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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-117

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No entanto, após a síntese evolutiva, a seleção natural passou a ser aceita univer-
salmente como a influência causal primária na mudança evolutiva e, acima de tudo,
como a única explicação para as adaptações. Essa tendência foi tão vigorosa que muitos
biólogos evolutivos do século XX dirigiram seu trabalho para a busca de significado
funcional e valor adaptativo para uma variedade de características biológicas conspícuas,
que até então não haviam sido explicadas convincentemente (AMUNDSON, 1996, p.
11; MAYR, 1988, pp. 129-130). De modo a explicar a existência dessas características,
eram propostas histórias adaptativas relativas à ação da seleção natural e inferidas a
partir do valor adaptativo das características. Gould e Lewontin (1979) chamaram essa
abordagem da biologia evolutiva de ‘programa adaptacionista’.
O programa adaptacionista tem sido duramente criticado desde os anos 1970, em
consequência de evidências empíricas e avanços teóricos que expuseram os limites da
seleção natural para a explicação da organização estrutural das formas vivas. Mais
especificamente, as descobertas acerca do papel do acaso nas mudanças evolutivas
(deriva gênica) e a ênfase no papel das restrições históricas (filogenéticas), estruturais e do
desenvolvimento sobre a evolução da forma orgânica1, entre outros fatores, mostraram
que, não obstante a grande importância do mecanismo da seleção natural na explicação
dos processos evolutivos, é preciso combiná-lo comoutrosmecanismos para a construção
de modelos explicativos mais consistentes. Esta visão pode ser chamada de ‘pluralismo
de processos’ (PIGLIUCCI; KAPLAN, 2000; MEYER; EL-HANI, 2000, 2005).
Nas críticas ao programa adaptacionista, questiona-se não somente o poder causal e
explicativo atribuído à seleção natural, como também a prioridade dada à adaptação
em relação a outros fenômenos biológicos igualmente relacionados à origem e evolução
das formas vivas. Na verdade, se considerarmos que a seleção natural constitui hoje
a única alternativa válida para a explicação das adaptações (ROSENBERG; MCSHEA,
2008) — e, inclusive, que adaptações podem ser definidas de modo que, analiticamente,
devem ser explicadas por seleção (SOBER, 1993) —, o debate sobre a extensão em que
as características dos organismos são adaptações é também um debate sobre o domínio
de aplicação da explicação seletiva.
Muito do antigo debate entre estruturalistas e funcionalistas do final do século XVIII
sobreviveu a Darwin, e mesmo à síntese evolutiva moderna, e continua nas discussões
biológicas contemporâneas a respeito da abordagem adaptacionista na biologia evo-
lutiva (AMUNDSON, 1996; GOULD, 2002). Essas controvérsias recaem sobre o papel
epistemológico e metodológico do conceito de adaptação. De um lado, propõe-se que
1 Essas restrições são decorrentes do fato de que os processos de desenvolvimento, a natureza das
interações físicas entre as células e a influência de estruturas preexistentes sobre as mudanças que
podem vir a ocorrer nos organismos limitam o repertório de formas que podem ser produzidas no
mundo vivo, e, juntamente com a variação herdada dos ancestrais, estabelecem a diversidade de
organismos variantes sobre os quais a seleção natural pode atuar. Estas restrições constituem processos
que enviesam a distribuição das variações nas populações, e, assim, podem influenciar a direção e
velocidade do processo evolutivo.
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o conceito de adaptação, ao menos como postulado pelo programa adaptacionista, não tem
nenhuma relevância prática para o trabalho dos biólogos (GODFREY-SMITH, 1999),
ou, ainda mais, constitui um mau “conceito organizador” das pesquisas biológicas, ao
tornar as teorias darwinistas da evolução não-testáveis, e os biólogos, cegos aos demais
fatores evolutivos (LEVINS; LEWONTIN, 1985). De outro lado, reafirma-se o papel
heurístico desempenhado por questões adaptacionistas, bem como os avanços empíricos
e conceituais que elas proporcionaram na história das ciências biológicas (MAYR, 1988;
FUTUYMA, 1992; MEYER; EL-HANI, 2005). Desta última perspectiva, propõe-se que
sejam enfrentadas as dificuldades que cercam atualmente o conceito de adaptação, de
modo a reafirmá-lo como um conceito útil na organização da pesquisa biológica, sem
ignorar a existência e o poder de outras forças causais não-seletivas (ROSE; LAUDER,
1996; STERELNY, 1997).
Neste trabalho, analisamos alguns dos desafios empíricos, teóricos e metodológicos
que o adaptacionismo tem enfrentado, desde a crítica anti-adaptacionista de Gould e
Lewontin, publicada em 1979, bem como as dificuldades que cercam o conceito darwi-
nista de adaptação. Serão apresentadas propostas de reformulação do conceito de
adaptação, assim como propostas de abordagens teórico-metodológicas alternativas ao
adaptacionismo para explicar a diversidade das formas vivas, aqui reunidas sob o termo
‘exaptacionismo’, seguindo Andrews e colaboradores (2002). Não podemos adentrar os
debates sobre o poder explicativo da seleção natural, contudo, sem deixar claro o papel
central e a importância deste mecanismo no cenário evolutivo atual. Essa é, em nossa
visão, a melhor maneira de mostrar que os limites hoje colocados ao poder explicativo
da seleção não constituem, em absoluto, negação de sua importância. Trata-se, apenas,
de delimitar domínios de aplicação de um modelo explicativo, algo que nada tem de
estranho em termos da prática científica, podendo ser até mesmo considerada a regra
no desenvolvimento e na articulação das teorias científicas.
2 A seleção natural é um mecanismo corroborado
Nos dias de hoje, a seleção natural pode ser considerado um mecanismo microevolu-
tivo altamente corroborado. O apoio ao papel da seleção natural no processo evolutivo
vem de várias fontes. Em primeiro lugar, foram desenvolvidas ferramentas analíticas
especificamente voltadas para o teste da hipótese de que uma característica foi moldada
pela seleção natural. Para que uma característica evolua por seleção natural, é necessário
que ela exiba variação na população em foco, que seja herdável e que aumente a aptidão
darwiniana (fitness) de seu portador. Apesar de cada uma dessas três premissas requerer
extenso trabalho experimental para ser testada, muitos estudos feitos em populações
naturais documentaram que cada uma dessas condições era satisfeita nas mesmas, o que
permitiu explicar a evolução de uma diversidade de características por seleção natural
(e.g., GRANT; GRANT, 1995, 2002).
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	Capítulos
	Adaptacionismo 
	A seleção natural é um mecanismo corroborado

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