Prévia do material em texto
teleológico em um modelo dedutivo não é apenas possível, como mostra também que o enunciado teleológico não diz nada além do que está apresentado nesta forma. Dizer que a função da clorofila nas plantas é realizar a fotossíntese nada acrescentaria à expressão: plantas realizam a fotossíntese se e somente se contêm clorofila. Quando a função é atribuída a uma estrutura, órgão ou comportamento de um organismo, o conteúdo do enunciado teleológico pode ser transportado para um enunciado não teleológico que apresenta a condição necessária para a ocorrência desse traço1 ou atividade do organismo (NAGEL, 1961, p. 405). A argumentação de Nagel a favor da formulação de modelos dedutivos para substi- tuir as explicações teleológicas das funções biológicas é bastante convincente a princípio, mas ela apresenta alguns problemas já apontados por vários autores. Por exemplo, Nagel considera a clorofila como condição necessária para a existência de fotossíntese realizada por plantas verdes. Talvez isso até seja verdade neste caso, mas, como ob- serva Cummins, não seria em outros casos de função, como o do coração. O coração não é condição necessária para a circulação do sangue nos vertebrados, já que bombas artificiais também podem cumprir essa função (CUMMINS, 1975, p. 743). Além disso, há outro problema com a solução de Nagel, pois, como bem o assinalou Larry Wright, não é possível, através da conversão proposta por Nagel, distinguir-se entre um efeito funcional e um efeito acidental (WRIGHT, 1973). O coração bombeia sangue e também produz ruído, mas produzir ruído não é reconhecido como função do coração, embora esse efeito tenha no coração sua condição necessária. Assim, o uso de explicações de cunho teleológico em biologia foi criticado, porque envolveria explicações de natureza teológica e metafísica que, não sendo verificáveis, não poderiam fazer parte da ciência. Também se mostrou problemático o modo como a causalidade se apresenta nos enunciados teleológicos, pois explicações teleológicas recorreriam a eventos futuros, enquanto a explicação causal normal recorreria apenas a eventos passados. Além disso, criticou-se o uso da linguagem teleológica na biologia por ela implicar antropomorfismo, através da assimilação da função biológica às funções dos sistemas intencionais humanos, que envolvem deliberação e consciência. Essas críticas poderiam ser rebatidas, como afirma Ernst Mayr (1998a). A posição defendida por esse autor é a de que o uso moderno de enunciados sobre processos teleológicos, ou seja, processos dirigidos a fins, não implica a aceitação de concepções teológicas ou conceitos metafísicos; e que as explicações de caráter teleológico usadas na biologia não entram, de modo nenhum, em conflito com as explicações físicas e químicas. De fato, o projeto de reduzir explicações teleológicas às não teleológicas falha porque não há equivalência entre elas, havendo perda de conteúdo semântico nessa transformação, sendo equivocado supor que dizer: “A tartaruga nada até à praia para depositar seus ovos” é o mesmo que dizer: “A tartaruga nada até à praia e deposita seus 1 Nota do Org.: o termo ‘traço’ está sendo usado como sinônimo de ‘característica’ neste e nos outros capítulos desta obra. 106 ovos”. Além disso, o fato de ser, de alguma forma, distinta da causalidade ordinária não significa que a explicação teleológica seja incompatível com ela (MAYR, 1998a, p. 432). Mayr distingue processos teleomáticos de processos teleonômicos na natureza. Os primeiros dizem respeito aos fenômenos relacionados com os objetos inanimados que alcançam um fim apenas em obediência às leis naturais ou físicas. Todo o processo de evolução cósmica, desde o Big Bang até o presente, ou ainda, uma pedra que chega ao seu estado final quando alcança o solo seriam fenômenos desse tipo: “Estão dirigidos a um fim somente de uma forma passiva, automática, são regulados por condições ou forças externas. Uma vez que o estado final de tais objetos inanimados é alcançado automaticamente, essas mudanças devem ser designadas como teleomáticas (1998a, p. 437). O termo “teleonômico” é usado por Mayr no lugar do termo “teleológico” para designar os processos dirigidos a fins, de modo a se evitar possíveis interpretações equivocadas. Tais processos caracterizam-se por serem guiados por um programa e dependerem da existência de um objetivo: “Um processo ou um comportamento teleonômico é aquele que deve sua direcionalidade para um objetivo à operação de um programa (MAYR, 1998a, p. 438). Essa constitui uma diferença importante nos níveis de complexidade da natureza inanimada e da viva. Não encontramos processos teleonômicos em sistemas estritamente físicos, mas somente nos organismos e nas máquinas fabricadas pelos homens. Tais processos originam-se ou por seleção natural ou por meio de um agente intencional da espécie humana. O principal exemplo em biologia é o programa genético, mas também encontramos esses processos no funcionamento de órgãos e glândulas, em processos relacionados aos mecanismos de auto-regulação, como nos mísseis auto-dirigíveis, que possuem mecanismos de propulsão para seguir a fonte de calor mais próxima. Distintamente dos que defendem a concepção etiológica de função (que veremos a seguir), Mayr considera que não é adequado o emprego do termo teleonômico quando se trata da adaptabilidade dos sistemas biológicos. Para ele, os processos teleonômicos pertencem ao campo das causas próximas, isto é, das causas que decorrem da natureza físico-química da atividade biológica e são suscetíveis de uma explicação mecânica. Essas causas devem ser separadas das causas últimas, que dizem respeito às causas evolutivas, aos mecanismos de adaptação e de seleção natural. Estes não dizem respeito aos processos teleonômicos, porque uma coisa é o funcionamento do programa e outra é a origem dele. A adaptação responde pela origem do programa e, nesse caso, uma linguagem puramente selecionista seria mais adequada, porque o uso da linguagem teleológica para explicar as adaptações poderia remeter à antiga ideia de que a evolução conduz a adaptação em direção à perfeição e ao progresso. Também não se poderia recorrer à pressão seletiva, pois ela não é uma causa próxima, mas uma causa última, que explica a construção histórica do programa genético e não explica o programa no seu funcionamento. A seleção, sustenta Mayr, atua sobre eventos passados, como mutações 107