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Vander Gabriel Camargo | 91 sem se ter notícia da presença de Posídon antes do contexto das guerras greco-pérsicas. Todavia, no antigo santuário de Erecteu, como chama He- ródoto, além do antigo rei já ser cultuado, lá estava a estátua de madeira de oliveira de Atena Polias, uma manifestação dessa divindade instituída religiosamente antes que a Partenos. O culto da deusa e de Erecteu é re- gistrado na passagem de Heródoto sobre o empréstimo de madeira aos epidáurios, pelo que os atenienses pediram em troca o envio de honrarias às duas figuras sagradas; todavia, mesmo se tivesse incerteza quando a esse culto no séc. VII, duas passagens nas epopeias de Homero registra- riam a antiguidade da prática, mesmo que os versos fossem uma interpolação do séc. VI a.C. (Homero, Ilíada, 2, 546-551; Odisseia, 7, 78- 85). Aqui, chama-se atenção para a menção na Ilíada: “Vieram, também, os guerreiros de Atenas, cidade bem-feita, / gente do herói Erecteu de alma grande, nascido da terra / e por Atena educado, a donzela do pai poderoso, no próprio templo magnífico, dentro dos muros de Atenas, / onde, anualmente, nas festas, os moços nativos procuram /com sacrifícios de bois e de ovelhas torná-lo propício.” (grifo meu) Na passagem, os atenienses são representados como “gente de Erec- teu”, que era nascido da Terra (Gaia), assim como os outros reis que o precederam, como Cécrops. Essa imagem que os habitantes de Atenas construíram era um discurso cívico que legitimava a sua hegemonia sobre o território que ocupavam, ao mesmo tempo fornecendo a ideia de que estariam ali desde sempre, ao contrário das populações que chegavam à cidades vizinhas através de migrações (LORAUX,1993, p.37). Ademais, ao ser por “Atena educado”, aproxima-se a população da deusa, que ensina os bens da civilização/pólis, por isso que, ao invés de ser representado na iconografia com cauda de serpente, como Cecróps, signo relacionado à terra e ao monstruoso, Erecteu apare como uma figura antropomórfica, 92 | Histórias Antigas: entre práticas de ensino e pesquisa visto que foi adotado como filho de Atena: esse era o imaginário dos ate- nienses sobre si próprios, eram autóctones, mas civilizados pela deusa (PARKER, 1990, p. 93-94; MEYER, p. 316, 2017a). Essas características identitárias estavam indexadas nos antigos tem- plos em que eram cultuados Atena e Erecteu, consequentemente, com a instituição do culto de Posídon-Erecteu, o deus dos mares também passa a constituir parte da identidade da cidade. Como um deus primeiramente vin- culado à terra, encontrou equivalência com a dimensão ctônica característica do rei nascido da terra7, porém, com a evidência da ligação de Posídon com o mar e com poderio naval da época, conforme comenta Christopoulos, “o culto de Posídon-Erecteu segue a lógica ateniense de insistir na projeção da qualidade original dos habitantes (autóctones) para sua gente e em clamar o direito de reinar sobre a terra e o mar” (p.128; grifo meu). O que indica a narrativa da guerra entre Atenas e Elêusis associada com a disputa entre os deuses, que termina com a instituição do culto de Posídon na Acrópole, é que apesar de Erecteu ser morto pelo deus dos ma- res, a figura mítica assume a identidade do deus através da intervenção de Atena, o que representa o recebimento das dádivas desse deus pela cidade (BURKERT, 1983, p.148), dado que garante o dom marítimo que os cida- dãos projetam no séc. V a.C. pelo Egeu. A resolução de um conflito e a conciliação entre Atena e Posídon, conforme Christian Werner, pode ser visto também no prólogo de As Troianas de Eurípides, em que o deus dos mares, mesmo enfurecido com a destruição de Troia pela ajuda da deusa, concorda em ajuda-la em prol de um benefício mutuo (2018, p.370). Para a plateia da tragédia, cujo datação é 415 a.C., a união entre os dois deuses seria uma simbiose natural, manifestando-se na transformação naval, no 7 Conforme Papachatzis, Erecteu seria um equivalente do Posídon Petraios da Tessália quanto ao vínculo com a terra (1989, p.175).