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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-122

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tiva, que apontam os limites da seleção natural em moldar fenótipos ótimos, bem como
a importância, no processo evolutivo, de outros mecanismos além da seleção.
No contexto intelectual que sucedeu à síntese evolutiva das décadas de 1930 e 1940,
o conceito de adaptação foi ressignificado, como parte da visão do processo evolutivo
desenvolvida nos trabalhos clássicos de Mayr, Dobzhansky, Simpson, Stebbins, entre
outros — caracterizada por Sterelny e Griffths (1999) como a ‘visão aceita’ (received view)
da biologia evolutiva. As duas formas de conceituar adaptação, como característica e
como processo, encontradas no glossário de Futuyma (1992)6 —um dos textos didáticos
mais adotados em disciplinas de evolução no ensino superior —, serve para exemplificar
esta perspectiva:
Adaptação—Um processo de mudança genética de uma população, devido à
seleção natural, pelo qual o estado médio de um caráter é aperfeiçoado com
relação a uma função específica ou pelo qual se acredita que uma população
se torna mais ajustada para alguma característica de seu ambiente. Também,
uma adaptação: uma característica que se tornou predominante em uma
população devido a uma vantagem seletiva proporcionada pelo seu aumento
do desempenho de alguma função (FUTUYMA, 1992, p. 578. Ênfase no
original).
O modo como o conceito de adaptação é formulado, na perspectiva da teoria sintética,
implica as ideias de que: (1) qualquer característica funcional é necessariamente resul-
tante da ação direta da seleção natural; (2) esse processo leva a um estado ótimo da
estrutura orgânica em sua relação com o ambiente; e (3) ele conduz a um aumento da
aptidão darwiniana (fitness) média da população. No entanto, autores como Sober (1993)
e Sterelny & Griffiths (1999) têm argumentado, vigorosamente, acerca da independência
lógica entre adaptação (característica moldada pela seleção natural) e adaptatividade,
ou incremento na aptidão darwiniana.
Para que a seleção natural possa levar à otimização, é preciso que algumas condi-
ções sejam satisfeitas: por exemplo, o regime seletivo deve manter-se estável por um
longo período de tempo.7 No entanto, o ambiente sofre mudanças frequentes, seja por
6 Vale a pena observar que, após apresentar esta definição para adaptação, Futuyma (1992, p. 578)
comenta que este é “... um conceito complexo e mal definido”, o que ilustra bem a importância de sua
elucidação, dado o papel central desempenhado pelo mesmo no pensamento evolutivo. Embora tenha
mantido esta mesma definição no glossário, Futuyma apresenta, na terceira edição de Evolutionary
Biology (publicada em 1998), uma abordagem do conceito de adaptação, e de sua relação com a seleção
natural, mais informada pelas controvérsias a respeito da definição e dos critérios para identificação de
uma adaptação, em comparação com a edição de 1986 (publicada em tradução brasileira de 1992). Após
analisar tais controvérsias no capítulo referente à seleção natural e adaptação, ele propõe a seguinte
definição: “uma característica é uma adaptação para alguma função caso tenha tornado-se prevalente ou se
mantido na população (ou espécie, clado) devido à seleção natural para a função” (FUTUYMA, 1998, p.354).
Como veremos mais abaixo, esta definição é bastante próxima daquela proposta por Sober (1993).
7 Para uma discussão detalhada sobre as condições em que a seleção pode ser otimizadora, ver Sober
(1993).
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processos autônomos, como as mudanças geológicas, ou, em grande parte, pela própria
atividade dos organismos, que agem continuamente sobre o meio em que vivem, bem
como sobre os demais organismos. Retornaremos a esse ponto a seguir, ao tratarmos
da crítica de Lewontin (2002; ver também LEVINS; LEWONTIN, 1985) à formulação
típica do conceito de adaptação. Desse modo, a evolução por seleção natural pode ser
descrita, metaforicamente, como uma espécie de corrida em direção a um ‘alvo móvel’:
à medida que a população é modificada em resposta a uma pressão seletiva criada por
determinadas condições ambientais, essas condições podem estar mudando, em parte
devido à própria evolução dessa população (LEWONTIN, 1978, p. 159; SOBER, 1993, p.
174). Essa é uma das razões pelas quais não podemos entender a seleção natural como
um processo necessariamente otimizador, ou seja, que terá sempre como resultado final
o estado ótimo de uma característica, ou uma adaptação perfeita de uma população
às suas condições de vida. Não se trata de que a seleção natural nunca possa ter esse
resultado, mas apenas de que esse não é um resultado necessário do processo de seleção.
Como pode levar algum tempo até que se façam sentir novas pressões seletivas, mu-
danças ambientais podem não ser seguidas rapidamente por mudanças na distribuição
de características de uma população. Uma das razões para esse lapso temporal entre
mudança ambiental e manifestação como pressão seletiva reside no fato de que o efeito
de uma dada mudança pode ser minimizado por outros fatores ambientais, ou pela
ação de outras forças evolutivas. Desse modo, uma característica que se tenha fixado
por apresentar valor adaptativo num determinado ambiente ancestral, sendo, portanto,
uma adaptação, pode continuar prevalente por algum período de tempo sem conferir
qualquer benefício, ou até mesmo causando problemas para o organismo que a possui. É
o caso, por exemplo, do nosso paladar preferencial por alimentos ricos em carboidratos e
lipídeos, particularmente acentuado na infância: trata-se de uma adaptação às condições
de um ambiente ancestral com disponibilidade limitada de calorias, mas que, nos dias de
hoje, tem resultado em sérios problemas de saúde nas populações humanas, a exemplo
da atual epidemia de obesidade, inclusive entre crianças.
Se em vez de empregarmos o conceito de ‘ambiente’ — que é amplo e vago demais,
por dizer respeito a uma quantidade muito grande de referentes no mundo natural —,
fizermos uso do conceito de ‘nicho ecológico’, que tem significado mais restrito, nossa
compreensão do processo evolutivo poderá ser consideravelmente refinada. Lewontin
(2002, p. 57), por exemplo, entende nicho ecológico como “uma justaposição espacial
e temporal de diferentes elementos do mundo que produzem um entorno relevante
para o organismo”. À luz de tal compreensão, podemos conceber que alguns desses
elementos podem estar mudando constantemente e sem direção definida, enquanto
outros elementos podem ser estáveis, ou mudar sempre na mesma direção. Desse modo,
numa mesma espécie, poderá haver otimização para características relacionadas a esses
últimos fatores ambientais — que não apresentaram mudança ou mudaram de forma
direcional numa escala temporal dada —, enquanto características conectadas a fatores
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