos ainda aferir sua eficácia. 1.3.1.2.1.3 PLANO DE EFICÁCIA É a aptidão para produzir efeitos. Um negócio pode existir, pode ser válido, mas, enquanto não satisfizer as exigências do Plano de Eficácia, nada produzirá no mundo concreto, no mundo dos fatos; um negócio ineficaz se mantém em estado latente até possuir suas existências satisfeitas. O plano de eficácia possui três barreiras: Condição, Termo e Encargo. Antes de incursionarmos no estudo do plano de eficácia, que fique claro que um negócio jurídico não necessariamente deve estar submetido a condição, termo ou encargo. Negócio em que não encontramos nenhuma dessas barreiras é chamado de negócio puro. Os negócios válidos puros já estão perfeitos, ou seja, já gozam de total proteção legal para a sua exequibilidade. Figura 38 - Eficácia dos negócios jurídicos 1.3.1.2.1.3.1 CONDIÇÃO É a submissão de um negócio a um evento futuro e incerto. Aqui, vale o “se”. Exemplo: ganharei R$ 50.000,00 se acertar a combinação da Loteria Federal. Veja que não se sabe se eu vou acertar, mas, SE eu acertar, farei jus ao prêmio; eis um típico negócio condicional. A condição pode ser RESOLUTIVA ou SUSPENSIVA. Na condição resolutiva, o agente já goza de todos os efeitos desde o momento da origem do negócio e, caso ocorra o evento futuro, o negócio deixará de produzir efeitos. Por exemplo: alguém fornece mercadoria para uma loja enquanto a cotação do dólar ficar abaixo dos R$ 3,00. Veja que, caso (“SE”) a cotação do dólar ultrapassar os três reais, o fornecimento cessará. Na condição suspensiva, nenhum efeito o negócio gera no momento de sua origem; somente caso (“SE”) ocorra um evento é que o negócio passará a gerar efeitos; como exemplo, citamos o jogo de Loteria que ilustrou o início do tópico. http://www.dji.com.br/civil/condicao.htm http://www.dji.com.br/civil/termo.htm 120 Note que, no momento do jogo, nenhum direito de recepção de prêmio cabia ao jogador, mas, caso (“SE”) lograsse êxito no sorteio dos prognósticos, receberia o prêmio. O Artigo 129 é uma vacina “antipilantra”. É que existe a possibilidade de malícia, do tipo: pode ser que o filho de Carlos cole em todas as provas e, por isso, nunca tire notas abaixo de nove, o que resultará em recebimento da mesada sempre e sempre; ou seja, recebeu maliciosamente a mesada. Ou pode ser que José receba o prêmio da Loteria, tendo viciado a roleta do sorteio das dezenas. Para isso existe o Artigo 129, que é a “cura”. Diz tal Artigo: “Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.” Ou seja: se o filho de Carlos tirou notas altas colando, e Carlos tiver como provar isso, pode parar de pagar a mesada prometida, pois a condição resolutiva foi obstada com malícia, isto é, não seguiu a ordem natural das coisas; e, se José fraudou a roleta da Caixa Econômica para ganhar o prêmio, e a Caixa tiver com provar isso, não está obrigada a lhe entregaro prêmio; simples assim! A lei proíbe condição puramente potestativa, impossível, ilícita, incompreensível ou contraditória. Condição puramente potestativa é aquela cujo evento futuro e incerto depende unicamente da vontade de uma das partes (a simplesmente potestativa, que é aquela não totalmente dependente da vontade de uma das partes, pode!). Condição ilícita é aquela cujo evento se dá contra a lei, ou a moral, ou os bons costumes: “Entrego esse imóvel a você, se você se casar com o meu filho”. Condição incompreensível é aquela ininteligível; imagine algo como “Esse automóvel será seu quando uma peça equinocial transpassar a fronteira do que é possível se chamar, no mundo dos chicletes, de cosmicamente irrelevante”; O leitor entendeu? Nem nós. Condição contraditória é aquela que anula sua própria utilidade: “Doo uma casa para você morar, mas você não pode entrar nela, Ok?”. A parte a quem favoreça a ocorrência da condição já pode, desde o negócio jurídico, exercer atos de conservação sobre o bem ou o direito objeto do negócio que, no futuro, será, ou provavelmente será, seu. 1.3.1.2.1.3.2 TERMO É a submissão de um negócio a um evento futuro e certo, ou seja, não se discute se o evento ocorrerá ou não; já se sabe que sim; a questão é QUANDO ocorrerá. O termo pode ser INICIAL e FINAL. Termo inicial é o momento em que o negócio começa a produzir efeitos; por exemplo: cláusula testamentária enunciando que, quando o herdeiro completar 22 anos, receberá tal bem. 121 Termo final é o momento em que o negócio jurídico deixa de produzir efeitos. Como exemplo corriqueiro, temos a obrigatoriedade de pagamento de pensão alimentícia do pai para os filhos até, em tese, o fim do curso universitário destes. O termo inicial é chamado também de “termo suspensivo” ou dies a quo; e o termo final também é chamado de “termo extintivo” ou dies ad quem. O lapso de tempo que medeia um termo inicial e um termo final chama-se prazo. Na contagem dos prazos, exclui-se o dia do início e inclui-se o dia final; caso o início ou o fim recaiam em feriado ou dia não útil, deverá ser o efeito de tal dia prorrogado para o primeiro dia útil seguinte. “Meado” é o dia 15 do mês. Prazos em horas são contados minuto a minuto; exemplo: caso o oficial de justiça cite, às nove horas da manhã, um executado para pagar ou nomear bem à penhora no prazo de 24 horas, o prazo expirará às nove horas da manhã do dia seguinte. Os prazos em meses ou anos terminam no mesmo “número do dia” em que começaram; por exemplo: um prazo de 3 meses a partir do dia 20 de abril terminará em 20 de julho, não importando o número de dias que medeiam tais dias, não necessitando ser, necessariamente, 90 dias. Detalhe: pelo Artigo 135 do CCB, o “Artigo antipilantra” (aquele 129 do CCB), também pode ser aplicado em caso de termo suspensivo (inicial) ou resolutivo (final), também. Figura 39 - Termo inicial e final 1.3.1.2.1.3.3 ENCARGO (ou MODO) O encargo (ou modo) é uma maneira obrigatória pela qual o negócio deve ser praticado para que surta efeitos. É uma obrigação atrelada ao objeto do negócio, cuja eficácia deste depende do cumprimento dessa obrigação. O encargo 122 impossível ou ilícito é tido como não escrito (exemplo de encargo imoral: Dar-lhe- ei este carro desde que você namore o meu filho e se case com ele”. Exemplo de encargo ilícito: Dar-lhe-ei este automóvel, mas quero que você o utilize sempre que quisermos praticar assaltos”). 1.3.1.2.1.3.4 CASOS LEGAIS DE INEFICÁCIA Existem alguns casos de ineficácia expressos no Código e em leis esparsas, por exemplo: há ineficácia nos documentos redigidos em língua estrangeira enquanto não traduzidos para o português (Art.224); na quitação dada nos títulos de crédito (que é a entrega deste ao devedor) se o credor provar, em 60 dias, que em verdade não houve pagamento (Art. 324, Parágrafo único); na quitação de obrigação resultante de dação em pagamento, se o credor for evicto da coisa recebida (Art. 359); na promessa unilateral de contrato, se o credor não manifestar-se no prazo esperado (Art.466); na resilição, em que, no contrato, tenha havido investimentos consideráveis para a sua execução, e não tenha ainda transcorrido prazo compatível com a natureza e vulto de tais investimentos (Art.473); na compra e venda de coisa futura de forma que, sem ser contrato aleatório, a coisa não veio a existir (Art.483); na compra e venda cujo preço fora colocado ao arbítrio de terceiro, se esse terceiro negar-se a fixá-lo e se os contratantes não acordarem em indicar outra pessoa para determinar o preço (Art.485); nos atos praticados por quem não tenha mandato ou o tenha com poderes insuficientes; se a pessoa em cujo nome tais atos foram praticados não o ratificar (Art.682); na imposição de condição ou termo imposto para o reconhecimento de filho (Art.1.613); no pacto antenupcial, se não lhe seguir o casamento (Art. 1.653); e no legado de coisa certa de forma que, no momento da abertura da sucessão, a coisa não pertença ao testador (1.912). Figura 40 - Fluxograma - Existência, validade e eficácia 123 1.3.1.3 ATOS ILÍCITOS São atos contrários ao ordenamento jurídico, causando dano (prejuízo econômico, ou que viole boa-fé, ou os bons costumes) a outrem. Pode-se dar até pelo excesso de uso de direito. Estudaremos mais detalhadamente o ato ilícito ao tratarmos de Responsabilidade Civil, que é sua principal, mas não única consequência, visto que um ato ilícito pode gerar como resposta: reparação do dano, mudança de estado civil, anulação do ato e até prisão civil, no caso de inadimplemento injustificado de dívida alimentícia. 1.3.2 O TEMPO COMO FATO JURÍDICO O tempo é um fato jurídico natural. A passagem do tempo traz consequência para tudo e todos e, inclusive, para o direito. Dentre os fenômenos causados pelo tempo, temos o advento do termo, da prescrição e da decadência. Conceituamos tempo como “a sucessão contínua dos fatos”. O tempo já foi tratado por nós quando estudamos sobre o plano de eficácia dos negócios jurídicos. Tratemos agora sobre a prescrição e a decadência. 1.3.2.1 PRESCRIÇÃO Ninguém pode estar eternamente submetido a outrem. Sempre que temos uma relação jurídica, temos uma relação em que, caso qualquer dos sujeitos envolvidos não cumpra o combinado, o Estado, por meio do Poder Judiciário, conserta a situação, restabelecendo a justiça da relação ofendida. O professor J.L. Franco Júnior nos diz41 que “a proteção judiciária é um dos mais importantes alicerces do Estado Democrático, à medida que salvaguarda os demais direitos dos cidadãos contra atos atentatórios”. Ocorre que, quando há ofensa a um bem jurídico, o Estado não pode ficar, também, eternamente à disposição do ofendido para que este o chame a resolver o conflito. Ao lapso de tempo que o sujeito dispõe para chamar o Estado a resolver, por meio da Justiça, o conflito nascido chamamos de prescrição. Uma vez perpetrada a ofensa, surge para a “vítima” uma pretensão, que é o poder de exigir que o Estado “tome suas dores” e, por meio de um comando judicial, lhe traga o remédio para a ofensa. O término dessa pretensão chama-se prescrição. Portanto prescrição é o fim da duração da pretensão. Usamos aqui as palavras do professor e Doutor em Direito Aldemiro Dantas, que nos ensina42: “Assim, suponha-se que A deva pagar certa quantia a B, tendo sido acertado entre ambos que o pagamento seria feito no dia 31 de janeiro. Nesse 41 Franco Júnior. J L. A condição da ação. Ed. do autor. Manaus, 2005, p.38 42 Dantas Jr., Aldemiro. Noções básicas de Direito e Processo do Trabalho. Ed. Sênior. Manaus, 2007, p. 17 124 caso, enquanto não se escoar o dia 31 de janeiro, o direito de B (quanto ao recebimento da prestação devida por A) ainda não terá sido violado, e por isso nãose poderá falar em surgimento da pretensão, assim como não terá começado a fluir o lapso prescricional”. Assim é a dicção do Artigo 189: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os Arts. 205 e 206”. Cuidado com o vocábulo “nasce” escrito no Artigo! A 1JDC deu uma interpretação interessante ao termo, ao afirmar que (enunciado 14): “1) o início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2) o Art. 189 diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer”. A prescrição não é determinada pelas partes; está sempre expressa em lei. Sempre que nenhum dispositivo indicar a prescrição para algo específico, entenda- se que é de 10 (dez) anos (por força do Artigo 205 do CCB). O Artigo 206 do Código Civil traz algumas prescrições. Assim como os demais prazos existentes no Código, o apêndice desta obra traz o tempo de prescrição presente no codex. No caso das obrigações, a prescrição não as extingue; apenas as transforma em obrigações naturais, como veremos no estudo de Direito das Obrigações. A prescrição contém dois requisitos: transcurso do tempo e inércia do titular. A prescrição deve ser conhecida de ofício43 pelo Juiz, ainda que a parte interessada não a alegue. É o que nos diz o parágrafo quinto do Artigo 219 do CPC: “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”. Tal reconhecimento automático é novo, já que, até 2006, estava em vigor o Artigo 194 do CCB44, que foi revogado pela Lei 11.280/06. Pode haver renúncia à prescrição, ou seja, é dado à parte “permitir” à outra que lhe demande em juízo ainda que a destempo, mas só pode renunciar APÓS o decurso de prazo da prescrição. Caso uma pretensão possa ser utilizada não para atacar, mas sim para se defender em juízo, o prazo para o manejo de tal interesse é o mesmo destinado à prescrição para tal. Existem algumas pretensões que JAMAIS prescrevem; são as pretensões atinentes aos Direitos da personalidade, ao Estado civil das pessoas, à investigação de paternidade, à interdição e à arguição de nulidades absolutas. 43 Diz-se "de ofício" a atividade do juiz que independe de pedido para ser exercitada. 44 Dizia o Artigo revogado: “O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz”. 125 Um detalhe: pretensões imprescritíveis também são irrenunciáveis, já que qualquer renúncia só pode ocorre após a prescrição; por dois motivos: um teórico e um prático. O motivo teórico é que tais pretensões são de ordem pública, agem em favor de toda a sociedade, e não apenas do interessado imediato; e o motivo prático é que só é dado renunciar prescrição após o decurso desta; se a pretensão NUNCA prescreve... (entendeu, né?!). Atenção! Tudo o que tratamos aqui se refere à prescrição mais comum (e para alguns a única existente!), chamada Prescrição Extintiva. Isso porque se consagrou pelo uso dizer-se que o usucapião é uma “Prescrição Aquisitiva”. Estudaremos essa “segunda espécie” de prescrição ao tratarmos de usucapião, em Direitos Reais. Figura 41 - Prescrição 1.3.2.1.2 MODIFICAÇÃO DE CONTAGEM DO PRAZO Quando a lei expressa “cinco anos”, não significa necessariamente que, no calendário, aquilo corresponda a cinco anos mesmo, podendo até durar uma geração inteira no mundo real; e, na lei, continuará sendo “cinco anos”. Isso ocorre porque uma coisa é o prazo; outra coisa é a contagem do prazo. Explicando: embora o tempo não pare de fluir, a contagem do tempo, para o direito, é passível de modificações, chamadas de suspensão, interrupção e impedimento. A contagem é chamada de linear quando segue o calendário: um ano da contagem corresponde a um ano civil. O maior exemplo de contagem linear é a idade; se tenho trinta anos de idade, tenho 30 anos vividos segundo a contagem civil dos dias. A contagem não linear ocorre quando o tempo e o modo da contagem não seguem o calendário. É uma contagem que não ocorre, portanto, segundo as leis da física, mas segundo as leis do direito. É o caso do prazo prescricional, que pode sofrer modificações (suspensão, interrupção e impedimento). 126 1.3.2.1.2.1 SUSPENSÃO Suspensão é o fenômeno mediante o qual, durante determinado tempo, a contagem do prazo prescricional seja “congelada”; assim, ao término da suspensão, a contagem volta a correr, pelo tempo que lhe resta, ou seja, a partir do exato tempo em que deixou de ser contado antes de a suspensão ocorrer. Imaginemos um prazo prescricional de dez anos. Se no quinto ano sobreveio uma causa suspensiva que dure outros dez anos, nesse tempo não haverá contagem daquele prazo prescricional. Ao fim desse congelamento, ou seja, ao fim da suspensão, volta-se a contar o prazo prescricional, pelos cinco anos restantes (não estava no quinto ano quando foi suspenso, ou seja, “congelado”?). As causas suspensivas de prescrição estão escritas nos Artigos 197, 198 e 199 do Código. Aliás, o leitor já notou a “viagem” interessante dos Artigos 197 a 199? Leia o “caput” deles e responda: não bem poderiam ser um artigo só? Fica a impressão tosca de que alguém estava digitando o 197 enquanto alguém ditava. Assim que passou para o próximo artigo, depois de numerá-lo (em 1969, não havia MS-Word ainda...), o que estava aditando disse: “Peraí! Há mais uns casos aqui!”; e o datilógrafo mandou: “Ah! Agora já passei para o próximo! Mas vou incluir nesse novo Artigo 197”; e aí incluiu os outros casos. Assim que terminou de datilografar o Artigo 197, ouviu: “Ih! Esqueci mais esses aqui!”; o datilógrafo (estressado): “Ah! Já fechei o Artigo! Vou colocar nesse próximo Artigo 198. Manda aí! É óbvio que essa história é uma ficção; a viagem foi nossa (?). Mas que ficou estranha a redação do código nessa questão, ficou! Mas, voltando ao que interessa, a prescrição fica suspensa entre os cônjuges, enquanto durar a sociedade conjugal45; entre ascendente e descendente, enquanto houver poder familiar46; entre tutores/curadores e tutelados/curatelados; contra incapazes ; contra os ausentes do País em serviço público; entre os que estiverem servindo nas forças armadas, durante guerra; enquanto houver pendência de condição suspensiva; enquanto não se vencer o prazo; e enquanto estiver pendente ação de evicção47. Diz o enunciado 156 da 3JDC que a prescrição é congelada desde a sentença de ausência; entendemos que esta deve ser suspensa desde o desaparecimento, até para 45 Em muito boa hora veio o Enunciado 296 da 4JDC para nos informar que “Não corre a prescrição entre os companheiros, na constância da união estável”. 46 E se houver adoção? Continua suspensa a prescrição em relação aos pais biológicos? Entendemos que sim. As causas penais de suspensão do poder familiar trazem efeitos civis? Entendemos, igualmente, que sim. 47 Evicção é perda judicial da coisa, que fora tomada por outrem que tinha direito sobre ela. Trataremos disso no estudo do contrato de compra e venda. 127 dar máxima efetividade à vontade do legislador; e o Enunciado 296 da 4JDC dá uma interpretação extensiva à causa de suspensão: "Não corre a prescrição entre os companheiros, na constância da união estável." 1.3.2.1.2.2 INTERRUPÇÃO A interrupção representa um corte na contagem do prazo prescricional fazendo que o tempo da prescrição seja “zerado”, ou seja, passe a ser contado novamente, de seu início. A interrupção da prescrição só pode ocorrer uma única vez. Já pensou o inferno que seria para a parte contrária se pudesse a prescrição ser interrompida diversas vezes? Esta jamais se daria então, na prática, não é? Interrompe prazo prescricional o despacho de citação,ainda que emanado de juiz incompetente: o protesto; a apresentação de título em inventário ou concurso de credores (leia-se insolvência, execução coletiva e falência); ato judicial de constituição em mora48 ou qualquer ato do devedor reconhecendo direito do credor, que até tal momento não o foi. 1.3.2.1.2.3 IMPEDIMENTO Se uma violação ocorrer na constância de causa de suspensão, haverá impedimento. Imaginemos que, durante uma situação em que haja suspensão de prescrição, ocorra uma violação de direito: o esposo contrai uma dívida para com a esposa. Nesse caso, a violação do direito (não pagamento da dívida) ocorreu já dentro de uma circunstância ditada em lei como causa suspensiva (constância da união matrimonial). Começará o prazo de pretensão a correr? Não! Como tal violação “já nasce suspensa”, diz-se que está “impedida”. Assim, sempre que ocorrer uma violação “no início do prazo”, este, em verdade, sequer começará a correr, daí a suspensão ou a interrupção, quando ocorre no início do prazo, ser chamada não de suspensão, mas sim de IMPEDIMENTO. 1.3.2.2 DECADÊNCIA Para entendermos o que vem a ser uma decadência, precisamos fincar o entendimento de "Direito Potestativo". Dois tipos de poder existem: o de fato e o de direito. Para os romanos o poder de fato era chamado de potentia; e o poder de direito era chamado de potestas. Qual é a diferença? Já explico exemplificando: 48 Estudaremos a finalidade de constituição em mora ao estudarmos Direito das Obrigações 128 Se você paga um tributo, abre mão de parte do seu patrimônio em cumprimento a uma ordem (lei) de um ente superior (Estado), faz algo contra sua vontade em atendimento a uma determinação; como o veículo de tal mandamento é a lei, dizemos que o Estado possui um poder de direito, uma força coativa que deriva do ordenamento jurídico. Agora, imagine que alguém é assaltado e, sob a mira de um revólver, entrega seu patrimônio a um meliante. Há alguma lei que determine a essa vítima que entregue algo ao assaltante? Não! Logo não há ali uma relação de poder de direito. Mas, ainda assim, a vítima irá entregar a carteira e o relógio ao assaltante. Por quê? Porque este tem poder de fato sobre a vítima. Assim, o significado de “direito potestativo” é a possibilidade de interferir na esfera jurídica de outro indivíduo, sem experimentar resistência; ou, como digo em sala, é poder de, sozinho, modificar ou extinguir uma relação jurídica, cabendo ao outro, simplesmente, aceitar a decisão. O exemplo clássico é o direito de divórcio: basta um querer para que um casal se divorcie (para haver casamento, precisou das duas vontades – não havia direito potestativo –, mas, para finalizar o casamento, basta UMA vontade – isso é exemplo de direito potestativo). Existem direitos potestativos com prazo e sem prazo. Em havendo prazo, o fim deste é chamado de “decadência”. A decadência, ao contrário da prescrição, tanto pode estar expressa em lei quanto pode ser convencionada pelas partes (lembra aquele prazo de garantia49 do seu carro ou da sua TV? É prazo decadencial; e é um exemplo de decadência nascida da vontade dos contratantes); são chamadas respectivamente de legal e convencional (esta última é também chamada de contratual, voluntária ou negocial). A decadência legal é reconhecível de ofício pelo juiz, ao passo que a decadência convencional nunca o é; caso não seja alegada pela parte a quem aproveita, ocorrerá a preclusão, que é a perda de oportunidade de exercício de um ato dentro do processo judicial. Decadência pode ser alegada em qualquer grau ordinário de jurisdição. Grau ordinário é aquele em que não se exige pré- questionamento para sua análise. Lembramos que a decadência convencional pode ser renunciada. 1.3.2.2.1 CAUSAS IMPEDITIVAS E SUSPENSIVAS A regra básica e clássica é que a decadência não se interrompe nem se suspende, exceto se a lei expressamente indicar algum caso. Até a concepção deste livro, existem dois casos nos quais a decadência pode ser suspensa: a decadência 49 Referimo-nos aqui à garantia contratual de fábrica ou cominada com a loja 129 que corre contra o consumidor, no âmbito das relações de consumo, por reclamação deste ao fornecedor, e a decadência tributária, por ato da autoridade fazendária em face do contribuinte. Futuramente podem existir outros casos, visto que o Código escancarou as portas para tal. Quanto às causas impeditivas, vale aqui o que escrevemos sobre o impedimento da contagem do prazo prescricional; nada mais é do que uma suspensão que ocorre no momento zero do prazo decadencial. Os prazos de decadência legal estão espalhados pelo Código (principalmente na Parte Especial deste, onde inclusive, prepondera!), ocorrendo um sem-número de casos. 1.3.2.3 DIREITO INTERTEMPORAL Como se conta o prazo que se encontra fluindo na mudança do antigo para o atual Código? Tomemos como exemplo a prescrição da responsabilidade civil, que no Código antigo era de 20 anos, e o Novo Código o reduziu para três anos. Imagine que um dano foi causado em 20 de maio de 1991; pela contagem do Código antigo, a prescrição dessa pretensão se dará em 20 de maio de 2011. A regra funciona assim: se já passou da metade, vale a lei velha; se ainda não chegou à metade, vale a lei nova (Artigo 2.028 do Código). Nesse caso, toma-se como marco regulatório o dia 11 de janeiro de 2003, pois foi nessa data que entrou em vigor o novo Código. Se nessa data já haviam transcorrido mais de dez anos do fato danoso, segue-se a contagem da prescrição do Código antigo, a saber, 20 anos. Se em 11/1/2003 ainda não haviam decorrido dez anos do dano, valerá o prazo do novo Código. Mas poderia surgir uma questão: caso o dano se tenha dado em 2 de abril de 1993; nota-se que em 11/1/2003 não se passaram ainda dez anos, ou seja, passa a valer o novo prazo, que é de três anos. Mas... nesse caso, a prescrição encerra-se de imediato, ou pior, retroagiu para 2 de abril de 1996? É claro que não! A intocabilidade dos atos jurídicos perfeitos bem como o próprio bom senso nos informam que o novo prazo terá sua contagem iniciada A PARTIR da vigência do novo Código, ou seja, a prescrição da pretensão do fato citado será em 11 de janeiro de 2006! Todos os novos fatos danosos ocorridos de zero hora de 11 de janeiro de 2003 adiante terão como prescrição os três anos da nova lei. 1.3.3 PROVAS DOS FATOS JURÍDICOS “Prova” é, basicamente, a demonstração da ocorrência de um fato. 130 No que tange à prova judicial, já se disse que “a força da decisão do juiz está nas provas que a sustentam, pois sua convicção é embasada no conhecimento dos fatos, confirmados pelas provas trazidas aos autos”.50 Em sendo uma ação judicial resultado de um conflito de interesses, visando resolvê-lo, jamais seria possível seu correto julgamento caso não existissem elementos que comprovassem as alegações das partes. O juiz conhece o direito, mas não conhece os fatos. Logo cabe às partes demonstrar ao magistrado a existência desses fatos, pois o correto julgamento não só se estriba no direito, mas também, principalmente, na aplicação desse direito ao caso concreto; entendendo o caso concreto como uma sucessão de fatos a serem objetos da aplicação da justiça, há de haver elementos que bastem para demonstrar a veracidade de tais fatos ao juízo. É nesse contexto probatório que as provas atendem a tão nobre finalidade. São elas que trazem até o juízo os fatos que ocorram em tempo e lugar diverso. O presente livro pretende tecer breves comentários sobre temas atinentes às provas no Direito Civil, com algumas críticas a eles pertinentes. 1.3.3.1 INTRODUÇÃO O “calcanhar de Aquiles” de toda demanda em juízo é, quase sempre, a prova. Provar é fazer nascer em alguéma certeza sobre a existência de um fato. Logo só se prova um fato, e somente um fato positivo. A prova do fato negativo é muito controvertida na doutrina, havendo desde que os que afirmam que não pode existir prova de fato negativo até os que a admitem plenamente. O fato é que ninguém pode afirmar que Maria não esteve na sala; o máximo que conseguem afirmar é que não viram Maria na sala, mas não que ela não esteve lá. A prova positiva de algo que torna impossível a ocorrência de outro chama-se “álibi”; assim, se Maria provar que no momento em questão estava em outro local (agora sim, um fato positivo), ficará certo que ela não esteve no local em tela, pela impossibilidade da onipresença. A prova pode ser extrajudicial ou judicial, a depender de sua origem; a prova judicial é infinitamente mais robusta pelo fato de ser produzida sob o crivo do contraditório. Não é difícil encontrarmos, até no mundo profano, o brocardo “A prova cabe a quem alega”. E é isso mesmo! Na esfera penal, é o Estado ou o querelante que possuem a incumbência de comprovar a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade do réu, mas, no cível, 50 SOUZA, Lourival de Jesus Serejo – Artigo "As provas ilícitas e as questões de direito de família", in Revista Brasileira de Direito de Família 131 cada parte precisa provar o que alegar; não somente o autor da ação, mas também o réu. Aliás, melhor andaríamos se disséssemos que deve provar aquele a quem a prova interessa, visto que o Artigo 333 do CPC é bem claro quanto a isso quando diz: “O ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”. Os fatos jurídicos ocorridos no estrangeiro devem ser provados segundo as leis admitidas nesse país, exceto quanto às provas proibidas no Brasil; é o que nos diz o Artigo 13 da LIND. As ferramentas pelas quais se convence algo se chamam Meio de Prova. Os meios de prova são disciplinados por vários diplomas legais, devendo ser estudados em conjunto, visto que a legislação civil muito ajuda a esfera penal, e vice-versa, no que tange às provas. 1.3.3.2 MEIOS DE PROVA Ao estudarmos os meios de prova em juízo, costumamos invocar a ideia de um sapo. Esse sapinho tem um nome: “Codoteprepe”, que é o barulho do coaxar do sapo, provando para a rã que quer namorá-la. O nome do sapinho advém do barulho do coaxar do sapo: codoteprepe... codoteprepe... codoteprepe... É o nome do sapinho que nos informa os meios de prova constantes no Código: COnfissão, DOcumento, TEstemunha, PREsunção e PErícia. Figura 42 - CoDoTePrePe 1.3.3.2.1 CONFISSÃO A confissão é a rainha das provas, na esfera cível. 132 Ainda que respeitadas vozes bradem o contrário, no cível vige a verdade formal mesmo, ou seja, aquela circunscrita aos autos, a verdade do papel; isso porque estamos no ramo do direito privado, em que se discutem obrigações e patrimônios; a discussão no mais das vezes é econômica. Daí por que basta a confissão para estar plenamente provado algo. Confissão é a admissão de um fato desfavorável ao confitente e favorável à parte adversária. É o reconhecimento de um fato que desfavorece quem o faz. A confissão pode ser judicial ou extrajudicial, a depender do ambiente em que é realizada: dentro ou fora de uma demanda, perante autoridade judicial competente. Assim, confissão realizada fora do fórum, mas em uma inspeção judicial, é uma confissão judicial; e confissão realizada em juízo, perante juiz, mas que não está em audiência (imagine uma confissão para o juiz no restaurante do fórum...), não é confissão judicial, visto que não estavam discutindo a demanda; nem a autoridade estava competente para tomar a confissão. Qualquer autuação de tal “confissão”, em verdade, equivale a uma prova testemunhal do juiz, que deve afastar-se do julgamento, passando os autos ao substituto legal e, aí sim, testemunhar sobre a “confissão” de que teve notícia. Pode ser expressa, tácita ou presumida. A confissão expressa é dessumida de declaração do confitente, seja de que forma for: verbal, gestual, por escrito etc. A confissão tácita é aquela decorrente do silêncio do confitente após lhe ser oportunizado prazo para declaração diversa. A confissão presumida ocorre quando o confitente, embora não emita declaração alguma, age como se houvesse confessado. É chamada também de confissão ficta; e é um dos efeitos da revelia. Confissão pode ser realizada pela própria parte, ou por mandatário com poderes especiais (cláusula et extra no instrumento do mandato). Só podem ser objetos de confissão fatos atinentes a bens disponíveis, visto que valores indisponíveis são insuscetíveis de confissão. Igualmente só pode confessar aquele que deve suportar as consequências da confissão, ou seja, aquele que pode dispor de seu patrimônio. Pessoas casadas não podem confessar sobre questões envolvendo imóveis, sem a confissão de seu cônjuge, ou seja, confessar podem, mas tal não terá efeito, justamente por essa “confessando” sobre algo que não apenas lhe pertence. É bem verdade que confissão sobre imóveis excluídos da massa comum ser válida, pelo fato de ser o confitente o único a dispor de tais bens. Quem confessa não pode “desconfessar”, voltar atrás, ou, tecnicamente, revogar a confissão, mas, como fato jurídico que é, a confissão pode ser anulada se foi fruto de um erro de fato, ou seja, se adveio de impressão errada sobre uma situação fática, ou coação, ou seja, se foi obtida sob ameaça. A confissão é indivisível; assim, não pode a parte contrária alegar em seu favor apenas “meia- 133 confissão” do outro, ou seja, acatar a parte que o beneficia e rechaçar a parte que lhe traria algum prejuízo. Ou acata por inteiro, ou não a acata. 1.3.3.2.2 DOCUMENTO Documento é uma peça física que condensa o pensamento de alguém ou comprova a existência de um fato. O documento pode ser público ou particular. Documento público é aquele produzido por um agente público no exercício da função pública; à exceção deste, todos os outros são documentos particulares. Documentos particulares provam a autenticidade da declaração do signatário; são aptos a gerar obrigações para este; mas a cessão dessa obrigação só gera efeitos perante terceiros após o registro do documento de cessão. Documentos particulares têm o seu conteúdo provado por quaisquer outras provas legais, na ausência do documento. Escritura pública é documento público lavrado por tabelião, que é um agente do Estado. Daí o teor das escrituras públicas serem declarações emanadas do próprio Estado, e por isso gozam de fé pública. As escrituras públicas são lavradas de acordo com o Artigo 215 do Código e com a Lei 7.433, de 18/12/85. São escritas pelo tabelião, que deve estar na presença das pessoas interessadas no ato, ou seus procuradores. O tabelião deve certificar-se da identidade dos participantes do ato, podendo usar inclusive testemunhas para tal; deve ouvir a declaração dos interessados (que pode ser em língua estrangeira, se o tabelião conhecer o idioma, ou por meio de tradutor) e fazer constar na escritura o cumprimento de qualquer exigência fiscal que o interesse demandar. As pessoas, em documentos particulares ou públicos, devem ser qualificadas de acordo com o Artigo 215, inciso III51, a saber: nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio, residência e, se casada, a pessoa qualificanda, o regime de bens do casamento, podendo constar ainda o nome do cônjuge do qualificando e a filiação, se interessar ao ato. Fotografias, filmes, gravações magnéticas e eletrônicas de áudio e vídeo são aptos a comprovarem fatos desde que não haja impugnação da parte interessada contrária. Se houver impugnação, far-se-á necessária a prova pericialpara dirimir a questão. Documentos em língua estrangeira devem ser traduzidos para o português brasileiro para gerar efeitos legais. A lei não especificou sobre a necessidade de tradução simples ou juramentada. Para o caso de julgamentos cíveis, entendemos 51 Embora tal dispositivo se refira à qualificação dos participantes do ato de escritura pública, é cabível também para os documentos particulares. 134 até que a tradução pode ser dispensada se o juiz conhecer o idioma do documento, mas nossa posição é minoritária. A corrente majoritária enuncia que, devido à publicidade do processo, deve qualquer documento apresentado estar em língua portuguesa, ainda que o juiz conheça o idioma original deste. Entendemos ser obrigatória a tradução juramentada para efeitos de Registros Públicos, sobre os quais a própria lei é expressa. As provas fotográficas, fonográficas e cinematográficas, sejam óticas, sejam eletrônicas, só provam se a parte contrária não as impugnar. Em havendo impugnação, far-se-á perícia no documento apresentado para dirimir a dúvida. A lei processual admite que qualquer pessoa se recuse a apresentar documentos para provar algo se forem íntimos e estritamente particulares, quando a apresentação deles trouxer qualquer desonra a alguém, ou lhe cause perigo de, contra si, ser proposta alguma ação penal. A parte pode também se recusar a apresentar documentos caso estes divulguem fatos em relação aos quais deva guardar segredo, por dever pessoal ou profissional, bem como por qualquer motivo grave que o juiz entenda justificável. Caso o juiz ordene a exibição de documento a alguém e esta pessoa se recuse a apresentá-lo, o Artigo 359 do CPC autoriza ao juiz tomar a recusa como confissão de quem não quis apresentar o documento. Situação interessante é a autenticação de cópia pelos cartórios. Existe ainda um “dogma profano” de que cópia autenticada tem força probante de original. Nada mais errado, visto que o Código determina que cópias autenticadas só provam enquanto não forem contestadas. Ora, se tal valor probante é o mesmo que cópias não autenticadas; fica a pergunta: ainda se autentica cópia em cartório por quê? Mera exigência burocrática do destinatário do documento; só pode! As certidões são documentos em que um agente certifica (daí o termo “certidão”) acerca da existência ou do teor de algum ato oficial. É prova plena da existência do ato. Assim, o registro de nascimento não é a certidão (como pensam os profanos); esta é a prova do assentamento do nascimento em livro próprio, que é o verdadeiro registro. A presunção legal é de que o documento assinado prova sua origem autêntica a partir do signatário (lembramos que documentos antedatados ou pós-datados são tratados como simulados pelo Código e são considerados nulos!); e, para tais documentos surtirem efeitos perante terceiros, devem ser registrados no Registro de Títulos e Documentos. Sempre que alguém praticar um ato por meio de outrem, teremos neste último a figura do procurador; e deve portar instrumento de mesma natureza que se faça necessário para a prática de ato. Assim, para a compra de imóvel de valor superior a 30 salários-mínimos realizada por meio de procurador, este deve ter procuração, também, lavrada em cartório. 135 Documento particular pode ser substituído, como prova, por quaisquer outros meios de prova. Por falar em cópia (tipo “xérox”), lembramos que existem documentos, como os Títulos de Crédito, que possuem regime jurídico próprio; e em tal regime vige o princípio da cartularidade, em que, para que o documento surta efeitos, até entre as próprias partes, deve estar em original; cópia autenticada por vinte cartórios não basta para suprir a falta de tais títulos. Daí por que quem paga duplicata e recebe como quitação uma cópia desta legalmente nada pagou, pois a lei exige a circulação e a devolução do título em original. O Código escreveu sobre o telegrama. Ora! O texto do Código é de 1969/1976, época em que o telegrama era o meio mais rápido de comunicação documental (logo substituído pelo telex e depois pelo fax; mais tarde, pelo e-mail). Por falar em e-mail, a lei nada dispõe sobre seu valor probatório. Lembramos que o e-mail é uma informação virtual, que precisa ser impresso para estar apto a ser prova documental. E, em não havendo impugnação de seu conteúdo, faz prova plena. Os livros empresariais, quando regulares, provam a favor ou contra o empresário e, se escritos com defeitos, provam somente contra ele. No que toca aos “documentos eletrônicos”, são, em verdade, físicos! Tentemos convencer o leitor: as informações constantes nos documentos “eletrônicos”, ao invés de serem tinta e papel, são bits e bytes fixados em um suporte magnético. O que é eletrônico não é o documento em si, mas sim tão somente a forma de interpretação dos dados (“zeros” e “uns”) fixados fisicamente em um suporte (chip, disco, tarja magnética etc.). Assim, entendemos ser absolutamente incorreto tratar tais documentos como “virtuais” ou “fisicamente inexistentes” como já andamos lendo por aí. Com tal visão, cai por terra também a discussão vazia sobre ser o e-mail meio válido de prova ou não; ora! A única diferença do e-mail para um papel datilografado é o suporte. Nada mais! Quanto à assinatura eletrônica, trataremos em tópico próprio, a seguir. Existe, igualmente, uma assinatura eletrônica; é que o Brasil tem um sistema certificador eletrônico. É um sistema de chave pública. Tal entidade delega o poder de certificar a outras entidades, que funcionam como cartórios autenticadores. Tentarei explicar de forma simplificada o sistema de autenticação de assinatura eletrônica: O usuário João obtém, junto a uma dessas entidades delegadas, um arquivo que contém um código, que será sua assinatura eletrônica. João assina digitalmente seis documentos anexando tal arquivo nos documentos que quiser autenticar, pois o arquivo está gravado em um chip de um cartão que João terá consigo, ou em um aparelhinho chamado “token” (eu tenho um; externamente parece um pendrive 136 comum); tais continentes do arquivo certificador são fornecidos pela entidade certificadora. Para João conseguir anexar seu arquivo de assinatura em qualquer documento, precisa utilizar uma senha, que só ele conhece (nem a entidade certificadora tem acesso a tal senha). Qualquer pessoa que receba o documento assinado digitalmente por João terá como saber a real procedência do documento, pois poderá checar, junto à entidade certificadora, se realmente João é o titular daquele arquivo autenticador anexado; em havendo resposta positiva (a transação do receptor do documento com a entidade certificadora é automática e dura fração de segundo), confirmada a autenticidade e a origem do arquivo, estará provado que o documento fora proveniente de João. Os Enunciados 297 e 298 tratam sobre o tema: "O documento eletrônico tem valor probante, desde que seja apto a conservar a integridade de seu conteúdo e idôneo a apontar sua autoria, independentemente da tecnologia empregada.", e "Os arquivos eletrônicos incluem-se no conceito de “reproduções eletrônicas de fatos ou de coisas” do art. 225 do Código Civil, aos quais deve ser aplicado o regime jurídico da prova documental." 1.3.3.2.3 TESTEMUNHA Testemunha é alguém que declara que tem ciência sobre um fato. A depender de como tal ciência ocorreu, temos as testemunhas oculares, auditivas, presenciais etc. As testemunhas que assinam os instrumentos junto com o declarante são chamadas de testemunhas instrumentárias. As testemunhas que assinam em ocasião em que o declarante se recusa a assinar chamam-se testemunhas fedatárias. Testemunha referida é aquela, indicada por outra testemunha, como tendo conhecimento dos fatos. Testemunhas judiciais são as que prestamdepoimento em juízo. Em princípio, qualquer pessoa é obrigada a testemunhar. Mas a lei traz duas exceções: são as pessoas impedidas de testemunhar e aquelas que não estão obrigadas a prestar testemunho. Estão impedidas de testemunhar, a menos que só elas conheçam os fatos: Aqueles em que não se possa acreditar por motivos mentais, visto que a sanidade mental deve existir em, no mínimo, dois momentos: no momento em que a testemunha tomar ciência do fato e no momento em que proferirá a declaração sobre o que sabe. Qualquer insanidade em algum dos dois momentos torna a testemunha impedida e, nesse caso, ainda que tal pessoa seja a única a saber sobre o fato, não pode sua declaração ter força probante, por motivos óbvios. Estão impedidas de testemunhar, também, as pessoas privadas do sentido cujo conhecimento do fato o exige para ter ciência dele. Assim, um cego não pode ser testemunha ocular de nada; e um surdo não pode ser testemunha auditiva. 137 A lei impede de testemunhar os que, presumivelmente, teriam sua declaração viciada por sentimentos desfavoráveis ou desfavoráveis ao interessado no litígio. Daí ser proibido o testemunho de alguém interessado no litígio52, ou que seja grande amigo ou inimigo do interessado53. Na prática, a situação é crivada de subjetivismo. Prova de interesse no litígio até é possível, fácil às vezes, mas prova de amizade ou inimizade... Não podem testemunhar os cônjuges, parentes em linha reta (ascendentes e descendentes), colaterais, até o terceiro grau de alguma das partes em litígio, seja o parentesco natural, seja o civil, por consanguinidade ou afinidade. A lei proíbe prova testemunhal de menores de 16 anos. Tal proibição é absurda! Os adolescentes já possuem responsabilidade penal nos termos do ECA, podendo responder por falso testemunho, ainda que com pena (digo, medida socioeducativa...) diferenciada. As pessoas que gozam de liberdade de testemunhar ou não são os profissionais, os ministros religiosos e as demais pessoas que se obrigam a guardar segredo sobre o que lhes for confidenciado; e as que, com seu testemunho, possam cair em desonra ou sofrer prejuízo judicial ou material, ou causar tais danos a parente de até quarto grau (a lei fala em “parente em grau sucessível”) ou algum amigo seu. Que valha o subjetivismo para se descobrir o que é “amigo” mesmo... A lei processual trata como suspeitas as testemunhas condenadas por crime de falso testemunho com sentença transitada em julgado. É uma proibição indevida, visto que a reabilitação criminal tem como função declarar por meio do Estado que o ex-condenado nada mais deve à sociedade. Já não bastava o estigma social que acompanha um ex-condenado! Só faltava a própria lei invalidar a declaração estatal de reabilitação do ex-condenado! Outra “bomba jurídica” é tomar como suspeito o testemunho de pessoa que (in verbis), “por seus costumes, não for digna de fé”. Ora, se existem até julgadores com maus costumes, nem por isso “perdem” (ao menos legalmente) a credibilidade, quanto menos se deve inferir tal julgamento subjetivo às testemunhas; até porque tal juízo de valor muda conforme o referencial de quem observa. A prova testemunhal pode ser exclusiva ou subsidiária. Só se prova por testemunhas os negócios em que o interesse amontar até dez salários-mínimos; mas, como prova subsidiária, a prova testemunhal pode ser manejada sempre. Pode ser usada inclusive como complemento de início de prova escrita; ou onde, existindo prova escrita, a parte ainda não teve acesso a ela, podendo usar a testemunha para fundamentar a alegação de que existe tal ou qual documento. 52 Aí incluído o que intervém em nome de uma parte, tutor, curador ou representante legal da parte. 53 A lei fala em “o amigo ou o inimigo capital das partes”. 138 Fatos que só podem ser provados por perícia ou documento não podem ser provados por testemunha (imagine como seria uma prova testemunhal em investigação de paternidade...). Algumas pessoas gozam de privilégio (não são prerrogativas de cargo, como querem fazer crer alguns...) de prestarem testemunho na própria residência ou no local onde trabalham, a saber: o presidente e o vice-presidente da República; o presidente do Senado e o da Câmara dos Deputados; os ministros de Estado; os ministros do STF e dos Tribunais Superiores e do TCU; o procurador-geral da República; os senadores, os deputados federais, os governadores, os deputados estaduais, os juízes dos Tribunais de segunda instância e os conselheiros dos Tribunais de Contas e, ainda, os embaixadores de países que deem tal privilégio recíproco aos embaixadores brasileiros neles atuantes. No processo, as testemunhas são inquiridas separadamente e de forma que uma não ouça as declarações da outra, para se garantir a fidedignidade do que for afirmado, sem influência ou sem interferência de um testemunho em outro. Testemunha que se cala, mente ou omite a verdade incorre no crime de “falso testemunho”, previsto no Artigo 342 do Código Penal, com reclusão de um a três anos54. Mas, se a testemunha retratar-se antes da sentença, fica isenta de pena, já que aí teremos um crime impossível, pois sua declaração (ou a falta dela) não gerará efeitos na sentença. O Código de Processo Civil autoriza à testemunha que peça reembolso pelas despesas que teve para testemunhar em juízo, devendo ser pagas pela parte que indicou a testemunha, na audiência ou em até três dias. 1.3.3.2.4 PRESUNÇÃO A presunção é fruto do desejo de se obter estabilidade nas relações jurídicas. Serve para transformar em verdade jurídica algo que sequer se sabe se é verdadeiro no mundo dos fatos. Assim, se alguém é citado, e não contesta a ação ou não comparece em juízo, presume-se que são verdadeiros os fatos contra ele alegados. Note que não se sabe se são verdadeiros ou não... mas, para que não subsista a dúvida, a lei “diz” que são verdadeiros, e pronto! Para isso, então, serve a presunção, para dar certeza a algo em que não se sabe se, realmente, ela existe. Mas o ordenamento jurídico entende que é melhor uma certeza “fabricada” que traga alguma tranquilidade do que uma incerteza que gere mais conflitos. A presunção pode ser legal ou comum (esta, também chamada de “factual”). A presunção comum decorre dos fatos, das máximas de experiência. Assim, se na hora do acidente estava chovendo, presume-se que o asfalto estava molhado. 54 Pode chegar a quatro anos se o testemunho é em processo penal ou em processo civil tendo como parte um ente público. 139 A presunção legal (que, como o nome diz, decorre de lei55) pode ser de duas espécies. Caso se permita ser ilidida por prova em contrário, diz-se que a presunção é relativa (ou juris tantum). Caso não seja admitida prova em contrário, diz-se que a presunção é absoluta (ou jure et juris). Um exemplo de presunção relativa é a de que, em havendo anotação na carteira de trabalho de alguém, este é empregado de quem anotou a carteira. Um exemplo de presunção absoluta é a de que todos conhecem a lei, todos leem o Diário Oficial e todos conhecem o que é registrado em cartório. Outro exemplo de presunção absoluta ocorre na inseminação artificial heteróloga com a autorização do marido (ou do companheiro). Não haverá o que discutir depois; será filho do autorizante. Costumo dizer em sala que presunção legal “é uma mentira que a lei diz que é verdade para que a vida seja possível”. É uma forma direta de dizer aquilo que a doutrina ameniza. Já que o direito existe para gerar estabilidade, gerar paz social, algumas situações existem em que a “mentira necessária” se faz presente. Para isso existe a presunção legal. É o caso do Artigo terceiro da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), onde está enunciado quetodos conhecem a lei. Embora seja mentira (impossível de acontecer na prática, inclusive), seria um inferno se assim não fosse tipificado, pois qualquer pessoa descumpriria a lei alegando (sem mentir) que a desconhece. Ora (outro exemplo)! Acreditar que todos conhecem tudo o que é registrado em cartório (registro público) é também uma piada das mais infames; mas assim também a lei o determina como verdadeiro! Assim, é no registro público de imóveis que consta quem é o proprietário de cada palmo de terra; ninguém pode dizer, portanto, que desconhece quem é o dono de tal imóvel. Uma vez que a propriedade tem absolutismo (pode ser defendida contra todos), é a publicidade (registro) que assim possibilita tal respeito e, se não o houver, a respectiva defesa. Falando simplesmente, é “verdadeiro” que todos os dias, ao sairmos de casa, lemos todos os Diários Oficiais (da União, Estado e Município) e ainda passamos em todos os cartórios de registro (de pessoas, imóveis, títulos e documentos) para tomarmos conhecimento de tudo o que foi registrado no dia anterior. Entendeu? Essas e outras presunções legais são chamadas de absolutas, pois não admitem prova em contrário. Existe a presunção legal relativa, em que a própria lei admite que se prove o contrário (que não é o caso tratado neste post). Ou seja, uma das maiores certezas do direito (a presunção legal) é, em verdade, uma mentira. 55 A “comoriência”, já estudada neste livro, é uma espécie de presunção legal. 140 Não se admite presunção comum do que não pode ser provado por testemunha56. Assim, compra de imóvel de valor superior a 30 salários-mínimos (que exige escritura pública como prova) não se presume. 1.3.3.2.5 PERÍCIA Perícia é prova técnica que demonstra a veracidade de um fato de acordo com as leis de determinada ciência. Pode ser judicial ou extrajudicial, a depender do ambiente onde é realizada. Abrange exames, vistorias e inspeções. Uma perícia extrajudicial pode transformar-se em judicial, desde que submetida ao crivo do contraditório. Aliás, é na seara judicial que tal prova encontra sua especial aplicabilidade, motivo pelo qual é nessa espécie de perícia que nos deteremos nesta obra. Um julgamento demanda conhecimentos técnicos que nem sempre são acessíveis ao julgador. Para decidir com base em tais conhecimentos, faz-se necessária uma manifestação técnica de alguém detentor do tecnicismo adequado, ou seja, da “carga cognitiva”. A prova que oferece manifestação sobre algo para o qual se demanda conhecimento especializado chama-se perícia, que é um exame, uma vistoria ou uma avaliação realizada por quem possui lastro cognitivo para dizer se algo “é ou não é”, de acordo com a técnica. É desejável que os peritos tenham formação na área de conhecimento, na qual haja curso superior para tal. Mas que fique claro que isso não é uma exigência legal! Aliás, a lei não exige nenhum tipo de certificação para alguém ser perito; apenas que tenha o conhecimento técnico necessário, por interpretação do parágrafo primeiro do Artigo 159 do Código de Processo Penal57, que pode tranquilamente ser utilizado para os demais ramos do direito. E, utilizando o princípio de que “quem pode o mais pode o menos”, se até para perícia médico- legal pode ser admitido o laudo de leigos, mormente para matérias mais simples; e, nestas, por interpretação sistemática, não há a necessidade de dois peritos do juízo, mas apenas um. Uma prova pericial em juízo pode comportar até três peritos: um perito nomeado pelo juízo, de confiança deste, e que deve ter tanta isenção e neutralidade na causa quanto o magistrado; e dois peritos chamados de “assistentes técnicos”, nomeados pelas partes, e de quem não se poderá opor suspeição, por serem de confiança das partes mesmo. 56 A redação deste Artigo é assim: “Art. 230. As presunções, que não as legais, não se admitem nos casos em que a lei exclui a prova testemunhal”. 57 É o texto do dispositivo: “Não havendo peritos oficiais, o exame será feito por duas pessoas idôneas, escolhidas de preferência entre as que tiverem habilitação técnica”. 141 A perícia judicial se baseia em respostas a quesitos, que são questões a serem respondidas objetivamente pelo perito no resultado do seu trabalho, chamado laudo, que poderá ser escrito ou mesmo verbal. O juiz não está obrigado a fazer produzir prova pericial; só o fará se o entender necessário, visto que, se as partes apresentarem pareceres técnicos ou documentos suficientes a se provar o que desejam, pode o magistrado não determinar perícia. O perito tem poder de ouvir as partes e as testemunhas. Não fica claro na lei se uma testemunha que mente para o perito incorre em crime de falso testemunho, havendo bons motivos para afirmarmos que sim e que não. Incorre em falso testemunho, devido à inobservância de corroborar com o juízo para a busca da verdade; e, uma vez que o perito existe para suprir um conhecimento técnico ausente do magistrado no julgamento do caso, é uma extensão deste nos limites da tomada de dados suficientes para a perícia, o que faria incorrer a testemunha silente ou mentirosa, sim, no crime de falso testemunho. Por outro lado, a testemunha que responde ao perito extrajudicialmente não está compromissada nos termos da lei, o que seria uma brecha para se afastar o crime de falso testemunho perante o perito. Não concordamos com essa tese. Achamos que testemunha tem o dever de não calar e dizer a verdade em qualquer momento da instrução processual, e não apenas na audiência de instrução. Ressalte-se que o laudo do perito não vincula o julgamento da matéria probatória, ou seja, o juiz não está preso ao conteúdo do laudo, podendo até decidir em contrário a este, desde que lastreado em outras provas que entenda melhor. Onde for determinada prova pericial médica e o periciado recusar-se a submeter-se ao exame, não é dado a este alegar, em seu favor, “falta de prova”. E o Código é expresso ao determinar que recusa à perícia médica, inclusive, supre a referida prova, de forma desfavorável àquele que se recusa à perícia. Essas novas disposições legais acabaram com a “esperteza” de indigitados pais que não se submetiam a exame de DNA alegando direito ao próprio corpo e depois alegavam que não eram pais... por falta de exame comprobatório de DNA! A perícia judicial demanda especial atenção, pois, mesmo quando conclusiva, pode apenas ainda gerar mais dúvida no deslinde da questão posta a juízo. Consideremos o seguinte exemplo: Em determinado processo, no qual foi requerida e deferida uma prova pericial, ocorreu que apenas umas das partes apresentou assistente técnico; haverá no processo, na prática, dois peritos. Ampliemos o exemplo com a seguinte situação: normalmente os laudos costumam iniciar com tópicos a respeito do curriculum do perito ou do assistente; qual juízo incidirá sobre o caso quando o laudo do perito e do único assistente 142 técnico apresentarem divergências e considerarem que o assistente técnico esteja bem mais qualificado tecnicamente que o perito? Teríamos um problema. Muito embora o laudo a ser considerado a priori seja o do perito do juízo, seria um julgamento temerário baseando-se somente nessa prova pericial. E, pior, ao cabo de todo o tempo despendido em sua produção, não somente não melhorou o convencimento do juiz, mas também se fez um elemento de confusão processual atinente a seu correto julgamento. Não nos esqueçamos de que o perito, na prática e no âmbito de sua atuação, funciona com poderes comparáveis ao do próprio juiz, mormente perante as partes, como é reconhecido até em julgamentos: “... pode o perito e os assistentes técnicos utilizar-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentosque estejam em poder de parte ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com plantas, desenhos, fotografias e outras quaisquer peças58”. (Emb. Ac. Civ. 8-57, Paraná, Rel. Des. Segismundo Gradowski, Revista Jurídica, 34:593) 1.3.3.3 ÔNUS DA PROVA É o Artigo 333 do CPC que nos informa que a prova cabe a quem alega. E isso vale para todos os envolvidos. Quem exige um direito deve prová-lo, e quem se defende igualmente deve provar. Essa é a regra. Mas, em algumas situações, como no Direito do Consumidor e no Direito Administrativo, encontramos a inversão do ônus da prova como instituto peculiar. Fazendo um paralelo com a Justiça do Trabalho, onde igualmente encontramos a mesma inversão em alguns casos, concluímos que ela é concedida normalmente quando se verifica a posição diferenciada nos polos de uma discussão posta em juízo, sempre quando um dos polos é hipossuficiente, seja técnica, seja economicamente59. Então, como corolário do princípio da isonomia, que consiste em tratar desigualmente os desiguais, concede-se o favor legis ao polo desafortunado. O fundamento é que, uma vez que a parte seja mais bem favorecida, terá melhores condições de produzir e de apresentar as provas que lhe sejam aplicáveis, o que já não é tão fácil à parte limitada. No entanto ocasiões se apresentam em que as partes, embora equilibradas em todos esses aspectos, encontram-se em desconformidade com a detenção da prova, como no caso em que a prova favorável a uma das partes se apresenta em poder da outra parte. 58 Código de Processo Civil Brasileiro - Art. 429 59 Nos casos do Estado, a inversão decorre do princípio da presunção de legitimidade dos atos administrativos. 143 Ora! Não pode a parte ficar prejudicada pela ausência de apresentação da prova que lhe seria favorável, muito embora, em princípio, fosse exclusivamente seu o ônus de apresentar suas provas; em tais circunstâncias, é o típico caso em que cabe a inversão do ônus da prova desvinculado do desnível dos litigantes, caso exista. 144 2 Obrigações 145 2 OBRIGAÇÕES O mundo jurídico regula os compromissos que assumimos, os compromissos entre pessoas (ou “intersubjetivos”, no juridiquês). Essa situação de prometermos algo e alguém acreditar nisso, que – penso – só ocorre entre seres humanos, é um dever. Um dever, portanto, é algo que nos sentimos pressionados a cumprir, por ser originado de um compromisso. Um dever pode ter várias origens. Dever familiar (tomar a bênção), religioso (pagar o dízimo, não pecar), social (pedir licença e agradecer), comunitário (comparecer à reunião da associação do bairro), moral (cumprir o prometido), afetivo (não ser desleal ao cônjuge) etc. Alguns deveres são regulados pelo direito; outros não. Os deveres regulados pelo direito ganham mais um nome: obrigação. Assim, toda obrigação é um dever, mas nem todo dever é uma obrigação. Esse capítulo trata sobre esse instituto-base de vários expedientes (contratos, família e até outros ramos não civis, como os da área administrativa e da tributária) do direito: as obrigações. Vamos a elas. 2.1 TEORIA GERAL Vários são os conceitos de “obrigação”. Pelo conceito geral, conforme já elucidamos na introdução do capítulo, é um dever, mas regulado pelo direito. Mas podemos, já dentro do próprio direito, encontrar um conceito técnico, que aqui vai: “Obrigação é o vínculo jurídico que une credor e devedor” ou, para os que preferem conceitos alongados, “Obrigação é o vínculo jurídico que une credor e devedor visando à satisfação de uma prestação deste para com aquele”. Se, ao dizer tudo isso ainda olharem para você com cara de paisagem, acrescente: “... com conteúdo apreciável economicamente” ou “com reflexo mediata ou imediatamente patrimonial”. Para mim e para a maioria, basta dizer que obrigação é o vínculo jurídico que une credor e devedor, e já está ótimo! Ufa! Para os romanos (o primeiro grande berço da codificação das obrigações), a obrigação era a união de um debitum (ou shuld como os germânicos chamaram depois), que é o dever de pagar que nasce no momento em que a obrigação é criada; e a obligatio (ou haftung), que é o dever secundário que só nasce quando o dever primário, de pagar, é descumprido; é a responsabilidade. Resumindo: à pressão pelo cumprimento chamamos debitum ou shoud; e à responsabilidade, obrigatio ou haftung, que é a consequência de tal desobediência. Houve um tempo em que tal consequência era pessoal, ou seja, o devedor inadimplente respondia com o próprio corpo, podendo ser escravizado, vendido ou morto pelo credor. Desde a lex poetelia papiria que a responsabilidade passou a ser patrimonial, ou seja, os bens do devedor respondem pelo inadimplemento – o 146 devedor que descumpriu o pacto entrega os bens “por bem” ou será forçado a tal pelo Poder Judiciário. Sim, nosso Código de Processo Civil traz a parte das “Execuções”, que são formas de coagir ou de punir o mau devedor. O resquício de execução pessoal ainda existe para o devedor de prestações alimentícias. Mas essa “execução” não é meio de pagamento da dívida, mas sim meio para que seja paga conforme ajustado, daí ser a prisão por dívidas chamada de execução indireta, pois apenas pressiona o devedor para que pague; tanto é verdade que, caso o devedor preso pague a dívida, é imediatamente solto. Cuidado! Temos uma pegadinha jurídica aqui (de pior gosto!). É que acabamos de tratar da obrigação clássica ou standard, aquela que tem débito e responsabilidade; justamente por isso é chamada de obrigação civil. Existe outro tipo de obrigação, aquela em que não encontramos a união simultânea do débito e da responsabilidade. São duas: A obrigação natural é aquela onde só existe o débito, sem a responsabilidade; ou seja: se descumprida, não pode ser exigida – Peraí! Qual valia tem uma obrigação que não pode ser exigida? Bastante! É que, se não pode ser exigida, tem ao menos dois grandes efeitos: valida qualquer negativa do credor-vítima a conceder qualquer outro crédito ao inadimplente (é por isso que, embora o nome fique limpo nos cadastros de inadimplentes cinco anos após a inscrição, a loja- vítima não está obrigada a conceder crédito a esse cliente, por melhores que sejam suas referências) e não permitir que tal obrigação, se paga, tenha seu objeto exigido de volta, já que, afinal, era uma obrigação! É o caso da dívida prescrita. Por exemplo: você não mais está obrigado a pagar, mas, se o fizer, não pode pedir o que pagou. A outra obrigação “não standard” é uma (estranhíssima!) que só possui responsabilidade, sem haver o débito. É o que ocorre, por exemplo, com a figura do avalista ou do fiador. 2.2 ELEMENTOS DAS OBRIGAÇÕES A obrigação é um instituto formado por quatro elementos. Figura 43 - Elementos das obrigações 147 Credor (ou sujeito ativo da obrigação) é a pessoa que tem o poder de exigir o cumprimento da obrigação; devedor (ou sujeito passivo) é a pessoa com a incumbência de cumprir a obrigação. Credor e devedor são chamados elementos subjetivos ou pessoais da obrigação, já que são pessoas. Figura 44 – Credor Figura 45 - Devedor Objeto é aquilo sobre o que recai a obrigação. Divide-se em direto e indireto. Alguém que não tinha o que fazer criou essa diferenciação entre objeto direto e indireto. Acredite: não serve para nada na prática, exceto quanto a ser cobrado em provas mesmo. Então, vamos à inutilidade acadêmica. O objeto direto é a atividade requerida pelo credor; é o dar, fazer ou não fazer. É o “verbo” da obrigação. O objeto indireto, ou mediato, é O QUE será dado, feito ou abstido. Assim, se José tem que entregar um carro a Carlos, o objeto direto é a entrega. O objeto indireto é o carro. Se Maria tem que lavar as roupas de Karla, a lavagem é o objeto direto, eas roupas tornadas limpas são o objeto indireto. O objeto indireto é também chamado de “bem da vida”. O comportamento (no direito das obrigações, os sujeitos transacionam comportamentos!) do devedor orientado em cumprir o objeto chama-se prestação. 148 Daí a doutrina separar o objeto entre objeto direto (comportamento) e objeto indireto (bem da vida a ser entregue, feito ou impedido). Esse objeto deverá ter os mesmos requisitos dos objetos dos negócios jurídicos, a saber: precisa ser lícito, possível, determinado ou ao menos determinável60. Além dos três elementos expostos, existe ainda um, chamado elemento imaterial (ou elemento sentimental, ou elemento ideal), que representa o vínculo psicológico existente entre credor e devedor. É por causa desse vínculo que o credor se sente com certo “poder” sobre o devedor, e daí advém a tranquilidade para poder cobrar o devedor; por outro lado, é o elemento sentimental que faz que o devedor se ache sob a sujeição do credor, que se sinta angustiado quando deve, e não paga. Existe uma divisão do objeto quanto a seu conteúdo, que são dois institutos: um débito e uma responsabilidade. Débito é que deve ser obtido pelo comportamento do devedor. Responsabilidade é a sanção pelo descumprimento do débito. Assim, entregar um carro sob pena de multa de 10% encerra tais componentes: a entrega do carro é o débito; a possibilidade de imposição de multa de 10% é a responsabilidade. Obrigação civil é a que contém débito e responsabilidade; é o padrão; quando, na tratativa, só há débito, temos uma obrigação natural; pode acontecer ainda de só haver uma responsabilidade, sem débito, como no caso do aval e da fiança (não existindo nome específico para esse tipo de obrigação, podemos chamá-la tão somente de obrigação sem débito). Lembramos que incapaz pode ser sujeito de obrigação. A responsabilidade precisa ter sujeito capaz em seu polo passivo para que possa ser operacionalizada, e nada impede que recaia em pessoa diferente da que está obrigada à prestação. Assim, um menor, até um nascituro, ou alguém com enfermidade mental, podem ser devedores de obrigação, mas, em caso de descumprimento, outrem será responsabilizado em seu lugar, como regra; um menor dono de uma propriedade pode ser devedor de IPTU, mas serão seus pais os sujeitos passivos da cobrança, em caso de inadimplemento. Detalhe: em caso de prática de infração, o próprio menor, mesmo incapaz, pode ser responsabilizado civilmente, como estudaremos no capítulo acerca de responsabilidade civil. 2.2.1 OBRIGAÇÃO CIVIL E OBRIGAÇÃO NATURAL Existem situações em que o “débito” e a “responsabilidade” se separam em um objeto. As obrigações descumpridas geram a responsabilidade, que é a possibilidade de ser coagido pelo Estado, por meio do Poder Judiciário, a cumprir a obrigação. 60 Remetemos o leitor ao estudo do objeto dos negócios jurídicos, estudados na “teoria geral”. 149 As obrigações naturais possuem débito, e não possuem responsabilidade. São também chamadas de obrigações imperfeitas ou incompletas. Se forem cumpridas, o devedor não pode pedir de volta o que pagou sob a desculpa de que “era obrigação natural”; diz-se que não gera “direito à repetição”; o credor pode retê-la; é a exceptio solutio retentio. O exemplo prático de obrigação natural é a dívida de jogo. Se você ganhar no jogo do bicho (uma contravenção tolerada), o banqueiro fica obrigado a lhe pagar o prêmio; mas, se ele não pagar, não existe ação que o force a fazer tal pagamento (como dissemos, é uma contravenção...). Mas, se ele pagar, o pagamento é bom, e o recebimento é legítimo. Não pode o banqueiro do jogo do bicho pedir de volta o prêmio que pagou. (Artigos 882 e 883 do Código Civil). Outros exemplos de obrigações naturais são as dívidas prescritas e os juros não estipulados. Existem também obrigações que só contêm responsabilidade, a exemplo da fiança! Olha só: o fiador, em princípio, não é obrigado a pagar nada; quem tem que pagar é o afiançado. Mas, se este não pagar, o fiador pode ser coagido pelo Judiciário a pagar, ou seja, nessa obrigação só existe para o fiador a responsabilidade, e não o débito, que cabe ao afiançado. A obrigação clássica, em que encontramos “débito” e “responsabilidade” unidos, é chamada de “obrigação civil”. 2.3 FONTES DE OBRIGAÇÕES A obrigação nasce de lei ou nasce de um negócio jurídico, a saber, da vontade das partes. A lei é fonte das obrigações, inclusive quando enuncia a existência do ato ilícito como também gerador de obrigações, bastando lermos os Artigos 186 e 927 do Código Civil. A lei, em verdade, não cria obrigações; apenas molda hipóteses que, se ocorrerem, redundarão em obrigação. Os atos negociais podem ser de diversas espécies, tais como testamento, casamento e contratos. 2.4 CLASSIFICAÇÃO Visando efeitos didáticos e práticos, as obrigações são classificadas para que se encaixem em cada um dos sistemas jurídicos, no direito das obrigações. Antes de classificarmos um instituto, precisamos conhecer os critérios de classificação dele, que são a classificação básica, classificação quanto à atividade (ou modalidade), quanto ao objeto, quanto ao elemento acidental, e quanto à finalidade. Quanto à classificação básica, a obrigação pode ser simples ou complexa. Quanto à atividade, a obrigação pode ser de dar coisa certa, dar coisa incerta, de fazer e de não fazer. Na classificação quanto ao objeto, as obrigações podem ser cumulativas, alternativas, facultativas, divisíveis, indivisíveis, líquidas e ilíquidas. No que toca aos sujeitos, as obrigações podem ser fracionárias ou solidárias. Quanto ao elemento acidental, a obrigação pode ser condicional, “a 150 termo”, e modal; e, quanto à finalidade, a obrigação pode ser “de meio”, “de resultado” e “de garantia”. 2.4.1 CLASSIFICAÇÃO BÁSICA Obrigação simples são aquelas em que encontramos UM credor, UM devedor, UM objeto e UM vínculo. Basta que em qualquer dos elementos haja mais de um ocupante para que tenhamos uma obrigação complexa (exemplo: dois devedores, um credor, um objeto; ou um devedor e um credor e três objetos etc.). As obrigações simples também são chamadas de singulares, e as obrigações complexas também são chamadas de compostas ou plurais. 2.4.2 CLASSIFICAÇÃO QUANTO À ATIVIDADE Trata-se da primeira classificação das obrigações, chamada “quanto à atividade” ou “modalidade”; está regulada nos Artigos 233 a 251 do Código Civil. Para cada uma dessas modalidades, há um rol de consequências para cumprimento e descumprimento (com e sem culpa). De acordo com o comportamento transacionado na obrigação, surge essa classificação. Basicamente o comportamento transacionado pode ser positivo (fazer ou dar algo) ou negativo (não fazer algo). A obrigação positiva de dar se subdivide em dar coisa certa ou dar coisa incerta. Embora o Código especifique cada consequência para cada obrigação, podemos notar que três ocorrências se repetem; são as que sintetizo: se for cumprida, extingue-se (e todos ficam satisfeitos); se for cumprida com culpa, gera perdas e danos (é uma reparação+sanção); se for descumprida sem culpa, resolve a obrigação (desfaz-se a relação, restituindo-se ao estado inicial). Observações finais: “Perdas e danos” significa o que a vítima perdeu e o que deixou de ganhar (Art. 402); e “resolver” a obrigação significa “votar ao status quo ante”, ou seja, voltar ao estado anterior, à pré-obrigação. Na prática, é assim: caso o comprador tenha pagado algo adiantado, receberá de volta e não mais pagará nada. O vendedor, igualmente, nada mais deve entregar ao comprador. 2.4.2.1 OBRIGAÇÃO DE DAR COISA CERTA A obrigação de dar é aquela cujo conteúdo é transferir, entregar ou restituir algo. “Dar coisa certa” é a entrega de coisa determinada, identificada, individualizada.Sabe-se QUAL objeto será entregue. Aqui surge a aplicação prática da ideia de bem infungível, ou seja, bem insubstituível, único no universo. Caso, em uma obrigação de dar coisa certa, o devedor entregue a coisa, a obrigação se extingue, pois houve pagamento. 151 Se a coisa não for entregue sem culpa do devedor, resolve-se a obrigação, ou seja, a obrigação se extingue, mas por absoluta impossibilidade. Nada mais o devedor terá que pagar. Caso tivesse havido pagamento anterior da coisa, o pagamento deveria ser restituído, visto que a resolução leva a situação dos fatos ao estado anterior à existência da obrigação. Mas pode ocorrer de a obrigação não ser cumprida por culpa do devedor (imagine que este, por descuido, faz a coisa perecer, por exemplo...); nesse caso, o devedor pagará ao credor o equivalente em dinheiro da coisa perdida, e ainda perdas e danos. Pode acontecer que a coisa não se perca, mas seja deteriorada (por exemplo: o objeto é a entrega de um fusca 1980 íntegro, placa JJJ-0101; e este, ao ser entregue, está com a lataria amassada), nesse caso, duas situações se abrem. Se não houve culpa do devedor na deterioração da coisa, cabe ao credor escolher: ou aceita a coisa do jeito que está e abate no preço que pagou, ou resolve a obrigação, ou seja, recebe o dinheiro de volta e esquece o fusca... Mas, se houve culpa do devedor na deterioração do bem, o credor receberá perdas e danos pela expectativa frustrada e, além das perdas e danos, terá ainda duas opções: receber a coisa do jeito que está; ou não querer mais a coisa (rejeitá- la) e receber o equivalente em dinheiro. Ou seja, nesse caso, dois valores são devidos ao credor: P&D e a coisa deteriorada, ou P&D e o equivalente em dinheiro da coisa. É importante notar que, sempre que houver culpa do devedor, haverá pagamento de perdas e danos! Até a tradição, o dono da coisa goza do bônus e arca com o ônus. Assim, se um devedor precisa entregar em um ano uma égua, e esta fica prenha em tal tempo, duas situações ocorrerão caso haja nascimento com vida do cavalinho: caso no momento da entrega a égua esteja prenhe, pertence ao receptor (credor) a égua e o futuro cavalinho; mas, caso já tenha ocorrido o lançamento antes da entrega, o cavalinho pertencerá ao devedor. 2.4.2.2 OBRIGAÇÃO DE DAR COISA INCERTA É a entrega de algo identificado pelo gênero e pela quantidade, ou seja, sabe-se “O QUE de QUANTO” de algo que será entregue, mas não se sabe “qual” objeto será entregue. A ideia de coisa incerta está ligada à ideia de bem fungível, ou seja, bem substituível um pelo outro sem prejuízo de finalidade. A coisa a que se refere o objeto da obrigação só será incerta até o momento da escolha da coisa e da ciência desta à outra parte (tal ato de escolha e de comunicação chama-se “concentração do débito”). Convenhamos que, em algum momento, a coisa deverá se tornar certa! Senão como e por que se vai pagá-la? Antes da escolha não há que se falar em perda da coisa, pois o gênero nunca perece (genuns nunquam perit, ou genun non perit, segundo o brocardo latino). A 152 partir do momento em que a coisa se torna certa, o cumprimento (ou não) da obrigação será regido pelas regras já estudadas de “dar a coisa certa”. 2.4.2.3 OBRIGAÇÃO DE FAZER As obrigações de fazer também são chamadas de “prestações de fato”. Podem ser personalíssimas (também chamadas de infungíveis, imateriais ou intuitu personae), ou impessoais (também chamadas de fungíveis, materiais ou não personalíssimas). Personalíssima é a obrigação que só pode ser cumprida por determinada pessoa e por nenhuma outra. Imagine que você contrata um show do Roberto Carlos; é aceitável que no dia do show ele não compareça e envie outra pessoa para cantar no lugar dele? Pois é! Essa é a obrigação personalíssima. Obrigação não personalíssima é aquela em que o que importa é o resultado do ato, não importando quem o pratique. Imagine que você contrata serviço de conservação (limpeza) ou vigilância em uma empresa. Interessa para você QUEM vai realizar as limpezas ou fazer a vigilância? Não! O que lhe interessa é o local limpo e vigiado. Daí tais obrigações de fazer serem chamadas de não personalíssimas. Tanto nas obrigações personalíssimas quanto nas não personalíssimas duas situações se assemelham: caso o devedor cumpra a obrigação, esta se extinguirá, já que houve pagamento. Caso não seja cumprida sem culpa do devedor, resolve-se a obrigação, e fica tudo como estava antes, ou seja, o devedor não cumpre, e o credor não paga e, se pagou, recebe o pagamento de volta. A diferença ocorre no caso de descumprimento. Caso o devedor não cumpra a obrigação personalíssima por culpa sua, deverá pagar perdas e danos ao credor, por causa do “furo” e da expectativa frustrada que causou. No caso da obrigação não personalíssima descumprida com culpa do devedor, pode o credor mandar que outra pessoa realize o ato, às custas do devedor (isso mesmo, outra pessoa faz, e o devedor culpado paga a conta! O procedimento para tal consta nos Artigos 634 a 637 do CPC); e, além disso, fica devendo ao credor o pagamento de perdas e danos, já que houve culpa. O que explicamos acima tem como base o Código Civil, que começou a ser escrito no início da década de 70. De lá para cá já houve avanço na lei processual civil, que aliás vive em constante reforma. E um dos avanços é o Artigo 461 do Código de Processo Civil, que prevê a tutela específica para a obrigação de fazer; e o Artigo 461-A, que tem como objeto a tutela para a obrigação de dar. No caso da obrigação de dar, o juiz pode determinar qualquer medida que conduza à satisfação da obrigação, inclusive multa diária; e, no caso de obrigação de dar coisa, é dado ao juiz determinar busca e apreensão da coisa. 153 Portanto os Artigos 233 a 251 do Código Civil precisam ser lidos conjuntamente com os Artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil. 2.4.2.4 OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER Exemplo de obrigação de não fazer é a dos egressos daquele programa Big Brother Brasil: durante determinado tempo, não podem dar entrevista para nenhuma outra emissora de televisão, lembra? Ou a cláusula contratual que obrigue uma loja a não fazer concorrência com uma determinada empresa, ou ainda a cláusula da convenção condominial de não subir muro além de determinada altura para não tapar o Sol para o vizinho etc. As obrigações de não fazer, ou de abster-se, ou negativas, têm o seguinte mecanismo: caso o devedor cumpra a obrigação (ou seja, não faça o que não deve), extingue-se a obrigação, já que houve pagamento. Se o devedor descumpriu sem culpa, extingue-se a obrigação. O Artigo 250 do CCB foge, aparentemente, da lógica geral das obrigações; é que, por regra, uma obrigação descumprida sem culpa do devedor resolve-se. Ocorre que o Artigo 250 afirma que a obrigação de não fazer, se descumprida sem culpa, “extingue-se”, ao invés de resolver-se? Bem! É simples: não existe, tecnicamente, como se desfazer algo “irreversível”. Como se desfaz a revelação de um segredo? Devido a tal irreversibilidade, inexiste “resolução” de tal tipo de obrigação. Caso o devedor descumpra a obrigação por culpa sua, pode o credor exigir que o devedor desfaça o que fez (se for possível), ou contratar alguém para desfazer às custas do devedor (o procedimento para tal se encontra no Artigo 643 do CPC); e, como houve culpa, pagará perdas e danos ao credor. 2.4.3 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO OBJETO Obrigações cumulativas são aquelas em que existe mais de um objeto, que devem sem cumpridos simultaneamente. Basta que não se entregue um dos objetos para que a obrigação não esteja cumprida. É o caso do devedor que deve entregar três vacas do credor, uma de cada raça. Se entregar apenas duas, não cumpriu a obrigação. As obrigações alternativas contêm mais de um objeto também, mas existe escolha sobrequal dos objetos cumprir; no silêncio da tratativa, cabe ao devedor a escolha. Vale aqui a partícula “OU”. OU entrega uma vaca, OU entrega um boi. As obrigações alternativas também são chamadas de disjuntivas, segundo alguns autores. As obrigações facultativas contêm apenas um objeto, mas desde o momento da contratação já consta um outro objeto que o substituirá caso seja impossível pagar 154 o objeto principal. Aqui não há cumulação nem escolha, mas sim uma ordem de preferência quanto aos objetos. As obrigações são chamadas de divisíveis ou indivisíveis a depender de tal qualidade do objeto. Que valham quanto à indivisibilidade as três formas estudadas quando do estudo dos bens indivisíveis (indivisibilidade natural, convencional ou legal)! As obrigações são líquidas quando já existe determinabilidade quanto ao seu objeto, inclusive com possibilidade de valoração em dinheiro; e é ilíquida quando ainda não se tem determinado o objeto da obrigação. 2.4.4 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AOS SUJEITOS Só se analisa a obrigação quanto ao sujeito quando ocorre pluralidade de sujeitos, a saber, quando o polo ativo ou passivo, ou os dois, possuem mais de um sujeito. Basicamente, as obrigações podem ser, nessa classificação, fracionárias ou solidárias. Uma grande briga na doutrina é sobre o significado de “obrigação conjunta”. Alguns autores dizem que são aquelas que devem ser cumpridas por várias pessoas, mas ao mesmo tempo (como no caso de orquestra), ou obrigações com vários objetos, que devem ser entregues ao mesmo tempo, como nas obrigações cumulativas. Obrigações fracionárias e solidárias são espécies de obrigações “parciárias”, ou seja, aquelas em cujo direito e/ou dívida são parciais para cada um dos sujeitos. 2.4.4.1 OBRIGAÇÕES FRACIONÁRIAS Neste tipo de obrigação, quase regra quando se trata de sucessões; cada sujeito é responsável somente por uma parte do objeto; existe a fracionariedade ativa, passiva e mista. Na fracionariedade ativa, encontramos mais de um credor, e apenas um devedor – cada credor só pode cobrar uma parte do objeto; assim, se A, B e C são credores fracionários do devedor, e o objeto de tal dívida é 900 reais, cada credor só pode cobrar, no máximo, 300 reais. Na fracionariedade passiva existe um único credor e mais de um devedor, cada um só devendo uma parte do objeto. Assim, se X, Y e Z são devedores fracionários de 1.500 reais, cada um só está obrigado a pagar 500 reais, nada mais. Na fracionariedade mista temos pluralidade de credores e de devedores. E cada credor só pode cobrar uma fração do objeto e, ainda assim, só na fração correspondente da dívida do devedor solidário. Se Z, B e C são credores solidários de X, Y e Z, com objeto de 600 reais, e A encontra Z na rua, só pode cobrar deste 1/3 de 1/3 do objeto, ou seja, 66,66 reais, pois o credor só pode cobrar um terço (200), e cada devedor só é instado a pagar um terço disso (66,66). 155 2.4.4.2 OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS As obrigações solidárias são as mais comuns em que existe mais de uma pessoa em um dos polos da relação obrigacional. É uma obrigação chamada de “mística” pela série de peculiaridades que apresenta. Na solidariedade (vem de solidum, “sólido”), os sujeitos são tratados como se um só fossem. Uma dica inicial: para melhor estudar as obrigações solidárias, é interessante dividir os Artigos 264 a 285 em três grupos: O primeiro grupo são os artigos com regras comuns, visto que tratam sobre o instituto solidariedade; é formado pelos Artigos 264 a 266. O segundo grupo são os artigos que contêm “regras-espelho”, ou seja, o legislador exarou a mesma norma para a solidariedade ativa e passiva, mas, se sabe lá por quê, resolveu colocar um artigo para cada espécie de solidariedade, ao invés de unificar cada par de artigo. Assim, os Artigos 267, 269, 270, 272 e 273 correspondem, para a solidariedade ativa, ao que os Artigos 275, 277, 276, 283 e 281 apregoam, respectivamente, para a solidariedade passiva, e assim por diante. O terceiro grupo trata de regras exclusivas para cada uma das duas espécies de solidariedade, a saber: para a solidariedade ativa, os Artigos 268, 271 e 274; e, para a solidariedade passiva, os Artigos 278, 279, 280, 282 e 284. Tal divisão fica mais bem demonstrada no desenho abaixo, que sempre uso em sala de aula: 156 Figura 46 - Artigos da solidariedade, organizados Só existe solidariedade quando a lei determina ou as partes assim contrataram. No silêncio, e em havendo mais de uma pessoa em algum dos polos, a presunção é de que são fracionárias; nunca solidárias! 2.4.4.2.1 SOLIDARIEDADE ATIVA Existe solidariedade ativa quando qualquer dos credores puder cobrar a dívida por inteiro. 157 Se alguém é devedor em uma dívida em que há solidariedade ativa por parte dos credores, a qualquer um destes o devedor poderá pagar; ele escolhe. Mas, se algum dos credores demandar esse devedor em juízo, somente a este credor o devedor deverá pagar. Qualquer dos credores que cobrar uma parte da dívida continua podendo cobrar o que restar. Se o devedor for cobrado por um dos devedores solidários, só pode defender-se com defesas pessoais impostas a esse credor individualmente, ou com alguma defesa imposta a todos. Imagine que A, B e C são credores solidários de D. Imagine que somente C resolve cobrar D (é possível, já que há solidariedade ativa!). Mas imagine que D é credor de C, por outra dívida, que em nada tem a haver com essa aí. Ora, assim que C for cobrar D, este pode dizer “Olha C, você está me cobrando mil reais, mas você me deve mil reais também, lembra? Então, dê-se por pago, e não vou lhe entregar dinheiro algum, ok?”. Pronto! A isso chamamos defesa pessoal ou, como consta na lei, “exceção pessoal”. Agora, se A for cobrar D, só resta a D pagar-lhe mesmo. D não pode alegar “Não vou lhe entregar nada, A; pois o C, seu amigo, deve a mim!”, visto que não é dado ao devedor cobrado por um credor solidário opor exceção pessoal cabível contra outro credor. Agora, se A, B e C também forem devedores de D, qualquer deles que for cobrar D poderá voltar de mãos abanando, já que D terá uma exceção geral: “Vocês três estão me devendo! Voltem!”; e exceções gerais podem ser opostas a qualquer dos credores. Caso haja pagamento de perdas e danos pelo devedor, os credores continuam solidários, ou seja, qualquer dos credores poderá cobrar os demais por inteiro. Assim, se o cocredor recebe a dívida total de novecentos reais, deve entregar trezentos reais a cada um dos dois outros cocredores. Deverá igualmente pagar trezentos para cada um se, ao invés de receber os novecentos reais, perdoar a sua parte (e receber só seiscentos); ou perdoar totalmente a dívida; nesse último caso, pagará aos outros dois cocredores a partir de seu próprio bolso. Nota-se que o Código protege aos credores, visto que, em caso de demanda entre um dos cocredores e o devedor comum, assim é o efeito da sentença: se o julgamento for contrário ao credor, os outros credores continuam podendo cobrar o devedor. Mas, se o credor obtiver uma sentença favorável, tal benefício se estende aos outros credores. Ou seja, os credores que não demandam o devedor em juízo “nunca perdem”. O julgamento só será contrário a todos os credores se o devedor provar exceção pessoal dele contra todos, seja contra cada um individualmente, seja contra todos em conjunto. 158 2.4.4.2.2 SOLIDARIEDADE PASSIVA Existe solidariedade passiva quando qualquer dos devedores puder ser cobrado pela totalidade da dívida. É a mais comum; ocorre em 99,9% de todos os contratos bancários onde existe mais de um devedor. Qualquer pagamento efetuado por um codevedor extingue a dívida até o montante do pagamento, podendo ser cobrado, depois, pelo restante desta. Se A, B e C, solidariamente, forem devedores de D, D pode cobrar o valor todode qualquer deles, de todos ou só de dois deles, à sua escolha. O credor pode separar um ou mais devedores da solidariedade; por exemplo, se D quiser, pode tornar a dívida solidária somente entre B e C, exonerando A da solidariedade, ou seja, tornando a parte de A fracionária. Qualquer dos devedores que pagar a dívida toda pode cobrar dos outros codevedores o montante cabível a cada um. Caso qualquer dos devedores solidários queira aumentar a dívida, agravando a situação de todo por tornar o débito maior, não pode fazê-lo sem aquiescência dos demais; é uma norma até óbvia, mas consta da lei. O devedor solidário cobrado só pode opor ao credor exceções (defesas) pessoais que sejam próprias ou comuns a todos os devedores. Não pode o devedor cobrado opor exceção pessoal pertencente a outro credor. Imagine que A, B e C são devedores solidários de D. Imagine que D resolve cobrar somente C (lembre-se que é possível, já que há solidariedade passiva!). Mas imagine que D também é devedor de C, por outra dívida, que em nada tem a ver com essa aí em tela. Ora, assim que D for cobrar C, este pode dizer: “Olha, D, você está me cobrando quinhentos reais, mas você me deve quinhentos reais também, lembra? Então, dê-se por pago, e não vou lhe entregar dinheiro algum, ok?”. Pronto! A isso chamamos defesa pessoal ou, como consta na lei, “exceção pessoal”. Agora, se D for cobrar A, só resta a A pagar-lhe mesmo! A não pode alegar: “Não vou lhe entregar nada, D, pois você está devendo a mesma quantia para o meu amigo C!”, pois não é dado ao devedor solidário cobrado opor exceção pessoal que favoreça outro devedor. Agora, se A, B e C, conjuntamente, também forem credores de D, qualquer deles que for cobrado por D poderá alegar a defesa, já que esta é uma exceção geral: “Você está devendo a nós três! Circulando!...”; e exceções gerais podem ser opostas por qualquer um dos devedores. Pode haver renúncia à solidariedade, ou seja, o credor pode fracionar a obrigação, se o desejar. Com a renúncia da solidariedade quanto a apenas um dos devedores solidários, o credor só poderá cobrar do beneficiado a sua quota na 159 dívida, permanecendo a solidariedade quanto aos demais devedores, abatida do débito a parte correspondente aos beneficiados pela renúncia.61 Lembramos que “a renúncia à solidariedade diferencia-se da remissão62, em que o devedor fica inteiramente liberado do vínculo obrigacional, inclusive no que tange ao rateio da quota do eventual codevedor insolvente, nos termos do Art. 284” (Enunciado 350 da 4JDC). Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores; tal mandamento garante a liberdade do credor de demandar a quem bem entender. Ainda sobre renúncia da solidariedade, diz o enunciado 351 da 4JDC, sobre o Artigo 282, que “a renúncia à solidariedade em favor de determinado devedor afasta a hipótese de seu chamamento ao processo63”. Caso um dos devedores solidários obre com culpa (“pise o tomate, marque touca etc.”) e por causa disso a prestação não seja paga, assim será a consequência: todos os devedores continuarão obrigados pela prestação (é óbvio!), mas pelas perdas e pelos danos só responde o culpado. O Código não especificou se as perdas e os danos devem ser cobrados somente do devedor culpado ou se são cobrados de todos; e o culpado, em regresso, reembolsa ao(s) devedor(es) que pagá-los. Somos alinhados com a segunda posição; qualquer pensamento em contrário forçaria o credor a descobrir de quem foi a culpa para só então poder cobrar as P&D; até porque assim é o mecanismo dos juros de mora, ou seja, todos pagam e se reembolsam junto ao culpado. O devedor que paga a dívida toda pode reembolsar-se da parte que não lhe cabia do todo; deve cobrar por rateio; e, nesse rateio, contribuirão também os que foram liberados da solidariedade pelo credor. Caso algum dos devedores seja insolvente, sua parte igualmente será suportada por rateio, dentre os demais. Existem casos em que a dívida interessa a apenas um dos devedores. Por exemplo, imagine que José aluga uma casa para morar, mas o locador exige dois fiadores. Nesse caso, teremos três devedores solidários na obrigação (Carlos e os dois fiadores). Imagine que Carlos se torna inadimplente, e o credor cobra do primeiro fiador a dívida total. Nesse caso, como a dívida interessou somente a Carlos (o que os fiadores ganhariam pagando a dívida?), o interessado, no caso Carlos, deverá responder inteiramente por ela junto aos outros codevedores. Estudemos sobre obrigações solidárias transmitidas por herança. 61 Enunciado 349 da 4JDC 62 É o mesmo que perdão da dívida. 63 O chamamento ao processo é uma intervenção de terceiro em que um codevedor, cobrado, pode fazer que os demais devedores entrem na lide para que a sentença lhes tenha efeito. 160 No caso de transmissão por herança, cada herdeiro, seja do credor, seja do devedor solidário, divide com os demais o que caberia ao credor ou o que o devedor teria a pagar. No caso de solidariedade ativa no valor de mil reais, em que um dos cocredores falece deixando dois herdeiros, cada um dos sucessores pode cobrar quinhentos reais do devedor do de cujus; assim como, no caso de solidariedade passiva cujo objeto sejam duzentos reais, e o devedor faleceu deixando quatro herdeiros, cada um só pode ser cobrado no montante máximo de cinquenta reais – esse é o nosso entendimento. Outro entendimento enuncia que, em havendo falecimento de um devedor solidário, há de existir divisão do débito que seria cabível cobrar do devedor de cujus, ou seja, a morte extinguiria a solidariedade passiva em relação ao que faleceu, e os herdeiros só poderiam ser cobrados, na proporção de seu quinhão hereditário, no montante dessa parte já fracionada da dívida, que seria exigível do de cujus. Convenhamos: de onde partiu a ideia de que a morte faz que a obrigação se torne fracionária em relação ao falecido? Por isso entendemos que as quotas-partes da herança devem ser “transportadas” para o objeto da dívida, e cada herdeiro poderá cobrar ou ser cobrado nesse objeto, na proporção do quinhão que lhe cabe na herança. É óbvio que, em qualquer das teorias que se tomem, o devedor só pagará até o montante que recebeu de herança, ou, como lemos no CCB, “só responderá nos limites das forças da herança64”. Por falar em “limites das forças da herança”, uma terceira interpretação pode surgir: cada devedor solidário pode ser cobrado pela dívida toda, mas só responderá até o quinhão que recebeu do de cujus. Tal divergência vem da redação imprecisa no que toca à herança de dívida solidária passiva, a saber: “Art. 276. Se um dos devedores solidários falecer deixando herdeiros, nenhum destes será obrigado a pagar senão a quota que corresponder ao seu quinhão hereditário, salvo se a obrigação for indivisível; mas todos reunidos serão considerados como um devedor solidário em relação aos demais devedores”. RESUMINDO: São as três regras gerais: 1. Na solidariedade, cada sujeito é responsável pela dívida toda – seja no polo ativo e/ou passivo da obrigação (264); 64 Ou, em latim, intra vires hereditatis. 161 2. Na dúvida, a obrigação é fracionária, pois a solidariedade não se presume: nasce da lei ou da vontade das partes (265); 3. Pode ser solidária para alguns sujeitos, e fracionária para outros, e a solidariedade pode ser condicionada ou a termo (266); As “regras-espelho” são cinco: 1. Cada credor solidário pode cobrar a dívida toda, e cada devedor solidário pode ser cobrado, igualmente, pelo todo. (artigos 267 e 275) 2. Quem recebe parte do objeto de obrigação solidária, ou quem paga parte deste, pode cobrar o restante ou ser cobrado pelo que resta, ou seja: ainda que diminuídoem parte, o objeto continua solidário enquanto algo dele restar (artigos 269 e 277); 3. O credor ou devedor que falece deixando herdeiros, deixa para este a cota- parte do que lhe cabe na herança em relação ao objeto da obrigação, seja para cobrar ou ser cobrado (artigos 270 e 276); 4. Aquele que recebe o objeto da obrigação solidária precisa entregar a cota- parte dos outros – aquele que paga o objeto da obrigação solidária pode ressarcir-se junto aos codevedores, na cota-parte de cada um (artigos 272 e 283); 5. Nenhum credor solidário pode sofrer exceção pessoal (Ex.: “Não pago a você porque seu colega, cocredor, me deve”), e nenhum codevedor solidário pode impor a um credor solidário uma exceção cabível a outro codevedor (Ex.: “Não pago a você porque meu colega codevedor é seu credor em outra obrigação”) (artigos 273 e 281); As três regras especiais para o credor: 1. Se um credor solidário cobrar judicialmente a dívida, só este pode dar quitação válida (268); 2. Ainda que o objeto vire perdas e danos, estas continuarão solidárias (271); 3. Se um dos credores for processado por algum devedor solidário, se perder perde sozinho, se ganhar, ganha para todos os credores, a menos que o motivo lhes ataque também (274); As cinco regras especiais para o devedor: 1. Nenhum devedor pode agravar a dívida sem concordância dos outros codevedores (278); 2. Direta ou indiretamente, só quem deu causa à mora ou inadimplemento responde pelas consequências disto. Se for algo diferente de dinheiro o que faltou, todos arcam com o principal, e só o culpado paga a consequência do excesso. Se o objeto for dinheiro, todos respondem pelo valor total (principal e consectários), e depois os inocentes se ressarcem junto ao culpado (artigos 279 e 280); 162 3. Os devedores, um ou vários, podem ser eximidos da solidariedade pelo credor (282); 4. Se um dos devedores solidários não pagar, até o exonerado arca com a parte deste (284); 5. Se só um credor tiver a ganhar com a dívida, só este ressarce ao codevedor que arcar com o pagamento (285). 2.4.5 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO ELEMENTO ACIDENTAL A obrigação pode ser condicional quando sua exigibilidade está subordinada a um evento futuro e incerto; será uma obrigação a termo quando a sua exigibilidade submeter-se à ocorrência de um evento futuro e certo. E será uma obrigação com encargo ou modal quando, atrelada à exigibilidade, advier uma maneira especial de cumprimento ou o credor obrigar-se a algo, de forma suplementar, para fazer jus a exigir o cumprimento por parte do devedor. 2.4.6 CLASSIFICAÇÃO QUANTO À FINALIDADE A obrigação será chamada “de meio” quando o objeto da obrigação de fazer for a aplicação de toda a diligência, técnica e conhecimento para a consecução de um resultado. Não é objeto do cumprimento a obtenção do resultado, embora este seja desejável. É o caso da obrigação assumida pelo advogado ou pelo médico, quando esses profissionais são contratados para diligenciar a vitória e a cura, mas, caso tais bons resultados não ocorram, o simples fato de os profissionais haverem aplicado a diligência, a técnica e o conhecimento para tal fim já os torna cumpridores da obrigação. A obrigação será “de resultado” quando o objeto for o atingimento de um estado final, um resultado, sem o qual não se dará o cumprimento da obrigação. É o caso do engenheiro e da maioria de atividades contratadas, como a construção de um muro em uma propriedade, por exemplo. As obrigações “de garantia” (também chamadas de “obrigações de segurança”) são sempre acessórias e servem para assegurar o cumprimento de outras obrigações. É o caso da obrigação de fiança e o aval. 2.4.7 CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO TEMPO DE CUMPRIMENTO Quanto ao tempo de cumprimento, as obrigações podem ser instantâneas (ou momentâneas) – São aquelas em que o cumprimento é efetuado em um único ato ou tempo; Obrigações fracionadas – É aquela cujo objeto é “picado” em pagamentos separados; Obrigações diferidas – É aquela cujo adimplemento é deslocado para data posterior, como a venda faturada, com pagamento a prazo, de 30 dias; Obrigações continuadas – São aquelas em que o cumprimento se estende 163 no tempo. O cumprimento dura relativo lapso de tempo; e, enquanto tal tempo flui, a obrigação é cumprida; por exemplo: a obrigação de o depositário manter a coisa em boa guarda; obrigações de trato sucessivo – São obrigações que “zeram ”a cada pagamento, a exemplo do pagamento de condomínio ou do aluguel por tempo indeterminado, em que o pagamento é para o mês vincendo. 2.5 TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES Um dos princípios do direito civil é a circulação de riquezas. E uma das boas formas de circular riqueza é promovendo a transmissão das obrigações. Tal transmissão ocorre em uma das duas formas: cessão de crédito ou assunção de dívida; ambas são espécies das transferências de obrigações inter vivos. Pode haver a cessão de contrato (também chamada cessão de posição contratual), quando um complexo de direitos e dívidas de um sujeito é, concomitantemente, transferido. Assim, quando um consorciado cede seu contrato a outrem, está cedendo o direito de receber o bem, e o outro está assumindo a obrigação de solver os pagamentos do consórcio. 2.5.1 CESSÃO DE CRÉDITO É o negócio jurídico em que um credor (cedente) cede seu crédito para outro credor (cessionário). O devedor não pode opor-se a tal cessão, mas deve obrigatoriamente ser notificado, até para que saiba a quem deve pagar. Não pode haver cessão de crédito onde a lei o proibir, se houver cláusula contratual vedando tal prática ou se a própria natureza da obrigação não o permitir (no caso das obrigações alimentícias, por exemplo; imagine o leitor avisando seu pai de que “Não é mais para pagar a pensão para mim; pague para o Luizinho, agora!” – seria um absurdo!). A cessão precisa ser operada pelo mesmo instrumento que a constituição da obrigação; por exemplo, caso a cessão seja de uso de imóvel no valor de 50 salários-mínimos, precisará, necessariamente, ser por escritura pública. O crédito é cedido com todos os seus acessórios. Assim, se havia fiador e avalista para o crédito, estes seguirão garantindo a dívida (é lógico que as partes podem excluir os acessórios na cessão, em obediência ao princípio da autonomia da vontade). A cessão só gerará efeitos após ser notificada ao devedor. Nada impede que haja várias cessões do mesmo crédito, ou seja, cessões sucessivas, e a que gerará efeitos é que for recebida por último. Ainda que haja cessões posteriores, se o devedor não recebeu a notificação da última cessão, basta que pague (de boa-fé) ao credor atinente à última notificação, de sorte que pagará bem. 164 Tão logo receba a notificação, o devedor pode opor defesas pessoais que tem contra o cedente e contra o cessionário. Mas, tendo exceção pessoal contra o cessionário e não alegando, e caso haja nova cessão notificada do crédito, não pode mais o devedor alegá-la contra o cessionário anterior. Dança mesmo! A cessão pode ser “pró-soluto” (em que o cedente garante apenas a existência do crédito), ou “pró-solvendo”, quando o cedente garante também o pagamento do crédito. No caso de cessão onerosa, ou seja, aquela em que o cessionário “compra” o crédito, não está obrigado o cedente a pagar ao cessionário mais do que recebeu deste pelo pagamento do “crédito”. Crédito penhorado não pode ser mais transmitido, uma vez que agora há ingerência do Poder Judiciário na obrigação. Só para ilustrar, explicaremos como funciona o “desconto de títulos”, que é uma operação financeira de adiantamento de recebíveis, na qual se utiliza a cessão de crédito. Funciona assim: a empresa vende algo para receber posteriormente; em nosso exemplo, 30 dias depois; a empresa pode esperar até o dia do recebimento, mas ficará sem o capital de giro até lá. Se tiver fôlegopara isso, ok. Mas a empresa pode precisar do capital imediatamente para fazer novas compras; é então quando decide pelo desconto. Nessa operação, um banco ou uma factoring adianta hoje para a empresa o que ela só receberia daqui a 30 dias (no caso do nosso exemplo); o desconto é remunerado; tal remuneração é chamada de “taxa de desconto” Essa taxa, percentual, ficará para o agente que descontou o título (banco ou factoring), quando do pagamento deste pelo devedor. Assim, uma duplicata de dez mil reais vencerá daqui a trinta dias; a empresa precisa de dinheiro imediato mediante desconto e uma factoring, cuja taxa é 8%; A factoring adiantará para a empresa R$ 9.200,00; trinta dias depois o devedor pagará os dez mil à fectoring, que ficará com todo o dinheiro: R$ 9.200,00 que adiantou e os R$ 800,00, que é sua remuneração. Caso o devedor não pague o título, a factoring cobrará da empresa e dos sócios também, pois a factoring teve o cuidado de exigir que os sócios avalizassem tais títulos de forma que, na prática, ela não perderá nunca. 165 Figura 47 - Cessão de crédito 2.5.2 ASSUNÇÃO DE DÍVIDA Ocorre assunção de dívida quando alguém assume a obrigação de outrem, substituindo-se na condição de devedor da obrigação. Pode haver assunção de um ou de mais devedores. Para que haja assunção, precisa haver consentimento expresso do credor. Ainda que o credor consinta na assunção, se ficar provado que na época da transmissão o novo devedor já era insolvente e o credor desconhecia tal infortúnio, restabelecer-se-á a relação obrigacional anterior. Assunção de dívida pode ser expromissória, quando o novo devedor faz acordo diretamente com o credor (às vezes até contrariando o devedor originário!). E pode ser também delegatária, quando o novo devedor está em comum acordo com o devedor anterior. O assuntor e o devedor original podem assinar prazo para o credor dizer se aceita ou não a assunção. A lei determina que o silêncio do devedor significa “não”. As garantias e os acessórios da dívida não são transmitidos com a assunção. Ou seja, aval e fiança precisam ser firmados novamente para que a dívida seja garantida após a transferência. Diz-nos o enunciado 352 da 4JDC que, “salvo expressa concordância dos terceiros, as garantias por eles prestadas se extinguem com a assunção de dívida; já as garantias prestadas pelo devedor primitivo somente são mantidas no caso em que este concorde com a assunção”. No caso de dívidas hipotecárias, caso seja assinado prazo, se o credor consentir na assunção e este quedar-se em silêncio por trinta dias, a lei entende que é “Sim, concordo!”. A assunção de dívida pode ser, ainda, liberatória ou cumulativa, a depender se o devedor originário fica desvinculado do pagamento da dívida, ou se ainda continua vinculado, juntamente com o assuntor. 166 Figura 48 - Assunção de dívida 2.6 EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES Toda obrigação nasce para morrer, ao contrário de nós que, se pudéssemos, tornaríamos nossa vida eterna. Portanto obrigação é, necessariamente, vínculo transitório. Uma obrigação que não se extingue é um mal para a sociedade; gera estresse, ira, preocupação, desentendimentos. Daí por que se diz que obrigação boa é obrigação cumprida. Uma obrigação pode se extinguir de forma direta ou indireta. A forma direta de extinção das obrigações chama-se PAGAMENTO. O estudo do pagamento passa pelo estudo de seis institutos fundamentais (quem paga, quem recebe, como se paga, como se prova o pagamento, onde se paga e quando se paga). As formas indiretas de extinção das obrigações não possuem uma única designação, mas, em verdade, sete; pois são sete formas possíveis de, indiretamente, extinguir um vínculo obrigacional. Segundo outra classificação das extinções das obrigações, estas podem se dar de forma satisfatória ou não satisfarória. A extinção satisfatória (ou satisfativa) é aquela em que o credor recebe a prestação ou a vantagem equivalente, ou ainda concede perdão da dívida. Extinção não satisfatória (ou não satisfativa) ocorre quando algo torna a obrigação extinta, como prescrição, decadência, caducidade (no direito administrativo) etc. Figura 49 - Início e fim das obrigações 167 2.6.1 EXTINÇÃO DIRETA (PAGAMENTO) Dá-se pagamento quando a obrigação é cumprida nos exatos termos como fora instituída (lugar, tempo e modo previstos). É a melhor forma de extinção das obrigações, porque traz liberdade ao devedor e satisfação ao credor. Aquele que paga é chamado de solvens; e aquele que recebe o pagamento é chamado de accipiens. 2.6.1.1 QUEM PAGA É importante saber quem tem legitimidade para, validamente, efetuar pagamento. Pode ser solvens o próprio devedor ou um terceiro. (em verdade, o devedor “deve” pagar, e o terceiro “pode” pagar). O terceiro pode ser um terceiro interessado ou não interessado. Terceiro interessado é aquele que pode sofrer consequência direta em caso de não pagamento da dívida. Imagine que Carlos é inquilino (locatário) de um imóvel, que pertence a Maria. Você mora alugado nessa casa e paga o aluguel para Carlos, ou seja, Carlos sublocou a casa a você. Imagine que você paga corretamente o aluguel, mas descobre que Carlos não paga pontualmente o aluguel dele (referente a esse imóvel) a Maria. Ora! Se Carlos não pagar a dívida dos aluguéis atrasados, Maria pedirá o despejo do imóvel; e quem está no imóvel?Você! Ou seja, Carlos não paga o aluguel dele, e será você quem vai “pagar o pato”! Nesse caso, se você pagar a Maria o valor que Carlos deve a ela (não porque você gosta de Carlos; você quer é permanecer no imóvel!), você será considerado Terceiro Interessado. E terceiro interessado que paga a dívida de alguém se sub-roga nos direitos do credor. Sub-rogar significa substituir, então o solvens interessado ficará “no lugar” do credor original e poderá cobrar tal dívida como se credor original fosse; ou seja, se a tal dívida tinha fiador, o solvens interessado poderá cobrar do fiador; se a dívida tinha avalista, o solvens interessado pode cobrar do avalista, enfim receberá o crédito com todos os acessórios destes. Por isso se diz que o pagamento feito por terceiro interessado tem dois efeitos, extintivo e translativo. O efeito extintivo se dá em relação ao credor que recebe o pagamento, e o efeito translativo é o que faz a pessoa que pagou tornar-se, por sub- rogação, novo credor do devedor em lugar de quem pagou. Terceiro não interessado é aquele que paga mesmo sem a possibilidade de sofrer consequência caso o devedor original não pague. Esse terceiro não interessado pode pagar a dívida em nome próprio, ou em nome do devedor. 168 O que determina em nome de quem a dívida é paga é o nome que consta na quitação (ou do ato que lhe faça as vezes) como solvens. O terceiro não interessado que paga em nome próprio pode ressarcir-se do que pagou junto ao devedor. É o direito de reembolso, embora ele não se sub-rogue na posição do credor original, ou seja, não receba a dívida com os seus acessórios. Assim, se havia um fiador ou um avalista, ou ambos na dívida original, estes não poderão ser cobrados, já que não seguirão a dívida. Mas o terceiro não interessado fará jus à ação in rem verso para cobrar exatamente o que pagou do devedor originário. O terceiro não interessado que paga a dívida em nome do devedor não faz jus sequer a reembolso, ou seja, pagou porque quis; foi um presente; se quisesse cobrar o que cobrou, deveria ter pagado em nome próprio. O devedor pode impedir o pagamento, se tiver argumentos suficientes para que a dívida não seja paga (imagine que há uma dívida a ser compensada do credor para com este devedor, e este espera que irá invocar tal compensação). Se o terceiro pagou a dívida antes do vencimento, só pode cobrar o devedor original a partir do vencimento. Se o solvens der em pagamentoalgo fungível por engano, não pode pedi-lo de volta se o credor, com boa-fé, o consumiu, mesmo se quem “pagou” não tinha direito de dispor da coisa. 2.6.1.2 QUEM RECEBE É importante saber a quem pagar, pois quem paga a quem não deveria paga mal; e “quem paga mal paga duas vezes”. É verdade! Um “pagamento” feito a quem não tinha chancela legal para receber equivale a um “não pagamento”, o que enseja ao credor cobrar judicialmente o que lhe deve, e não foi pago. O accipiens pode ser o próprio credor (situação mais comum), o seu representante (seja legal, seja judicial, seja convencional) ou para um terceiro. O pagamento a esse terceiro é válido se o próprio credor ratificar esse pagamento posteriormente; ou se ficar provado que reverteu em proveito do credor. Em homenagem à boa-fé, a lei contempla o pagamento feito a credor putativo, ou seja, a alguém que não seja credor, mas se apresente com tal e que dê ao devedor todos os motivos para, de forma legítima e inocente, pensar que o impostor de fato é o credor. Paga mal aquele que, sabendo que o credor teve o crédito penhorado, ainda paga para este ao invés de pagar em juízo ou a quem a ordem de penhora ordene. 169 2.6.1.3 COMO SE PAGA (Objeto do pagamento) O objeto do pagamento é aquilo que foi combinado! É claro! Mas, por mais redundante que tal assertiva o seja, o Código fez questão de dizer isso mesmo, para que o devedor não queira “dar uma de gaiato” e resolva impor ao credor objeto diverso do que fora contratado. Caso haja mais de uma prestação facultativamente constante do título da obrigação, não pode o devedor exigir que o credor receba parte de uma e parte de outra prestação, pois isso equivaleria à criação de uma terceira prestação, não prevista pelas partes. Questão importante é quando o pagamento é em dinheiro. A palavra “dinheiro” é ampla. Significa, para o direito civil, quantidade de moeda com disponibilidade imediata. O dinheiro pode ser físico, quando se corporifica em papel-moeda ou moeda metálica. Pode ser escritural, quando um documento lhe faz as vezes, podendo isso ocorrer por meio de um título de crédito ou transferência eletrônica de fundos (tal como cartão de débito ou transferência de fundos via Internet banking). Pelo princípio do nominalismo, o pagamento precisa ser expresso em valor nominal de moeda corrente. Nos casos dessas obrigações (em dinheiro), o objeto do pagamento pode ser “Valor Nominal”, “Escala Móvel” ou “Dívida de Valor”. Valor Nominal é a dívida expressa em valor monetário e que deve ser paga em moeda corrente. (Exemplo: R$ 23.170,00) – é a regra no direito brasileiro, como citamos no “princípio do nominalismo” há pouco. Escala Móvel é a dívida expressa por algum índice ou grandeza, a ser reduzida em moeda quando do momento do pagamento (Exemplo: 20 UFIRs). Dívida de Valor é aquela que pode ser paga em qualquer meio ou bem, desde que o seu montante seja o valor determinado (Exemplo: valor de dez mil reais, pagáveis em moeda, bens ou direitos em montante equivalente). 2.6.1.4 COMO SE PROVA QUE PAGOU A prova do pagamento chama-se “quitação”; e quem recebe tem o dever de dar a quitação. Aliás, se não o der, o devedor pode reter o pagamento (aqui vale o “Não pago se você não me der quitação!”). Duas são basicamente as espécies de quitação: por meio de documento e por devolução. A quitação por documento, como o nome diz, ocorre com a geração de uma quitação, geralmente chamada “recibo”, o qual pode ter qualquer conteúdo que, por sua intelecção, leve à certeza de que houve pagamento, embora o caput do Artigo nos diga que deva conter o “valor e espécie da dívida, o nome do devedor ou de quem paga a dívida, o tempo e o lugar do pagamento e a assinatura do credor de ou seu representante”. 170 A quitação por devolução ocorre no caso dos Títulos de Crédito (duplicata, nota promissória, cheque etc.); nestes, a entrega do título ao devedor prova o pagamento, exceto se, em 60 dias da entrega, o credor provar que houve má-fé para o apossamento do título por parte do devedor. No caso de obrigações em que o pagamento se dá em quotas periódicas (parcelas ou mensalidades), a quitação dada à última, sem ressalvas, firma presunção de que as anteriores foram pagas. Daí por que muitas instituições não aceitam, por cautela, pagamento de prestações “salteadas”, mas sim somente na sequência dos vencimentos. Caso a obrigação contenha juros e, em havendo pagamento a menor, se o credor não ressalvar que os juros estão abertos, tais juros serão presumidos como pagos – é a velha regra do “acessório segue o principal”. As despesas com o pagamento da obrigação cabem ao devedor; é óbvio que o credor, dando causa a aumento de tais despesas, deverá arcar com elas, como determina nosso Código. A quitação pode ser presumida: é o que ocorre quando o credor pratica ato que dependeria da quitação para que este ocorresse; por exemplo, se o credor comprometer-se a só pintar o muro após o pagamento, o início da pintura presume que houve pagamento. 2.6.1.5 ONDE SE PAGA O local do pagamento importa à obrigação, visto que integra o conceito de “pagar bem”. A obrigação que deve ser paga no domicílio do devedor; diz-se que é a quérable (a palavra é francesa) ou quesível. A obrigação que deva ser paga no domicílio do credor é dívida portable ou portável. No silêncio da tratativa, a obrigação deve ser paga no domicílio do devedor (é quesível); mas o contrato, a lei, ou os fatos podem deslocar o local do cumprimento para o domicílio do credor. Casa haja a convenção de mais de um local para pagamento, é o credor quem escolhe onde este se dará. Pode o devedor pagar em local diverso, se houver grave motivo para isso. Se você tivesse como prestação entregar algo na Indonésia no dia posterior à ocorrência do “tsunami”, você entregaria lá? Engraçado que a lei tenta beneficiar ao devedor, mas joga o ônus do mesmo local para este, visto que diz “sem prejuízo ao credor”. Todo pagamento costumeiramente realizado em determinado local (independentemente de no contrato inicial ter sido outro) firma obrigatoriedade desse local para tal ato (é o fenômeno do surrectio, no qual um ato passa a ser obrigatório por ter passado a ser praticado continuamente pelas partes). 171 Figura 50 - Lugar do pagamento 2.6.1.6 QUANDO SE PAGA Por regra, a obrigação é exigível imediatamente (a vista!). Vencimento (ou seja, exigibilidade) em momento diverso somente quando expressamente previsto, ou seja, é a exceção. Existem alguns vencimentos tipificados em lei, quando o contrato for silente, a saber: no caso de empréstimo de dinheiro em que não conste vencimento, presume- se ser esse prazo de 30 dias. Se for de comodato (empréstimo de coisa infungível), presume-se ser o tempo estritamente necessário à conclusão do ato para o qual a coisa servirá; no caso de locações prediais, no silêncio do contrato, entende-se que o vencimento é no sexto dia útil. Ainda que fixado o vencimento de uma dívida para data futura, haverá vencimento antecipado da obrigação, em caso de falência ou insolvência65 do devedor; caso o crédito seja penhorado por outro credor ou quando as garantias da dívida se mostrarem insuficientes, e o devedor, mesmo notificado, não reforçá-las. No caso das obrigações sujeitas a alguma condição, a implementação destas deve ser notificada ao devedor pelo credor para que só então a dívida se torne exigível – é condição para cobrança de tal dívida a comprovação de tal notificação. 2.6.1.7 CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO O pagamento é um direito do devedor. Embora possa parecer estranha tal afirmação, lembramos que o débito é um poder do credor sobre o devedor; é uma 65 A declaração de insolvência deve obedecer aos Artigos 761 e 762 do Código de Processo Civil, quanto ao procedimento.172 “prisão” para este (aliás, esse é o efeito do elemento “vínculo” da obrigação) e, como tal, é direito subjetivo do devedor libertar-se de tal jugo. Para proteger tal direito, o de “obter a liberdade”, existe na lei um mecanismo chamado “consignação em pagamento” (ou pagamento em consignação, pagamento em juízo, depósito em juízo ou pagamento consignado), que consiste não em forçar o credor a receber, mas sim é um meio de o Estado prover a quitação da dívida e libertar o devedor. Tal procedimento é regido tanto pelo Código Civil quanto pelo Código de Processo Civil, em seus Artigos 890 a 900. É cabível a consignação do pagamento caso o credor não queira ou não possa receber, ou não queira dar quitação; ou nos casos em que não sabe o devedor a quem pagar, ou quando houver litígio quanto ao objeto. Discorreremos sobre uns exemplos dos dois últimos casos: não é raro ocorrer de determinadas propriedades à margem de rodovias receberem anualmente dois boletos de tributação: IPTU e ITR. O município mais próximo da propriedade entende que esta está em sua circunscrição e lança o IPTU, e a União entende que está em local de fato gerador de ITR. E agora? A quem pagar? No outro caso, imagine que um empregador que, ao depositar o salário de um empregado, recebe a visita de dois oficiais de justiça, cada um com mandado de penhora sobre o montante a ser pago66. E agora? Paga ao empregado ou ao juízo da execução cujo oficial chegou primeiro ao recinto? Para todas essas situações, existe a consignação em pagamento. É um procedimento bifásico – fase extrajudicial e judicial. A fase judicial só é cabível em caso de insucesso do resultado na fase extrajudicial (e, na prática, já se inicia na fase judicial, tendo os advogados, ao longo do tempo, ignorado a fase extrajudicial). Na fase extrajudicial, o devedor deve efetuar depósito bancário do valor que entende ser pago. Ato contínuo, expedirá carta com aviso de recebimento (AR)67 ou qualquer meio hábil a comprovar o recebimento epistolar, assinando ao credor dez dias para que levante o depósito ou o recuse. Após o prazo assinado, em caso de silêncio do credor, entende-se que este aceitou o pagamento, e o AR servirá como quitação da dívida para todos os efeitos. Caso o devedor receba recusa expressa ao pagamento, deverá proceder ao devedor na fase judicial. Na fase judicial, o devedor ajuizará petição inicial em no máximo 30 dias da recusa recebida na fase extrajudicial, acostando a esta o recibo do depósito, o aviso de recebimento e a recusa do devedor. O juiz então mandará citar o credor para que em 15 dias receba o valor depositado (ou pratique o ato), ou conteste a ação. Caso 66 Nesse nosso exemplo são dívidas alimentícias, que admitem a penhora do salário. 67 Caso o credor deva receber o bem ou exercer alguma escolha, não haverá depósito bancário; apenas na referida carta ele assina o prazo para que o credor busque a coisa, mande receber ou exerça a escolha. 173 o réu se quede inerte, sofrerá os efeitos da revelia, e a sentença fará as vezes da quitação que até então nunca existiu. Caso o réu conteste, o juiz resolverá o conflito por sentença, gerando uma sentença de procedência ou improcedência. Em caso de procedência da ação, a sentença corporificará a quitação; em caso de improcedência, não haverá quitação. Em qualquer dos casos, a parte sucumbente68 pagará as custas do processo e os honorários advocatícios. Caso a contestação se cinja à alegação de depósito insuficiente, é dado ao devedor prazo de dez dias para, querendo, complementar o depósito; e, em havendo recusa, é dado ao devedor reaver o valor depositado. Pode o devedor reaver o depositado também até o momento da manifestação do credor em aceitar ou não o depósito. Desde o momento no depósito, e julgado este procedente ou sendo aceito pelo credor, cessa para o devedor a obrigação de pagar juros ou de atualizar valor, a partir do dia do depósito. 2.6.1.8 IMPUTAÇÃO DO PAGAMENTO Situações existem, ao menos no plano teórico, em que é a lei que tem que determinar qual, dentre várias dívidas, deve ser quitada. Imagine que Mário é credor de José em várias dívidas. Certo dia, Mário verifica seu extrato bancário e percebe que José depositou um determinado valor em sua conta; fica sabendo que o valor é referente a pagamento de uma das dívidas, e não se sabe qual. Em nosso exemplo, José está atualmente incomunicável. A questão é: a qual dívida se referiu o pagamento efetuado por José? Para dirimir tal questão, a lei trouxe (precisas) regras de imputação (“imputar” significa “atribuir”) do pagamento para que se determine a qual dos débitos o pagamento se refere. Tais regras são um escalonamento no qual, superada uma regra, passa-se à outra, até se descobrir qual débito receberá a quitação ou esgotará o montante disponível para pagamento. São seis regras: 1.a) O devedor escolhe qual das dívidas pagou. 2.a) O credor escolhe a qual dívida dará quitação. 3.a) O pagamento refere-se aos juros, somente. 4.a) Não mais havendo juros, o pagamento é do capital (valor principal). 5.a) O pagamento é da dívida com vencimento mais antigo. 6.a) Se todas tiverem o mesmo vencimento, é da dívida mais onerosa. No nosso exemplo, uma vez que nem Mário nem José escolheram a qual dívida o depósito se referia, nem havia juros a serem pagos, e todas tinham o mesmo 68 “Sucumbência” significa perder o que foi pedido na ação ou contestação. 174 vencimento, nenhuma das cinco primeiras regras solucionaria a atribuição do pagamento. Mas uma das dívidas gerava maior encargo (era a mais onerosa, portanto) e traria mais prejuízo a José se não fosse paga, por ter taxa de juros mais alta, ou seja, era mais onerosa (em nosso caso! Pode ser que uma taxa menor torne a dívida mais onerosa, se o capital for mais alto). É essa dívida que receberá a quitação, portanto, segundo as regras. 2.6.2 EXTINÇÃO INDIRETA DAS OBRIGAÇÕES Casos existem em que, embora sem haver pagamento, a obrigação se extingue; são sete os casos de extinção indireta (também chamada anormal ou mediata) das obrigações, a saber: dação em pagamento, sub-rogação, remissão, compensação, confusão, novação, transação e arbitragem. 2.6.2.1 REMISSÃO Remissão é o perdão da dívida. Precisa da aceitação pelo devedor (visto que o perdão pode ser usado para oprimir ou para humilhar o devedor). Caso o credor dê quitação ou devolva o Título de Crédito, firma-se a prova de que perdoou a dívida. Caso uma dívida seja garantida por penhor (o famoso “prego”), a devolução do objeto empenhado (que estava “no prego”) não significa o perdão da dívida; apenas prova a dispensa da garantia. Caso haja mais de um devedor em uma obrigação, e um deles receber perdão, o credor só poderá cobrar dos outros o valor que contemple o desconto do que fora perdoado. Lembramos que “remissão”, do verbo remitir, é diferente de “remição”, do verbo remir, que é pagar/resgatar. Figura 51 - Remissão 175 2.6.2.2 COMPENSAÇÃO Imagine a seguinte cena: José deve mil reais a João. João deve mil reais a José. Os dois se encontram. José entrega mil reais a João, que lhe dá quitação da dívida. Ato contínuo, João entrega os mesmos mil reais a José, que dá a João a quitação da dívida. Há alguma lógica nisso? Também achamos que não. E o legislador tampouco viu alguma! Daí surgir o instituto da compensação, que permite a extinção da obrigação no caso no qual dois sujeitos são, mutuamente, credores e devedores um do outro. A compensação pode ser legal, convencional ou judicial. Dá-se a compensação legal quando se opera automaticamente; a convencional se opera pela vontade das partes envolvidas, e a compensação judicial é determinada pelo juiz, por sentença. Como exemplo de compensação