Prévia do material em texto
Portanto, o programa reducionista parece perder sua orientação epistêmica, à medida que se perde de vista a maneira pela qual o reducionismo ajudaria a entender a ciência como descrevendo um mundo constituído por uma série de mecanismos interligados. 2 Reducionismo e unidade da ciência Há muitas maneiras diferentes pelas quais um programa reducionista pode superar as dificuldades mencionadas acima. O único ponto importante para nós é deixar claro que as três diferentes propostas tradicionais sobre o que é o reducionismo estão intima- mente vinculadas e dependem do pressuposto de que a ciência possui uma unidade. Essa unidade é a expressão da base objetiva que as diferentes propostas reducionistas tentam capturar a partir de diferentes perspectivas. O mecanicismo fenomênico e o mecanicismo nomológico são duas maneiras de caracterizar a ontologia básica sobre a qual descansa todo conhecimento científico. Como já mencionamos, o reducionismo explicativo e o metafísico não são dois projetos desvinculados, mas, sim, duas maneiras de ver um programa reducionista. Um exemplo histórico instrutivo de comoumprograma reducionista se relaciona com tesesmetafísicas é a discussão entre Neurath e Carnap sobre a origem da objetividade da ciência. A objetividade da ciência, para Neurath, provinha da capacidade da linguagem natural sustentar a objetividade de todo tipo de conhecimento3. As linguagens científicas podem e devem ser vistas, segundo Neurath, como dialetos especializados, mas dialetos cuja sustentação objetiva provém, em última instância, da linguagem comum, não de sua tradução para um modo formal; é a linguagem comum que dá a sustentação objetiva necessária para dar conta da objetividade do conhecimento científico. Para Carnap, pelo contrário, a objetividade da ciência descansava, em última instância, em uma estrutura lógica, subjacente às teorias e à linguagem comum, uma estrutura que presta apoio objetivo às leis universais — das quais as leis restritas que descrevem os fenômenos em um laboratório ou em muitas aplicações científicas são casos especiais. Portanto, não é surpreendente que a discussão sobre reducionismo tenha avançado bastante, uma vez que começaram a ser feitas distinções importantes entre tipos de programas reducionistas. William Wimsatt destacou a importância de distinguir dois tipos de reducionismo, os quais podem ser vistos como associados a programas reducionistas diferentes4. O primeiro tipo de reducionismo é aquele que desempenha um papel importante na caracterização da sucessão de teorias. Uma redução, nesse sentido, é uma relação entre estruturas teóricas por meio da qual, tipicamente, uma teoria se transforma em outra (utilizando aproximações e outros tipos de restrições não lógicas). Assim, por exemplo, diz-se que a teoria especial da relatividade é reduzida à mecânica clássica no limite em 3 Ver, por exemplo, Neurath (1932) e Carnap (1932). 4 Ver, por exemplo, Wimsatt (2006). 432 que as velocidades são pequenas (comparadas à velocidade da luz). O reducionismo, nesse sentido, desempenha um papel regulador, à medida que proporciona pontos de referência que ajudam a decidir em quais situações podemos usar uma teoria mais simples e em quais precisamos de uma teoria mais complexa que nos ofereça uma melhor aproximação dos fenômenos. Se queremos calcular a órbita de um satélite, podemos usar a mecânica clássica quando a velocidade do satélite é pequena e estão dadas outras condições. É claro que a relação de redução como sucessão é assimétrica e não transitiva: não apenas porque os tipos de relações de aproximação ou semelhança que estão em jogo não necessariamente se estendem além das relações em questão, mas porque as relações sempre ocorrem com respeito a um tipo de modelo ou a um tipo de aplicação. Por exemplo, diz-se que a genética molecular é uma teoria que está em relação de redução como sucessão com respeito à genética mendeliana. Mas não tem sentido perguntar se há uma relação de redução entre a teoria da pangênese de Darwin e a teoria de Mendel. Ou, no mínimo, essa pergunta seria independente da relação de redução entre a genética mendeliana e a molecular. O segundo tipo de reducionismo envolve o uso de identidades e localizações de mecanismos causais, os quais permitem dar conta de fenômenos em um nível mais alto de organização, em termos de processos que ocorrem em níveis “inferiores” de organização. Este segundo tipo de reducionismo apresenta uma redução como uma relação de explicação,mas explicação, aqui, não mais se entende como uma explicação N-D (ou, de modo mais geral, como uma explicação baseada em leis universais), mas como uma explicação causal que pode ser formulada de maneiras muito diversas, em termos de mecanismos, modelos, leis não universais etc. Ou seja, uma relação de redução não precisa mais se dar entre teorias, mas possivelmente entre modelos, mecanismos etc. Se, por exemplo, identificamos um mesmo mecanismo em duas teorias (e cujo papel causal nas diferentes teorias seja o mesmo), então podemos falar de uma redução entre teorias. Kenneth Waters, por exemplo, mostra que o que ele chama de princípio gerador de diferença (diferenças em genes causam diferenças em fenótipos) funciona tanto na genética clássica como na genética molecular. Assim, esse princípio permite estabelecer uma relação de redução entre essas teorias5. Mas a redução não ocorre, propriamente falando, entre teorias. Na verdade, o que se estabelece (pelo menos prima facie) é uma relação entre mecanismos descritos em diferentes níveis de organização. Os fatores mendelianos podem ser descritos nos cromossomos pormeio da hipótese de Sutton-Boveri (verDARDEN, 1991) ou pormeio de mapeamentos de ligações (WIMSATT, 1992) ou bemmediante uma série de mecanismos próprios da genética molecular. O interessante é que quanto mais detalhados são os mecanismos, menos sentido faz falar em redução entre “níveis”; em vez disso, cada vez mais o que parece ser importante é a caracterização de diferentes tipos de mecanismos ou processos como partes de sistemas complexos. 5 Waters (1994). 433 Traduções Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade Reducionismo e unidade da ciência