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Assim, à medida que se considera que os fenômenos empíricos são o produto de
diversos mecanismos explicáveis pelas leis da física, uma forma de entender o mecani-
cismo é como uma proposta no sentido de reduzir os fenômenos empíricos às leis da
física. A famosa tese de Galileu de que o livro do universo estaria escrito em linguagem
da matemática, também aponta um reducionismo deste tipo. É um tipo de reducio-
nismo associado ao desenvolvimento do newtonianismo como modelo explicativo e,
em particular, à ideia de que a ciência tenta, em última instância, identificar as leis
universais que descrevem os processos do mundo. O modelo nomológico-dedutivo
(N-D) de explicação pode ser visto como uma continuação dessa ideia.
Desde Descartes, contudo, essa ideia confunde-se com a ideia mecanicista de que
os diferentes sistemas do mundo são mecanismos-máquinas que diferem apenas em
sua complexidade, e é promovida ao mesmo tempo que aquela ideia. A partir desta
perspectiva, os fenômenos do mundo são resultado de processos de interação entre
esses mecanismos. Esse tipo de mecanicismo pode ser chamado de fenomênico. De
um ponto de vista epistêmico, a proposta nomológica-mecanicista e a fenomênica-
mecanicista são independentes; pode ou não haver leis universais e, de qualquer modo,
talvez possamos entender todo fenômeno como uma interação complexa demecanismos-
máquinas, cada um dos quais estaria composto por partes cujo funcionamento explicaria
o comportamento do todo. O mecanicismo nomológico tem sido muito importante no
desenvolvimento da física teórica e, sobretudo, no desenvolvimento da ideia de que
a física pode nos dar uma teoria de tudo, enquanto a ideia mecanicista tem sido muito
importante no desenvolvimento da ciência experimental.
Harvey, em seus famosos trabalhos sobre a circulação do sangue, comparava o
sistema circulatório com um sistema de dutos e o coração com uma bomba que fazia
o sangue circular. O funcionamento de um organismo vivo, visto desta perspectiva,
é um mecanismo complexo feito de partes que, em última instância, obedecem a leis
mecânicas. Essa é a base sobre a qual inicia-se a fisiologia experimental.
Outra maneira bastante comum de entender o reducionismo é vê-lo como um pro-
grama de investigação. A partir dessa perspectiva, o reducionismo é um projeto, uma vez
que entende a ciência como um tipo distintivo de atividade ou conhecimento e, portanto,
busca dar conta da maneira como a ciência se articula em unidades epistêmicas que
devem ser o foco da análise filosófica. Normalmente assume-se que essas unidades
são teorias, mas também podem ser práticas ou tradições. Em maior ou menor grau,
dependendo de como se entendam estas unidades e, especialmente, de como se entenda
o que é uma teoria ou uma prática, esse tipo de reducionismo estará acompanhado de
pressupostos ontológicos, que não podem ser entendidos da perspectiva de um reducio-
nismo metafísico centrado no fisicalismo. Em Carnap, por exemplo, o reducionismo
era pensado como um programa dirigido a dar conta da unidade da ciência por meio
da aceitação de uma linguagem fisicalista, tida como a linguagem universal da ciência;
a linguagem fisicalista seria aquela em que todo conhecimento científico deveria ser
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formulado. Carnap tenta mostrar, em um famoso artigo de 1932, como até mesmo os
enunciados psicológicos poderiam ser formulados nessa linguagem (Carnap, 1932).
Uma série de objeções ao projeto de Carnap levaram ao seu abandono.
Utilizando a distinção de Frege entre sentido e referência, vários autores propuseram-
se (a partir da década de cinquenta do século passado) a reformular o programa reduci-
onista entendido como um programa com base na ideia de que a ciência compartilha
referentes, mesmo que essa referência seja feita por meio de frases que possuem signifi-
cados diferentes. Por exemplo, a dor pode ser vista como idêntica ao processo neuronal
de ativação de fibras C se, efetivamente, diferentes expressões que se referem à dor
referem-se ao mesmo tipo de processo ou fato. Em um livro recente, Bickle sugere que
as neurociências contemporâneas se guiam por um programa reducionista à medida
que somente explicações no nível molecular são consideradas realmente explicativas
(BICKLE, 2003). No caso de Bickle, assim como no caso de muitos outros reducionistas,
o reducionismo como programa de investigação está associado a um reducionismo
explicativo que articula uma tese metafísica com o programa de investigação.
Se, como alguns autores hoje em dia sustentam, diversas explicações científicas, em
particular na biologia, não podem ser entendidas como explicações cujo poder expli-
cativo provém da possibilidade de derivar o que se quer explicar de leis universais,
então o programa reducionista tem que depender de algum outro tipo de ontologia
que o sustente. Ou seja, se as explicações no nível molecular não se distinguem ontolo-
gicamente por sua derivação de leis universais (próprias do nível molecular), então é
necessário contar com alguma forma de identificar as explicações genuínas, e isto requer
pressupostos ontológicos de algum tipo. Normalmente, este outro tipo de ontologia é
alguma proposta a respeito da ubiquidade e capacidade explicativa de mecanismos.
1.1 Mecanismos fenomênicos, ou o que é um relógio?
Não é fácil de articular, contudo, uma proposta do que seja um programa mecanicista
que não descanse no poder explicativo de leis irrestritas, e que chamaremos de mecanicismo
fenomênico. Como podemos caracterizar um mecanismo de um modo suficientemente
geral sem apelar para leis irrestritas (universais), de tal forma que seja possível dar conta
das explicações em diferentes tipos de ciência como sustentadas em mecanismos? À
primeira vista, pode parecer óbvio. É importante notar que este tipo de reducionismo
requer, implicitamente, que a tese metafísica de fundo não mais consista na simples
redução a fatos físicos; pelo contrário, entende-se que a redução ocorre com respeito a
“mecanismos”. A partir de Descartes pensou-se que ummecanismo pode caracterizar-se
por princípios de organização espacial. A ideia é que um mecanismo tem partes que se
movimentam de maneira coordenada em um espaço confinado, e que essas partes têm
a capacidade de manter essa organização espacial ao longo do tempo. Nesse sentido,
um relógio mecânico tradicional é um exemplo de mecanismo. Mas, para começar, não
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	Traduções
	Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade 
	Introdução
	Mecanismos fenomênicos, ou o que é um relógio?

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