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e a reprodução. Para a PE fenômenos como esses devem ser compreendidos como com- portamentos secundários (by-products). Tais facetas do comportamento humano seriam consequência de um novo uso de antigas faculdades mentais previamente selecionadas no ambiente ancestral e destinadas a outras funções (COSMIDES; TOOBY 1997; PINKER 1997) como, por exemplo, liberar certa dose de energia mental represada, bem como lidar com o enigma da morte (MACHERY, 2006). Porém, para a PE, arte e religião não teriam valor adaptativo nos dias de hoje13. Todavia, outra corrente da PE difundida pela obra de Geoffrey Miller — A mente seletiva (2001) — considera que a seleção sexual seria o principal mecanismo para explicar nossa capacidade criativa expressa nas artes, na religião, nos esportes, no humor, entre outras características tipicamente humanas. A seleção sexual é um processo evolutivo que se constitui a partir de escolhas de parceiros reprodutivos no interior das espécies biológicas. A escolha de parceiros reprodutivos é um processo de suma importância se admitirmos que é pela reprodução sexuada que a maioria das espécies se mantém e os genes são transmitidos às gerações futuras. Esse processo seletivo foi inicialmente descrito por Darwin em A origem das espécies, e mais tarde, desenvolvido em A origem do homem e a seleção sexual. Darwin percebeu que em indivíduos de muitas espécies existiam características que em nada contribuíam para sua sobrevivência; pelo contrário, pareciam estorvar a vida, sobretudo no quesito da exposição e fuga de predadores e parasitas. Darwin percebeu, também, que na maioria das espécies emque havia dimorfismo sexual secundário14, osmachos exibiam estruturas ou comportamentos mais extremados (cores mais vistosas, cantos mais melodiosos etc.). Ele argumenta que onde quer que haja tais variações herdáveis entre os machos, e onde quer que haja fêmeas portadoras de sistemas nervosos capazes de perceber essas diferenças, levando-as a acasalar-se preferencialmente com esses machos, essas caraterísticas se espalhariam rapidamente pela população. Atualmente, este processo de retroalimentação positiva é conhecido como ‘descontrole evolutivo’15. Darwin não explica por que as fêmeas se dariam ao trabalho de escolher e por que determinadas características muito desenvolvidas seriam vantajosas. O caso é que essas características estão presentes em muitas espécies, de insetos a primatas, passando por moluscos, crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, aves e, naturalmente, hominíneos. A explicação que faltou a Darwin começou a ser construída a partir da segunda metade do século XX. 13Por essa razão, para os adeptos da PE, a religião e as artes não podem ser consideradas ‘exaptações’. Tais comportamentos seriam vestígios de uma época em que seus mecanismos psicológicos subjacentes cumpririam outra função, assim como o apêndice cecal humano exerceu uma função digestiva no contexto de uma dieta predominantemente herbívora. 14O dimorfismo sexual secundário consiste em diferenças em estruturas de fêmeas e machos não direta- mente relacionadas ao ato sexual. 15Um exemplo desse processo é a seleção sexual que teria originado a cauda do pavão e o canto dos pássaros. A evolução de uma frase melódica típica de uma espécie (nos machos), com toda uma gama de variações, estaria relacionada evolutivamente com um aumento da preferência das fêmeas, ao longo de gerações, por determinadas sintaxes melódicas em detrimento de outras. 342 Geoffrey Miller sugere que a seleção sexual — e não a natural — seria o processo fundamental envolvido na evolução de comportamentos exclusivos ao Homo sapiens. Um ponto crucial para a tese de Miller é que o desempenho nas artes, no esporte e no humor apresenta clara variação individual. Ele entende que o crescimento cerebral na linhagem hominínea deve ter surgido, inicialmente, por um processo de descontrole evolutivo e que, posteriormente, as habilidades possibilitadas por esse cérebro, como o humor e a arte, evoluíram por terem sido bons indicadores de aptidão. Os indicadores de aptidão são estruturas corporais ou comportamentais dependentes da condição física do animal. Uma melhor ou pior capacidade de encontrar alimento e resistir a doenças, por exemplo, pode ser revelada por indicadores de aptidão. O indivíduo que investe mais recursos (nutrientes e energia) em indicadores de aptidão provavelmente possui genes que o tornam mais eficiente em encontrar comida e que lhe permitem combater melhor seus eventuais parasitas. Como um corpo poderia manter estruturas energeticamente custosas, como a cauda do pavão, os chifres dos alces, o canto e a plumagem de certas aves ou um cérebro faminto de glicose se está infestado de parasitas? A maneira de selecionar um parceiro com bons genes, portanto, seria exigir dele um grande desperdício energético como prova de sua maior aptidão física. O processo de seleção sexual teria favorecido estruturas dispendiosas, ou comportamentos elaborados como os esportes e as artes que, aparentemente, não têm um papel relevante na sobrevivência imediata de seus portadores. Mas, se esses custos tornam-se muito altos, o macho exibicionista pode também se tornar seletivo, no sentido de procurar a fêmea que compense melhor seu investimento. Isso implicaria uma seletividade mútua que seria outro aspecto da estratégia reprodutiva humana (ZAHAVI; ZAHAVI, 1997; MILLER, 2001). Cabe aqui um exemplo que permite diferenciar a explicação da PE, baseada na seleção natural, da que Miller oferece a partir da seleção sexual. A PE entende que as mulheres universalmente preferem homens com alta posição social, bons rendimentos e inteligência, porque esses indivíduos serão os melhores provedores para sua família. Miller, no entanto, defende que essa escolha ocorre porque tais características seriam indicadores da aptidão desses homens: sua melhor constituição genética seria capaz de gerar filhos mais inteligentes e mais bem dotados fisicamente. O fato do desempenho nas artes, no esporte etc. ser variável entre indivíduos reforçaria o argumento a favor da seleção sexual. SegundoMiller, fenótipos codificados por muitos genes, como a estrutura e as funções do cérebro, são excelentes para serem usados como indicadores de aptidão, porque seu bom estado e funcionamento indicariam a boa constituição genética de seu portador. A ontogênese do cérebro é dependente da interação de muitos genes (RAMUS, 2006). A variabilidade acumulada por mutação num conjunto grande de genes é maior, acarretando uma maior variação fenotípica. Uma mutação em um gene envolvido com esse tipo de característica tenderia, em média, a diminuir a aptidão do seu portador. Por outro lado, como sugere o pensamento evolucionista, tais mutações poderiam 343