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josos, enquanto os portadores dos alelos menos vantajosos praticamente não deixam descendentes. Na prática, há um limite para isso, argumentava Haldane: se poucos indivíduos se reproduzem e a vasta maioria não deixa prole, a população como um todo se torna suscetível de extinção, na medida em que a morte de um dos poucos indivíduos nos quais toda a reprodução está concentrada pode implicar o final daquela linhagem evolutiva. Uma forma de conciliar a elevada taxa de evolução com o impedimento imposto pelo “custo da seleção” é simplesmente supor que a seleção não atua: mutações ocorrem e se fixam por deriva, sem que haja necessidade de indivíduos menos aptos serem ceifados pela seleção, eliminando o problema do “custo da seleção”. Outra linha de argumentação vinha da relativa constância das taxas de substituição. Kimura mostrou que um mesmo gene tende a acumular diferenças de modo relativa- mente constante. Quanto mais tempo passa, mais mutações se acumulam. Ele pôde quantificar esse efeito comparando o grau de diferenciação entre genes presentes em vários pares de espécies, para as quais o registro fóssil permitia quantificar o tempo de divergência. Tal linearidade entre o tempo de divergência e o acúmulo de mutações só era esperado sob evolução por deriva, uma vez que as taxas de mudança sob seleção dependem da intensidade de seleção e também dos tamanhos populacionais. Esses fatores dificilmente se conservam constantes em grandes escalas de tempo e, portanto, levariam a “oscilações” nas taxas de evolução (KIMURA; OHTA, 1971). Não resta dúvida de que a visão de Kimura representava uma alternativa à visão selecionista. Em suas próprias palavras: A teoria da mutação neutra-deriva aleatória nos permite fazer uma série de previsões quantitativas e qualitativas por meio das quais a teoria pode ser testada. Nós esperamos que, através desse processo, sejamos capazes de adquirir uma compreensão mais profunda do mecanismo de evolução no nível molecular e sejamos emancipados do pan-selecionismo ingênuo (KIMURA; OHTA, 1971, p. 469). Na referência de Kimura e Ohta a um pan-selecionismo, podemos ver alguma seme- lhança com a crítica dirigida por Gould e Lewontin ao adaptacionismo. Isso indica que, entre as décadas de 1960 e 1970, o modo como a teoria sintética explicava a evolução bio- lógica, dando uma primazia quase que completa à seleção natural, causava desconforto em pesquisadores de diferentes áreas e tendências teóricas da biologia. O próprio título de um influente artigo publicado por King e Jukes em 1969, “Non-darwinian evolution”, mostra que ganhava importância, naquela época, uma visão de mundo de acordo com a qual haveria um importante componente não seletivo na evolução. Muito da pesquisa da genética evolutiva nas décadas seguintes foi dominada pela seguinte questão: a maioria das diferenças genéticas entre espécies resulta da seleção sobre mutações favoráveis, ou do acúmulo de diferenças resultantes da deriva genética, levando à fixação de mutações neutras? 242 7.1 O legado da teoria neutra de evolução molecular A teoria neutra representava um modo profundamente diferente de compreender como as diferenças genéticas entre as espécies se acumulam com o passar do tempo e suas predições acabaram norteando muito da pesquisa feita na biologia evolutiva desde a década de 1970 até os dias atuais. Mesmo os estudos que vieram a desafiar a teoria neutra, favorecendo interpretações que davam maior ênfase à seleção natural, dependiam de modo fundamental da teoria neutra. Afinal, ela oferecia um arcabouço quantitativo sólido, que permitia formular testes em bases estatísticas. Se era possível sondar a importância da seleção na evolução, isso se devia à possibilidade de confrontar os dados genéticos com o que era esperado, segundo a teoria neutra. Nos casos em que esta não era capaz de explicar os dados, interpretações seletivas ganhavam importância. Foi justamente esse papel metodológico norteador que a teoria neutra desempenhou que levou Marty Kreitman a proclamar em 1996: “a teoria neutra está morta. Vida longa à teoria neutra”. Essa frase era sua forma de expressar a ideia de que, por mais que a teoria neutra tivesse sofrido importantes golpes, como veremos a seguir, ela tinha dado um importante impulso para o estudo da evolução no nível molecular. Mas, afinal, por que se proclamava que a teoria neutra estava morta? A teoria neutra fazia previsões quantitativas muito claras sobre como o acúmulo de diferenças genéticas entre espécies deveria ocorrer no tempo, e também sobre os níveis de variabilidade que se esperaria encontrar em populações. Estudos empíricos feitos desde a década de 1970 permitiram, então, que ela fosse testada, revelando discrepâncias importantes entre os dados observados e as expectativas da teoria neutra. Em primeiro lugar, descobriu-se que o relógio molecular, uma expectativa da teoria neutra, não parecia ser apoiado pelos dados. O relógio molecular é o termo usado para descrever a constância com que se dá o acúmulo de diferenças genéticas entre espécies; quantomaior o tempo desde a separação de duas espécies, maior será o número de diferenças entre elas. Kimura (1968) havia demonstrado que se as taxas de mutação forem relativamente constantes ao longo do tempo — algo razoável de se aceitar — então o acúmulo de diferenças para as mutações que não são selecionadas (as mutações neutras) se daria de forma constante ao longo do tempo. Esse cenário difere muito daquele esperado para um gene selecionado, que acumularia mudanças em taxas diferentes, dependendo da intensidade e do tipo de seleção que estivesse operando. Dessa forma, uma constância na taxa demudanças genéticas seria uma evidência empírica a favor da teoria neutra. Porém, a comparação do número de diferenças genéticas entre vários pares de espécies revelou que o relógio molecular não era tão constante quanto se supunha; ele “oscilava” mais do que um neutralista esperaria, possivelmente como consequência de variações nos regimes de seleção ao longo do tempo (KREITMAN, 1996). Além disso, a variabilidade genética encontrada dentro de populações se revelou diferente daquela esperada pela teoria neutra, que previa altos níveis de polimorfismos em organismos com grandes 243 Capítulos Adaptacionismo A teoria neutra: evolução por deriva genética O legado da teoria neutra de evolução molecular