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HISTÓRIA DO DIREITO Henrique Abel Revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna Bacharel em Direito Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional e em Direito Público Mestre em Direito Professor de Curso de Graduação e Pós-graduação em Direito Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin CRB-10/2147 A139h Abel, Henrique. História do direito [ recurso eletrônico ] / Henrique Abel, Marjorie de Almeida Araujo, Débora Cristina Holenbach Grivot ; revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna. – Porto Alegre: SAGAH, 2017. ISBN ISBN 978-85-9502-171-6 1. Direito – História. I. Araujo, Marjorie de Almeida. II.Grivot, Débora Cristina Holenbach. III.Título. CDU 34(091) A formação das tradições da civil law e common law Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: De� nir o que são as tradições da civil law e da common law. Identi� car as características de cada uma das tradições. Reconhecer a aproximação dessas duas tradições ao período moderno. Introdução Neste capítulo, você irá analisar as duas maiores e mais influentes tradi- ções jurídicas do mundo atual: os sistemas conhecidos como civil law e common law. Começaremos analisando as origens históricas de cada sistema, bem como os caminhos distintos que permitiram que cada tradição fosse assentada em bases únicas. Depois, veremos as principais características de cada sistema e as suas principais distinções. Por fim, examinaremos as formas como ambas as tradições vêm se aproximando, sob diversos aspectos, no contexto do Direito contemporâneo. As tradições da common law e da civil law A common law (Direito Comum) é o nome pelo qual fi cou conhecido o sistema jurídico que nasceu na Inglaterra, na Idade Média. O termo é utilizado, pelo menos, desde o século XIII e designava o Direito que era vigente no país por força dos hábitos e dos costumes locais. Nasceu, assim, como um sistema jurídico baseado na tradição e nos usos, sendo, por isso, chamado, por vezes, de Direito Consuetudinário (ou seja, aquele relativo aos costumes). A common law é, assim, um Direito de matriz jurisprudencial, calcado nos precedentes judiciários construídos com base nos costumes e nas práticas locais. A legislação escrita, assim, não desempenha papel relevante na evolu- ção desse modelo. Dessa forma, a common law não sofreu influência direta significativa da parte do Direito Romano. Por essa razão, podemos dizer que o Direito britânico moderno possui uma linha de continuidade histórica muito mais acentuada, em relação ao passado, do que o observado nos países vinculados à tradição romano-germânica da civil law, como é o caso da maior parte dos países da Europa continental. Ocorreram, por certo, muitas evoluções jurídicas no interior da common law britânica ao longo dos séculos — mas isso não implicou rupturas político- -jurídicas de caráter mais traumático e divisivo, como foi o caso da Revolução Francesa de 1789. Essa progressiva evolução sem rupturas, na realidade britânica, revela-se não apenas na preservação do sistema da common law até os dias contem- porâneos, como, também, no peculiar arranjo institucional e político do país — que é uma das mais destacadas democracias ocidentais contemporâneas, ao mesmo tempo em que preserva o antigo modelo aristocrático-monárquico (apesar de que, na prática, o comando político do país atualmente repousa por inteiro nas mãos do Parlamento e na figura do primeiro-ministro, eleito pelo voto popular). Esse sistema de monarquia parlamentarista democrática, característico do sistema britânico, é geralmente chamado de Sistema Westminster, em referência ao Palácio de Westminster (sede do Parlamento britânico). A origem institucional da tradição da common law encontra-se no sistema de writs, iniciado no século XII. O writ pode ser traduzido, na prática, como um mandado. Toda vez que uma pessoa sentia necessidade de demandar a aplicação da justiça ao rei, fazia isso por meio de um writ, que passava por um juízo prévio de admissibilidade por parte de outras autoridades. Considerado fundamentado, o writ era recebido, e uma ordem real era enviada a um agente local do rei (ou a um senhor feudal) para que intimasse o réu a dar satisfação ao demandante, autor do writ. Foi justamente essa longa tradição de writs (ou seja, de ações judiciais concretizadas na forma de ordens A formação das tradições da civil law e common law 98 emanadas da autoridade real) que constituiu e desenvolveu o Direito Inglês (e, posteriormente, britânico). O sistema se constitui, dessa forma, com base nessa lista de remédios processuais já aplicados anteriormente — e não com base em normas de Di- reito Material com previsões e disposições prévias sobre os direitos e deveres das partes. Podemos dizer, assim, que remedies precede rights (ou seja, os remédios — jurídicos — precedem os direitos). Em virtude disso, o sistema da common law se estabeleceu de forma “fundamental- mente diferente” (GILISSEN, 2013) da verificada em países herdeiros da tradição da civil law, como é o caso da Europa continental e do Brasil. Por sua natureza, essa estrutura tornou a common law essencialmente incompatível com a tradição do Direito Romano, calcado no estabelecimento de institutos de Direito Privado e de normatização prévia de direitos materiais. Importante frisar que nem todas as decisões judiciais pretéritas são vincu- lativas no sistema da common law. Tecnicamente, nesses sistemas, só se pode falar em precedente quando a decisão pretérita houver estabelecido um princípio ou regra apto a orientar — de forma vinculativa — a decisão de um tribunal posteriormente, quando do julgamento de um caso baseado em fatos similares. O precedente, nesse sentido, consagra um dos princípios fundamentais da common law, que vem a ser a doutrina da stare decisis, orientada pela ideia de que os casos devem ser decididos de acordo com as normas consistentes para que fatos similares resultem em decisões judiciais igualmente similares. Assim: A expressão stare decisis é uma redução da frase latina “stare decisis et non quieta movere”, que se pode traduzir por “ficar como foi decidido e não mexer no que está quieto”. [...] De qualquer forma, com ou sem constituição e leis escritas, o ponto fulcral dos direitos inglês e norte-americano (e dos demais sistemas de direito que pertencem à mesma família) continua sendo a doctrine of stare decisis. Este é o seu elemento definidor, que o distingue da tradição romano-germânica. Na civil law, as regras jurídicas sempre foram procuradas em um corpo de normas preestabelecido: antigamente, o Corpus Juris Civilis de Justiniano; depois, os códigos; hoje, as constituições e todo o conjunto de leis infraconstitucionais. Na common law [...], a obrigação é a de respeitar as regras estabelecidas pelos juízes em decisões passadas (RAMIRES, 2010, p. 65). 99A formação das tradições da civil law e common law O sistema legal da civil law, por sua vez, pode ser definido como aquele derivado de uma combinação dos antigos institutos jurídicos de Direito Ro- mano. A sua principal característica, em justaposição ao sistema da common law, reside no fato de que as suas normas centrais derivam de codificações legais prévias que operam como fonte primária do Direito. A principal influência da civil law é o Direito Romano clássico — em especial, o Corpus Juris Civilis de Justiniano. Outras influências marcantes na herança romano-germânica são: o Direito Canônico; as práticas jurídicas feudais; os costumes, adaptações e reinterpretações que as tribos germânicas levaram a cabo, tendo por base o Direito Romano, após a queda do Império Romano ocidental. Já na Era Moderna, a principal referência da tradição da civil law, em termos de codificação, foi o Código Civil francês de 1804, também conhecido como Código Napoleônico. A tradição da civil law é hoje dominante, entre outros lugares domundo, na Europa Continental, na Ásia e na América Latina, incluindo o Brasil. Falar em aplicação de precedentes, no Direito brasileiro, não significa misturar a tradição brasileira da civil law com o sistema da common law — e muito menos substituir um sis- tema por outro. A eventual previsão de precedentes jurisprudenciais vinculativos (como é o caso da Súmula Vinculante) não altera a tradição jurídica na qual o ordenamento jurídico está vinculado. A civil law é o sistema jurídico mais influente e tradicional do mundo, adotado por mais de uma centena de países, e naturalmente cada país termina por desenvolver um modelo de civil law com características mais ou menos próprias. Características e diferenças Entre as principais distinções entre os sistemas da civil law e da common law, a principal é que, na primeira tradição, os direitos são, sobretudo, codifi cados — ou seja, previamente estabelecidos, na forma de legislação, por autoridade A formação das tradições da civil law e common law 100 legítima e competente para tanto. Enquanto isso, no sistema da common law, as codifi cações assumem um papel muito pequeno e secundário. Além disso, cumpre observar que a common law se funda, sobretudo, na jurisprudência, partindo de uma concepção de um Direito construído pelos juízes e tribunais ( judge-made-law), enquanto que, na tradição romanista, a jurisprudência não desempenhou um papel de protagonismo na criação e evolução dos institutos jurídicos. Isso, é claro, não muda o fato de que, nos sistemas contemporâneos da civil law, a jurisprudência ganha destacado papel enquanto fonte formal estatal do Direito — ainda que em um patamar de menor importância na comparação com o Direito democraticamente produzido pelas instâncias legislativas. Embora, atualmente, o processo seja visto de forma cada vez mais substancial, como instrumento indispensável para a viabilização do acesso à Justiça e a concretização de direitos, é certo que, do ponto de vista histórico, na tradição romanista, o processo desempenhava um papel secundário e meramente acessório. Os grandes institutos legados pelo Direito Romano foram, sobretudo, de Direito Material e Direito Privado, com menos ênfase na processualística. Já a tradição da common law se caracteriza, sobretudo, como um Direito judiciário, moldado pelas práticas forenses e pelos antecedentes processuais. Em virtude dessas importantes características distintas, que se encontram tanto na origem quanto no desenvolvimento histórico de cada sistema, a com- mon law basicamente não sofreu influência por parte da tradição do Direito Romano — em contraste com o que ocorreu na Europa continental, na qual a redescoberta de normas, institutos e estudos jurídicos da Roma Clássica constituiu a influência central do Direito nos últimos cinco séculos. Também cumpre observar que, na civil law, os precedentes judiciais, via de regra, têm meramente força persuasiva. Significa dizer: eles podem influenciar, ou servir como parâmetro de orientação, para julgamentos posteriores, mas não têm caráter vinculativo. Nesses sistemas, escapa dessa regra apenas a jurisprudência consolidada, que é sumulada especificamente para estabelecer vinculação normativa. 101A formação das tradições da civil law e common law Nos sistemas da common law, como já observamos, nem todos os preceden- tes são igualmente vinculativos, na medida em que o precedente (em sentido jurídico técnico) não se confunde com qualquer decisão judicial pretérita. Observa-se que, mesmo nesses sistemas, o apelo do precedente é relativo — sendo que, muitas vezes, o precedente é doutrinariamente considerado apenas mais um tipo de argumento constitucional, entre tantos outros possíveis. Além disso, cada país herdeiro da tradição da common law possui regras distintas sobre a vinculação das instituições com os precedentes judiciais. Na Inglaterra, por exemplo, as decisões da Câmara dos Lordes constituem prece- dentes obrigatórios para todas as jurisdições, mas podem excepcionalmente ser reformadas ou contrariadas pela própria Câmara dos Lordes. Algo semelhante se dá com as Court of Appeal (Cortes de Apelação), High Court of Justice (Corte Superior de Justiça) e Crown Court (Corte da Coroa). No entanto, as decisões provenientes de outros tribunais ou órgãos nunca constituem precedentes obrigatórios. Na mesma linha, nos Estados Unidos, observa-se que as Cortes Supremas Estaduais, cujas decisões são vinculativas para os juízes dos respectivos esta- dos, não se encontram necessariamente vinculadas às suas próprias decisões — sendo que o mesmo vale para a Suprema Corte Federal norte-americana. Para saber mais, consulte Diferenças e semelhanças entre os sistemas da civil law e da common law. (OLIVEIRA, 2014). As aproximações entre os dois sistemas no Direito contemporâneo No contexto do Direito contemporâneo, tem sido possível observar uma série de aproximações entre as tradições da common law e da civil law. Longe de aposentar ou superar esses modelos, essas aproximações apenas tornam menos claras e rígidas as distinções entre os dois sistemas. Como um primeiro movimento nesse sentido, podemos apontar a ascensão do constitucionalismo como sucedâneo do movimento codificador típico do século XIX, que era mais centrado no Direito Privado e na resolução de conflitos entre indivíduos. A progressiva transformação da Constituição no núcleo do ordenamento A formação das tradições da civil law e common law 102 jurídico, ao redor da qual orbita toda a normatividade existente, representou uma concessão do sistema da common law para o modelo de codificações escritas. Mesmo no Reino Unido, que formalmente permanece até hoje sem uma Constituição escrita propriamente dita, é possível constatar um esforço, so- bretudo no último meio século, no sentido de reunir todas as normas com força propriamente constitucional. Em 2004, uma comissão parlamentar foi instituída para discutir os estatutos existentes que deveriam ser considerados parte da norma constitucional do País. Entre as normas escritas incluídas nesse compêndio de Direito Constitucional, estão desde a Magna Carta de 1215 até o Ato de Contingências Civis de 2004, ou seja, um apanhado normativo de oito séculos de história (desde então, outras quatro legislações foram incluídas nesse rol de normas com status constitucional). Além disso, a derrocada do prestígio do positivismo jurídico nos meios acadêmicos, a partir da segunda metade do século XX, contribuiu para a superação definitiva de velhas concepções sobre a autossuficiência da dog- mática jurídica. Os cânones interpretativos que estiveram em voga durante séculos — como a necessidade de transcender a letra fria da lei, de honrar o espírito da lei ou de resgatar a vontade do legislador — foram superados pela filosofia jurídica do século XX. A compreensão jusfilosófica contemporânea, no sentido de que a aplicação da lei demanda necessariamente a interpretação dela por parte do aplicador, implica uma nova (e mais complexa) concepção de Direito, na qual o juiz não atua nem como mera boca da lei (atuando como aplicador mecânico, desautorizado a interpretar, como era próprio da mentalidade do exegetismo dos tempos do Código Napoleônico) nem como senhor da lei (não autorizado, portanto, a projetar seus próprios preconceitos e pré-juízos no ato de aplicação/interpretação da norma). Assim, nesse particular, o modelo da civil law faz uma concessão ao modelo da common law: permanece a estrutura jurídica fundada sobre estatutos normativos e codificações — mas o papel do juiz, enquanto aplicador, torna-se mais ativo e complexo do que se via na civil law em séculos passados. Por último, a partir do século XX, é possível observar um enorme cresci- mento (em importância, órgãos e normas) do Direito Internacional Público. Seja como resposta aos desafios econômicos e sociais impostos pelo processo de globalização, seja para lidar com as lições humanitáriasdecorrentes das duas 103A formação das tradições da civil law e common law grandes guerras mundiais, a adesão da comunidade internacional (incluindo países herdeiros da common law e da civil law) à observância de normas escritas de caráter supranacional representa mais um elemento contempo- râneo de relativização do sistema da common law. Ao mesmo tempo que essa abertura dos ordenamentos jurídicos nacionais (à legislação produzida internacionalmente) representa uma ressignificação das noções tradicionais de soberania nacional, ela também representa, nesse sentido, uma relativização da tradição da própria civil law. GILISSEN, J. Introdução histórica ao direito. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. RAMIRES, M. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. Leituras recomendadas LOPES, J. R. de L. O direito na história: lições introdutórias. 2. ed. São Paulo: Max Li- monad, 2002. OLIVEIRA, A. C. B. de. Diferenças e semelhanças entre os sistemas da civil law e da common law. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, v. 6, n. 10, jan-jun. 2014. A formação das tradições da civil law e common law 104 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: