Prévia do material em texto
Ruth Millikan, por exemplo, defende uma concepção mais restrita do conceito de função, na medida em que reconhece como objeto de aplicação do termo ’função própria’ apenas os casos em que há seleção natural. A autora apresenta duas condições para que haja função própria. A primeira diz: A originou-se como uma “reprodução” [...] de um item anterior que, devido em parte à posse das propriedades reproduzidas, realizou F no passado, e A existe por causa [...] dessa ou dessas realizações (1989, p. 288). A segunda diz: A originou-se como produto de algum item anterior que, dadas suas circuns- tâncias, realizou F como função própria e que, sob aquelas circunstâncias, normalmente causa F ser realizado através da produção de um item como A (1989, p. 288). Nesse último caso, trata-se da “função própria derivada”, como ocorre nos comporta- mentos condicionados. A condição necessária posta pela reprodução descreve um processo histórico-causal; a história, sustenta Millikan, é o fator mais determinante para caracterizar a função: “de acordo com minha definição, se algo vai ter ou não função própria depende se tem o tipo certo de história” (MILLIKAN, 1989, p. 292). Se não for reprodução de nada e se não for produzido por algo que tenha função própria, não tem função própria, ainda que se comporte da mesma maneira de algo que tenha. Assim, segundo essa definição, algo pode ter uma função sem que tenha função própria, pois as disposições atuais não são suficientes para determinar uma função própria. O conceito de função própria baseia-se no caráter histórico do item, estando ele sustentado na história evolutiva que responde pelas “razões de sobrevivência” desses itens (MILLIKAN, 1984, p. 28). Millikan considera como exemplos de função própria não apenas os órgãos dos seres vivos e o comportamento instintivo, mas também os comportamentos que envolvem aprendizado. No entanto, a concepção de Millikan apresenta problemas: afinal há casos em que se supõe ter ocorrido originariamente seleção para determinado funcionamento do traço e ter ocorrido uma seleção diferente, ou seja, para outro funcionamento no passado recente ou atual. Além disso, há o problema dos casos de traços vestigiais que não apresentam mais funções. A concepção histórica, que se baseia na história evolutiva originária, considera que devem ser reconhecidas e atribuídas funções para esses traços, ainda que eles não apresentem mais a função. Essa dificuldade levou Godfrey-Smith (1994) a defender que deve ser feita uma importante distinção — entre seleção original, passada, e seleção moderna ou recente —, e que essa distinção precisa ser levada em conta quando se analisa o conceito de função. A seleção moderna pode ter agido de modo a conservar, mudar ou mesmo eliminar a 116 função de um traço. O problema é que se apenas for levada em conta a seleção original ou passada corre-se o risco de deixar de assinalar funções importantes e reconhecidas, bem como de atribuir função a órgãos que não cumprem mais esse papel. Por isso, Godfrey-Smith, tomando como ponto de partida a definição dada por Millikan — de que o processo histórico é determinante para caracterizar certo traço como funcional —, propõe que se explique a existência de certos traços funcionais entre os membros de uma população recorrendo ao fato de que, no passado recente, esses membros foram bem sucedidos no processo seletivo. Além disso, ele observa que é possível que a construção originária de um traço envolva outras forças além da seleção natural (GODFREY-SMITH, 1999, p. 214). Apesar de a incorporação da seleção recente na definição de função poder ser conside- rada uma decisão eficaz — porque resolve alguns problemas apresentados à concepção histórica baseada na seleção originária —, ela não é suficiente para resolver todos os problemas que se levantam com relação à concepção etiológica de função. De fato, não há garantia de que a fixação e a manutenção de um traço seja fruto da ação da seleção natural. Traços podem ser mantidos porque as variações fenotípicas não foram produzidas ou ainda porque elas foram eliminadas por outros fatores acidentais que não a seleção natural. Isso é um problema para aqueles que defendem que as funções são disposições e capacidades dos traços mantidos por meio da seleção natural. De acordo com essa concepção, se o traço não for mantido por seleção natural, não possui função. O problema, no entanto, é determinar até onde a seleção natural responde pela manutenção do traço. Godfrey-Smith, por exemplo, tem consciência desse problema quando afirma que os traços estão sujeitos a vários tipos de inércia e cita duas razões para isso: a ausência de variação e a eliminação das variações por razões não seletivas. Ele admite também que, nesses casos, a explicação histórica moderna seria simples- mente falsa e que não há como eliminar esse risco (GODFREY-SMITH, 1999, p. 215). De fato, são muitas as dificuldades para se obter informações sobre as condições que são exigidas para se sustentar a hipótese da seleção natural, bem como mostrar as variações hereditárias e suas diferenças em aptidão. Desse modo, a perspectiva de que apenas os traços adaptativos, uma vez que evoluí- ram por seleção natural, geram funções enfrenta dois problemas: (1) os casos em que se supõe que os traços sofreram originariamente, no passado, uma seleção para determinada função e que num passado recente ou atual apre- sentam outra função. O exemplo frequentemente utilizado para caracterizar esse fenômeno é o da evolução das penas das aves. Acredita-se que as penas das aves evoluíram, primeiramente, para cumprir a função de termo-regulação e não para o voo. Sabemos, no entanto, que de um passado recente para cá houve um aperfeiçoamento das penas tendo em vista esta outra finalidade, o voo5. 5 Na visão de Schwartz, “embora as penas possam ter surgido por razões não relacionadas ao voo, elas têm 117