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Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-172

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outros campos da biologia evolutiva, a PE assume que o nível fundamental, mas não
único, em que a seleção opera, é o nível dos genes (DAWKINS, 1982; CRONIN, 1995).
Segundo muitos críticos, os adeptos da PE adotam uma abordagem que reduziria o
comportamento humano a genes, sendo estes o resultado da seleção natural (LICKLITER;
HONEYCUTT, 2003; BULLER, 2005; GOULD, 2000). Essas críticas estão fundadas na
ideia de que fatores epigenéticos, ambientais e culturais seriam mais determinantes
do que os genes. Lickliter e Honeycutt (2003) usam como crítica à PE o exemplo de
fatores epigenéticos ou ambientais, como a temperatura, na determinação do sexo dos
répteis. O sexo não seria determinado por genes, mas seria uma função da quantidade
de calor que recebe o organismo em desenvolvimento. Esse caso específico, entretanto,
ilustra o tipo de interação entre genes e ambiente, amplamente defendido por psicólogos
evolucionistas, como argumenta Krebs (2003):
(...) um único gene sensível à temperatura exerce um papel central nesta
interação gene-ambiente. Isso ilustra o tipo de questão proposta pelos teóricos
da evolução, em relação ao nível de análise que lhes interessa, quando se
perguntam sobre qual a vantagem adaptativa que esse gene pode ter dado
aos répteis em um ambiente ancestral. A resposta provavelmente reside no
fato de que a temperatura, durante a incubação, está relacionada ao tamanho
do corpo na maioria dos répteis, o que proporciona diferentes benefícios
adaptativos em machos e fêmeas (p. 7, tradução nossa).
Nesse contexto, é importante ter em mente que quando se fala de genes para comporta-
mentos complexos6, requer-se qualificar o conceito de gene. O gene da PE (elementos
reguladores que usam o ambiente para construir organismos) não é omesmo da genética
mendeliana, nem o gene molecular proposto por Watson e Crick e tampouco aquele uti-
lizado por Dawkins no seu polêmico livroO gene egoísta, de 1976. Ridley (2003) distingue
sete conceitos de gene e debates filosóficos intermináveis questionam a possibilidade de
se chegar a uma definição consensual de “gene” (FALK, 1986; KELLER, 2002; SOLHA e
WAIZBORT, 2007). Segundo Karl Popper, conceitos adquirem significado no contexto de
teorias científicas. Para Popper, as definições dos conceitos são apenas instrumentos na
construção de teorias científicas testáveis. A genética como ciência não dependeu e não
depende de uma definição unívoca de gene, embora, pelo menos boa parte dos cientistas
pareça concordar que o gene é uma entidade real com efeitos causais mais ou menos
claros, suscetíveis em alguns casos de modificação ou interferência pelas técnicas da
biologia molecular. De qualquer forma, o nível do gene parece ser absolutamente neces-
sário, embora não completamente suficiente, para explicar os mecanismos psicológicos,
que, segundo a PE, contribuem para sermos o que somos (KREBS, 2003).
Encontrar o alimento certo, selecionar parceiros reprodutivos, cuidar da prole, evitar
trapaceiros, fazer alianças, cultivar terras, caçar e criar animais, produzir discurso simbó-
6 Tais como a agressividade, a escolha de parceiros sexuais ou a detecção de trapaceiros.
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lico são alguns poucos entre centenas de outros comportamentos diferentes relacionados
a faculdades mentais específicas que ocorrem em todos os grupos humanos, de todas as
épocas e geografias (BROWN, 1991; PINKER 2004). Como veremos, tais comportamentos
universais humanos não podem ser compreendidos sem referência aos mecanismos psi-
cológicos subjacentes ou, mais especificamente, a sistemas de mecanismos. Essa suposta
universalidade de certos mecanismos psicológicos entre os humanos é um indício de
que tais mecanismos são geneticamente determinados? Seria absurdo pensar que temos
genes para evitar trapaceiros, para tabus alimentares, para sentirmos vergonha, ou para
imaginar o que se passa em mentes alheias. Na verdade, não há genes que codifiquem
tais comportamentos em níveis psicológicos. Sequer há um gene que produza um pole-
gar opositor. O que os genes fazem, em determinados contextos nucleares e celulares, é
sintetizar proteínas que podem estar envolvidas no desenvolvimento do polegar.
Quando um psicólogo evolucionista fala de um gene para agressividade, assim como
quando o neurocientista Joseph LeDoux fala da emoção ou estado mental que chama-
mos medo, ambos estão falando de um sistema com muitos componentes. Sem olhos,
sangue, células, água, adrenalina ou hipotálamo, não poderia haver medo. A resposta
ao medo depende de inúmeras estruturas e elementos fisiológicos que também estão
sob o controle de processos no nível genético, que, por sua vez, como já foi assinalado,
está sendo alimentado por informações que constituem o ambiente em que o indivíduo
vive. Por exemplo, não há um gene para a agressividade que seja diretamente estimula-
do pela faculdade do medo, mas um conjunto de processos biológicos geneticamente
determinados (produção de hormônios, ativação de circuitos neurais específicos), que
produz uma resposta agressiva, ou de fuga, a certas condições ambientais. Tais con-
dições geram, simultaneamente, uma sensação que pode ser compartilhada pela maioria
dos indivíduos como medo. Os portadores dos genes que disparam comportamentos
agressivos, ou de fuga, a situações de medo deixaram mais descendentes (agressivos
e/ou medrosos) em inúmeros grupos animais.
4 Circuitos neurais e programas cognitivos
O encéfalo dos humanos é formado por estruturas como o cérebro, o cerebelo, o
corpo caloso, o diencéfalo, dentre outras. Tais estruturas, por sua vez, são compostas
por inúmeros circuitos neurais: redes de neurônios conectados entre si que executam
funções específicas em cada uma dessas regiões. A compreensão deste texto sob os
olhos do leitor só é possível porque há neurônios no córtex visual do cérebro capazes
de transformar, de maneira até o momento desconhecida pelas neurociências, impulsos
nervosos provenientes da retina numa sensação que chamamos de imagem. A consciên-
cia do texto ocorre quando neurônios do referido córtex visual estimulam (por meio
de impulsos nervosos) os neurônios do lobo temporal. Na ausência dessa conexão, um
indivíduo vê o texto mas não sabe que vê, não tem consciência de que vê (GIBB, 2007).
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	Capítulos
	Genes, seleção natural e comportamento humano: a mente adaptada da psicologia evolucionista 
	Circuitos neurais e programas cognitivos

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