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Foto 5: Bando completo, juntando grãos de trigo na praia de Koshima. Importante notar a utilização tanto da boca quanto das mãos para esta tarefa. Foto © J. Martínez-Contreras, 2005. um complexo de estratégias reprodutivas dos machos e uma competição pela terra e pelos alimentos entre as estruturas matrilineares (MARUHASHI; TAKASAKI, 1996, p. 146). Imo repetirá uma conduta semelhante com grãos de trigo — atualmente o alimento que mais recebem9 os macacos —, que jogará no riacho para que eles flutuem e fiquem livres da terra. Tais condutas de limpeza por meio do uso da água — e, mais tarde, a de lavar e, ao mesmo tempo, salgar em água de mar, para dar sabor aos alimentos, conduta que já não vem de Imo10 — serão adotadas, pouco a pouco, por toda a comunidade, em um processo, na verdade, lento aos olhos dos humanos. Apesar de nenhum dos macacos contemporâneos de Imo sobreviver hoje, estes comportamentos ainda são mantidos, apesar de atualmente as batatas chegarem limpas, como já foi dito11. Então, sim podemos falar de um traço cultural definido como aquele que, independente das bases genéticas que possa ter, é transmitido por meio da imitação, uma forma de aprendizagem social por observação, por parte de um grupo de animais que vivem em comunidade. É verdade, contudo, que a capacidade para aprender tem uma base genética: não é possível ensinar uma formiga da mesma maneira que se ensina ummacaco (para alguns, de nenhuma maneira, apesar de alguns estudos apontarem para uma possibilidade de aprendizagem mínima em certos insetos). Mas será que se pode pensar que os macacos de Koshima manifestavam cultura? 9 Durante minha visita em 2005, nos dois dias em que estive no Centro Primatológico de Koshima os animais foram alimentados com trigo. 10Os pesquisadores começaram também a lançar batatas no mar, a partir de lanchas, e provocaram os animais, que normalmente não entravam no oceano, de modo a que aprendessem a mergulhar para pegá-las. 11Contrariamente ao que poderia se pensar, agora poucas vezes são fornecidas batatas: somente umas quantas vezes por ano e por motivos especiais. 622 Vejamos a esse respeito o que diz, por exemplo, uma enciclopédia que costuma recolher versões já bem estabelecidas dos conceitos que usa uma sociedade, oGrand Larousse Universel (1995, (4), p. 2838). Deixando de lado a etimologia bastante evidente que relaciona a cultura com o cultivo de plantas, são mencionados três aspectos do que significa cultura, evidentemente tomando como único modelo as sociedades humanas: 1. A cultura é a manifestação de um conjunto de fenômenos materiais e ideológicos que caracterizam um grupo étnico, uma nação, uma civilização por oposição a outro (conjunto semelhante). Por exemplo, “a civilização ocidental”. 2. Dentro de um grupo social, seria o conjunto de signos característicos de compor- tamento, linguagem, gestos, vestimenta etc., desse grupo (por exemplo, em uma sociedade humana estratificada, os signos tornam manifesto que alguém seja um operário, um burguês etc.). 3. Conjunto de processos por meio dos quais um grupo de pessoas permite que outro tenha acesso aos conhecimentos tradicionais que precisa para dominar novos conhecimentos, integrando-os a um fundo comum. Se analisamos o que ocorreu na ilha com a ação de Imo e suas consequências históricas, podemos dizer que a comunidade habituada da ilha12 pode ser considerada como uma cultura segundo o primeiro ponto, uma vez que a lavagem de batatas e cereais é algo que a caracteriza e, ao mesmo tempo, diferencia essa de outras comunidades de macacos japoneses ou de qualquer outra espécie de macacos. Se contrastamos a comunidade de Koshima com o ponto dois, podemos ver que ajudaríamos muito os editores dessa magnífica e sábia enciclopédia se chamássemos sua atenção para o fato de que a estratificação em diferentes grupos de dominância não é um fenômeno humano que ocorre a partir do neolítico, mas, sim, algo que encontramos nas comunidades animais de muitos tipos, em particular entre os macacos, estratificação que se manifesta no comportamento dos indivíduos entre si: em atitudes de submissão, de aliança etc. Finalmente, o ponto três também poderia aplicar-se perfeitamente aos koshimenses, à medida que, a partir dessa invenção individual, os indivíduos mais jovens do bando não apenas aprendem a lavar tubérculos, mas também a aplicar o mesmo procedimento geral aos alimentos proporcionados pelo homem, assim como a transmiti-lo, por apren- dizagem social observacional, enriquecendo, assim, o conjunto de conhecimentos que o grupo de símios possui como conjunto interatuante. É verdade que sobre esse último ponto a própria tradição japonesa é crítica de si mesma: Matsuzawa13, em particular, assinala que não se trataria de um comportamento completamente natural, uma vez que 12Como já assinalamos, a ilha é, às vezes, uma península. Uma ilha pode ter feito, com o passar do tempo, desse grupo uma subespécie, como ocorreu com a M. f. yakui. 13Matsuzawa (2003). 623