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2 Teleologia e ciência
Desse modo, as discussões sobre o conceito de função têm como um dos pontos
centrais o problema do seu pretenso caráter teleológico. Pode-se dizer que ações e
comportamentos são teleológicos quando são dirigidos a fins, sendo que a teleologia
presente no mundo natural distingue-se daquela presente na ação ou no comportamento
de um agente por não ser intencional.
De fato, a relação entre o conceito de função e a teleologia foi pensada e defendida
por muitos filósofos, como Platão, Aristóteles, Kant, dentre outros. Como esclarece
André Ariew, já se encontra em Aristóteles uma análise bastante sofisticada do conceito
de função e de sua relação com o conceito de teleologia (ARIEW, 2002, p. 30). No
entanto, quando se considera o domínio atual das ciências naturais, o uso de explicações
funcionais que recorrem à teleologia tem sido colocado em xeque. Particularmente, na
biologia, a associação entre função e teleologia muitas vezes é vista de forma negativa
por se considerar que ela está comprometida necessariamente com alguma forma de
finalismo, direcionismo ou vitalismo, o que seria incompatível com o conceito científico
de evolução dos seres vivos.
As críticas mais recentemente apresentadas à vinculação entre teleologia e função
baseiam-se na forma como as teorias teleológicas fundamentam e justificam a perma-
nência da teleologia nos enunciados científicos. Tais críticas vêm de uma tradição que
remonta a Carl Hempel (1905-1997), a Ernst Nagel (1901-1985) e, mais recentemente,
Robert Cummins. Em geral, essas críticas seguemduas vias: uma que defende a exclusão
dos enunciados teleológicos do domínio da ciência por meio da redução dos enunciados
funcionais aos enunciados não-funcionais, como se pode ver nos trabalhos de Nagel;
e outra que propõe a exclusão dos enunciados teleológicos, procurando, porém, uma
forma não teleológica de compreensão dos enunciados funcionais, como faz Cummins.
Tanto Hempel como Nagel defendem que qualquer explicação para ser considerada
científica deve seguir o modelo nomológico, quer dizer, deve considerar um fenômeno
a partir de sua submissão a leis, seguindo seja o modelo de inferência dedutiva seja o
modelo indutivo de submissão a leis estatísticas (HEMPEL, 1965; NAGEL, 1961). De
acordo com esses autores, explicações funcionais também devem adequar-se a esse
modelo nomológico; do contrário, não poderiam permanecer na esfera das explicações
científicas, pois não há lugar no âmbito da ciência para explicações que recorram a
causas finais, a agentes intencionais ou a princípios vitalistas. Nagel, em sua obra The
structure of science (1961), defende que as explicações produzidas pelas ciências romperam
inteiramente comadoutrina dos fins, ou seja, comanecessidade de se postular umagente
intencional, divino, para dar conta dos fenômenos do mundo natural. No entanto, ele
considera que não se pode romper com essa doutrina e continuar a recorrer a propósitos
e finalismos para tratar dos fatores causais do mundo natural:
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por causa da associação das explicações teleológicas com a doutrina de
que objetivos ou fins da atividade são agentes dinâmicos na sua própria
realização, [a ciência moderna] tende a ver tais explicações como uma espécie
de obscurantismo (NAGEL, 1961, p. 402).
Nagel reconhece que há uma especificidade própria da biologia, apesar de os processos
biológicos serem de natureza físico-química e, por isso, as explicações biológicas que
descrevem as regularidades desses fenômenos não são objeto nem da física nem da
química. Porém, aceitar a especificidade da biologia não implica aceitar que haja modos
especiais de explicação no domínio dessa ciência.
A tese defendida por Nagel é a de que os enunciados teleológicos podem ser con-
vertidos em enunciados não teleológicos, porque não há nada neles que não possa ser
expresso em uma linguagem que siga a causalidade ordinária. Portanto, ainda que se
possa expressar de forma teleológica alguns fenômenos biológicos, isso não significa
que exista uma categoria especial de explicação para tais fenômenos. Por exemplo,
sistemas auto-reguladores, com mecanismos de retro-alimentação negativa, são capazes
de manter e procurar sua estabilidade funcional em situações de alterações ambientais.
Trata-se de sistemas com mecanismos dirigidos a fins (goal directed). Não há diferença
importante entre as organizações teleológicas dos sistemas vivos e as organizações diri-
gidas a fins presentes nos sistemas físicos, de tal maneira que se é possível descrever
o comportamento de um míssil sem se recorrer a enunciados teleológicos. Também
deve ser possível fazê-lo para um sistema vivo com propriedades semelhantes, pois ser
auto-regulável e ter a capacidade de se auto-manter não são características exclusivas
dos sistemas vivos, mas sim propriedades encontradas também em sistemas físicos
(NAGEL, 1961, p. 410).
Com relação ao outro tipo de fenômeno biológico ao qual se aplica o enunciado
teleológico, Nagel mantém a mesma convicção, a saber, a de que ele pode ser traduzido
em um enunciado não teleológico. Consideremos, por exemplo, o enunciado que diz
ser a função da clorofila nas plantas com pigmento verde habilitar essa planta a realizar
a fotossíntese e produzir matéria orgânica. Essa enunciação poderia ser convertida em
outra não teleológica seguindo o seguinte modelo: “Todo sistema S com organização
C e em um ambiente E realiza o processo P. Se S com organização C e ambiente E não
tem A, então S não realiza P. Logo, S com organização C tem de ter A” (NAGEL, 1961, p.
403). Aplicando o modelo ao exemplo da fotossíntese, temos: toda planta verde, com
organização de partes e processos adequados, em presença de dióxido de carbono, água
e luz solar, realiza a fotossíntese. Se a planta não tem clorofila, não realiza a fotossíntese.
Logo, a planta tem de ter clorofila.
É, portanto, com base na analogia entre sistemas vivos e sistemas físicos que Nagel
sustenta a tese de equivalência entre os enunciados teleológicos e os enunciados não
teleológicos, e a consequente tradução de um em outro. A apresentação do enunciado
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