Prévia do material em texto
defendidas por Wynne Edwards na década de sessenta. A terceira seção apresenta a novidade que ampliou o cenário do debate: a introdução e a adoção generalizada da teoria hierárquica de níveis de seleção, ou seleção emníveismúltiplos. De acordo com ela, é possível atribuir a ação da seleção a níveis superiores ao dos genes, sejam organismos, grupos, espécies ou outros de categoria superior, chegando até os domínios ecológico e social. Ainda que retomando a fundamentação da seleção de grupo, a pergunta sobre a unidade de seleção é reformulada com um enfoque pluralista. Aparentemente, esta seria a solução adequada. Não obstante, as diferentes versões do pluralismo são umdetonador de novas polêmicas, as quais giram em torno de dois eixos: por um lado, a suficiência da suposta primazia de explicações no nível básico ou genético; e, por outro lado, a dicotomia convencional/real sobre o estatuto das entidades identificadas como unidades de seleção nos diferentes modelos. Ambos os fatores são importantes para determinar a contribuição causal à mudança evolutiva das entidades em cada nível. Embora, em princípio, uma posição redutiva ao nível inferior — genético — tenha persistido entre os evolucionistas, os esforços por sustentar a possibilidade da seleção de grupo, em um enfoque pluralista compatível com o realismo, estão fundados tanto em dados empíricos como na análise conceitual. A consequência epistemológica do debate é a revisão de alguns conceitos centrais da teoria da evolução: a relação entre os níveis de organização e sua origem em processos de transição evolutiva, a propriedade de herdabilidade e a noção de individualidade. Em sua transformação, o debate sobre unidades de seleção não apenas propiciou o surgimento de novas perguntas, mas também intensificou a discussão biológica-filosófica. E isso não é um resultado menor em uma controvérsia. 2 A seleção natural: sua formulação O estatuto epistemológico do conceito e da teoria da seleção natural ainda está em discussão: a seleção natural é descrita como uma força (SOBER, 1984; GOULD, 2002); um fator causal (OKASHA, 2006; HODGE, 2004; BRANDON, 2008); um processo causal ao nível populacional (Millstein 2006); uma tendência ou consequência estatística ao nível populacional de eventos no nível mais básico, genético (MATTHEN; ARIEW, 20021; WALSH, 2004); um efeito funcional derivado de outras causas; ou, simplesmente, um nome aplicado à última etapa de uma série de eventos de reprodução e sobrevivência no complexo domínio dos seres vivos, ou seja, quase uma metáfora (THOMPSON, 2000). Por outro lado, é bastante geral o consenso sobre os fatores que intervêm no pro- cesso de seleção: a existência de variação em alguma característica nos indivíduos de uma população, ou seja, variabilidade intra-específica; sua transmissão no processo de reprodução, ou herdabilidade. O crivo seletivo, por sua vez, ocorre em um ambiente de 1 Matthen e Ariew (2002) atribuem a Darwin familiaridade com a natureza agregativa da seleção natural, resultado de nascimentos, mortes e acasalamentos de indivíduos. 588 competição em que o resultado2 é a distribuição da característica e sua maior represen- tação (o genótipo) na população. Por este processo de multiplicação, diz-se que uma característica possui uma determinada taxa de aptidão (fitness)3, um parâmetro da ex- pectativa de maior reprodução e melhor aproveitamento dos recursos do ambiente pelos membros da população. Uma característica, uma estrutura ou pauta de comportamento, é uma adaptação. O enunciado conjunto do mecanismo de seleção natural por Charles Darwin e Al- fred Wallace no século XIX é uma formulação geral e abstrata que explica a causa da diversidade orgânica e da mudança evolutiva dos organismos. Nas décadas de 30, 40 e subsequentes, com o surgimento de uma síntese entre genética e evolução — a genética de populações —, a seleção natural instituiu-se como princípio fundamental da teoria sintética da evolução — também chamada neodarwinismo — com as contribuições de, dentre muitos outros, T. H. Morgan, R. Fisher, S. Wright e T. Dobzhansky. Desde então, a teoria da evolução só aumentou seu desenvolvimento teórico, suporte empírico e re- presentação formal. Em debates muito difundidos durante o século XX, foi questionado o alcance e importância do princípio de seleção natural como um dos fatores, ao lado de outros, da mudança evolutiva. E — fato destacável — em cada uma dessas controvérsias tem sido recorrente voltar a interpretar e parafrasear as ideias de Darwin: qual foi o verdadeiro Darwin?4 A teoria contemporânea da evolução por seleção natural amadureceu por mais de um século. Muito conhecida é a formulação de Lewontin (1970), que considerou a potencialidade da seleção para operar em qualquer entidade que cumpra as seguintes condições: 1. Indivíduos diferentes em uma população têm diferentes morfologias, fisiologias e comportamentos (variação fenotípica). 2 Darwin postulou o mecanismo de seleção e contribuiu com uma nota metodológica sobre as condições de sua possível refutação. Somente muito depois foi conseguida uma prova experimental da seleção natural (melanismo industrial em mariposas). Atualmente abundam as provas de laboratório e de campo que dão sustentação científica à seleção natural. 3 No âmbito filosófico, o conceito de aptidão é interpretado como uma propriedade disposicional, ou uma propriedade superveniente com dependência do nível inferior. Em biologia evolutiva fitness é um conceito comparativo referente ao sucesso reprodutivomédio de uma entidade ou a taxa da contribuição de um genótipo para a próxima ou as sucessivas gerações (FUTUYMA, 1998). Faz-se a distinção entre um conceito vernáculo ou corrente e um conceito preditivo (MATTHEN; ARIEW, 2002; KITCHER, 1984). A medida de aptidão é um parâmetro probabilístico que se refere ao número esperado de nascimentos. Há mais critérios para se compreender esse conceito. 4 O nome de Darwin geralmente é associado ao princípio de seleção natural. Gould e Lewontin (1979) destacam que ele aceitou outros mecanismos de mudança evolutiva. De acordo com Lewontin (1973), a contribuição principal e mais original de Darwin não foi o evolucionismo ou a seleção natural como a força principal da evolução, mas a substituição da concepção metafísica de variação orgânica por uma concepção materialista. Mayr (1991) distingue Darwin pela refutação do pensamento tipológico e por introduzir a concepção populacional no tratamento da evolução. Ele formula a teoria como uma subteoria do conjunto composto por: 1) a evolução como tal; 2) a evolução por descendência comum; 3) a origem da diversidade; 4) a gradatividade da mudança; e 5) a seleção natural. 589 Traduções Níveis e unidades de seleção: o pluralismo e seus desafios filosóficos A seleção natural: sua formulação