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COZINHA EUROPEIA Henrique Ramansini Pinto História da gastronomia europeia Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever a história da gastronomia europeia. � Reconhecer a importância da Idade Média no desenvolvimento de uma identidade gastronômica europeia. � Analisar as trocas e influências gastronômicas feitas na Europa. Introdução As trocas culturais ocorreram em diversos momentos da história eu- ropeia, tendo como facilitador a alimentação, já que esta é carregada de simbolismos e hábitos característicos da sociedade que representa, atenuando, dessa forma, as diferenças culturais entre os grupos em con- tato e formando uma ponte para essas trocas culturais. Entretanto, a gastronomia, que não é estática, acabou por assimilar parte dessa cultura alimentar e gerando adaptações que foram naturalizadas posteriormente (MONTANARI et al., 2009). Nesse tocante, a Europa, que é o centro da construção ocidental, influenciou e ainda influencia a gastronomia mundial com suas fantásticas inovações, mas também com a preservação da tradição e do classicismo de outrora. Mas nem sempre foi dessa forma. Em tempos mais remotos, quando uma unidade e a identidade europeia não existiam, era ela que recebia influências distintas, as quais proporcionariam, posteriormente, uma gastronomia cosmopolita (MONTANARI et al., 2009). Neste capítulo, você vai conhecer a história da gastronomia europeia, podendo analisar qual foi a importância da Idade Média e do Renasci- mento na formação de uma gastronomia unificada, e perceber as nuances que fizeram da gastronomia europeia a mais famosa do mundo. O início de uma gastronomia cosmopolita Não podemos iniciar um tema de história da gastronomia sem mencionar a origem comum da gastronomia ocidental. Gregos e romanos foram os precur- sores de uma cozinha que, por meio de mutações e flexibilizações no contato com outros povos, constituíram bases alimentares que mais tarde passaram a ser dos povos europeus. O mediterrâneo se caracterizou por ser um complexo emaranhado de pessoas, distintas entre si, que acabaram se conectando, novamente devido às trocas culturais, desenvolvendo, portanto, conexões que enfim foram inseridas nas sociedades ali presentes. Dessa forma, seguindo o compasso da alimentação mediterrânea, os gregos acabaram tendo hábitos alimentares adquiridos a partir dessas trocas mediterrâneas. Esse povo tinha hábitos alimentares muito semelhantes aos nossos, desde a constituição de uma alimentação feita em horários específicos (três vezes ao dia), até as bases alimentares fundadas nos cereais (FREIXA; CHAVES, 2017). A pecuária grega se baseava, principalmente, na criação de cabras e carnei- ros, que forneciam, de forma menos expressiva, carne para momentos especiais, e de forma mais importante o leite e o queijo, insumos importantes na vida grega. As carnes de caça também eram amplamente consumidas, porém, os peixes e os frutos do mar eram cativos na mesa grega, sendo utilizados de várias formas e em diversas preparações (FREIXA; CHAVES, 2017). Todo o conhecimento grego foi transmitido para os romanos, desde o período de colonização grega na Itália, a Magna-Grécia, formulando, dessa forma, a base alimentar ocidental. Dessa dominação, os romanos aperfeiçoa- ram sua rudimentar cozinha, como acreditavam os gregos. A relação entre a cultura alimentar grega e a romana acabaram ocorrendo principalmente após as guerras entre os romanos e o povo colonizador do sul itálico — gregos. As guerras púnicas contribuíram para a evolução da gastronomia romana no tocante a gregos capturados como escravos. Nesses movimentos internos, entre romanos e gregos, a função de cozinheiro foi, de fato, consumada, gerando o que podemos chamar de origem da cozinha ocidental (FRANCO, 2010). Sendo essa influência cultural grega provedora das origens da cozinha romana, obviamente podemos citar que, muitas vezes, alguns aspectos dessas interações não eram bem aceitos na sociedade. A partir desse momento, a cozinha começou a sofrer mutações, as quais surgiram quando os romanos começaram a assimilar a cultura e os hábitos alimentares de povos dominados pelo Império (FRANCO, 2010). História da gastronomia europeia2 Podemos então definir que a alimentação romana se tornou uma mistura de tradições e culturas anexadas ao próprio Império, sobrevivendo com o que se podia fazer e com os insumos disponíveis, ou seja, com o que os grupos sociais, que viviam marginalizados pelo Império Romano, poderiam lhes oferecer. Segundo o Dicionário Aurélio, cosmopolita é algo “que pertence a todos os países”. Seguindo esse raciocínio, Velho (2010) informa que cosmopolis pode designar um mundo onde as fronteiras não existiriam, sendo ele universalizado. O autor cita também as diferenças entre o mundo moderno e seu sentido cosmopolita egocêntrico — individualista — e o da antiguidade, quando as interações sociais prevaleciam como um todo para a sociedade. A formação de uma identidade: Idade Média e Renascimento No princípio da chamada Idade Média, observou-se uma complexa estrutura de formações culturais advindas das interações que ocorriam naquele período, sendo estas promovidas pelas adequações da distribuição populacional europeia pelo continente, em especial as interações feitas entre os povos derivados dos romanos e os germânicos, que propiciaram mudanças profundas não só na cultura, mas também na alimentação. Dessa forma, produtos básicos, já tidos como tradicionais entre os romanos e que prevaleceram após a queda do Império, que se transformou em símbolo cristão, mesclaram-se a uma alimentação desconhecida, mas com características fortes. Sendo assim, assumiu-se, como alimentos importantes, o pão, o porco e o vinho, instituindo, dessa maneira, uma rede de significados constituintes da identidade europeia (MONTANARI et al., 2009). Durante esse período de transição, a Igreja Católica começou a influenciar o povo europeu, tornando-os os grandes responsáveis por mudanças significa- tivas nos hábitos populares. O Clero passou a se reunir em grupos religiosos, constituindo monastérios e vivendo enclausurado. Essa vida monástica, no entanto, requeria que esses homens compusessem as tarefas diárias, inclusive de cultivo e colheita. Dessa produção, parte iria servir para a sobrevivência 3História da gastronomia europeia dos monges e outra parte seria revertida à comunidade local. Franco (2010) diz que, por necessidade ou por inteira vontade de autossuficiência, alguns monastérios começaram a produzir alimentos específicos, como pães, bolos, vinho e cerveja, os quais eram vendidos, muitas vezes lucrando mais do que o esperado, fomentando a melhoria das regiões à sua volta, bem como a vida das pessoas que ali viviam. Enquanto a alimentação monástica, apesar de simples, era farta, a ali- mentação cotidiana do camponês não era substancial nem tinha qualquer característica relevante, sendo composta, principalmente, por pão, guisados ou ensopados, legumes e verduras. As carnes poucas vezes apareciam no cardápio, sendo elas principalmente de porco ou peixes, tanto de água doce como salgada, e raramente algumas de caça. Os métodos de cocção eram tão poucos quanto os produtos consumidos nesse período. Segundo Freixa e Chaves (2017), a grande diferença entre a cozinha greco-romana e a me- dieval era os poucos métodos de cocção que essa última tinha, limitando-se, principalmente, aos assados em braseiros de lareiras, ou cozidos em grandes caldeirões. Fornos e fogareiros eram raros e, por conseguinte, as preparações feitas nesses locais também. Nos níveis mais altos da sociedade, o nobre pouco se diferenciava do cam- ponês (Figura 1), tendo uma cozinha muito pobre, em se tratando de técnicas e preparos, mas, em contrapartida, havia muita fartura e um ingrediente essencial na distinção social: a carne, que poderia estar presente de forma abundante na mesamais abastada. As caças também se apresentavam com frequência, tornando o ato de caçar um estilo de vida próprio da nobreza. O alto poder aquisitivo proporcionava, a essas minorias, desfrutar das especiarias timida- mente trazidas do Oriente, criando uma cozinha pouca elaborada, quanto a aromas e sabores, os quais, apesar de fazerem pouco sentido juntos, tornaram-se um privilégio social para quem os desfrutava (FREIXA; CHAVES, 2017). Montanari et al. (2009) frisam que os mais abastados procuravam ostentar um paladar mais exótico quando era possível. Representar essas diferenças culturais à mesa simbolizava o abandono regional — limitador — que de- monstrava, para eles, a própria decadência econômica e cultural. O exótico, então, era valorizado de forma dominante pela sociedade medieval. História da gastronomia europeia4 Figura 1. A sociedade estamentada. Essa imagem simboliza a forma como a Idade Média era regida. No topo da pirâmide, temos os reis e o Papa. No centro dela, encontramos os nobres (nascidos de linhagens nobres), e, por fim, a base da pirâmide formada pelos camponeses e artesãos. Essa pirâmide pode nos mostrar como era hierarquizada a sociedade medieval e como os mais ricos se sobrepunham sobre os mais pobres. Rei e Papa Nobres e Clero Camponeses e Artesões O contato com o mundo árabe e as especiarias Quando falamos sobre os sabores exóticos, sempre nos remetemos ao Oriente. Ao fazermos isso, fica à disposição uma infinidade de culturas que poderiam ter emprestado seus magníficos hábitos alimentares aos europeus. Entretanto, os árabes, sem dúvida alguma, foram os que mais proporcionaram empréstimos aos europeus, visto também que a expansão árabe se deu, principalmente, no mediterrâneo. Montanari et al. (2009) comentam que há divergências entre os especia- listas a respeito das trocas alimentares feitas entre europeus e árabes, apesar da grande quantidade de espécies vegetais apresentadas aos europeus, como a cana-de-açúcar, o arroz e a laranja, ou das especiarias trazidas da Índia e da China. Segundo Franco (2010), a destilação foi introduzida pelos árabes no mundo europeu, sendo utilizada, principalmente, para fazer aguardente e vinhos fortes. Insumos diferentes dos usuais foram inseridos na Europa, na maior parte das vezes durante a dominação moura da Península Ibérica, na região da Andaluzia, a qual ficou marcada drasticamente pelo convívio árabe. Mon- tanari et al. (2009), no entanto, frisam que diferenças eram frequentemente 5História da gastronomia europeia encontradas, visto que o europeu não tinha os mesmos tabus ou motivações religiosas quanto à ingestão de alimentos e bebidas específicos que os árabes não consumiriam. Esse emaranhado cultural favoreceu um crescente aumento dos núcleos urbanos, que passaram a ser mais atrativos do que o próprio campo. Não se tinha uma vida fácil nas cidades, uma vez que se consumia o que estava à mão naquele momento, já que se dependia muito do campo e do que se produzia lá, entretanto, com as novas relações comerciais e com as cidades se tornando centros de recebimento e de venda de mercadorias, passou-se a investir mais nelas. Foi nesse cenário que grupos de profissionais do mesmo setor se uniram, formando guildas com um interesse comum: prosperar. Quando citamos esse cenário, remetemo-nos ao renascimento cultural e urbano em que as elites culturais citadinas surgiram a partir dos primeiros burgos. Desse modo, passou- -se a ter a necessidade de ampliar as especializações dentro da alimentação, como padeiros, cozinheiros, confeiteiros, açougueiros e tantos outros que viveriam da venda dos produtos que sabiam fazer, aumentando, assim, a mão de obra desse setor e fomentando um comércio alimentício (FRANCO, 2010). Com as elites de sangue (nobres) e as elites monetárias (burgueses), em contraposição, o mercado alimentício ganhou força, principiando o apogeu das especiarias e, com isso, aumentando a sua demanda, o que fez com que novas formas de obter tais produtos, em quantidades maiores, fossem pensadas. Ape- sar de diversas tentativas, parecia evidente que a única solução fosse alcançar tais produtos a partir de uma rota marítima segura, visto que a utilizada, até então, seguindo pelo mar mediterrâneo até a Ásia, estava sob controle árabe. Com isso, as navegações pelos oceanos começaram e a influência europeia ultrapassou o atlântico, chegando à América. Dessas empreitadas europeias, as trocas culturais alimentares entre o novo continente — América —, a África e a própria Europa resultaram no surgimento de sabores, aromas e receitas distintas das existentes até então. Novas formas vegetais encantaram os euro- peus, que acabaram adorando o abacaxi, a banana, o milho e, principalmente, o cacau, fruto que pode lhes oferecer uma bebida completa, nutritiva e saborosa, sendo esta, aliada ao açúcar de cana, considerada o elixir dos deuses. Em contrapartida, os nativos passaram a receber produtos não conhecidos, mas que se adaptaram bem aos seus hábitos alimentares (FREIXA; CHAVES 2017). Plantas nativas da Ásia e da África se adaptaram bem na América, pos- sibilitando um processo de colonização nessa região. É possível perceber a complexidade do termo cosmopolita e, de forma prática, entendê-lo. A Europa se tornou a deflagradora de uma cultura constituída por várias outras culturas anexadas por esse povo. História da gastronomia europeia6 A hegemonia europeia na alimentação Com a influência cultural europeia, era de vital necessidade constituir hábitos alimentares próprios e bem definidos. Dentro desse aspecto, a nobreza precisava se diferenciar do restante da população, criando estilos, sabores e trejeitos que os colocariam em um patamar diferenciado. Os chefs, profissão que passou a existir, tinham um renomado status, passando a ser amplamente estimados e estando presentes nas cortes. A realeza francesa oficializou o uso do chef de cozinha, tendo, no reinado de Henrique IV e Maria de Médicis, seu estopim. Entretanto, foi durante o reinado de Luís XIV — Rei Sol — que as mudanças da cozinha francesa ganharam destaque. Entre as mudanças mais significativas encontradas na era moderna, percebemos que as preparações passaram a ser mais leves, com sabores menos acentuados e mais concentrados em ervas frescas. Além disso, também foram criadas novas técnicas de cocção, bem como novos molhos, como o bechamel, por exemplo (FRANCO, 2010). Nesse tocante, é importante frisar nomes como o de Vatel, que surgiu, no cenário francês, sendo sinônimo de requinte e bom gosto. Vatel era cozinheiro e mestre de cerimônias no castelo de Chantilly e, apesar de já ser renomado, tornou-se famoso ao preparar banquetes para o Rei Luís XIV, que era extre- mamente exigente em relação ao que se consumia. Ele o fazia com maestria, mas se suicidou ao achar que não poderia mais corresponder ao Rei e ao seu senhor. Apesar desse fato, as inovações concebidas por Vatel repercutiram pelo mundo por meio de livros (FREIXA; CHAVES, 2017). Outras grandes novidades foram concebidas nas cortes europeias, visando sempre à aprovação dos soberanos, mas, principalmente, tendo em vista a distinção entre a cozinha nobre e as cozinhas populares, que continuariam sendo simplistas e sem refinamentos, com o consumo de pães, gordura animal, carne de porco e verduras e legumes, sendo consideradas como uma cozinha vulgar pelos abastados, como citam Freixa e Chaves (2017). Deve-se destacar, no entanto, que, na era moderna, os hábitos alimentares se diferiam de região para região, gerando uma regionalização do sabor, como ressaltam Montanari et al. (2009). A partir dessas nuances gastronômicas e dos diversos fatores que geraram essas mudanças, a gastronomia europeia passou a ter prestígio, surgindo muitos chefs a partir de então. Posteriormente, na contemporaneidade, uma nova modalidade de serviço surgiu nas cidades: os restaurantes, que apareceram, primeiramente, com o intuito de atender osviajantes desgastados da viagem. Todavia, a ideia foi readequada e reinventada, sendo então criado o restaurante da forma como conhecemos hoje. 7História da gastronomia europeia Desse fato, merece destaque a grande guinada social que os burgueses obtiveram ao conseguir consumir os produtos da chamada boa cozinha. O que antes era destinado aos reis e à corte passou a ser acessível a todos, por- tanto, era preciso reinventar os signos da alimentação, não apenas quanto aos modos à mesa, mas também com relação à forma de se preparar o alimento. Devido a isso, a França passou a se destacar por conta de seus cozinheiros, que deram vida à chamada Idade de ouro da cozinha francesa, o que fez com que a Europa se tornasse o centro cosmopolita da alimentação (FREIXA; CHAVES, 2017). FRANCO, A. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. 5. ed. São Paulo: Senac, 2010. FREIXA, D.; CHAVES, G. Gastronomia no Brasil e no mundo. São Paulo: Senac, 2017. HOLANDA, A. B. Míni dicionário aurélio da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010. MONTANARI, M. et al. (Org.). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. VELHO, G. Metrópole, cosmopolitismo e mediação. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 16, n. 33, p. 15-23, jan./jun. 2010. História da gastronomia europeia8 Conteúdo: