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em qualquer nível alto sempre inclui uma descrição no nível básico, em termos genéti- cos, mas não o contrário. Do que se deduz que em outros níveis não há unidades com propriedades causais independentes do nível básico genético. Com uma postura instrumentalista, qualificada por Okasha (2006) como pluralismo global, Sterelny e Kitcher indicam que, emmuitas ocasiões, nem sequer é possível indicar um “fato objetivo” sobre o nível ou níveis em que atua a seleção; não há uma resposta mais correta do que outra e, portanto, não há uma resposta para a pergunta sobre qual é a unidade de seleção. Isso torna o pluralismo um artefato epistemológico. Pode-se dizer que essa proposta exclui o problema da identificação de unidades de seleção, porque não há entre os interagentes unidades reais que sejam o foco da seleção ou que, como sustentava Dawkins, somente os replicadores contam como unidades no processo evolutivo. Sterelny eGriffiths (1999), que adotam a versão ampla do individualismo deDugatkin e Reeve27, afirmam: De acordo com esta alternativa — individualismo em sentido amplo (broad individualism) — os grupos e as propriedades dos grupos (trait groups) são aspectos do ambiente em que ocorre a seleção (STERELNY; GRIFFITHS, 1999, p. 167). Portanto, questionam que certos grupos — como bandos de babuínos, matilhas de lobos e famílias de castores, que outros consideram verdadeiras unidades coesas — sejam entidades genuínas. É interessante assinalar que, sob a mesma concepção individualista ampla, Dugatkin e Reeve (1994), com maior flexibilidade, dão seu aval à tradução mútua entre vários modelos, o de nível básico, o de nível de grupo e vice-versa, sem dar primazia a algum deles. O que na verdade tornou-se consenso na passagem de uma para outra etapa do debate foi o esquema de seleção em níveis múltiplos. Em troca, sob essa espécie de guarda-chuva teórico, abrigam-se posturas diferenciadas. A representada por Wilson, Sober e muitos outros atribui realidade aos interagentes, que podem ser grupos; isso fica visível nos fenômenos de comportamento social, na cooperação, no altruísmo e em outros casos no nível biológico e ecológico. Nessa mesma linha, Griffiths & Gray afirmam: [Os casos de] mutualismo, simbiose e várias formas de sociedade represen- tam a evolução de diversos mecanismos pelos quais indivíduos fisiológios se constituem em novas unidades de evolução (GRIFFITHS; GRAY, 1997, p. 490). 27Esses autores propõem o individualismo em sentido amplo, segundo o qual “a maior parte da evolução provémda competição reprodutiva entre indivíduos de uma população inter-reprodutiva” (DUGATKIN; REEVE, 1994, p.107). 602 Em uma posição quase extrema, Maynard Smith, influente figura do evolucionismo, reiterou sua convicção na explicação individualista com foco no gene, por considerar sua formulação matemática simples e, assim, como o modelo mais adequado para investigar as causas, reconhecendo que “a identificação das unidades é um problema sério para a teoria evolutiva” (2002, p. 524)28. Ele assinala que é suficiente utilizar a teoria dos jogos para explicar a cooperação e o altruísmo. Um fenômeno observado há algum tempo, a ritualização da luta entre animais da mesma espécie, fazendo com que não ocorra uma escalada agressiva, é entendida como um processo de seleção individual, uma “estratégia evolutivamente estável” (EEE). Essa estratégia indica que a conduta ótima para um indivíduo depende da conduta dos demais indivíduos da população: Uma EEE é uma estratégia tal que, se todos os membros da população adotarem-na, nenhuma estratégia mutante poderia invadir a população mediante seleção natural (MAYNARD SMITH, 1982, p. 10). O exemplo favorito para ilustrar essa estratégia é o jogo do Falcão e da Pomba, em que há populações compostas por indivíduos com diferentes padrões de conduta, um deles agressivo e o outro pacífico. O primeiro tende sempre a agredir e o segundo, sempre a retirar-se. Avaliando ambas as situações, a predição é que a estratégia estável seria aquela na qual a seleção tendesse ao equilíbrio. A postura de Williams (1992), comentada por Lloyd (2005, nota 17), parece ser mais flexível. Williams (1992, p. 45-46) afirma que a seleção natural deve atuar sempre sobre entidades físicas e que é concebível que os interagentes sejam selecionados em vários níveis: do molecular ao do ecossistema. E acrescenta que a seleção de grupo, proposta por D. S. Wilson, e os aspectos relacionados com a estrutura da população devem ser fatores importantes na evolução. Contudo, sugere que esses casos podem ser representados em forma equivalente como exemplos de seleção individual. 7 Genes: limitações da explicação individualista Relaciono a seguir algumas críticas29 feitas ao ponto de vista da seleção gênica30: 1. elude a dinâmica interna causal do processo ao favorecer a interpretação com base no registro estatístico (bookkeeping) das frequências gênicas que resultam da seleção; 28Maynard Smith exercia uma liderança clara em sua opção pela seleção individual. Acompanhado por Hamilton (1967), aplica a teoria dos jogos à análise das taxas extraordinárias de sexualidade (extraordinary sex-ratios) e aos casos de competição entre espécies, entre outros (cf. MAYNARD SMITH; PRICE, 1973; OKASHA, 2005). 29As críticas vêm principalmente de Sober e Lewontin (1982), Sober (1984), Wimsatt (1980); Gould & Lloyd (1999), Jablonka & Lamb (1995) e Gould (2002). 30Nota do Org.: A expressão mais usada em português é ‘ponto de vista do gene’. 603 Traduções Níveis e unidades de seleção: o pluralismo e seus desafios filosóficos Genes: limitações da explicação individualista