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COZINHA DAS AMÉRICAS Ana Carolina dos Santos Costa Cozinha de festas típicas das Américas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Identificar as principais festividades dos países da América. � Associar as preparações às festas típicas dos países da América. � Descrever as influências culturais na formação da gastronomia das festas típicas. Introdução Com a chegada dos navios no continente americano, os colonizadores — portugueses, espanhóis, ingleses — trouxeram em suas bagagens todo o seu conteúdo cultural, modo de vida, estruturação econômica, artes, músicas, danças, religião, cantigas, hábitos alimentares e festividades. Muitas de suas festas típicas passaram a fazer parte do calendário anual dos povos colonizados e se enraizaram nos costumes locais. Algumas dessas festividades mesclam as diversas identidades culturais de ameríndios, europeus e africanos, criando um mosaico cultural repleto de significados e sabedoria popular. Além disso, muitas festas típicas estão associadas a preparações gastronômicas, que enriquecem ainda mais tais comemorações. Neste capítulo, você estudará sobre as principais festividades típicas de alguns países das Américas. Além disso, conhecerá as influências culturais e preparações típicas associadas a essas festividades, a fim de compreender a riqueza gastronômica de tais comemorações. 1 Principais festas típicas das Américas: sua história e influências A cultura dos países das Américas é marcada por várias festividades, que compõem o calendário anual dos países. Na Argentina, por exemplo, existem mais de 2.700 festividades por ano, e, dada a sua importância turística e cultural, a Secretaria de Turismo criou o Departamento de Festas Populares. Entre as festas típicas da Argentina, estão a Via Crucis da Semana Santa, que ocorre em Tandil, e a Festa da Semana Santa, que possuem influências pré-hispânicas e espanholas misturadas, uma vez que nos rituais cristãos são realizadas oferendas à Pachamama, ou Mãe Terra. Outra festa popular argentina muito famosa é a Queima dos Bonecos (La quema de muñecos), comumente realizada no dia 31 de dezembro, em La Plata. Segundo Leite, Caponero e Perez (2010), tal festividade está associada à época medieval e aos tribunais da inquisição, em que os bonecos representam pessoas ou organizações, em uma paródia teatral que busca dramatizar a realidade social. Os autores apontam, ainda, que: As festas populares envolvem a presença e a participação concreta de um determinado coletivo, que se agregam e se articulam em torno de um objeto sagrado ou profano gerando identidade. Podem estar associadas à civilidade, reproduzindo lutas, rendendo homenagens a heróis ou personalidades; podem estar associadas à religiosidade, como as festas litúrgicas ou em homenagem aos santos; podem estar ligadas aos ciclos do calendário agrícola, como as festas de colheita; podem ser festas folclóricas, festas étnicas ou até mesmo festas religiosas e profanas simultaneamente (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010, p. 73–74). O Brasil também possui uma variedade de festas populares, tais como as Festas Juninas do Nordeste, o Carnaval, as Festas de Corpus Christi, a Festa do Boi Bumbá, em Parintins, ou Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que ocorre em Belém do Pará. O Círio de Nazaré é a segunda maior festa religiosa do mundo, e, devido à sua importância cultural, foi registrada como Patrimônio Imaterial Brasileiro (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010). Uma festividade importante do Peru é o festival de Corpus Christi, cele- brado no país desde os tempos coloniais. Esse festival revela o sincretismo cultural dessa tradição, em que 15 santos e virgens chegam de diferentes lugares à catedral de Cusco, onde tais imagens saúdam o corpo de Cristo. Essa festividade é comemorada em todo o Peru desde os tempos coloniais, mas atingiu um pico em Cusco. A cerimônia é bem adornada, contempla procissões Cozinha de festas típicas das Américas2 e toda a cidade é decorada para o festival. À noite, todas as pessoas se reúnem em vigília, para comer os pratos típicos da festividade, como o chiriuchu, acompanhado de cerveja, chicha e pão de milho. Ao amanhecer, a procissão segue para a Plaza Mayor, com as imagens de cinco virgens vestidas com roupas ricamente bordadas, além das imagens de quatro santos: San Sebastián, San Blas, San José e o apóstolo Santiago, montando um belo cavalo branco (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010). O Chile também é rico em festas típicas, muitas delas de cunho religioso e com influência espanhola, como a Festa dos Reis, a Festa da Semana Santa, a Festa da Cruz de Maio e a Festa de São Pedro e São Paulo. Além disso, há a Festa da Tirana, que ocorre em julho, a qual é associada a uma lenda de uma princesa indígena, chamada Ñusta Huillac, conhecida como “a tirana”, por seu despotismo. Segundo essa lenda, a princesa se apaixonou por um prisioneiro português devoto da Virgem do Carmo, que a converteu ao cristianismo (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010). A Colômbia é um país com numerosas festas populares, sobretudo reli- giosas. Algumas destas estão listadas como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade: o Carnaval de Barranquilla, reconhecido em 2003 enquanto patrimônio, e o Carnaval de Negros e Brancos e a Procissão de uma semana em Popayán, reconhecidos em 2009 enquanto patrimônio (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010). O Carnaval de Barranquilla ocorre desde o século XIX, na cidade co- lombiana de Barranquilla. Tal festejo mistura a festividade católica com cerimoniais dos nativos pré-colombianos e a herança musical dos africanos. Durante os dias que antecedem a Quaresma, são realizadas danças espanholas, congo africano e danças nativas, como a cumbia, revelando-se, assim, uma festa típica com tripla fusão cultural: europeia, africana e indígena (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010). O Carnaval de Negros e Brancos ocorre anualmente, entre 28 de dezembro e 6 de janeiro, na cidade andina San Juan del Pasto, localizada na região Sudoeste da Colômbia. Sua origem remonta à fusão das culturas indígenas e hispânicas que ocorreu ao longo do tempo. Tal festa estaria associada às celebrações das culturas indígenas ao deus da lua, porém, com o passar do tempo, foram agregando-se outros elementos da cultura espanhola e, poste- riormente, da cultura africana à tradição do Carnaval de Negros e Brancos. Visualmente, é uma festa bem rica, pois conta com músicas e carruagens com gigantescas esculturas construídas pelos artesãos locais. Além disso, as pessoas saem às ruas fantasiadas com roupas de época e, em alguns dias, se maquiam de negros no penúltimo dia da festividade e de brancos no último 3Cozinha de festas típicas das Américas dia, como símbolo de igualdade e união de todos, independentemente de etnia ou condição sociocultural (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010). As festas típicas são de fundamental importância na vida e no cotidiano das pessoas, por fortalecer as relações sociais, perpetuar suas expressões an- cestrais, atrair turistas e renda, além de divulgar sua cultura e gastronomia. A seguir, serão destacadas algumas das principais festividades típicas de países do continente americano que têm grandes marcas gastronômicas com suas preparações culinárias típicas, são elas: a Festa de Ação de Graças, a Festa do Sol e a Festa dos Mortos. Ação de Graças A Ação de Graças (Thanksgiving Day), também conhecida como Dia de Ação de Graças, é uma festa tipicamente norte-americana. O Presidente George Washington sugeriu a data 26 de novembro como Dia de Ação de Graças, porém foi Abraham Lincoln, em 1863, que sugeriu a todos os norte-americanos que deixassem de lado a última quinta-feira de novembro como um dia para agra- decer. No entanto, foi somente em 1941, por decreto do Presidente Roosevelt, que essa festividade foi considerada feriado nacional, sendo comemorada na 4ª quinta-feira do mês de novembro. Sua origem estáassociada a duas versões. A primeira indica que esse feriado surgiu com um grupo de colonos ingleses que chegaram em Berkeley Hundred, na Virgínia. Conforme o grupo, a sua chegada a esse local deveria ser um dia de “ação de graças” a Deus. A outra versão, mais detalhada, está associada ao agradecimento dado aos nativos norte-americanos por ensinarem aos peregrinos como pegar enguias e cultivar milho em Plymouth, Massachu- setts (UNITED STATES OF AMERICA, 2007, 2016). A segunda versão conta ainda que, em 1620, um navio chamado “Mayflower”, com grupos separatistas, havia deixado o porto da Inglaterra rumo ao Novo Mundo. Esse grupo desembarcou ao Norte dos Estados Unidos, na região de Plymouth, porém, devido ao clima e à geografia da região, teve dificuldades em plantar e colher seus alimentos, visto que era composto, em sua maioria, por aristocratas, que não tinham habilidade com caça e agricultura. Então, alguns índios nativos da tribo Wampanoag ensinaram a esses ingleses suas técnicas de cultivo e caça, para que pudessem sobreviver. Em março de 1621, alguns índios Wampanoag chegaram ao assentamento dos peregrinos e fizeram um acordo com os ingleses para que protegessem suas terras de tribos rivais. Em troca, os índios lhes ensinaram a cultivar milho, pescar, colher amêijoas, Cozinha de festas típicas das Américas4 caçar e coletar frutos da floresta. Em 1621, os ingleses planejaram uma festa de agradecimento e convidaram a tribo dos Wampanoag para comemorar, com uma fartura de comidas, como peru, carne de veado, abóbora, frutas do bosque, amêijoas, peixes, enguias, nozes, pão de milho e outros alimentos. Tal banquete foi planejado para agradecer aos índios por ensiná-los a viver no deserto e a adquirir e cozinhar esses alimentos, uma vez que sem esses ensinamentos, os ingleses não teriam sobrevivido (UNITED STATES OF AMERICA, 2007, 2016). Portanto, nos Estados Unidos, o Dia de Ação de Graças é um momento de tradição e compartilhamento, no qual as famílias se reúnem em uma ceia para saborear uma refeição típica e agradecer. O evento principal de qualquer Dia de Ação de Graças é o jantar, cuja refeição é farta e repleta de preparações específicas. Para muitos, o Dia de Ação de Graças é uma preparação para as festas de Natal. É também o momento de realizar ações de caridade, por isso muitas organizações servem jantares de Ação de Graças para moradores de ruas e populações carentes e enviam cestas de alimentos para idosos e doentes. Além disso, no Dia de Ação de Graças, é realizado um desfile em Nova York, no qual o Papai Noel aparece, anunciando que o Natal se aproxima (UNITED STATES OF AMERICA, 2007, 2016). Quase todas as culturas do mundo celebram e agradecem por suas co- lheitas abundantes, e tal festividade está associada à fartura de colheitas. No Canadá, também é comemorado o Dia de Ação de Graças, comemorado pela primeira vez enquanto festividade oficial em 1879. Entretanto, os povos indígenas que habitavam o país já comemoravam o período de colheita de outono antes mesmo da chegada dos colonizadores europeus. Somente em 1957 é que o Dia de Ação de Graças foi proclamado feriado nacional, sendo comemorado na 2ª segunda-feira do mês de outubro (MILLS; MCINTOSH; BONIKOWSKY, 2019). O primeiro Dia de Ação de Graças dos europeus no Canadá foi realizado por Sir Martin Frobisher, no Ártico Oriental, em 1578. Em comemoração e agradecimento à sua chegada na região de Nunavut, os europeus comeram uma refeição com carne salgada, biscoitos e ervilhas. Oficialmente, o primeiro Dia de Ação de Graças Nacional no Canadá, enquanto evento anual, ocorreu em novembro de 1879, inspirado pelo feriado do Dia de Ação de Graças dos Estados Unidos, porém a comemoração no Canadá se dá no mês de outubro, com a passagem do verão para o outono, quando o clima de outono geralmente ainda é passível de atividades ao ar livre (MILLS; MCINTOSH; BONIKO- WSKY, 2019). 5Cozinha de festas típicas das Américas No Canadá, o Dia de Ação de Graças está associado à tradição europeia de agradecimento aos festivais de colheita. Um símbolo marcante dessa fes- tividade é o “Corno da abundância”, um chifre cheio de frutas e legumes da estação. É também um momento para visitar familiares ou amigos que moram longe ou para recebê-los em suas próprias casas, tudo em torno de uma mesa farta com uma refeição especial, que inclui peru assado e produtos sazonais, como abóbora, espigas de milho e nozes-pecã. Atualmente, a refeição pode consistir em outras preparações, principalmente se a família for descendente de europeus (MILLS; MCINTOSH; BONIKOWSKY, 2019). O Dia de Ação de Graças é um feriado oficial em todas as províncias e territórios, exceto na Ilha Prince Edward, em New Brunswick e na Nova Escócia. As principais diferenças entre as outras províncias tendem a dizer respeito aos pratos que são servidos com a refeição. Por exemplo, a torta de abóbora é uma sobremesa comum em todo o país, mas também existem favo- ritos regionais, como as barrinhas de Nanaimo, na Colúmbia Britânica e, as tortas de manteiga, em Ontário (MILLS; MCINTOSH; BONIKOWSKY, 2019). Festa do Sol A cultura andina tem vários ciclos festivos durante o calendário anual, com algumas festividades associadas ao nascimento e à morte do homem, outras à produção da semeadura à colheita, outras à celebração da natureza e algu- mas associadas a práticas religiosas. Entre as festividades comuns no Peru, destaca-se a Festa do Sol. A Festa do Sol, em espanhol Fiesta del Sol, ou, ainda, na língua inca Inti Raymi, é uma festividade realizada desde os tempos da civilização inca, especificamente no período do Império Tahuantinsuyo. É uma festa baseada no culto ao Sol, criada em adoração ao deus do Sol (Apu Inti), comemorada no mês de junho, sendo considerada a celebração mais importante de Cusco. Por serem grandes adoradores do Sol e por suas habi- lidades e conhecimentos da astronomia, os incas estavam sempre realizando cerimônias de adoração ao cosmos, de modo que a Festa do Sol é também uma comemoração ao solstício de inverno, ao ano novo solar ou ao início do ano novo andino (CÁNEPA KOCH et al., 2011). A Festa do Sol consiste em uma procissão que se inicia no Qorikancha (também chamado de Templo do Sol, no centro da cidade) até o complexo arqueológico de Sacsayhuaman, onde os incas faziam sacrifício de lhamas e outros animais, prática extinta atualmente. Durante o percurso, são jogadas flores, e um grupo de homens usa vassouras de palha para espantar os maus espíritos. A celebração conta ainda com uma cerimônia do fogo, na qual todos Cozinha de festas típicas das Américas6 os fogos da cidade são apagados e reacesos com um novo fogo. Segundo a tradição, os cozinheiros são especialistas não apenas em cozinhar, mas em manter o fogo entre as cinzas. Essa festividade atrai muitos turistas de todo o mundo para a cidade de Cusco, para ver os atores e atrizes vestidos com os trajes incas feitos com lã de ovelha e alpaca e ouvir os cânticos andinos de adoração ao deus Sol em quéchua. Há toda uma encenação teatral, em que mulheres fazem oferendas e há simulação de sacrifício de animais. Por sua representatividade e importância histórica, social e simbólica, a Festa do Sol ou Inti Raymi, realizada na cidade de Cusco, foi considerada Patrimônio Cultural da Nacional, Ato Oficial e Cerimônia Ritual Principal de Identidade Nacional pela Lei nº. 27431, de 3 de março de 2001 (CÁNEPA KOCH et al., 2011). Festa dos Mortos A Festa dos Mortos, ou Día de los Muertos, é uma típica festividade me- xicana que ocorre anualmente ao final de cada mês de outubro e início de novembro. Tal festejo tem suas raízes na cultura dos índios pré-colombianos. As festividades indígenas em torno da Festa dos Mortos envolvem mais de 40 tribos diferentes, das quais se destacam: coras, mazahuas, chontales, ixiles, cuicatecos, chatinos, huicholes, mayos, tlapanecos, triques, zapotecos, yaquis, chichimecas-jonaz, choles,huastecos, ixcatecos, jacaltecos, mixtecos, entre outras tribos. Apesar de essa festividade ocorrer em dias específicos, alguns grupos tendem a comemorá-la por todo o mês de novembro, como os chontales, da região de Tabasco (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). No México, a Festa do Dia dos Mortos é uma das festividades mais impor- tantes, pois a morte tem um significado importante para as culturas indígenas. Para essas culturas, é um período para refletir sobre a vida e a morte, e os festejos incluem diversas cerimônias, rituais, produção de altares, comidas, decoração, sendo considerada uma celebração ainda viva no tempo. O elemento mais representativo dessa festa é o altar dos mortos, o qual é montado como uma representação simbólica do céu e da terra, contendo panos com cores específicas, imagens, velas, flores e muita comida como oferenda aos mortos (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). Em 2008, a Unesco inscreveu as festas indígenas dedicadas aos mortos na lista de Representativa de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). 7Cozinha de festas típicas das Américas Segundo a história contada pelos povos pré-hispânicos, a morte é o início de uma viagem ao reino dos mortos sem carne (Mictlan ou Xiomoayan), o equivalente ao inferno para os espanhóis. A viagem até esse reino dura quatro dias, e, durante o trajeto, o visitante oferece presentes aos senhores de Mic- tlan, Mictlantecuhtli (senhor dos mortos) e sua companheira, Mictecacíhuatl (senhora dos habitantes do recinto dos mortos), e, em seguida, passa por um tempo de quatro anos até retornar para Mictlan, para, depois, seguir para o local de seu descanso eterno. Antes da colonização espanhola, os índios não conheciam a conotação religiosa católica dessa festividade, nem acreditavam na ideia de céu e inferno, ou punição e recompensa. Para os nativos pré-colombianos, o local de seu descanso era determinado por seu comportamento em vida. Havia paraísos para aqueles que morreram em circunstâncias relacionadas à água, para os mortos em combate, os cativos massacrados e as mulheres mortas durante o parto, bem como para aqueles que morreram de morte natural. Além disso, havia um reino especial para as crianças, onde existia uma árvore cujos galhos pingavam leite para alimentá-las (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). Após a invasão espanhola no México, durante o século XVI, foi introduzido o cristianismo no país e, com isso, o terror da morte e do inferno como algo ruim, como punição. Como as tradições indígenas eram muito fortes, houve, então, um sincretismo e uma mistura das tradições católicas aos costumes locais, processo comumente observado em diversas culturas das Américas. Assim, com a introdução do catolicismo no país, imagens de santos, arcos de flores e procissões foram incluídos nos rituais e nas cerimônias. Este sincre- tismo marca a Festa do Dia dos Mortos no México, uma mistura de heranças indígenas e europeias que reflete o multiculturalismo do país (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). 2 Gastronomia das festas típicas A existência de preparações exclusivas de certas festividades envolve toda uma cadeia de pessoas, que vai desde a produção (plantio e colheita), passando pelas mãos das cozinheiras (em sua maioria mulheres), até a degustação final, em que existem normas sociais a serem respeitadas. Nesse contexto, as co- Cozinha de festas típicas das Américas8 midas típicas funcionam como mediadoras para possibilitar relações e trocas socais (CÁNEPA KOCH et al., 2011). A seguir, serão apresentadas algumas preparações típicas de festividades de países das Américas. Refeição do Dia de Ação de Graças A refeição tradicional do Dia de Ação de Graças (Figura 1) é composta por peru assado, purê de batatas, batatas-doces, legumes, molho de cranberry e torta de abóbora, ou seja, uma refeição composta por alimentos tradicionais norte-americanos, que valorizam os alimentos nativos da América do Norte. Todavia, apesar de a mesa ser composta por tais alimentos, cada família tem sua tradição e forma de prepará-los, de modo que diferentes tradições fami- liares, diferentes etnias e sabores regionais deixam a refeição desse dia única e distinta. Os símbolos gastronômicos dessa festividade são: peru, milho, abó- boras e molho de cranberry, os quais são desenhados em decorações e cartões comemorativos (LAROUSSE, 2005; UNITED STATES OF AMERICA, 2016). Figura 1. Jantar tradicional da Festa de Ação de Graças. Fonte: Mass Badge (2019, documento on-line). 9Cozinha de festas típicas das Américas O peru é tão tradicional para essa festa que o feriado costuma ser chamado de “Dia do Peru”. O peru clássico deve ser recheado, temperado com sal e pimenta e untado com manteiga. Após assado, é servido inteiro, regado com o molho da tradição familiar, e decorado com pão de milho, folhas de sálvia, uva e frutos silvestres. Os recheios podem variar de estado para estado. Em Massachusetts, por exemplo, o recheio tradicional é composto por pão de milho, linguiça cozida, airelles, salsão, cebola, maçã picada ou compota de maçã, pimenta-do-reino, sal, açúcar, manjerona, tomilho, sálvia e suco de limão. Em Arkansar, o recheio do peru também leva pão de milho, porém acrescenta-se caldo de galinha, ovos e algumas ervas. Já em Minnesota, o pão de milho é substituído por arroz selvagem, ao passo que, em Nova York, o recheio leva damascos, Grand Marnier, fígado, coração de peru, linguiças, cebolas e ervas (LAROUSSE, 2005; UNITED STATES OF AMERICA, 2007, 2016). A torta de abóbora é a sobremesa mais consumida do Dia de Ação de Graças. A massa dessa torna é feita com manteiga, banha, trigo e água, e o recheio é composto por abóbora, canela, noz-moscada, ovos, açúcar, leite e creme de leite fresco (ABRIL COLEÇÕES, 2010). Também não pode faltar o molho de cranberry agridoce, ou geleia de cranberry. Cranberry é uma fruta tipo baga pequena e azeda, de coloração vermelha-escura, que cresce em Massachusetts e em outros estados da Nova Inglaterra. Há muito consumidas pelos índios, que as chamavam de “ibimi”, que significa “baga amarga”, tais frutas eram utilizadas com outros fins, como medicinais, para tratar infecções e para tingir tecidos (UNITED STATES OF AMERICA, 2016, documento on-line). Cozinha de festas típicas das Américas10 Os acompanhamentos do peru são inúmeros, porém os mais clássicos são batatas-doces cozidas, legumes verdes como brócolis, couve-de-bruxelas, espinafre ou vagem, tudo acompanhado de milho e cranberry, fruta típica do Norte dos Estados Unidos. Podem também estar presentes pêssegos em calda, trazendo uma mistura de sabores e texturas para a refeição de Ação de Graças (LAROUSSE, 2005). No Nordeste dos Estados Unidos, pela proximidade com o Canadá, a refeição pode incluir o peru coberto com xarope de bordo de Vermont e pão decorado com castanhas, alecrim e tomilho. Em Baltimore, devido à influência alemã na cidade, um acompanhamento típico é o chucrute. Na região Meio- -Oeste dos Estados Unidos, os acompanhamentos do peru podem incluir arroz selvagem, feijão verde, molho de cranberry com cerejas e pudim de caqui. Já na região Sudoeste, há influência norte-americana, mexicana e espanhola, por isso os acompanhamentos apresentam bastante tempero, sendo eles: pão de milho, batata-doce cristalizada com marshmallows, pasta de chile e cominho, pimentões verdes, torta de limão, torta de nozes ou torta de batata-doce, no lugar da tradicional torta de abóbora, refletindo também os gostos e hábitos do sul do país. No Oeste do país, por sua vez, a marca é o sabor fresco dos ingredientes, sendo o peru temperado com alho, sálvia, tomilho e cogumelos selvagens, além de avelãs.Tal diversidade revela a riqueza dos ingredientes e das influências culturais presentes na gastronomia dos Estados Unidos (LAROUSSE, 2005; UNITED STATES OF AMERICA, 2016). Comidas de festas típicas peruanas Chiriuchu — em quéchua, “chiri” significa frio, e “uchu”, picante —, denomi- nada como “frio picante”, é uma comida típica do Peru, cuja origem remonta aos tempos dos incas. Essa preparação peruana é composta por cuy, frango, pimentão rococó, queijo fresco, charque, linguiça ou chouriço, milho branco e cochayuyo, sendo considerada uma preparação importante na festividade do Corpus Christi peruano. Tal preparação apresenta complexidade de sabores e riqueza de ingredientes, que vão desde a costa até as montanhas e a selva. Em geral, é acompanhada com aguardente de cana e ervas, sendo consumida fria, daí o nome “frio picante” (CÁNEPA KOCH et al., 2011). 11Cozinha de festas típicas das Américas O cochayuyo é uma alga marinha (Durvillaea antarcticaque), geralmente encontrada em abundância nas areias das praias chilenas e peruanas. É reconhecido por sua forma em faixas longas, que chegam a 15 metros, e por sua coloração marrom, cujo caule é utilizado na culinária chilena e peruana. Atualmente, o cochayuyo é considerado um “superalimento”, devido às suas propriedades medicinais. Apresenta um sabor salgado, sendo bastante consumido pelas comunidades indígenas como substituta de carne, devido ao seu alto valor proteico. Na culinária, o cochayuyo é consumido de diversas formas, como geleia, empanadas, ceviche, churrascos, purê, croquetes e até em risotos de cochayuyo. Contudo, sua preparação mais comum é em forma de ensopados, como ingrediente principal do charquicán e do chiriuchu. Outro prato especial comum em vários contextos festivos, principalmente na Festa do Sol, é a pachamanca (Figura 2), uma preparação composta por milho, tubérculos, feijão e carnes. Para prepará-la, algumas pedras são aquecidas por horas e é cavado um buraco na terra, onde tais pedras são dispostas. Em seguida, os produtos são colocados, de acordo com o tempo de cozimento: primeiro as batatas, seguidas das carnes de carneiro, porco e aves, sendo colocada por cima uma cobertura huacatay. Por último, são adicionados feijões, milhos e batata-doce com cobertura de marmaquilla e alfafa. O fogo de terra é coberto com folhas, para que nem calor, nem a fumaça escapem, e o processo de cocção dura aproximadamente 1 hora. Essa preparação também é comum no domingo de Páscoa, no Dia das Mães, nos feriados nacionais e na Festa da Herranza (CÁNEPA KOCH et al., 2011). Huacatay, cujo nome científico é Tagetes minuta, é uma erva também chamada de calêndula mexicana, ou menta negra peruana. Originário da América do Sul, o huacatay é uma das principais ervas aromáticas utilizadas na gastronomia peruana. Pode ser utilizado no preparo de molhos, como o molho pesto, em substituição ao manjericão, ou, ainda, como uma pasta para ser utilizada em preparações, como o tradicional ocopa (molho elaborado com pimentões, cebola, huacatay e farinha de bolacha). Cozinha de festas típicas das Américas12 As bebidas também estão presentes em festividades peruanas e desempe- nham um papel fundamental nas relações entre o homem e o mundo sagrado. O destaque vai para a chicha, bebida originária desde os tempos da civilização inca, a qual é consumida durante cerimônias religiosas como agradecimento aos deuses, especialmente os Apus (Cerros) e a Mãe Terra (Pachamama). A chicha de jora é uma bebida fermentada preparada com milho branco; já a chicha roxa não é fermentada, sendo composta por milho roxo, gotas de limão, maçã, abacaxi, marmelo, açúcar e água, tudo fervido junto. A chicha roxa é a bebida não fermentada mais popular atualmente no Peru, sendo consumida quente ou fria (CÁNEPA KOCH et al., 2011). Figura 2. Pachamanca. Fonte: Peru... (2018, documento on-line). 13Cozinha de festas típicas das Américas Comidas típicas da Festa dos Mortos As comidas típicas da Festa dos Mortos mexicana são cheias de aromas, cores e sabores diferentes, apresentando um significado simbólico no altar dos mortos. Entre as preparações que não podem faltar no altar, estão o pan de muerto, os doces de abóbora, os doces de alfenim, os tamales, os moles, o arroz com leite, entre outras (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). O pan de muerto (Figura 3) é o pão típico da Festa dos Mortos mexicana. Esse pão apresenta algumas variações, dependendo da região, pode ser banhado em açúcar ou gergelim e conter ingredientes especiais, como raspas de casca de laranja, chá de anis e chá de flor de laranjeira. No entanto, os ingredientes bá- sicos são: farinha, sal, açúcar, manteiga, ovos e fermento. O que há em comum entre todos, independentemente das variações de ingredientes, é a decoração em cruz, feita com a própria massa, representando as divindades astecas e simbolizando os ossos dos mortos (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). O doce de abóbora, normalmente servido em pratos de barro, é feito com abóbora cozida misturada com piloncillo, canela e goiabada. O doce de alfenim (Figura 3) é preparado desde os tempos coloniais, porém, na festividade do Dia dos Mortos, é preparado com açúcar, água e limão, moldado em forma de caveira e caixões, pintados e decorados com chocolate, amêndoas, mel e doces. Os tamales são uma preparação tradicional mexicana presente na festa do Dia dos Mortos. Eles preparados à base de milho e são recheados com pimentão, moles, feijão ou frango, similar a uma pamonha, podendo ser doce, salgada ou picante (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). Cozinha de festas típicas das Américas14 Figura 3. Pan de muerto e doce de alfenim típicos da Festa dos Mortos. Fonte: Ozimek (2019, documento on-line). Entre as bebidas da Festa dos Mortos mexicana, destacam-se o atole e o champurado. O atole é uma bebida de origem pré-hispânica à base de milho, que pode ser aromatizada com chocolate, morango, baunilha ou goiaba. Já o champurrado é similar ao chocolate quente, sendo feito à base de chocolate, açúcar, piloncillo, leite e fubá de milho. Possui muitas variações, podendo con- ter essências como baunilha, ervas, hortelã, licor e marshmallow (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). 15Cozinha de festas típicas das Américas Outro doce típico dessa festa é o doce de tejocote. Tejocote é uma fruta tipicamente mexicana, de coloração amarelada, sabor doce, cujo nome vem de nahuatl texócotl. A preparação desse doce é simples: as frutas são cozinhadas com açúcar, água e canela até que os tejocotes estejam amolecidos e um mel seja formado (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). Outra preparação típica é o mucbipollo, um frango preparado ao estilo maia, enterrado em forno de chão. Esse frango é preparado com pimenta moída, epazote, alho assado, tomate picado, sal, manteiga, achiote e feijão. Segundo a tradição maia, ele deve ser preparado uma noite antes do Dia dos Mortos, e o primeiro frango cozido é aquele que é colocado no altar dos mortos, onde as famílias o comem e o compartilham com prazer (DRUMOND; VIEIRA; ABRITTA, 2018; DENIS RODRÍGUEZ; HERMIDA MORENO; HUESCA MÉNDEZ, 2012). ABRIL COLEÇÕES. Estados Unidos. São Paulo: Abril, 2010. 174 p. (Coleção Cozinha do Mundo, 19). CÁNEPA KOCH, G. et al. Cocina e identidad: la culinaria peruana como patrimonio cultural inmaterial. Lima: Ministerio de Cultura, 2011. Disponível em: http://mapavisual.cultura. pe/archivos/doc/ba_560975f58c2e4.pdf. Acesso em: 12 fev. 2020. DENIS RODRÍGUEZ, P.; HERMIDA MORENO, A.; HUESCA MÉNDEZ, J. El altar de muertos: origen y significado en México. Ciencia y el Hombre — Revista de divulgación científica y tecnológica de la Universidad Veracruzana, v. 25, n. 1, enero/abr.2012. 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No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. MASS BADGE realiza 9º Jantar de Ação de Graças. Brazilian Times, Somerville, 2 nov. 2019. Disponível em: https://www.braziliantimes.com/comunidade-brasileira/2019/11/01/ mass-badge-realiza-9-jantar-de-acao-de-gracas.html. Acesso em: 12 fev. 2020. MILLS, D.; MCINTOSH, A.; BONIKOWSKY, L. N. Thanksgiving in Canada. The Canadian Encyclopedia, Toronto, 5 July 2019. Disponível em: https://www.thecanadianencyclo- pedia.ca/en/article/thanksgiving-day. Acesso em: 12 fev. 2020. OZIMEK, S. Pan de Muerto (Mexican Day of the Dead Bread). Curious Cuisinière — Travel the World from Your Kitchen, Oconomowoc, 28 Oct. 2015. Disponível em: https://www. curiouscuisiniere.com/day-of-the-dead-bread/. Acesso em: 12 fev. 2020. 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