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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-294

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3.3 Bauplan e estado filotípico
Sendo assim, o Bauplan poderia ser definido como a estrutura ancestral cuja formação
dependia em maior grau de forças físicas agindo sobre as células em seu processo de
diferenciação no ambiente “estável” do ovo, além das modificações introduzidas na
forma adulta dos ancestrais e fixadas pela ação da seleção natural. O trabalho de
Newman e colaboradores reforça estas ideias de dependência física das características
básicas dos planos corporais (NEWMAN; COMPER, 1990; NEWMAN, 2003a, p. 221-
240, 2003b, p. 169-174; MÜLLER; NEWMAN, 2003, p. 3-10; NEWMAN et al., 2006)11.
Em outras palavras, quanto mais precoces forem as características, mais dependem de
fatores físicos. A emergência do Bauplan pode ser percebida como uma convergência
dada por forças físicas, dado que a partir de diferentes tipos de ovo, nas diversas classes
de vertebrados e seguindo diferentes padrões de divisão, chega-se, não obstante, a uma
estrutura altamente restrita e que possui as simetrias e domínios estruturais, como, por
exemplo, a de todos os invertebrados por um lado e a de todos os vertebrados pelo outro.
Isso é o que se denomina ‘estado filotípico’. A seguinte figura ilustra esse fato:
Figura 1: Estado filotípico em cordados (faríngula) e em artrópodes (“banda segmentada”) a partir do
qual as ontogenias diferem (Tomado de Barbieri, 2003, p. 198). É usado o modelo de “relógio de areia”
(hourglass model) (RAFF, 1996) ou “egg-timer” (DUBOULE, 1994). Este modelo representa de maneira
adequada a divergência que ocorre tanto nas etapas precoces quanto nas tardias do desenvolvimento, em
contraste com a semelhança que ocorre nas etapas intermediárias (cf. HALL, 1999). Nas palavras de Raff:
“tanto as etapas precoces quanto as tardias, no desenvolvimento, evoluem de maneira relativamente livre,
em comparação com as etapas intermediárias (as quais se reconhecem como ‘filotípicas’)” (1996, p. 210).
11De acordo com estes autores, muitas das características básicas da forma orgânica obedecem a pro-
priedades físicas genéricas (não codificadas no DNA). Mencionam que certos atributos físicos dos
conglomerados celulares e de tecidos, tais como difusão, aderência diferencial, oscilação e processo
conjunto de reação-difusão, estiveram presentes na origem dos planos corporais, agindo como causas
da forma que adquiriram. Segundo esses trabalhos, tais propriedades gerativas persistem de maneira
fundamental no desenvolvimento de todos os seres vivos desde então, sendo as causas fundamentais de
traços como formação de cavidades, de compartimentos, camadas múltiplas, segmentação etc. Segundo
os autores mencionados, os conglomerados celulares ancestrais (há 700 milhões de anos) poderiam ter
se comportado como líquidos, possuindo elasticidade e tendo propriedades tanto de matéria mole (soft
matter) como de meio excitável (excitable media) (NEWMAN, 2003a; NEWMAN; FORGACS; MÜLLER,
2006).
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3.4 Descontinuidade das formas no morfoespaço
Adiscussão anterior corrobora a intuição lamarckiana de que a organização biológica
primária obedece a processos físico-químicos. Também é possível ver a participação de
processos físicos na definição de padrões de organização, exemplificada no trabalho de
D’Arcy Thompson (1942)12:
Células e tecidos, concha e osso, folha e flor são todos porções de matéria, e o
fato de que suas partículas tenham sido movidas, moldadas e conformadas
segue as leis da física. ... Seus problemas de forma são, em primeira instância,
problemasmatemáticos, e seus problemas de crescimento são essencialmente
problemas físicos. O morfologista é, ipso facto, um estudioso da ciência física
(THOMPSON, 1942, p. 7-8).
Mas diferentemente de Lamarck, para quem as forças físicas atuavam em consonância
com o plano da natureza e, portanto, de um modo determinista, hoje em dia, podemos
dizer que em condições de afastamento do equilíbrio termodinâmico a auto-organização
produz mais do que um único padrão estrutural.
Essa ideia, originada em Maxwell (1879), foi formalizada por Prigogine et al. (1984).
De modo similar, a ideia aparece em Wright (cf. DOBZHANSKY, 1951, p. 10) e é
retomada por Kauffman (1993), com sentido que as formas existentes se agrupam de
maneira heterogênea em um espaço morfogenético ou paisagem adaptativa rugosa,
em grupos claramente diferenciados e sem formar nenhum continuum isotrópico (o
que suporia deslocamentos graduais em todas as direções). No caso das paisagens
adaptativas deWright e Kauffman, a distribuição aleatória dos picos adaptativos obedece
a fatores estruturais derivados da conectividade gênica (figura 2), mostrando que, de
fato, há uma restrição estrutural que impede que certas configurações se apresentem,
porque perdem a coerência interna exigida por Whyte (1965):
Os gráficos do experimento mental de Alberch (1982) a respeito das constrições do
desenvolvimento podem ser interpretados como ilustração desse ponto:
12Essas ideias foram desenvolvidas posteriormente por teóricos da auto-organização, como Goodwin
(1994) e Kauffman (1993, 1995).
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	Traduções
	A contingência dos padrões de organização biológica: superando a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional 
	O caráter histórico dos tipos
	Descontinuidade das formas no morfoespaço

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