Prévia do material em texto
outros campos da biologia evolutiva, a PE assume que o nível fundamental, mas não único, em que a seleção opera, é o nível dos genes (DAWKINS, 1982; CRONIN, 1995). Segundo muitos críticos, os adeptos da PE adotam uma abordagem que reduziria o comportamento humano a genes, sendo estes o resultado da seleção natural (LICKLITER; HONEYCUTT, 2003; BULLER, 2005; GOULD, 2000). Essas críticas estão fundadas na ideia de que fatores epigenéticos, ambientais e culturais seriam mais determinantes do que os genes. Lickliter e Honeycutt (2003) usam como crítica à PE o exemplo de fatores epigenéticos ou ambientais, como a temperatura, na determinação do sexo dos répteis. O sexo não seria determinado por genes, mas seria uma função da quantidade de calor que recebe o organismo em desenvolvimento. Esse caso específico, entretanto, ilustra o tipo de interação entre genes e ambiente, amplamente defendido por psicólogos evolucionistas, como argumenta Krebs (2003): (...) um único gene sensível à temperatura exerce um papel central nesta interação gene-ambiente. Isso ilustra o tipo de questão proposta pelos teóricos da evolução, em relação ao nível de análise que lhes interessa, quando se perguntam sobre qual a vantagem adaptativa que esse gene pode ter dado aos répteis em um ambiente ancestral. A resposta provavelmente reside no fato de que a temperatura, durante a incubação, está relacionada ao tamanho do corpo na maioria dos répteis, o que proporciona diferentes benefícios adaptativos em machos e fêmeas (p. 7, tradução nossa). Nesse contexto, é importante ter em mente que quando se fala de genes para comporta- mentos complexos6, requer-se qualificar o conceito de gene. O gene da PE (elementos reguladores que usam o ambiente para construir organismos) não é omesmo da genética mendeliana, nem o gene molecular proposto por Watson e Crick e tampouco aquele uti- lizado por Dawkins no seu polêmico livroO gene egoísta, de 1976. Ridley (2003) distingue sete conceitos de gene e debates filosóficos intermináveis questionam a possibilidade de se chegar a uma definição consensual de “gene” (FALK, 1986; KELLER, 2002; SOLHA e WAIZBORT, 2007). Segundo Karl Popper, conceitos adquirem significado no contexto de teorias científicas. Para Popper, as definições dos conceitos são apenas instrumentos na construção de teorias científicas testáveis. A genética como ciência não dependeu e não depende de uma definição unívoca de gene, embora, pelo menos boa parte dos cientistas pareça concordar que o gene é uma entidade real com efeitos causais mais ou menos claros, suscetíveis em alguns casos de modificação ou interferência pelas técnicas da biologia molecular. De qualquer forma, o nível do gene parece ser absolutamente neces- sário, embora não completamente suficiente, para explicar os mecanismos psicológicos, que, segundo a PE, contribuem para sermos o que somos (KREBS, 2003). Encontrar o alimento certo, selecionar parceiros reprodutivos, cuidar da prole, evitar trapaceiros, fazer alianças, cultivar terras, caçar e criar animais, produzir discurso simbó- 6 Tais como a agressividade, a escolha de parceiros sexuais ou a detecção de trapaceiros. 330 lico são alguns poucos entre centenas de outros comportamentos diferentes relacionados a faculdades mentais específicas que ocorrem em todos os grupos humanos, de todas as épocas e geografias (BROWN, 1991; PINKER 2004). Como veremos, tais comportamentos universais humanos não podem ser compreendidos sem referência aos mecanismos psi- cológicos subjacentes ou, mais especificamente, a sistemas de mecanismos. Essa suposta universalidade de certos mecanismos psicológicos entre os humanos é um indício de que tais mecanismos são geneticamente determinados? Seria absurdo pensar que temos genes para evitar trapaceiros, para tabus alimentares, para sentirmos vergonha, ou para imaginar o que se passa em mentes alheias. Na verdade, não há genes que codifiquem tais comportamentos em níveis psicológicos. Sequer há um gene que produza um pole- gar opositor. O que os genes fazem, em determinados contextos nucleares e celulares, é sintetizar proteínas que podem estar envolvidas no desenvolvimento do polegar. Quando um psicólogo evolucionista fala de um gene para agressividade, assim como quando o neurocientista Joseph LeDoux fala da emoção ou estado mental que chama- mos medo, ambos estão falando de um sistema com muitos componentes. Sem olhos, sangue, células, água, adrenalina ou hipotálamo, não poderia haver medo. A resposta ao medo depende de inúmeras estruturas e elementos fisiológicos que também estão sob o controle de processos no nível genético, que, por sua vez, como já foi assinalado, está sendo alimentado por informações que constituem o ambiente em que o indivíduo vive. Por exemplo, não há um gene para a agressividade que seja diretamente estimula- do pela faculdade do medo, mas um conjunto de processos biológicos geneticamente determinados (produção de hormônios, ativação de circuitos neurais específicos), que produz uma resposta agressiva, ou de fuga, a certas condições ambientais. Tais con- dições geram, simultaneamente, uma sensação que pode ser compartilhada pela maioria dos indivíduos como medo. Os portadores dos genes que disparam comportamentos agressivos, ou de fuga, a situações de medo deixaram mais descendentes (agressivos e/ou medrosos) em inúmeros grupos animais. 4 Circuitos neurais e programas cognitivos O encéfalo dos humanos é formado por estruturas como o cérebro, o cerebelo, o corpo caloso, o diencéfalo, dentre outras. Tais estruturas, por sua vez, são compostas por inúmeros circuitos neurais: redes de neurônios conectados entre si que executam funções específicas em cada uma dessas regiões. A compreensão deste texto sob os olhos do leitor só é possível porque há neurônios no córtex visual do cérebro capazes de transformar, de maneira até o momento desconhecida pelas neurociências, impulsos nervosos provenientes da retina numa sensação que chamamos de imagem. A consciên- cia do texto ocorre quando neurônios do referido córtex visual estimulam (por meio de impulsos nervosos) os neurônios do lobo temporal. Na ausência dessa conexão, um indivíduo vê o texto mas não sabe que vê, não tem consciência de que vê (GIBB, 2007). 331 Capítulos Genes, seleção natural e comportamento humano: a mente adaptada da psicologia evolucionista Circuitos neurais e programas cognitivos