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No entanto, após a síntese evolutiva, a seleção natural passou a ser aceita univer- salmente como a influência causal primária na mudança evolutiva e, acima de tudo, como a única explicação para as adaptações. Essa tendência foi tão vigorosa que muitos biólogos evolutivos do século XX dirigiram seu trabalho para a busca de significado funcional e valor adaptativo para uma variedade de características biológicas conspícuas, que até então não haviam sido explicadas convincentemente (AMUNDSON, 1996, p. 11; MAYR, 1988, pp. 129-130). De modo a explicar a existência dessas características, eram propostas histórias adaptativas relativas à ação da seleção natural e inferidas a partir do valor adaptativo das características. Gould e Lewontin (1979) chamaram essa abordagem da biologia evolutiva de ‘programa adaptacionista’. O programa adaptacionista tem sido duramente criticado desde os anos 1970, em consequência de evidências empíricas e avanços teóricos que expuseram os limites da seleção natural para a explicação da organização estrutural das formas vivas. Mais especificamente, as descobertas acerca do papel do acaso nas mudanças evolutivas (deriva gênica) e a ênfase no papel das restrições históricas (filogenéticas), estruturais e do desenvolvimento sobre a evolução da forma orgânica1, entre outros fatores, mostraram que, não obstante a grande importância do mecanismo da seleção natural na explicação dos processos evolutivos, é preciso combiná-lo comoutrosmecanismos para a construção de modelos explicativos mais consistentes. Esta visão pode ser chamada de ‘pluralismo de processos’ (PIGLIUCCI; KAPLAN, 2000; MEYER; EL-HANI, 2000, 2005). Nas críticas ao programa adaptacionista, questiona-se não somente o poder causal e explicativo atribuído à seleção natural, como também a prioridade dada à adaptação em relação a outros fenômenos biológicos igualmente relacionados à origem e evolução das formas vivas. Na verdade, se considerarmos que a seleção natural constitui hoje a única alternativa válida para a explicação das adaptações (ROSENBERG; MCSHEA, 2008) — e, inclusive, que adaptações podem ser definidas de modo que, analiticamente, devem ser explicadas por seleção (SOBER, 1993) —, o debate sobre a extensão em que as características dos organismos são adaptações é também um debate sobre o domínio de aplicação da explicação seletiva. Muito do antigo debate entre estruturalistas e funcionalistas do final do século XVIII sobreviveu a Darwin, e mesmo à síntese evolutiva moderna, e continua nas discussões biológicas contemporâneas a respeito da abordagem adaptacionista na biologia evo- lutiva (AMUNDSON, 1996; GOULD, 2002). Essas controvérsias recaem sobre o papel epistemológico e metodológico do conceito de adaptação. De um lado, propõe-se que 1 Essas restrições são decorrentes do fato de que os processos de desenvolvimento, a natureza das interações físicas entre as células e a influência de estruturas preexistentes sobre as mudanças que podem vir a ocorrer nos organismos limitam o repertório de formas que podem ser produzidas no mundo vivo, e, juntamente com a variação herdada dos ancestrais, estabelecem a diversidade de organismos variantes sobre os quais a seleção natural pode atuar. Estas restrições constituem processos que enviesam a distribuição das variações nas populações, e, assim, podem influenciar a direção e velocidade do processo evolutivo. 220 o conceito de adaptação, ao menos como postulado pelo programa adaptacionista, não tem nenhuma relevância prática para o trabalho dos biólogos (GODFREY-SMITH, 1999), ou, ainda mais, constitui um mau “conceito organizador” das pesquisas biológicas, ao tornar as teorias darwinistas da evolução não-testáveis, e os biólogos, cegos aos demais fatores evolutivos (LEVINS; LEWONTIN, 1985). De outro lado, reafirma-se o papel heurístico desempenhado por questões adaptacionistas, bem como os avanços empíricos e conceituais que elas proporcionaram na história das ciências biológicas (MAYR, 1988; FUTUYMA, 1992; MEYER; EL-HANI, 2005). Desta última perspectiva, propõe-se que sejam enfrentadas as dificuldades que cercam atualmente o conceito de adaptação, de modo a reafirmá-lo como um conceito útil na organização da pesquisa biológica, sem ignorar a existência e o poder de outras forças causais não-seletivas (ROSE; LAUDER, 1996; STERELNY, 1997). Neste trabalho, analisamos alguns dos desafios empíricos, teóricos e metodológicos que o adaptacionismo tem enfrentado, desde a crítica anti-adaptacionista de Gould e Lewontin, publicada em 1979, bem como as dificuldades que cercam o conceito darwi- nista de adaptação. Serão apresentadas propostas de reformulação do conceito de adaptação, assim como propostas de abordagens teórico-metodológicas alternativas ao adaptacionismo para explicar a diversidade das formas vivas, aqui reunidas sob o termo ‘exaptacionismo’, seguindo Andrews e colaboradores (2002). Não podemos adentrar os debates sobre o poder explicativo da seleção natural, contudo, sem deixar claro o papel central e a importância deste mecanismo no cenário evolutivo atual. Essa é, em nossa visão, a melhor maneira de mostrar que os limites hoje colocados ao poder explicativo da seleção não constituem, em absoluto, negação de sua importância. Trata-se, apenas, de delimitar domínios de aplicação de um modelo explicativo, algo que nada tem de estranho em termos da prática científica, podendo ser até mesmo considerada a regra no desenvolvimento e na articulação das teorias científicas. 2 A seleção natural é um mecanismo corroborado Nos dias de hoje, a seleção natural pode ser considerado um mecanismo microevolu- tivo altamente corroborado. O apoio ao papel da seleção natural no processo evolutivo vem de várias fontes. Em primeiro lugar, foram desenvolvidas ferramentas analíticas especificamente voltadas para o teste da hipótese de que uma característica foi moldada pela seleção natural. Para que uma característica evolua por seleção natural, é necessário que ela exiba variação na população em foco, que seja herdável e que aumente a aptidão darwiniana (fitness) de seu portador. Apesar de cada uma dessas três premissas requerer extenso trabalho experimental para ser testada, muitos estudos feitos em populações naturais documentaram que cada uma dessas condições era satisfeita nas mesmas, o que permitiu explicar a evolução de uma diversidade de características por seleção natural (e.g., GRANT; GRANT, 1995, 2002). 221 Capítulos Adaptacionismo A seleção natural é um mecanismo corroborado