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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-223

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Portanto, o programa reducionista parece perder sua orientação epistêmica, à medida
que se perde de vista a maneira pela qual o reducionismo ajudaria a entender a ciência
como descrevendo um mundo constituído por uma série de mecanismos interligados.
2 Reducionismo e unidade da ciência
Há muitas maneiras diferentes pelas quais um programa reducionista pode superar
as dificuldades mencionadas acima. O único ponto importante para nós é deixar claro
que as três diferentes propostas tradicionais sobre o que é o reducionismo estão intima-
mente vinculadas e dependem do pressuposto de que a ciência possui uma unidade.
Essa unidade é a expressão da base objetiva que as diferentes propostas reducionistas
tentam capturar a partir de diferentes perspectivas.
O mecanicismo fenomênico e o mecanicismo nomológico são duas maneiras de
caracterizar a ontologia básica sobre a qual descansa todo conhecimento científico.
Como já mencionamos, o reducionismo explicativo e o metafísico não são dois projetos
desvinculados, mas, sim, duas maneiras de ver um programa reducionista. Um exemplo
histórico instrutivo de comoumprograma reducionista se relaciona com tesesmetafísicas
é a discussão entre Neurath e Carnap sobre a origem da objetividade da ciência. A
objetividade da ciência, para Neurath, provinha da capacidade da linguagem natural
sustentar a objetividade de todo tipo de conhecimento3. As linguagens científicas podem
e devem ser vistas, segundo Neurath, como dialetos especializados, mas dialetos cuja
sustentação objetiva provém, em última instância, da linguagem comum, não de sua
tradução para um modo formal; é a linguagem comum que dá a sustentação objetiva
necessária para dar conta da objetividade do conhecimento científico. Para Carnap, pelo
contrário, a objetividade da ciência descansava, em última instância, em uma estrutura
lógica, subjacente às teorias e à linguagem comum, uma estrutura que presta apoio
objetivo às leis universais — das quais as leis restritas que descrevem os fenômenos em
um laboratório ou em muitas aplicações científicas são casos especiais.
Portanto, não é surpreendente que a discussão sobre reducionismo tenha avançado
bastante, uma vez que começaram a ser feitas distinções importantes entre tipos de
programas reducionistas.
William Wimsatt destacou a importância de distinguir dois tipos de reducionismo,
os quais podem ser vistos como associados a programas reducionistas diferentes4. O
primeiro tipo de reducionismo é aquele que desempenha um papel importante na
caracterização da sucessão de teorias. Uma redução, nesse sentido, é uma relação entre
estruturas teóricas por meio da qual, tipicamente, uma teoria se transforma em outra
(utilizando aproximações e outros tipos de restrições não lógicas). Assim, por exemplo,
diz-se que a teoria especial da relatividade é reduzida à mecânica clássica no limite em
3 Ver, por exemplo, Neurath (1932) e Carnap (1932).
4 Ver, por exemplo, Wimsatt (2006).
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que as velocidades são pequenas (comparadas à velocidade da luz). O reducionismo,
nesse sentido, desempenha um papel regulador, à medida que proporciona pontos
de referência que ajudam a decidir em quais situações podemos usar uma teoria mais
simples e em quais precisamos de uma teoria mais complexa que nos ofereça uma
melhor aproximação dos fenômenos. Se queremos calcular a órbita de um satélite,
podemos usar a mecânica clássica quando a velocidade do satélite é pequena e estão
dadas outras condições. É claro que a relação de redução como sucessão é assimétrica e
não transitiva: não apenas porque os tipos de relações de aproximação ou semelhança
que estão em jogo não necessariamente se estendem além das relações em questão, mas
porque as relações sempre ocorrem com respeito a um tipo de modelo ou a um tipo
de aplicação. Por exemplo, diz-se que a genética molecular é uma teoria que está em
relação de redução como sucessão com respeito à genética mendeliana. Mas não tem
sentido perguntar se há uma relação de redução entre a teoria da pangênese de Darwin
e a teoria de Mendel. Ou, no mínimo, essa pergunta seria independente da relação de
redução entre a genética mendeliana e a molecular.
O segundo tipo de reducionismo envolve o uso de identidades e localizações de
mecanismos causais, os quais permitem dar conta de fenômenos em um nível mais
alto de organização, em termos de processos que ocorrem em níveis “inferiores” de
organização. Este segundo tipo de reducionismo apresenta uma redução como uma
relação de explicação,mas explicação, aqui, não mais se entende como uma explicação N-D (ou,
de modo mais geral, como uma explicação baseada em leis universais), mas como uma explicação
causal que pode ser formulada de maneiras muito diversas, em termos de mecanismos, modelos,
leis não universais etc. Ou seja, uma relação de redução não precisa mais se dar entre teorias, mas
possivelmente entre modelos, mecanismos etc. Se, por exemplo, identificamos um mesmo
mecanismo em duas teorias (e cujo papel causal nas diferentes teorias seja o mesmo),
então podemos falar de uma redução entre teorias. Kenneth Waters, por exemplo,
mostra que o que ele chama de princípio gerador de diferença (diferenças em genes
causam diferenças em fenótipos) funciona tanto na genética clássica como na genética
molecular. Assim, esse princípio permite estabelecer uma relação de redução entre essas
teorias5. Mas a redução não ocorre, propriamente falando, entre teorias. Na verdade,
o que se estabelece (pelo menos prima facie) é uma relação entre mecanismos descritos
em diferentes níveis de organização. Os fatores mendelianos podem ser descritos nos
cromossomos pormeio da hipótese de Sutton-Boveri (verDARDEN, 1991) ou pormeio de
mapeamentos de ligações (WIMSATT, 1992) ou bemmediante uma série de mecanismos
próprios da genética molecular. O interessante é que quanto mais detalhados são os
mecanismos, menos sentido faz falar em redução entre “níveis”; em vez disso, cada vez
mais o que parece ser importante é a caracterização de diferentes tipos de mecanismos
ou processos como partes de sistemas complexos.
5 Waters (1994).
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	Traduções
	Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade 
	Reducionismo e unidade da ciência

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