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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-65

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Ruth Millikan, por exemplo, defende uma concepção mais restrita do conceito de
função, na medida em que reconhece como objeto de aplicação do termo ’função própria’
apenas os casos em que há seleção natural. A autora apresenta duas condições para que
haja função própria. A primeira diz:
A originou-se como uma “reprodução” [...] de um item anterior que, devido
em parte à posse das propriedades reproduzidas, realizou F no passado, e A
existe por causa [...] dessa ou dessas realizações (1989, p. 288).
A segunda diz:
A originou-se como produto de algum item anterior que, dadas suas circuns-
tâncias, realizou F como função própria e que, sob aquelas circunstâncias,
normalmente causa F ser realizado através da produção de um item como A
(1989, p. 288).
Nesse último caso, trata-se da “função própria derivada”, como ocorre nos comporta-
mentos condicionados.
A condição necessária posta pela reprodução descreve um processo histórico-causal;
a história, sustenta Millikan, é o fator mais determinante para caracterizar a função: “de
acordo com minha definição, se algo vai ter ou não função própria depende se tem o
tipo certo de história” (MILLIKAN, 1989, p. 292). Se não for reprodução de nada e se
não for produzido por algo que tenha função própria, não tem função própria, ainda
que se comporte da mesma maneira de algo que tenha. Assim, segundo essa definição,
algo pode ter uma função sem que tenha função própria, pois as disposições atuais
não são suficientes para determinar uma função própria. O conceito de função própria
baseia-se no caráter histórico do item, estando ele sustentado na história evolutiva
que responde pelas “razões de sobrevivência” desses itens (MILLIKAN, 1984, p. 28).
Millikan considera como exemplos de função própria não apenas os órgãos dos seres
vivos e o comportamento instintivo, mas também os comportamentos que envolvem
aprendizado.
No entanto, a concepção de Millikan apresenta problemas: afinal há casos em que se
supõe ter ocorrido originariamente seleção para determinado funcionamento do traço
e ter ocorrido uma seleção diferente, ou seja, para outro funcionamento no passado
recente ou atual. Além disso, há o problema dos casos de traços vestigiais que não
apresentam mais funções. A concepção histórica, que se baseia na história evolutiva
originária, considera que devem ser reconhecidas e atribuídas funções para esses traços,
ainda que eles não apresentem mais a função.
Essa dificuldade levou Godfrey-Smith (1994) a defender que deve ser feita uma
importante distinção — entre seleção original, passada, e seleção moderna ou recente —,
e que essa distinção precisa ser levada em conta quando se analisa o conceito de função.
A seleção moderna pode ter agido de modo a conservar, mudar ou mesmo eliminar a
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função de um traço. O problema é que se apenas for levada em conta a seleção original
ou passada corre-se o risco de deixar de assinalar funções importantes e reconhecidas,
bem como de atribuir função a órgãos que não cumprem mais esse papel. Por isso,
Godfrey-Smith, tomando como ponto de partida a definição dada por Millikan — de
que o processo histórico é determinante para caracterizar certo traço como funcional —,
propõe que se explique a existência de certos traços funcionais entre os membros de uma
população recorrendo ao fato de que, no passado recente, esses membros foram bem
sucedidos no processo seletivo. Além disso, ele observa que é possível que a construção
originária de um traço envolva outras forças além da seleção natural (GODFREY-SMITH,
1999, p. 214).
Apesar de a incorporação da seleção recente na definição de função poder ser conside-
rada uma decisão eficaz — porque resolve alguns problemas apresentados à concepção
histórica baseada na seleção originária —, ela não é suficiente para resolver todos os
problemas que se levantam com relação à concepção etiológica de função. De fato,
não há garantia de que a fixação e a manutenção de um traço seja fruto da ação da
seleção natural. Traços podem ser mantidos porque as variações fenotípicas não foram
produzidas ou ainda porque elas foram eliminadas por outros fatores acidentais que
não a seleção natural. Isso é um problema para aqueles que defendem que as funções
são disposições e capacidades dos traços mantidos por meio da seleção natural. De
acordo com essa concepção, se o traço não for mantido por seleção natural, não possui
função. O problema, no entanto, é determinar até onde a seleção natural responde pela
manutenção do traço. Godfrey-Smith, por exemplo, tem consciência desse problema
quando afirma que os traços estão sujeitos a vários tipos de inércia e cita duas razões
para isso: a ausência de variação e a eliminação das variações por razões não seletivas.
Ele admite também que, nesses casos, a explicação histórica moderna seria simples-
mente falsa e que não há como eliminar esse risco (GODFREY-SMITH, 1999, p. 215). De
fato, são muitas as dificuldades para se obter informações sobre as condições que são
exigidas para se sustentar a hipótese da seleção natural, bem como mostrar as variações
hereditárias e suas diferenças em aptidão.
Desse modo, a perspectiva de que apenas os traços adaptativos, uma vez que evoluí-
ram por seleção natural, geram funções enfrenta dois problemas:
(1) os casos em que se supõe que os traços sofreram originariamente, no passado,
uma seleção para determinada função e que num passado recente ou atual apre-
sentam outra função. O exemplo frequentemente utilizado para caracterizar esse
fenômeno é o da evolução das penas das aves. Acredita-se que as penas das
aves evoluíram, primeiramente, para cumprir a função de termo-regulação e não
para o voo. Sabemos, no entanto, que de um passado recente para cá houve um
aperfeiçoamento das penas tendo em vista esta outra finalidade, o voo5.
5 Na visão de Schwartz, “embora as penas possam ter surgido por razões não relacionadas ao voo, elas têm
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