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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-128

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josos, enquanto os portadores dos alelos menos vantajosos praticamente não deixam
descendentes. Na prática, há um limite para isso, argumentava Haldane: se poucos
indivíduos se reproduzem e a vasta maioria não deixa prole, a população como um todo
se torna suscetível de extinção, na medida em que a morte de um dos poucos indivíduos
nos quais toda a reprodução está concentrada pode implicar o final daquela linhagem
evolutiva. Uma forma de conciliar a elevada taxa de evolução com o impedimento
imposto pelo “custo da seleção” é simplesmente supor que a seleção não atua: mutações
ocorrem e se fixam por deriva, sem que haja necessidade de indivíduos menos aptos
serem ceifados pela seleção, eliminando o problema do “custo da seleção”.
Outra linha de argumentação vinha da relativa constância das taxas de substituição.
Kimura mostrou que um mesmo gene tende a acumular diferenças de modo relativa-
mente constante. Quanto mais tempo passa, mais mutações se acumulam. Ele pôde
quantificar esse efeito comparando o grau de diferenciação entre genes presentes em
vários pares de espécies, para as quais o registro fóssil permitia quantificar o tempo de
divergência. Tal linearidade entre o tempo de divergência e o acúmulo de mutações só
era esperado sob evolução por deriva, uma vez que as taxas de mudança sob seleção
dependem da intensidade de seleção e também dos tamanhos populacionais. Esses
fatores dificilmente se conservam constantes em grandes escalas de tempo e, portanto,
levariam a “oscilações” nas taxas de evolução (KIMURA; OHTA, 1971).
Não resta dúvida de que a visão de Kimura representava uma alternativa à visão
selecionista. Em suas próprias palavras:
A teoria da mutação neutra-deriva aleatória nos permite fazer uma série
de previsões quantitativas e qualitativas por meio das quais a teoria pode
ser testada. Nós esperamos que, através desse processo, sejamos capazes
de adquirir uma compreensão mais profunda do mecanismo de evolução
no nível molecular e sejamos emancipados do pan-selecionismo ingênuo
(KIMURA; OHTA, 1971, p. 469).
Na referência de Kimura e Ohta a um pan-selecionismo, podemos ver alguma seme-
lhança com a crítica dirigida por Gould e Lewontin ao adaptacionismo. Isso indica que,
entre as décadas de 1960 e 1970, o modo como a teoria sintética explicava a evolução bio-
lógica, dando uma primazia quase que completa à seleção natural, causava desconforto
em pesquisadores de diferentes áreas e tendências teóricas da biologia. O próprio título
de um influente artigo publicado por King e Jukes em 1969, “Non-darwinian evolution”,
mostra que ganhava importância, naquela época, uma visão de mundo de acordo com a
qual haveria um importante componente não seletivo na evolução. Muito da pesquisa da
genética evolutiva nas décadas seguintes foi dominada pela seguinte questão: a maioria
das diferenças genéticas entre espécies resulta da seleção sobre mutações favoráveis, ou
do acúmulo de diferenças resultantes da deriva genética, levando à fixação de mutações
neutras?
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7.1 O legado da teoria neutra de evolução molecular
A teoria neutra representava um modo profundamente diferente de compreender
como as diferenças genéticas entre as espécies se acumulam com o passar do tempo
e suas predições acabaram norteando muito da pesquisa feita na biologia evolutiva
desde a década de 1970 até os dias atuais. Mesmo os estudos que vieram a desafiar a
teoria neutra, favorecendo interpretações que davam maior ênfase à seleção natural,
dependiam de modo fundamental da teoria neutra. Afinal, ela oferecia um arcabouço
quantitativo sólido, que permitia formular testes em bases estatísticas. Se era possível
sondar a importância da seleção na evolução, isso se devia à possibilidade de confrontar
os dados genéticos com o que era esperado, segundo a teoria neutra. Nos casos em que
esta não era capaz de explicar os dados, interpretações seletivas ganhavam importância.
Foi justamente esse papel metodológico norteador que a teoria neutra desempenhou
que levou Marty Kreitman a proclamar em 1996: “a teoria neutra está morta. Vida longa
à teoria neutra”. Essa frase era sua forma de expressar a ideia de que, por mais que a
teoria neutra tivesse sofrido importantes golpes, como veremos a seguir, ela tinha dado
um importante impulso para o estudo da evolução no nível molecular. Mas, afinal, por
que se proclamava que a teoria neutra estava morta?
A teoria neutra fazia previsões quantitativas muito claras sobre como o acúmulo de
diferenças genéticas entre espécies deveria ocorrer no tempo, e também sobre os níveis
de variabilidade que se esperaria encontrar em populações. Estudos empíricos feitos
desde a década de 1970 permitiram, então, que ela fosse testada, revelando discrepâncias
importantes entre os dados observados e as expectativas da teoria neutra. Em primeiro
lugar, descobriu-se que o relógio molecular, uma expectativa da teoria neutra, não
parecia ser apoiado pelos dados. O relógio molecular é o termo usado para descrever a
constância com que se dá o acúmulo de diferenças genéticas entre espécies; quantomaior
o tempo desde a separação de duas espécies, maior será o número de diferenças entre
elas. Kimura (1968) havia demonstrado que se as taxas de mutação forem relativamente
constantes ao longo do tempo — algo razoável de se aceitar — então o acúmulo de
diferenças para as mutações que não são selecionadas (as mutações neutras) se daria de
forma constante ao longo do tempo. Esse cenário difere muito daquele esperado para
um gene selecionado, que acumularia mudanças em taxas diferentes, dependendo da
intensidade e do tipo de seleção que estivesse operando. Dessa forma, uma constância na
taxa demudanças genéticas seria uma evidência empírica a favor da teoria neutra. Porém,
a comparação do número de diferenças genéticas entre vários pares de espécies revelou
que o relógio molecular não era tão constante quanto se supunha; ele “oscilava” mais
do que um neutralista esperaria, possivelmente como consequência de variações nos
regimes de seleção ao longo do tempo (KREITMAN, 1996). Além disso, a variabilidade
genética encontrada dentro de populações se revelou diferente daquela esperada pela
teoria neutra, que previa altos níveis de polimorfismos em organismos com grandes
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	Capítulos
	Adaptacionismo 
	A teoria neutra: evolução por deriva genética
	O legado da teoria neutra de evolução molecular

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