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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-178

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e a reprodução. Para a PE fenômenos como esses devem ser compreendidos como com-
portamentos secundários (by-products). Tais facetas do comportamento humano seriam
consequência de um novo uso de antigas faculdades mentais previamente selecionadas
no ambiente ancestral e destinadas a outras funções (COSMIDES; TOOBY 1997; PINKER
1997) como, por exemplo, liberar certa dose de energia mental represada, bem como
lidar com o enigma da morte (MACHERY, 2006). Porém, para a PE, arte e religião não
teriam valor adaptativo nos dias de hoje13.
Todavia, outra corrente da PE difundida pela obra de Geoffrey Miller — A mente
seletiva (2001) — considera que a seleção sexual seria o principal mecanismo para explicar
nossa capacidade criativa expressa nas artes, na religião, nos esportes, no humor, entre
outras características tipicamente humanas. A seleção sexual é um processo evolutivo
que se constitui a partir de escolhas de parceiros reprodutivos no interior das espécies
biológicas. A escolha de parceiros reprodutivos é um processo de suma importância se
admitirmos que é pela reprodução sexuada que a maioria das espécies se mantém e os
genes são transmitidos às gerações futuras.
Esse processo seletivo foi inicialmente descrito por Darwin em A origem das espécies,
e mais tarde, desenvolvido em A origem do homem e a seleção sexual. Darwin percebeu que
em indivíduos de muitas espécies existiam características que em nada contribuíam para
sua sobrevivência; pelo contrário, pareciam estorvar a vida, sobretudo no quesito da
exposição e fuga de predadores e parasitas. Darwin percebeu, também, que na maioria
das espécies emque havia dimorfismo sexual secundário14, osmachos exibiam estruturas
ou comportamentos mais extremados (cores mais vistosas, cantos mais melodiosos
etc.). Ele argumenta que onde quer que haja tais variações herdáveis entre os machos,
e onde quer que haja fêmeas portadoras de sistemas nervosos capazes de perceber
essas diferenças, levando-as a acasalar-se preferencialmente com esses machos, essas
caraterísticas se espalhariam rapidamente pela população. Atualmente, este processo
de retroalimentação positiva é conhecido como ‘descontrole evolutivo’15. Darwin não
explica por que as fêmeas se dariam ao trabalho de escolher e por que determinadas
características muito desenvolvidas seriam vantajosas. O caso é que essas características
estão presentes em muitas espécies, de insetos a primatas, passando por moluscos,
crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, aves e, naturalmente, hominíneos. A explicação que
faltou a Darwin começou a ser construída a partir da segunda metade do século XX.
13Por essa razão, para os adeptos da PE, a religião e as artes não podem ser consideradas ‘exaptações’.
Tais comportamentos seriam vestígios de uma época em que seus mecanismos psicológicos subjacentes
cumpririam outra função, assim como o apêndice cecal humano exerceu uma função digestiva no
contexto de uma dieta predominantemente herbívora.
14O dimorfismo sexual secundário consiste em diferenças em estruturas de fêmeas e machos não direta-
mente relacionadas ao ato sexual.
15Um exemplo desse processo é a seleção sexual que teria originado a cauda do pavão e o canto dos
pássaros. A evolução de uma frase melódica típica de uma espécie (nos machos), com toda uma gama
de variações, estaria relacionada evolutivamente com um aumento da preferência das fêmeas, ao longo
de gerações, por determinadas sintaxes melódicas em detrimento de outras.
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Geoffrey Miller sugere que a seleção sexual — e não a natural — seria o processo
fundamental envolvido na evolução de comportamentos exclusivos ao Homo sapiens.
Um ponto crucial para a tese de Miller é que o desempenho nas artes, no esporte e no
humor apresenta clara variação individual. Ele entende que o crescimento cerebral na
linhagem hominínea deve ter surgido, inicialmente, por um processo de descontrole
evolutivo e que, posteriormente, as habilidades possibilitadas por esse cérebro, como o
humor e a arte, evoluíram por terem sido bons indicadores de aptidão.
Os indicadores de aptidão são estruturas corporais ou comportamentais dependentes
da condição física do animal. Uma melhor ou pior capacidade de encontrar alimento
e resistir a doenças, por exemplo, pode ser revelada por indicadores de aptidão. O
indivíduo que investe mais recursos (nutrientes e energia) em indicadores de aptidão
provavelmente possui genes que o tornam mais eficiente em encontrar comida e que lhe
permitem combater melhor seus eventuais parasitas. Como um corpo poderia manter
estruturas energeticamente custosas, como a cauda do pavão, os chifres dos alces, o
canto e a plumagem de certas aves ou um cérebro faminto de glicose se está infestado
de parasitas? A maneira de selecionar um parceiro com bons genes, portanto, seria
exigir dele um grande desperdício energético como prova de sua maior aptidão física. O
processo de seleção sexual teria favorecido estruturas dispendiosas, ou comportamentos
elaborados como os esportes e as artes que, aparentemente, não têm um papel relevante
na sobrevivência imediata de seus portadores. Mas, se esses custos tornam-se muito
altos, o macho exibicionista pode também se tornar seletivo, no sentido de procurar a
fêmea que compense melhor seu investimento. Isso implicaria uma seletividade mútua
que seria outro aspecto da estratégia reprodutiva humana (ZAHAVI; ZAHAVI, 1997;
MILLER, 2001).
Cabe aqui um exemplo que permite diferenciar a explicação da PE, baseada na
seleção natural, da que Miller oferece a partir da seleção sexual. A PE entende que as
mulheres universalmente preferem homens com alta posição social, bons rendimentos e
inteligência, porque esses indivíduos serão os melhores provedores para sua família.
Miller, no entanto, defende que essa escolha ocorre porque tais características seriam
indicadores da aptidão desses homens: sua melhor constituição genética seria capaz de
gerar filhos mais inteligentes e mais bem dotados fisicamente. O fato do desempenho
nas artes, no esporte etc. ser variável entre indivíduos reforçaria o argumento a favor da
seleção sexual. SegundoMiller, fenótipos codificados por muitos genes, como a estrutura
e as funções do cérebro, são excelentes para serem usados como indicadores de aptidão,
porque seu bom estado e funcionamento indicariam a boa constituição genética de seu
portador. A ontogênese do cérebro é dependente da interação de muitos genes (RAMUS,
2006). A variabilidade acumulada por mutação num conjunto grande de genes é maior,
acarretando uma maior variação fenotípica. Uma mutação em um gene envolvido com
esse tipo de característica tenderia, em média, a diminuir a aptidão do seu portador.
Por outro lado, como sugere o pensamento evolucionista, tais mutações poderiam
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