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acumuladas em diferentes módulos possam ser acessadas. Para a PE, comportamentos mais flexíveis seriam explicados, em parte, pela integração de um número crescente de módulos coordenados por PCPG.9 No entanto, em situações que colocariam em risco a sobrevivência dos indivíduos, por exigirem uma resposta rápida, os programas cognitivos dependentes de conteúdo seriam disparados antes dos PCPG (COSMIDES; TOOBY, 1997). Tal precedência garantiria uma maior eficiência e rapidez na solução dos problemas, cuja urgência não seria atendida por um PCPG. Por exemplo, não seria adaptativo aprender a reagir a um predador por tentativa e erro. Devemos ressaltar ainda, que o tráfego de informação entre módulos também é um alvo da seleção natural, na medida em que a estruturação dos circuitos nervosos durante a embriogênese, e os limites para sua alteração decorrentes da experiência, também estão sob rígido controle genético (RAMUS, 2006). Em apoio ao modelo de arquitetura mental da PE, concorre uma série de trabalhos teóricos e empíricos relativos tanto ao nível dos programas cognitivos como ao nível da neurofisiologia do encéfalo. No que diz respeito ao primeiro nível, destacam-se os trabalhos desenvolvidos na área da inteligência artificial. Engenheiros de computação que tentam montar computadores inteligentes (capazes de algumas ações humanas como jogar xadrez, tocar sinfonias e reconhecer expressões emocionais) percebem que é preciso programar a mente do computador para que ele possa processar as informações adquiridas. Segundo essa tradição, quanto mais programas, maior a capacidade de gerar comportamentos complexos. Naturalmente, não é só o número de programas que é relevante, mas também a própria estrutura do computador, assim como a capacidade dos programas de se articularem e se sobreporem. De qualquer maneira, na medida em que cresce o número de programas, aumenta também o número de interações entre tais programas (DENNETT, 1998; PINKER, 2004). No ramo da psicologia cognitiva, testes empíricos com seres humanos que exploram a expressão de comportamentos específicos, tais como a detecção de trapaceiros e a prevenção a danos físicos, também sugerem uma mente humana modularizada. Esses comportamentos são evocados em situações experimentais em que grupos de pessoas são submetidos a baterias de testes de Wason, que avaliam a capacidade das pessoas em aplicar corretamente o raciocínio lógico dedutivo. Os respondentes normalmente têmum desempenho ruim no teste deWason (aplicammal o raciocínio lógico dedutivo), quando este é construído a partir de situações abstratas. No entanto, quando o mesmo tipo de teste é feito no contexto de trocas ou regras sociais, ou de danos físicos, o desempenho é significativamente superior. Algumas variações do teste de Wason foram construídas de forma que a resposta baseada apenas no raciocínio lógico dedutivo contrariasse a decisão tomada por um módulo especializado na detecção de trapaceiros. Nessas situações, a maior parte dos respondentes opta pela resposta que contraria o raciocínio lógico 9 O que não quer dizer que não exista aprendizagem baseada apenas em PCPG. 334 dedutivo, mas que garantiria a detecção mais apurada de trapaceiros. Esses resultados sugerem que deve haver módulos dependentes de conteúdo que são prioritariamente acionados — em contexto, cuja tomada de decisão envolva situações críticas sob o ponto de vista da sobrevivência — em detrimento de PCPG como o raciocínio lógico dedutivo. (COSMIDES; TOOBY, 1992; RIDLEY, 2000). O estudo comportamental do medo também sugere a existência de módulos espe- cíficos. Modelos científicos, com controles experimentais bastante rigorosos, indicam fortemente que o condicionamento do medo entre macacos Rhesus e seres humanos é mais efetivo quando disparado pela visão de uma cobra do que de uma rosa, ou de um cogumelo. Ou seja, aprendemos a ter medo mais facilmente em situações que de fato nos ameaçaram ao longo da história evolutiva (OHMAN; MINEKA, 2001). Em relação à neurofisiologia do encéfalo, a leitura de qualquer compêndio de anato- mia humana indica que comportamentos e funções mentais são realizados por pelo menos duas partes distintas do sistema nervoso: o sistema límbico10 e o sistema cortical. O primeiro, além de controlar uma série de aspectos de nossa fisiologia, é o centro do controle de emoções como a dor, o medo e a agressão, bem como de comportamentos motivados pela fome e pelo desejo sexual. O córtex cerebral é responsável por nossa capacidade de ler, escrever, falar, lembrar do passado, planejar o futuro, criar, entre outras ações intencionais e conscientes (GIBB, 2007). A compartimentação funcional do cérebro em módulos também pode ser verificada em pacientes com perdas de massa cerebral, como no caso de Phineas Gage. Gage era um ferroviário, cuja caixa craniana foi vazada de baixo para cima por uma barra de ferro de um metro de comprimento e três centímetros de diâmetro, acarretando uma perda significativa do córtex frontal esquerdo (atrás do olho). Incrivelmente, ele saiu lúcido do acidente e ileso no que concerne a todas as suas funções vitais e sensoriais, com exceção da perda da visão esquerda. Após o acidente, suas habilidades cognitivas não foram afetadas. No entanto, seu comportamento social mudou de forma drástica: a pessoa moderada e colaborativa que ele era deu lugar a um indivíduo caprichoso, vacilante e sem limites no emprego de linguagem obscena (DAMÁSIO, 2004). Sabe-se, hoje, que a região do cérebro perdida por Phineas Gage é a responsável por funções cognitivas e emocionais elaboradas, tais como julgamento, raciocínio e abstração. Ou seja, “o erro de Descartes”, expressão que serve de título ao famoso livro de Damásio, foi separar a razão da emoção. Ao perder, por assim dizer, suas emoções sociais, mesmo preservando sua racionalidade cognitiva, Gage passa a ser uma espécie de idiota emocional. Sua razão não pôde socorrê-lo da tragédia em que se viu: a de ser incapaz de participar do xadrez social das meias verdades e da ocultação de opiniões negativas e desmedidas sobre as outras pessoas, que todos nós, ditos normais, sabemos fazer mais ou menos 10O sistema límbico aparece já no início da história evolutiva dos primeiros mamíferos e é formado por um conjunto de redes neurais pertencentes ao diencéfalo e ao córtex cerebral. Portanto, a delimitação entre sistema límbico e córtex nem sempre é muito precisa. 335