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eles poderiam ser uma fonte útil de dinheiro e de serviços financeiros, porque podiam ser taxados e também fazer empréstimos.24 Em 1516, as autoridades venezianas designaram uma área especial da cidade para os judeus, no lugar de uma antiga fundição de ouro que se tornou conhecido como ghetto nuovo (getto significa literalmente fundição). Era lá que eles deveriam ser confinados a cada noite e nos feriados cristãos. Aqueles que ficavam em Veneza por mais de duas semanas, supostamente eram obrigados a usar um O amarelo nas suas costas, ou um chapéu, ou turbante amarelo (mais tarde, escarlate).25 A residência ficava limitada por um determinado período na base do condotte (decreto), renovado a cada cinco anos.26 Em 1541, um arranjo semelhante foi decidido com alguns judeus da Romênia, que receberam permissão para morar em outro enclave, o ghetto vecchio. Por volta de 1590, havia cerca de 2.500 judeus em Veneza. As construções nos guetos passaram a ter sete andares para acomodar os recém-chegados. Ao longo do século XVI, a posição dos judeus venezianos permaneceu condicional e vulnerável. Em 1537, quando explodiu a guerra entre Veneza e o Império Otomano, o Senado veneziano ordenou o sequestro das propriedades dos “turcos, judeus e outros súditos turcos”. Outra guerra de 1570 a 1573 provocou a prisão de todos os judeus e o arresto de todas as suas propriedades, embora eles tivessem sido libertados e seus bens restituídos depois que a paz foi restaurada.27 Para evitar a repetição dessa experiência, os judeus fizeram uma petição ao governo veneziano, para que pudessem ficar em liberdade durante qualquer guerra futura. Eles tiveram a boa fortuna de ser representados por Daniel Rodriga, um mercador judeu de origem espanhola que se provou um negociador altamente eficaz. O decreto que ele conseguiu obter, em 1598, concedia o status de súditos venezianos a todos os judeus, e lhes permitia o envolvimento no comércio do Levante – um privilégio valioso – e também a prática da sua religião, abertamente. Apesar disso, restrições importantes permaneceram. Eles não tinham permissão de se juntar às guildas ou de se envolver no comércio a varejo, desse modo restringindo-os aos serviços financeiros, e seus privilégios podiam ser revogados com dezoito meses de aviso antecipado. Como cidadãos, os judeus ficaram, assim, com mais chance de ser bem-sucedidos nas cortes judiciais venezianas do que Shylock. Em 1623, por exemplo, Leon Voltera processou Antonio dalla Donna, que servira como avalista para um fidalgo que tomara empréstimo de determinados itens de Voltera, e depois desaparecera. Durante 1636 e 1637, entretanto, um escândalo envolvendo o suborno de juízes, no qual alguns judeus foram implicados, parece que aumentou, mais uma vez, a ameaça da expulsão.28 Embora ficcional, a estória de Shylock não pode ser inteiramente removida, por consequência, da realidade veneziana. De fato, a peça de Shakespeare ilustra de modo bastante preciso três pontos importantes sobre os primórdios modernos dos empréstimos financeiros: o poder dos emprestadores, para impor taxas de juros extorsivas quando os mercados de crédito estavam na sua infância; a importância das cortes judiciais, para resolver disputas financeiras sem o recurso da violência; e, acima de tudo, a vulnerabilidade da minoria de credores diante de uma reação de devedores hostis que pertencem a uma maioria