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Victor Braga Gurgel | 203 É interessante notar que Mark Lehner, um egiptólogo considerado atualmente autoridade no estudo do platô de Gizah e da Esfinge, foi “fis- gado” pelas teorias de Edgar Cayce quando era jovem, tendo seus estudos na Universidade Americana do Cairo sido financiados pela fundação de Edgar Cayce, mantida pelo seu filho, Hugh Lynn (HADINGHAM, 2010). Conforme se debruçava nos métodos científicos da Arqueologia egípcia, mais percebia que as teorias de Cayce não tinham fundamento. Este fato mostra que as carências de orientação no tempo (interesses) são influenciadas pela cultura histórica do sujeito, e direcionam o olhar que este tem para o passado – no caso em questão, o egípcio antigo. Não importa se tais ideias são egiptomaníacas, pois o valor factual não tem peso algum no questionamento. Ao se debruçar cientificamente sobre o Egito Antigo, a partir de sólidas evidências e se baseando em rigorosos métodos científicos, Mark Lehner alterou suas percepções do que estudava. Porém, o motor que o levou a este esforço não foi “científico” na compreensão acadêmica do termo, mas foi legítimo enquanto orientador de seus ques- tionamentos sobre o passado. Com isso não queremos dizer que todos que têm perguntas sobre o passado egípcio devem se tornar historiadores ou egiptólogos, apenas ilustrar o fato de que as mesmas estão plasmadas em realidades históricas e culturais que interferem naquilo que é perguntado, ao ponto de levar alguns a se tornarem historiadores e egiptólogos. A força destas narrativas também se faz sentir em sua presença ter atravessado um livro acadêmico (BAKOS, 2004) e ter chegado em um livro didático de História muito utilizado no Brasil (BOULOS JÚNIOR, 2018, p. 94). Percebemos, assim, como o ensino do Egito Antigo acaba por perpetuar ideias sem base científica, que, no entanto, estão profundamente arraigadas em uma concepção orientalista e imaginária da civilização do Nilo. Estas, por sua vez, fazem parte da memória cultural brasileira e ocidental, uma vez que as culturas “exóticas”, como é o caso 204 | Histórias Antigas: entre práticas de ensino e pesquisa do Egito Antigo, estão fora do horizonte externo de saberes de nossa memória cultural. Considerações finais Os estudantes trazem para a sala de aula ideias que apreendem em seu dia a dia. No caso da História, esta bagagem é a cultura histórica com a qual lida o professor, e, em relação ao Egito Antigo, tal cultura histórica é fortemente marcada pela Egiptomania. Percebemos que as ideias egip- tomaníacas em torno do Egito Antigo expressas pelo livro didático são bem pontuais, se comparadas com aquelas que buscam exprimir uma visão his- toricamente balizada. Acreditamos que as informações historicamente desatualizadas pre- sentes nos livros didáticos são um reflexo direto da parca formação de egiptólogos no Brasil, se fazendo sentir na quantidade de material acadê- mico e didático produzido em língua portuguesa acerca do Egito Antigo. De todo modo, os capítulos dos livros analisados se parecem, aos nossos olhos, excelentes, e demonstram uma ótima consciência por parte dos au- tores em trazer uma visão balizada e crítica do Egito Antigo, levando os estudantes a questionarem lugares comuns, como a presença do Egito na África, e sua influência no mundo até a atualidade, bem como introduzindo conceitos novos. De todo modo, a presença de um Egito exótico no livro didático, além de narrativas históricas que passam ideia de estabilidade – a exemplo da curta menção aos Períodos Intermediários – reforçam estas ideias já pre- sentes na cultura histórica comum, reatualizadas constantemente no imaginário por filmes, livros, HQ’s e até mesmo pela Bíblia. O ensino do Egito Antigo, assim, acaba por ser veículo de uma memória cultural oci- dental e brasileira, possuindo uma função dupla nesta memória: ao mesmo tempo que “traduz” essa civilização ao estudante, através de um