Buscar

Filosofia da Biologia - Paulo C Abrantes-303

Prévia do material em texto

4. a afirmação de que no processo de evolução são os indivíduos, e não as populações,
que mostram adaptações9.
Justamente pelo reconhecimento da importância da adaptação na evolução, Williams
considerou que este conceito era “oneroso”, ou teoricamente custoso , se aplicado a
níveis superiores da organização biológica. Seu princípio metodológico, a parcimônia
ou simplicidade, exigia atribuir adaptação somente a entidades discretas, a entidades
com longevidade. E tais entidades são os genes, que têm a propriedade de replicação e
transmitem a informação para a construção das características fenotípicas.
Williams conclui que os genes são o foco principal da seleção e que quase todos os
casos de seleção podem ser explicados no nível genético. A falta de sustentação empírica
é um dos argumentos que usa contra a explicação dos casos de altruísmo por seleção de
grupo: alega que se existisse esta forma de seleção, seria uma força fraca na evolução.
Outra objeção à seleção de grupo — defendida por Williams, Dawkins, Maynard
Smith e Hamilton — é a constatação do fenômeno de subversão interna por parte de
um egoísta ou oportunista (free rider). Dentro do seu grupo, o comportamento do
indivíduo egoísta aumenta a sua aptidão, às custas da aptidão do altruísta. Em muitos
dos exemplos citados por Williams, de acordo com a lógica da seleção natural em seu
jogo de competição, em um grupo de indivíduos sem parentesco, o indivíduo egoísta é
favorecido pela seleção, obtendo maior vantagem reprodutiva com respeito ao altruísta
dentro do mesmo grupo.
Dois conceitos adotados por Williams mostraram-se convenientes para contestar que
adaptações de grupo possam explicar as características altruístas: o conceito de seleção
de parentesco — indivíduos com parentesco genético —, que oferece uma análise de
custo/benefício expressa em uma fórmula (HAMILTON, 1964), e o conceito de altruísmo
recíproco ou retribuição de favores (TRIVERS, 1971)10.
Posteriormente, Williams introduz, para tratar do mesmo tema, noções antes omiti-
das: diferencia um domínio físico-material, de energia e composição química do gene e
um domínio informacional. Os genes, ou replicadores, são definidos como unidades
“codificantes” (WILLIAMS, 1992); sua função causal é codificar a informação sobre a qual
se constrói o fenótipo. Uma das críticas que viria a receber diz respeito à inadequação
9 Posteriormente, Lloyd (2001) classifica os problemas discutidos: 1. o conceito de interagente, ou o nível
em que ocorrem as interações do processo de seleção; 2. o conceito de replicador, ou a porção do genoma
que funciona como unidade de replicação; 3. aquilo em que se manifestam as adaptações ou as entidades
que adquirem adaptações como resultado da seleção; e 4. o conceito de beneficiário, ou seja, as unidades
que, em última instância, recebem o benefício no processo de seleção. Os dois últimos são os aspectos
mais controversos.
10Kin selection é um termo proposto por Maynard Smith (1964). Expressa-se na regra de Hamilton de
aptidão inclusiva: rb > c (sendo r a proporção de genes compartilhados entre os indivíduos, b o benefício
do receptor e c o custo do altruísta). A aptidão, neste modelo, é uma propriedade dos genes. Trivers,
1971, completa a solução para explicar as interações altruístas. Com omesmo propósito, Maynard Smith
& Price (1973) utilizam o conceito de estratégia evolutiva estável, a teoria dos jogos e a equação de Price
sobre a covariância da aptidão absoluta e relativa de cada agente na seleção, sejam eles indivíduos ou
grupos. Ver Williams (1992) e confrontar com Frank (1995).
592
de se atribuir efeito causal a um fator com base em uma noção pouco clara, como a de
informação no âmbito biológico:
O gene é um pacote de informação, não um objeto. O padrão dos pares de
bases na molécula de DNA especifica o gene. Mas a molécula de DNA é o
meio, não a mensagem. Manter esta distinção entre o meio e a mensagem é
absolutamente indispensável para a clareza de pensamento quando se trata
de evolução (WILLIAMS, 1992)11.
Essa caracterização foi qualificada como reducionista por Gould e Lloyd (1999), por
considerarem um erro de Williams localizar a causalidade no âmbito informacional e
não no aspecto material do replicador.
Algumas afirmações posteriores de Williams a respeito da unidade de seleção re-
presentam uma mudança de postura. Ele reconhece, de maneira explícita, a teoria
hierárquica da seleção em vários níveis. Ainda assim, reitera que o que se transmite na
herança é a informação contida nos replicadores, embora estes, para serem um fator na
evolução, devam expressar-se nos interagentes, indivíduos ou entidades materiais, que
são as realidades concretas com as quais os biólogos se deparam (WILLIAMS, 1992, p.
13).
Dawkins, em seu conhecido livro O gene egoísta, de 1976 — que já comemorou seus
30 anos e que após sua última edição, em 1989, continua provocando comentários —,
deu ao debate um alcance maior ao propor outra descrição do processo de seleção.
A revisão e reorganização de conceitos científicos costuma ter um efeito esclarecedor
e esse parece ter sido um objetivo de Dawkins ao batizar os elementos envolvidos no
processo de seleção: os replicadores e os veículos. Mas sua proposta avivou o debate,
não eliminou confusões e, como não é raro nas controvérsias, foi interpretada com
exagero, conforme expressa o próprio Dawkins (1982).
Dawkins atribui aos replicadores, ou genes, as propriedades de estabilidade, longe-
vidade e fidelidade na cópia. Por sua vez, os veículos, os organismos, são as entidades
temporais portadoras dos genes. O gene que opera na evolução é definido como “qual-
quer porção de material cromossômico que dure, potencialmente, suficientes gerações
para servir como unidade de seleção” (DAWKINS, 1976, p. 30). Apesar de serem menci-
onados como “linha germinativa”, os replicadores têm um caráter mais geral e inclusivo,
e podem instanciar-se em qualquer coisa no universo que se copie fielmente.
A distinção replicador-veículo permite mostrar a ênfase exclusiva no papel causal
dos genes, enquanto os organismos são uma estratégia utilizada pelos genes para per-
11Lewontin, Gould e Sober, dentre outros, expõem o argumento da irrelevância: ele se funda no fato
de que um mesmo fenótipo pode ser expresso por muitos genes. A seleção opera somente sobre os
fenótipos, não sobre os genótipos — “a seleção não pode ver os genes” é uma expressão metafórica de
Gould. Brandon (1982) tenta mostrar casos de irrelevância de causas genéticas utilizando uma noção
probabilística de Salmon: “screening-off”.
593

Mais conteúdos dessa disciplina