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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO CAMPUS BAIXADA SANTISTA INSTITUTO DE SAÚDE E SOCIEDADE GEOVANA LUCIA BATISTA LOUREIRO SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO POPULAR: COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO DO/A ASSISTENTE SOCIAL NA PRÁXIS PROFISSIONAL Santos 2021 GEOVANA LUCIA BATISTA LOUREIRO SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO POPULAR: COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO DO/A ASSISTENTE SOCIAL NA PRÁXIS PROFISSIONAL Trabalho apresentado ao Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo, Campus Baixada Santista, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Serviço Social. Sob orientação da Professora Dra. Francisca Rodrigues de Oliveira Pini. Santos 2021 GEOVANA LUCIA BATISTA LOUREIRO SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO POPULAR: COMO COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO DO/A ASSISTENTE SOCIAL NA PRÁXIS PROFISSIONAL Trabalho apresentado ao Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo, Campus Baixada Santista, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Serviço Social. Sob orientação da Professora Dra. Francisca Rodrigues de Oliveira Pini. Aprovado em: 20/08/2021 EXAMINADORES: 20/08/2021 Profª. Dra. Francisca de Rodrigues Oliveira Pini Data Universidade Federal de São Paulo 20/08/2021 Me. Brenda Barbosa da Silva Data Universidade Federal de São Paulo Dedico esta pesquisa a Deus: por quem me fez chegar até aqui, provendo discernimento e sabedoria; Aos meus pais, Maria Ieda e Rogelio: por uma vida de amor e apoio incondicional; E a nós: esfarrapados/as/es do mundo que sofremos ao descobrirmo-nos em um mundo tão contraditório e injusto, mas sobrevivemos lutando, resistindo e construindo novas e críticas formas de realmente “viver” (FREIRE, 2019, P.5) AGRADECIMENTOS Este trabalho de conclusão de curso é muito mais do que o resultado exaustivo - mas também prazeroso - de leituras, reflexões e pesquisa destinados exclusivamente a este fim. É resultado de uma vida inteira de experiências, de acúmulo de conhecimento – nas suas mais diversas e diferentes formas, e obtidos em diferentes espaços: desde a escola formal e a universidade até a troca rápida e singela com meus familiares, amigos e desconhecidos com quem tive a sorte de cruzar pelas andanças no mundo. As minhas referências teóricas e pessoais são muito mais extensas do que a bibliografia aqui listada e vai muito além das pessoas mencionadas aqui. Assim como Paulo Freire, acredito ser um "menina-conectiva" molhada de história e de tempo, e cada pessoa que já cruzou meu caminho me ajudou a construir quem eu sou, e logo também este trabalho: o qual é fruto muito afetuoso das coisas que eu tenho a crença mais profunda. Mas dentre tantas pessoas significativas, não poderia deixar de citar aqui listadas abaixo por sua participação fundamental no meu processo de graduação. Agradeço a Deus, sem clichês, e sim com muita fé. Diante aos últimos acontecimentos da minha vida, a minha relação com Deus se fortaleceu e passei a compreender que muita coisa não está sobre meu controle, mas tudo está sobre o controle de Deus: e isso me consola, e me acalenta. Agradeço também a Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora do Carmo, Arcanjo Miguel, Nossa Senhora do Monte Serrat e Nossa Senhora Aparecida que sempre intercedem por mim. Agradeço a minha mãe. Mãe o que eu seria sem você? Sem o seu amor e apoio incondicional, sem o seu colo quando eu mais preciso - desde quando eu era uma garotinha que você levava com muito esforço no colo para a escola todos os dias, porque tinha pena de me acordar cedo -, sem todas as abdicações que você fez a vida inteira para me criar, e para que eu tivesse a melhor educação possível, quantas renúncias você já não fez para não ver um sorriso meu? Terei uma vida inteira para ser grata por você ser a minha mãe, e espero retribuir nem que seja um pouco do que você fez e faz a vida inteira por mim. Eu te amo! Agradeço ao meu pai. Pai você sempre me instigou o meu melhor, mesmo quando muitas vezes achei que eu não fosse conseguir ou que já tinha chegado ao "meu melhor". Ter você como meu pai é o melhor presente que eu poderia pedir e ganhar: ver seu rosto cheio de orgulho a cada conquista, e te ver sempre a ser o primeiro a celebrar minhas vitórias é algo que não existe preço no mundo. Se eu cheguei até aqui hoje é porque tive seus conselhos e seu consolo para amparar quando precisei, mas também tive a "puxada de orelha" quando precisava. Espero que eu ainda te dê muitos motivos para se orgulhar. Eu te amo! Agradeço a minha família Loureiro, nas pessoas da minha Tia Sandra e a minha tia Rosângela. A minha família é extensa, e não me arrisco a citar todos/as, mas sintam-se representados(as) e muito amados(as). Agradeço por terem me ensinado o verdadeiro significado de união, generosidade e amor. Como a minha tia Sandra disse um outro dia desses “o amor que nos envolve é coisa de outra vida”. Agradeço a minha família Batista, nas pessoas da minha madrinha Lourdes, da minha tia Letícia, da minha tia Zelma, e da minha tia Lúcia. O número de tios/tias, primos/primas é ainda mais extenso. Agradeço pelo jeito um pouco “truncado”, mas que nunca deixou faltar cuidado, carinho e amor. Vocês são parte fundamentais desta jornada também! Agradeço em memória as minhas amadas avós: se hoje eu sou quem eu sou, é porque um dia elas foram. A minha vó Maria Lúcia, a quem eu tenho a honra de ter o nome em homenagem, a quem dedicou seus últimos meses de vida aos cuidados com uma Geovana bebê que vivia com cólicas, e de que apesar do pouco tempo que tivemos de convivência física foi o suficiente para criar um laço que transcende qualquer vida terrena. E a minha vó Alice: a quem eu perturbava com as melhores das intenções ensinando-a ler e escrever, e tinha apesar de suas dificuldades a maior paciência com uma neta insistente. Eu dizia que era sua neta preferida, não sei se isso é verdade, mas sei que eu, “sua cabritinha”, te amarei eternamente. Agradeço a minha orientadora Professora Francisca Pini, por ter dado seu voto de confiança em mim, e ter acreditado. Agradeço por me motivar, e me falar aquilo que eu precisava ouvir sempre. Muito obrigada professora, apesar das dificuldades que tive durante a jornada de escrita e muitas coisas não terem saído como o planejado, espero ter entregado um trabalho que te alegre de constituir como parte fundamental. Agradeço a todos/as/es estudantes que trilharam esta jornada acadêmica junto comigo, fizeram parte importante da minha formação profissional. Em especial, á Ingrid e Gabriela: minhas amigas confidentes que mesmo em meio ao próprio caos e "surtos" - intrínsecos a esse período maluco que é a faculdade - conseguíamos tempo para “surtar” juntas: ouvindo e apoiando uma as outras, embaladas sempre por muitas risadas. Com certeza vocês fizeram esse processo muito mais divertido e leve! São pessoas que eu levo para a vida inteira. Agradeço aos meus/minhas colegas de trabalho, na representação da minha chefe Liseane. Foi o local onde eu mais cresci e amadureci nos últimos 4 anos. Houve uma época que eu ia sorrindo todos os dias, e nada brilhava mais o meu olho do o trabalho que a gente construía. Independente do tempo, e de todos os locais de trabalho que eu passar sempre guardareivocês e nossas lembranças juntas com muito carinho. Construímos um laço para muito além daquela sala 27, fiz amizades e memórias para uma vida inteira. Agradeço ao Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Saúde Socioambiental (NEPSSA), nas pessoas da Professora Silvia Tagé, do Jeffer e da Rafaela. Abarco com esse agradecimento todos/as os/as integrantes. Agradeço por todo o acolhimento durante o estágio, e por terem aberto uma porta para nós estudantes-trabalhadores. Não sei se teria conseguindo me formar se não fosse a oportunidade que vocês me concederam. Agradeço a Prefeitura de São Vicente, e suas assistentes sociais: as quais me receberam e me acolheram tão bem. Por motivos de sigilo ético, não posso mencionar seus nomes, mas saibam que foram parte fundamental deste trabalho. Sem vocês não teria conseguido realizar a pesquisa. Para além da contribuição primordial que vocês tiveram na pesquisa, contribuíram também na projeção da profissional que eu quero ser. Vocês me inspiraram muito, e possuem a minha admiração mais sincera. Agradeço a todos/as professores/as que já passaram por minha trajetória. Foram graças as pessoas muito especiais e incríveis, que pude ter uma nova perspectiva e visão sobre o mundo. A educação tem um papel fundamental na minha vida! E por fim, agradeço ao educador Paulo Freire, neste ano completa 100 anos de sua memória e presença, e todos os/as outros/as intelectuais: acadêmicos orgânicos que me inspiram a resistir com tanta amorosidade em tempos tão difíceis, por partilharem junto comigo este sonho: de construção de uma nova sociabilidade em que realmente e plenamente podemos ser humanos e viver. “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade.” (SEIXAS, 1974) “Aos esfarrapados do mundo e aos que nele se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.” (FREIRE, 2019, P. 5) RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso pretende contribuir com reflexões e problematizações acerca da relação entre Educação Popular e Serviço Social: como elemento fundamental para a formação e o trabalho profissional. Tendo em vista que a práxis político- pedagógica da Educação Popular se faz uma possibilidade de afirmar o compromisso ético- político do/a assistente social de emancipação política e humana a partir da construção e promoção de processos mais horizontais e ativos com os/as usuários/as que permitem o desvelamento de sua realidade e suscitam o seu protagonismo e cidadania; a fim de romper com posturas profissionais messiânicas e conservadoras e estimulando processos democráticos e críticos. Embora a baixa produção literária na área profissional, é um tema em potencialidade a ser explorado demonstrando a relevância deste estudo. Para isto, busca-se realizar aqui uma pesquisa qualitativa que amparado nas legislações vigentes e nos referenciais teóricos de Paulo Freire, Carlos Henrique Brandão, Marilda Iamamoto, Raquel Raichellis e entre outros/as autores/as das áreas a fim de problematizar e relacionar Serviço Social e Educação Popular. Para assim, em um segundo momento identificar na práxis profissional dos/as assistentes sociais a concepção da Educação Popular, a partir da realização de grupo focal com estes profissionais dos serviços dos CRAS – Centro de Referência em Assistência Social e CREAS - Centro de Referência Especializado em Assistência Social dentro da política de assistência social no munícipio de São Vicente/SP. Desta forma o estudo pode engendrar considerações sobre a práxis profissional do/a assistente social e novas produções teóricas para contribuir tanto no trabalho cotidiano, quanto na formação. Além do aprofundamento de ambas as temáticas. Palavras-chave: Serviço Social; Educação Popular; Projeto ético-político; Práxis profissional. ABSTRACT This course conclusion work intends to contribute with reflections and problematizations about the relationship between Popular Education and Social Work: as a fundamental element for training and professional work. Considering that the political-pedagogical praxis of Popular Education makes it possible to affirm the social worker's ethical-political commitment to political and human emancipation through the construction and promotion of more horizontal and active processes with users /those that allow the unveiling of their reality and raise their protagonism and citizenship; in order to break with messianic and conservative professional postures and stimulate democratic and critical processes. Although the low literary production in the professional area, it is a potential theme to be explored, demonstrating the relevance of this study. For this, we seek to carry out a qualitative research here, supported by current legislation and theoretical references by Paulo Freire, Carlos Henrique Brandão, Marilda Iamamoto, Raquel Raichellis and other authors in the areas in order to problematize and relate the Service Social and Popular Education. Thus, in a second moment, identify in the professional praxis of social workers the conception of Popular Education, based on a focus group with these professionals from the services of CRAS - Reference Center for Social Assistance and CREAS - Specialized Reference Center in Social Assistance within the social assistance policy in the municipality of São Vicente/SP. In this way, the study can engender considerations about the professional praxis of the social worker and new theoretical productions to contribute both to daily work and to training. In addition to deepening both themes. Key-words: Social Work; Popular Education; Ethical-political project; Professional praxis. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12 2 SERVIÇO SOCIAL E SEU CARÁTER NA SOCIABILIDADE CAPITALISTA: DISPUTAS DOS PROJETOS PROFISSIONAIS................................................................20 2.1 O Serviço Social e seus projetos profissionais: a história como chão, atmosfera e semente.....................................................................................................................................20 2.2 E o que sobrou? Congresso da virada e os 42 anos após ruptura....................................36 3 SERVIÇO SOCIAL CONTEMPORÂNEO E EDUCAÇÃO POPULAR: FUNDAMENTOS E POSSIBILIDADES..............................................................................46 3.1 Serviço Social contemporâneo: é nos limites dos desafios que se abrem margens para as possibilidades.......................................................................................................................46 3.2 Educação Popular e seus fundamentos: aprendendo a ler, escrever e pronunciar seu mundo.......................................................................................................................................65 4 EDUCAÇÃO POPULAR NO ENCONTRO COM O COMPROMISSO ÉTICO- POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL.....................................................................................78 4.1 Possibilidades entre Educação Popular e Serviço Social: Qual é a importância da Educação popular para o Serviço Social, e porque adotá-la como referência de formação e práxis profissional? .............................................................................................................78 4.2 A ausência ou a presença da concepção da Educação Popular, na formação e na práxis profissional do Serviço Social: onde ela está? E onde ela poderia estar?.............................93 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................103REFERÊNCIAS....................................................................................................................111 APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO............116 APÊNDICE B – CARTA CÓPIA DO PROJETO DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO............................................................................................................................120 APÊNDICE C – CARTA DE APRESENTAÇÃO/SOLICITAÇÃO DE AUTORIZAÇÃO..................................................................................................................124 APÊNDICE D – ROTEIRO DE PERGUNTAS DO GRUPO FOCAL.............................126 APÊNDICE E – MODELO DE CONVITE DE PARTICIPAÇÃO PARA PESQUISA..127 12 1. INTRODUÇÃO “Um refúgio? Uma barriga? Um abrigo para se esconder quando a chuva te afoga, ou o frio te quebra, ou o vento te revira? Temos um esplendido passado pela frente? Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida." (GALEANO, 2017) O estudo em questão deseja trazer contribuições e reflexões acerca da Educação Popular como elemento necessário e importante para a práxis e formação profissional do Serviço Social, enquanto possibilidade de firmar o seu compromisso com o projeto ético- político da profissão: de luta pela emancipação política e humana dos/as usuários/as, em busca da construção coletiva junto com estes de uma nova ordem societária justa e livre de exploração e opressão. A pesquisa parte da fundamentação da trajetória histórica do Serviço Social: da sua gênese até a contemporaneidade, com suas particularidades e especificidades em seu primeiro capítulo; para no seu segundo capítulo fundamentar e contextualizar a Educação Popular; para assim posteriormente no terceiro capítulo criar relações de diálogos entre a práxis educativa e a profissão. Por fim, a partir do estudo e da investigação do exercício profissional do/a(s) assistente sociais na rede de serviços dos Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), dentro da política de Assistência Social do munícipio de São Vicente/ São Paulo, buscaremos identificar a ausência ou a presença da concepção de Educação Popular na práxis profissional, e também analisar como as experiências de Educação Popular poderiam inserir-se no Serviço Social concretamente como práxis pedagógico-política. Para este objetivo, partimos da concepção do Serviço Social como uma profissão que historicamente tem como por objeto imediato de seu exercício profissional a intervenção nas mais diversas expressões da questão social: a fome, a miséria, a violência, e entre outras manifestações inerentes a ordem capitalista de produção coletiva de riquezas e apropriação privada destas. Desta forma sua atuação profissional está vinculada a uma inevitável correlação de forças, pois atua nas relações antagônicas das classes sociais e sua práxis profissional incide sobre as suas demandas também antagônicas, e muitas vezes até opostas. A trajetória do Serviço Social nos mostra, que dada a sua natureza profissional complexa e contraditória por si só, este respondeu os desafios profissionais postos de formas diferentes durante o tempo: tendo a sua origem em uma moral - transcrita como ética - católica conservadora, que pretendia atender aos interesses da classe burguesa de manutenção da ordem por meio de práticas acríticas e assistencialistas; passando por uma série de projetos profissionais que nos levam ao atual 13 momento: um projeto ético-político emancipador, que se compromete com o fortalecimento da classe trabalhadora a partir de uma práxis crítica. Uma atuação profissional antidiscriminatória que nos impõe a todo momento o respeito às diversidades, e que reconhece a liberdade como valor ético central a fim de promover a expansão da emancipação, autonomia e da cidadania das populações e dos seres sociais atendidos pelo/a assistente social; e primordialmente vinculada a construção de uma nova ordem societária livre de explorações e opressões. Considerando o atual momento que o projeto ético-político nos impõe enquanto profissão, pretendemos analisar e compreender a Educação Popular como um elemento fundamental para a formação e a práxis profissional, pois se presente a sua práxis educativa- política pode potencializar o compromisso ético-político do Serviço Social. Isto se deve ao aporte teórico-metodológico-político que a Educação Popular nos traz de construção de processos participativos e horizontais, - onde os saberes, diferenças e particularidades de todos/as são respeitados e considerados - que tem como por possibilidade a produção de um verdadeiro saber coletivo e crítico da realidade, permitindo a apreensão de toda a dialética e determinações do concreto para voltar-se a ele para transformá-lo; suscitando nesse processo o protagonismo de cada parte envolvida. Desta forma, a hipótese é a de que a Educação Popular poderia ser uma grande potência a ser explorada no Serviço Social: tanto na sua formação, quanto no seu exercício profissional a fim de criar-se a possibilidade de uma práxis profissional autêntica e mais horizontal rompendo com posturas moralistas e discriminatórias, mas também com posturas messiânicas. Tendo em vista que a maior contribuição da Educação Popular seria a possibilidade de uma práxis crítica que suscitaria em uma maior integração e participação dos/as usuários/as atendidos/as pelos/as assistentes sociais nos seus próprios processos de intervenção de suas demandas, em uma posição central e de protagonismo. Assim, a práxis da Educação Popular seria uma possibilidade de materializar na formação e atuação profissional o compromisso ético-político do Serviço Social. Para isto, esta pesquisa procura explorar fundamentos da Educação Popular dialogando com o Serviço Social, tendo em vista que esta é uma temática pouco abordada e estudada na área profissional. Um estudo recente do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Popular, Serviço Social e Movimentos – GEPEDUPSS da Universidade Federal da Paraíba - UFPB mostra que entre os anos de 1980 – onde se remonta às primeiras aproximações do Serviço Social com a temática da Educação Popular – a 2010, das 101 instituições privadas e públicas de Serviço Social houve apenas 70 publicações articulando as temáticas; sendo que 14 a Educação Popular se encontrava como tema transversal – e não principal - na maioria das publicações. O que foi considerado um resultado “incipiente” pelos pesquisadores, dada a sua ausência temática. “Embora a educação popular não seja uma temática nova na área de Serviço Social, percebemos que ela tem sido inexpressiva nas produções teóricas da área, mas concomitantemente, é uma “demanda em potencial”. (MACHADO et al, 2019, P. 79). Sendo assim considero fundamental seu aprofundamento tanto para a formação quanto para atuação profissional dado a sua potencialidade teórico-metodológica-política na área. Acredito que o caráter e os elementos constitutivos da Educação Popular - que tem em si uma práxis-pedagógica-política horizontal, ativa e emancipadora - em muito poderá contribuir com a formação, e acima de tudo com o trabalho profissional do/a assistente social em seu cotidiano e com a população atendida. De forma a ampliar conhecimentos para formulação de novas mediações na práxis do Serviço Social, e análise e reflexões das já existentes estratégias e instrumentais. A partir do imenso legado que a concepção de Educação Popular nos traz, poderá surgir novas experiências em que os/as usuários/as participem mais democraticamente e ativamente na intervenção e desenvolvimento das suas demandas por meio de um desvelamento crítico da realidade promovido dentro dos espaços sócio-ocupacionais e por intermédio da ação profissional. Assim cooperando para o estudo sobre o trabalhoprofissional e a própria práxis em si, mas também mostrando ser valioso a sua presença desde o processo formativo. Além de trazer mais aportes teóricos para a área do Serviço Social, como também para a área da Educação Popular. “Apesar de a produção sobre esse tipo de educação ser incipiente na formação profissional do assistente social, a educação popular continua presente em seu campo de atuação. Nesse sentido, a provocação de Iamamoto (2002) que trouxemos no início deste texto, de que é preciso repensar o trabalho de mobilização e educação popular no nível da formação profissional, é extremamente oportuna, especialmente quando explica que isso deve ocorrer reapropriando-se das conquistas e habilitações perdidas no tempo e, ao mesmo tempo, superando-as. Assim sendo, ampliar o debate acerca da importância da educação popular para o Serviço Social e realizar pesquisas no âmbito das ONGs e demais instituições que atuam com esse tipo de educação é fundamental para a formação e a prática dos estudantes e profissionais da área. Até porque, conforme Freire (2007, P. 103-105) “a educação popular posta em prática em termos amplos, profundos e radicas, numa sociedade de classes, se constitui como um nadar contra a correnteza”. O que converge com os princípios do Projeto Ético-Político do assistente social.” (MACHADO,2019, p.77) Desta forma, o presente estudo procurou realizar uma pesquisa social qualitativa, dada a característica que este tem de estudar uma situação específica inserida no atual momento histórico de sociabilidade (a Educação Popular como práxis no exercício profissional do/a assistente social), e de investigar experiências concretas dentro desta realidade (grupos de Educação Popular dentro do Serviço Social). Os objetos de estudo apresentados são parte 15 articuladas e intrínsecas de uma totalidade complexa e diversa composta por diversas outras totalidades dinâmicas e complexas articuladas entre si; e que se faz necessário o desvelamento de suas determinações, particularidades e contradições para apreender efetivamente o que se busca nesta pesquisa. “A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.” (MINAYO, 2002, P. 21-22) Isto é, os processos aqui estudados são de tamanha complexidade e dinamismo que uma pesquisa quantitativa não daria conta de abarcar. Entretanto, isso não exclui a necessidade do uso de dados quantitativos pois estes também fornecem qualidades fundamentais para entender determinados processos e fenômenos que se pretende aqui estudar. “Por fim, é necessário afirmar que o objeto das Ciências Sociais é essencialmente qualitativo. A realidade social é o próprio dinamismo da vida individual e coletiva com toda a riqueza de significados dela transbordante. Essa mesma realidade é mais rica que qualquer teoria, qualquer pensamento e qualquer discurso que possamos elaborar sobre ela. Portanto, os códigos das ciências que por sua natureza são sempre referidos e recortados são incapazes de a conter. As Ciências Sociais, no entanto, possuem instrumentos e teorias capazes de fazer uma aproximação da suntuosidade que é a vida dos seres humanos em sociedades, ainda que de forma incompleta, imperfeita e insatisfatória.” (MINAYO, 2002, P. 15) Compreende-se aqui os processos e fenômenos estudados no campo de sua totalidade dinâmica, dialética e histórica, porém fazendo as necessárias mediações e diálogos com suas próprias totalidades particulares e singulares postas. Desta forma, procurando exprimir e apresentar a realidade tal como ela é: desvendando suas determinações, características, construções e estruturas, na tentativa de fazer o processo de reprodução ideal do movimento real. É por isso que essa pesquisa se orienta por meio do Método da Teoria Social (NETTO, 2009) ou da metodologia histórico-dialética. “Assim, a teoria é o movimento real do objeto transporto para o cérebro do pesquisador - é o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento). Prossigamos: para Marx, o objeto da pesquisa [...] tem existência objetiva; não depende do sujeito, do pesquisador, para existir. O objetivo do pesquisador, indo além da aparência fenomênica, imediata e impírica - por onde necessariamente se inicia o conhecimento, sendo essa aparência um nível da realidade, e portanto, algo importante e não descartável -, é apreender a essência (ou seja, a estrutura e a dinâmica do objeto. Numa palavra: o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, visa alcançar a essência do objeto. Alcançando a essência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de procedimentos analíticos e operando a sua síntese, o pesquisador a reproduz no plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo método, o pesquisador reproduz, no plano ideal, a essência do objeto que investigo.” (NETTO, 2009, P.5) 16 Para isso, em um primeiro momento foi realizado uma ampla leitura e estudo dos referencias teóricos existentes sobre os temas e categorias presentes no estudo; a fim de apropriar-se e fundamentar-se nas teorias e conhecimentos já produzidos na tentativa de trazer novas contribuições teóricas e produzir um diálogo relacionando Educação Popular e Serviço Social. “[...] a teoria é um conhecimento de que nos servimos no processo de investigação como um sistema organizado de preposições, que orientam a obtenção de dados e a análise dos mesmos, e de conceitos, que veiculam seu sentido [...] a teoria não é só o domínio do que vem antes para fundamentar nossos caminhos, mas é também um artefato nosso como investigadores, quando concluímos, ainda que provisoriamente, o desafio de uma pesquisa.” (MINAYO, 2002, P. 19-20) E para que também as referências possam dar luz e orientação no posterior processo de produção, obtenção e análise das informações e dados da realidade concreta experienciada. “[...] qualquer trabalho de animação popular deverá basear-se em formulações teóricas que no campo da educação popular ou trabalho social já estão estabelecidas, para deduzir a partir delas algumas orientações para o trabalho nessas comunidades em particular.” (HOLLIDAY, 2006, p. 52) Para isso buscou-se fundamentar nos seguintes referenciais da literatura científica: para compreender Educação Popular - Freire (1967, 1979, 2019, 2020), Pini (2015), e Brandão (1987,2006, 2020); para a relação e o diálogo entre Serviço Social e Educação Popular - Machado(2012,2013,2014,2019); para conceber o projeto ético-político e a prática profissional do/a assistente social histórica e contemporâneo,Cardoso(2013), Raichellis (2020,2021), Iamamoto (2015,2017,2019); e entre outros/as autores e autoras que surgiram durante o processo de pesquisa. Após as primeiras elaborações e problematizações teóricas, em um segundo momento foi realizado um grupo focal por meio de plataforma online google meet, - devido a pandemia do COVID-19 - a fim de conhecer o trabalho profissional e a sua possível existência e relação com a educação popular na práxis profissional dos assistentes sociais dos centros de referências em Assistência Social - CRAS e dos CREAS - do município de São Vicente / SP (APÊNDICE D). O grupo focal com assistente sociais da Política de Assistência Social tem como finalidade a obtenção de indicadores e informações que nos auxiliem na melhor apreensão do real, investigando experiências de Educação Popular dentro do Serviço Social: seu sentido para a população atendida, para os/as profissionais e para o trabalho em si,seu significado na vida dos/as protagonistas dos processos, as formas e estratégias a serem realizadas e entre outros aspectos. 17 “ [...] indicadores podem ser construídos para medir ou revelar aspectos relacionados a diversos planos em observação: níveis individuais, coletivos, associativos, políticos, econômicos, e culturais, entre outros. Podem, por exemplo, ser instrumentos para mensurar a disponibilização de bens e atividades, assim como para conceber parâmetros de diferentes atores a um programa, a relevância que ele possui para a vida de cada um, sua intensidade e sentido.” (MINAYO, 2009, P. 84) Para assim investigar as experiências da Educação Popular como práxis político- pedagógica do/a assistente social partindo do concreto-real: no seu movimento ativo e dinâmico. Desta forma foi necessário o envio de uma carta por e-mail (APÊNDICE B e C) apresentando o projeto e solicitando a autorização da Prefeitura Municipal de São Vicente para a realização da pesquisa com os/as assistentes sociais. Após a anuência do município para a realização da pesquisa e a aprovação do projeto pelos respectivos comitês de ética, foi iniciado a fase da pesquisa com seres humanos a partir de um convite por meio de whatsapp (aplicativo de mensagens) para cada um(a) dos(as) assistente sociais de cada CRAS e CREAS do município de São Vicente (conforme o modelo disposto no APÊNDICE E). As informações de contato sobre os/as profissionais foram disponibilizadas pelo próprio município. Porém, cada mensagem foi enviada de forma individual e particular entre pesquisadora e convidado/a, respeitando as diretrizes de confidencialidade estabelecidas no Ofício Circular nº 2 / 2021 / CONEP / SECNS / MS. Todas as questões e dúvidas foram apresentadas e esclarecidas nesta conversa inicial. Após o aceite do convite, o/a profissional recebeu o “termo de consentimento livre e esclarecido” por meio virtual através da plataforma google forms (conforme modelo disponibilizado no APÊNDICE A, e por meio do seguinte link: https://forms.gle/QJqzox5CFTmf9vWq5) , onde foi informado/a de todos riscos, benefícios e implicações da pesquisa, assim como também seus direitos, e esteve a sua disposição concordar ou não para a sua participação - sendo informado no formulário o direito do/a participante interromper sua colaboração a qualquer momento, sem nenhum tipo de pena. Após a pesquisadora salvar o formulário com o consentimento do participante em seu computador particular e exclusivo, e enviar uma cópia para o e-mail deste participante, o formulário foi excluído da plataforma digital por questões de segurança conforme orientado pelo comitê de ética. Todos/as os/as participantes que aceitaram participar dos grupos focais receberam antecipadamente o roteiro de perguntas (APÊNDICE D), de acordo com seu direito de acesso ao teor do conteúdo prévio e por conseguinte de não-resposta, para assim posteriormente agendarmos a melhor data para a realização dos grupos focais. https://forms.gle/QJqzox5CFTmf9vWq5) 18 O grupo focal foi realizado por meio da plataforma google meet, e não houve gravação de áudio ou vídeo. Todo o custo necessário para a participação (internet, equipamento) foi de responsabilidade do/a participante - sendo este informado sobre desde o convite, assim como também sobre os riscos da insegurança tecnológica próprio do ambiente virtual. A plataforma assegura que todos os dados e informações são criptografados e garante na sua política de privacidade e segurança a não publicização de dados a terceiros, nem o seu uso para anúncios (GOOGLE, 2021). Embora, a existência de riscos baixos de invasões e violações de informações no momento de realização do grupo focal, apresentando uma limitação da responsabilidade da pesquisadora diante da insegurança característica das novas tecnologias. O conteúdo e material obtido durante os grupos focais foram registrados por meio de anotações que a pesquisadora realizou no seu caderno pessoal e próprio para fins da pesquisa, respeitando o sigilo necessário, o qual somente pesquisadora e orientadora tiveram acesso. Pretendeu-se a partir dos grupos focais coletar informações e dados sobre o conhecimento e a apreensão que os/as profissionais têm sobre Educação Popular, as atividades realizadas cotidianamente nas instituições, os maiores desafios e possibilidades da práxis profissional, a identificação da presença ou ausência da práxis de Educação Popular na atuação do/a assistente social, a relação entre profissionais e usuários/as dos serviços, perfil da população atendida pelo profissional e apreensão das formas de mobilização e luta da comunidade do território da instituição. Em um terceiro momento foi realizado a análise dos dados e material obtido por este grupo focal. Tendo em vista que a realidade e as experiências não se explicam por si só, mas são ponto de partida e chegada imprescindíveis para a apreensão do real. Todo material foi analisado, sistematizado e interpretado. Foi elaborado um relatório final com informações e dados pertinentes coletados a partir dos grupos focais, entretanto foram reflexões feitas de forma genérica sem especificar ou identificar participantes, quando necessário foi utilizado nomes fictícios (de pessoas, instituições, ruas e entre outros) para elucidar as contribuições teóricas. De forma, a fazer diálogos com o aporte teórico estudado anteriormente, e com o material coletado e obtido a partir dos grupos focais, para posterior problematização e resultando na produção de considerações pertinentes aos temas aqui propostos. Ademais, a escolha do tema se deu pelo interesse pessoal da autora com a Educação Popular, diante dos atravessamentos e processos da sua trajetória de vida que a fizeram descobrir-se enquanto “ser social” em um mundo profundamente contraditório e injusto. Mas foi por meio do seu processo educacional que descobriu que é nessa mesma realidade desigual 19 que pode se construir também outras possibilidades, e esta se realiza a partir da luta coletiva para a construção conjunta de uma nova ordem societária livre de exploração e opressão. A qual acredito que só pode ser dar por meio do compromisso pessoal e profissional - no caso aqui enquanto assistente social - de uma educação para e com os sujeitos: que estes participem e construam ativamente em um processo – antidiscriminatório que respeite sua pluralidade e seus prévios saberes - de desvelamento crítico da realidade podendo promover a ampliação de sua emancipação, e autonomia a partir da tomada de consciência crítica de si, do outro e do mundo. Este estudo também tem a intenção de apresentar e aproximar a todos/as da temática da Educação Popular, para que cada vez mais a construção de uma nova ordem societária, não seja apenas uma esperança utópica no fim do túnel, mas uma realidade palpável em um breve horizonte. “A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do “demitido da vida”, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos em gestos de súplica. Súplica de humildes e poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendizado têm de partir, porém, dos “condenados da terra”, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem. Lutando pela restauração de sua humanidade, estarão, sejam homens ou povos, tentando a restauração da generosidade verdadeira” (2019, FREIRE, P. 42) 20 2. Serviço Social e seu caráter na sociabilidade capitalista: Disputas dos projetos profissionais Para concebermos, as relações e possibilidades de mediações entre Serviço Social e Educação Popular é imprescindível quenos voltemos para um breve estudo da profissão em si: para compreendermos melhor o seu significado sócio-histórico e suas particularidades; seu objeto de atuação, atribuições e competências; seus instrumentos, meios e mediações; suas dimensões e contradições; para assim também por meio destes apreender os seus desafios e consequentemente, a possibilidades que surgem nas margens de expansão dos limites, e abrem perspectivas para uma interlocução com a Educação Popular. 2.1 O Serviço Social e seus projetos profissionais: a história como chão, atmosfera e semente. “Recordar é preciso O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos A memória bravia lança o leme: Recordar é preciso. O movimento vaivém nas águas lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga, mas os fundos oceanos não me amedrontam e nem me imobilizam. Uma paixão profunda é a boia que me emerge. Sei que o mistério subsiste além das águas.” (EVARISTO, 2008) O Serviço Social é concebido como uma especialização do trabalho coletivo (IAMAMOTO)1 inscrito na divisão sociotécnica, sexual e étnico-racial do trabalho (RAICHELLIS, 2020)2. Isto é, o/a assistente social é um(a) trabalhador(a) assalariado: vende a 1 Esta análise foi concebida pela primeira vez por Raul de Carvalho e Marilda Iamamoto no livro “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica” em 1983; mas desde então esta análise crítica foi revisitada posteriormente em outras obras de Iamamoto e por outros diversos autores(as), por isso não me limito a escrever o ano. Sendo essa compreensão teórica-metodológica adotada pelo Serviço Social brasileiro hegemonicamente há mais de 30 anos. 2 Como a autora reconheceu, é uma análise nova e que merece ser aprofundada. 21 sua força de trabalho em troca de um salário para a sua própria sobrevivência, assim como outros/as trabalhadores/as, participando juntamente com estes de um processo coletivo de produção material e não-material (aqui entendido como as formas ideológicas, sociais, culturais, intelectuais, jurídicas,...) de riquezas no capitalismo. Desta forma, insere-se na divisão do trabalho coletivo socialmente pela posição que ocupa como classe trabalhadora assalariada, que é atravessada por diversas dimensões entre elas a étnico-raciais - dado a constituição do capitalismo brasileiro ancorado nas bases do trabalho escravo do povo negro e indígena - e a sexual - a maioria da categoria é formada por mulheres, trazendo para a profissão alguns estereótipos conforme a concepção social conservadora de "mulher" atrelada a questão de cuidados, passividade, compaixão, submissão (RAICHELLIS, 2020). “A condição feminina é um dos selos de identidade desse profissional, [...] Com tal perfil, o assistente social absorve tanto a imagem social da mulher, quantos as descriminações a ela impostas no mercado de trabalho [...]" (IAMAMOTO, 2015, P. 104) É técnica, pois é um(a) profissional que exige especialização de nível superior para atuar, especificamente, nas expressões da questão social. Isto é, exige um(a) profissional qualificado especialmente para atender uma necessidade específica da sociabilidade capitalista dentro do processo coletivo de trabalho, no caso do Serviço Social: as manifestações da questão social. Sendo assim as expressões da questão social são tanto a necessidade social que dá gênese e justifica a existência da profissão, quanto consequentemente o objeto ao qual o exercício profissional se volta para incidir e mediar. A questão social aqui é entendida como a contradição estrutural e inerente ao modo de produção capitalista: o antagonismo entre capital e trabalho, classe burguesa e trabalhadora: a apropriação privada por uma única classe social - burguesia - das riquezas geradas pelo trabalho coletivo, manifestando-se de diversas maneiras na vida – essencialmente, mas não exclusivamente - da classe trabalhadora: o desemprego, a precarização das relações trabalhistas, a fome, a violência, e entre outras expressões que se materializam como parte das demandas no cotidiano do/a assistente social. “[...] o Serviço Social tem na questão social a base de sua fundação como especialização do trabalho. Questão social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por parte da sociedade" (IAMAMOTO, 2015, P. 27) 22 Logo, o trabalho do/a assistente social se encontra no âmbito privilegiado de mediação entre os interesses antagônicos das classes sociais, sendo requisitado socialmente para enfrentar e atender as diversas e opostas demandas destas. Antagônicos pois a classe trabalhadora busca a sua sobrevivência e a plena expansão de sua vida – entendendo a partir do legado da teoria social crítica marxiana e marxista que, mesmo de forma não conscientemente crítica, o objetivo maior de cada ser social e de todos/as é a plena expansão de suas potencialidades e capacidades humanas, impedida e reprimida nos limites da sociabilidade de classes - e a burguesia a reprodução do seu capital, que para isto exige a reprodução da situação de exploração e dominação de uma classe sobre a outra (donos/as dos meios de produção sobre assalariados/as) - desta forma, produzindo lucro para si às custas da produção de condições que impedem a plena expansão da vida da classe trabalhadora, e ao contrário produzindo condições que a massacram e a desumanizam. Sendo assim, são interesses contraditórios em sua origem e desenvolvimento, os quais o/a assistente social têm que enfrentar e mediar no seu exercício profissional. Quando o/a assistente social viabiliza por exemplo, um programa de transferência de renda para uma pessoa por meio das políticas sociais a partir dos seus instrumentais, - questionário, entrevista, relatório - o/a profissional está atendendo os interesses daquela pessoa, – enquanto membro-representante da classe trabalhadora3 – de suas necessidades mais imediatas e básicas de subsistência: comida, vestuário, medicação - , mas também o interesse da classe burguesa de reprodução da força de trabalho: fornecendo o mínimo para a reprodução da vida da classe trabalhadora tendo em vista que trabalhadores minimamente saudáveis e satisfeitos4 para produzir são peças fundamentais para a expansão do capital – independente desta pessoa em particular ter um vínculo assalariado ou ser parte do exército industrial de reserva5, pois este é também um dos elementos essenciais para a reprodução do capital e da sua 3 Conforme Marx (2017), o indivíduo é a personificação de categorias econômicas, sendo a sua classe um traço intrínseco e fundamental para o seu ser. “Mas aqui só se trata de pessoas na medida em que elas constituem a personificação de categorias econômicas, as portadoras de determinadas relações e interesses de classes." (MARX, P. 80, 2017) 4 Considerando que desde a sua origem, os serviços e direitos sociais são "moeda de troca” entre burguesia e classe trabalhadora, como forma de apaziguamento da primeira sobre a segunda. Tendo em vista que reconhecer a classe trabalhadora e suas necessidades – sem ultrapassar os limites do Estado burguês de direito de conservação - é um dos mecanismos para construção de consensos sociais que servem para a alienação e a internalização da falsa ideia de um convívio "harmônico" entre as classes, de um “capitalismo humanizado”. Dialeticamente também é uma importante expressão histórica das conquistas da luta da classe trabalhadora. 5 Termo cunhado por Marx na fase do capitalismo industrial, entendido com a população “sobrante”: excluída do processo direto de produção material capitalistaassalariado – embora participe indiretamente e seja essencial para a reprodução de outras formas. Apreendida por Iamamoto, 2015: como “população excedente às necessidades médias do capital”. No estágio do capitalismo contemporâneo, essa população não se restringe somente aos setores industriais. “Assim, com a acumulação do capital produzida por ela mesma, a população trabalhadora produz, em 23 ideologia de dominação: de competitividade e insegurança do trabalho6, assim de certa maneira a classe burguesa transfere e compartilha com o Estado, parte de sua “responsabilidade” de fornecer as condições mínimas de subsistência da população excedente; usando o Estado como um instrumento de reprodução da situação de dominação e logo, de reprodução do sistema do capital. “Este segmento de trabalhadores, não podendo sobreviver principalmente de salário, enquanto está socialmente impossibilitado de produzi-lo, passa a depender da renda de todas as classes. A sociedade é obrigada a ocupar-se com a manutenção dessa parcela da classe trabalhadora alijada do mercado de trabalho. Os capitalistas, embora impelidos a partilhar dos custos de reprodução dessa população, tentam, na medida do possível, desincumbir-se de tal ônus, ampliando a penúria desses trabalhadores "livres", reduzidos a condições de vida infra-humanas, e socializando os custos de reprodução desse segmento da classe trabalhadora para o conjunto da sociedade, no que as políticas sociais dos Estados capitalistas desempenham um papel fundamental.” (CARVALHO E IAMAMOTO, 2006, P.78) Portanto, o/a assistente social é contratado/a mediante a demanda social originada da necessidade de duas classes sociais: a burguesia de reprodução do seu capital, e da classe trabalhadora de sua sobrevivência, e seu exercício profissional estando sob o palco de disputa destes interesses. Logo é primordial conceber que estes profissionais têm desde a sua gênese um caráter contraditório. O qual se acentua pela posição que se encontra no processo de trabalho: uma vez que são contratados majoritariamente pelos próprios burgueses (empresas, organizações civis ligadas as classes dominantes) e pelo Estado (usado como instrumento de reprodução do capital) para atender uma demanda de duas classes – interferindo mais diretamente na vida da classe trabalhadora, já que a atividade profissional se direciona quase que exclusivamente a estes - mas sob as intenções das intuições empregadoras, isto é de uma outra classe diferente e que possuem interesses distintos e opostos a classe a quem o trabalho se dirige. Ao mesmo tempo que o/a profissional – como já disposto anteriormente - também é classe trabalhadora, logo se identifica com a própria classe e suas demandas e interesses, entretanto se encontra na posição contraditória e complexa de ter que atender parte das intencionalidades dos seus contratantes - a partir das exigências e dos limites impostos ao profissional pela instituição empregadora que servem a ótica do capital. Pois apesar de, o volume crescente, os meios que a tornam relativamente supranumerária. [...] Mas se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional.” (MARX, 2017, P. 706 e 707) 6 Outro mecanismo de alienação fundamental para a reprodução da exploração da classe trabalhadora, com o adensamento da fragilização das relações trabalhistas e agudização das expressões da questão social. 24 Serviço Social ser reconhecida como uma profissão liberal7 não dispõe de todos a estrutura e meios para exercer plenamente e de forma autônoma e independente seu trabalho, dependendo de parte da organização e da disposição dos meios e recursos da instituição para a realização do trabalho. “Embora regulamentado como uma profissão liberal na sociedade, o Serviço Social não se realiza como tal. Isso significa que o assistente social não detém todos os meios necessários para a efetivação do seu trabalho: financeiros, técnicos e humanos necessários ao exercício profissional autônomo. Depende de recursos previstos nos programas e projetos da instituição que o requisita e o contrata, por meio dos quais é exercido o trabalho especializado. Em outros termos, parte dos meios ou recursos materiais, financeiros e organizacionais necessários ao exercício desse trabalho são fornecidos pelas entidades empregadoras. (IAMAMOTO, 2015, P. 63) Embora, cerceado por interesses antagônicos, limites institucionais e pela sua posição no processo de trabalho de assalariado/a que necessita do seu salário para sua sobrevivência, e desta forma estando aquém de algumas exigências para manutenção do seu emprego e de sua própria sobrevivência, a profissão se mantém com relativa autonomia8 derivada do seu aparato teórico-metodológico e ético-político que permite a partir da mediação dos opostos, fortalecer um polo por meio do seu exercício profissional. Embora o Serviço Social tenha sido regulamentado como profissão liberal no Brasil, a/o assistente social exerce seu trabalho majoritariamente como assalariado/a de instituições públicas ou privadas, que operacionalizam políticas e programas sociais. Mas como profissão que realiza sua atividade no âmbito da prestação de serviços sociais, o Serviço Social incorpora algumas características das profissões liberais, entre as quais: singularidade na relação com usuários e usuárias; caráter não rotineiro do seu trabalho; competência para formular propostas de intervenção fundamentadas em conhecimentos teóricos e técnicos; presença de um deontologia e de um Código de Ética; formação universitária avalizada por credenciais acadêmicas (diplomas, títulos); regulamentação legal que dispõe sobre o exercício profissional, atribuições privativas e fóruns para disciplinar e defender o exercício da profissão, por meio de entidades de representação e fiscalização profissional (VERDÈS LEROUX, 1986; YAZBEK, 2009 apud RAICHELLIS, 2020, p.14) É pela profissão ser mediatizada pelos interesses antagônicos que limitam a profissão, e ao mesmo tempo os mediar, que também se abre o espaço de possibilidade de construção de estratégias para além dos interesses postos inicialmente. Isto é, por meio do exercício profissional pode-se fortalecer a classe burguesa, mas também: a classe trabalhadora, o qual é nosso compromisso profissional posto no atual Código de Ética de 1993. “a atuação do assistente social é necessariamente polarizada pelos interesses de tais classes, tendendo a ser cooptada por aqueles que têm uma posição dominante. 7 A profissão “herda” popularmente de suas legislações anteriores o título de profissional liberal, embora a lei de regulamentação atual não verse nada a respeito. Existe um debate a ser aprofundado sobre esta denominação, já que embora exista um legado histórico e características de uma profissão liberal no exercício profissional do/a assistente social, também há impasses que contradizem esta tipificação. 8 Autonomia regulamentada e reconhecida pela Lei Federal nº 8.662, de 7 de junho de 1993 que dispõe sobre a profissão de Assistente Social e dá outras providências a respeito de suas atribuições privativas e competências. 25 Reproduz também, pela mesma atividade, interesses contrapostos que convivem em tensão. Responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode fortalecer um ou outro pela mediação do seu oposto. Participa tanto dos mecanismos de dominação e exploração como, ao mesmo tempo e pela mesma atividade,dá resposta ás necessidades de sobrevivência trabalhadora e da reprodução do antagonismo nesses interesses sociais, reforçando as contradições que constituem o móvel básico da história. A partir dessa compreensão é que se pode estabelecer uma estratégia profissional e política, para fortalecer as metas do capital ou do trabalho, mas não se pode excluí-las do contexto da prática profissional, visto que as classes só existem inter-relacionadas. É isto, inclusive, que viabiliza a possibilidade de o profissional colocar-se no horizonte dos interesses das classes trabalhadoras” (CARVALHO e IAMAMOTO, 2006, P. 75) Desta forma, o trabalho profissional atua diretamente e concretamente na (re)produção da vida material ao viabilizar um serviço, entretanto a forma como dar-se-á sua intervenção profissional é onde se encontra a incidência da atuação profissional nas formas espirituais de reprodução do capital, e também a possibilidade de fortalecimento de um polo, em detrimento do seu oposto; é onde o/a assistente social insere-se na sua dimensão de intervenção nas relações sociais. Isso significa dizer que o Serviço Social atua tanto nas dimensões materiais de produção do trabalho coletivo, quanto nas não-materiais: na reprodução da totalidade da vida social, em suas relações particulares e nas formas de consciências coletivas. “Não resta dúvida de que o trabalho do assistente social tem um efeito nas condições materiais e sociais daqueles cuja sobrevivência depende do trabalho. [...] E o Serviço Social interfere na reprodução da força de trabalho por meio dos serviços sociais previstos em programas, a partir do quais se trabalha nas áreas da saúde, educação, condições habitacionais e outras. Assim, o Serviço Social é socialmente necessário porque ele atua sobre questões que dizem respeito a sobrevivência social e material dos setores majoritários da população trabalhadora. Viabiliza o acesso não só a recursos materiais, mas as ações implementadas incidem sobre as condições de sobrevivência social dessa população. Então, não resta dúvida de que o Serviço Social tem um papel no processo de reprodução material e social da força de trabalho, entendendo o processo de reprodução como o movimento da produção da sua continuidade [...] O Serviço Social tem também um efeito que não é material, mas é socialmente objetivo. Tem uma objetividade que não é material, mas é social. [...] Tem também efeitos na sociedade como um profissional que incide no campo do conhecimento, dos valores, dos comportamentos, da cultura, que, por sua vez, têm efeitos reais interferindo na vida dos sujeitos. Os resultados de suas ações existirem e são objetivos, embora nem sempre se corporifiquem como coisas materiais autônomas, ainda que tenham uma objetividade social (e não material), expressando- se sob a forma de serviços. Nenhuma sociedade sobrevive apenas à base de coerção, mas para sobreviver tem de criar consensos de classes, base para construir uma hegemonia na vida social. O assistente social é um dos profissionais que está nesse “mar de criação de consensos". " (IAMAMOTO, 2015, P. 67-68) Apesar do Serviço Social não produzir diretamente produtos materiais9, pode produzir produtos sociais e culturais - através da sua dimensão socioideológica, de atuação na reprodução das relações sociais - e também intelectual - através da sua produção teórica. A partir da sua possibilidade de atuação no planejamento, elaboração, execução, avaliação e coordenação de 9 Aqui entendo sobre a forma física, palpável. Como por exemplo a produção de um lápis. 26 políticas, projetos e programas sociais; viabilizando a população o acesso aos seus direitos e às políticas públicas. Além de poder atuar em um leque inúmero de atividades desde assessorias e consultorias empresariais e a órgãos públicos, até o magistério e a carreira de pesquisa. Sendo presente nas mais diversas áreas: saúde, sociojurídica, habitação, empresarial, educação, socioambiental, assistência social e dentre outras. A partir dos seus instrumentais e do seu conhecimento teórico, sendo legitimado pelo seu atual Código de Ética de 1993, o Serviço Social insere-se como uma profissão que se compromete atualmente a atuar pautados em princípios e valores que visam a emancipação política e humana, assim também com o fortalecimento da classe trabalhadora no seu exercício profissional: o qual está permanentemente tensionado pela correlação de forças imposta pelo seu caráter contraditório na sociabilidade capitalista. “O exercício profissional é necessariamente polarizado pela trama de suas relações e interesses sociais. Participa tanto de mecanismos de exploração e dominação quanto, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência das classes trabalhadoras e da reprodução do antagonismo dos interesses sociais. Como a sociedade é atravessada por projetos sociais distintos – projetos de classe para a sociedade -, tem-se um terreno sócio-histórico aberto à construção de projetos profissionais também diversos, indissociáveis dos projetos mais amplos para a sociedade. É essa presença de forças sociais e políticas reais que permite à categoria profissional estabelecer estratégias político-profissionais no sentido de reforçar interesses das classes subalternas, alvo prioritário das ações profissionais. Os assistentes sociais realizam, assim, uma ação de cunho socioeducativo na prestação de serviços sociais, viabilizando o acesso aos direitos e aos meios de exercê-los, contribuindo para que necessidades e interesses dos sujeitos sociais adquiram visibilidade na cena pública e possam ser reconhecidos, estimulando a organização dos diferentes segmentos dos trabalhadores na defesa e na ampliação de direitos." (IAMAMOTO, 2017, P.22 -23) Entretanto, nem sempre foi assim. O Serviço Social durante sua gênese e trajetória construiu, e reconstruiu diversas e diferentes formas de respostas às demandas, limites e possibilidades postos nos determinados contextos sócio-econômico-históricos, expressos em projetos profissionais que responderam às necessidades e aos atravessamentos sociais e particulares da questão social em cada tempo histórico. Para isto se faz necessário e imprescindível, retomar brevemente a jornada do Serviço Social brasileiro para compreendermos este tal qual como se constituiu e se constitui hoje, a partir da contextualização dos seus projetos profissionais inseridos e atravessados pelo cenário sócio-político-econômico mundial e brasileiro. Isto se faz necessário especialmente por dois motivos. O primeiro: esta pesquisa parte do método da teoria social crítica, logo se propõe a realizar um estudo radical, - aqui entendida no sentido de conceber as raízes “A teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a coisa 27 pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem.” (MARX, 2010, 151) - superando o imediato e o superficial a fim de apreender a totalidade com todas as suas dimensões, particularidades, mediações, e isso implica indissociavelmente conceber na dialética da história, isto é, compreender os fatos tais como verdadeiramente são situados intrinsecamente no movimento da história que dão sentido e conexão aos fatos e fenômenos. Logo, seria um grande equívoco ao objetivo e processo metodológico proposto aqui não realizar esta mediação. O segundo: é impossível apreender a profissão em determinado período em sua totalidade e essência sem contextualizar e compreender a conjuntura histórica que abria possibilidades e limites para o desenvolvimento da profissão. Como Iamomoto (2015) nos afirma, o contexto histórico é muito mais do que pano de fundo, é chão: nos dá fundamento e também nos atravessa, abrindo possibilidades - aqui adiciono que também por isso é ar/atmosferae também semente. “A premissa é que o atual quadro sócio-histórico não se reduz a um pano de fundo para que se possa, depois, discutir o trabalho profissional. Ele atravessa e conforma o cotidiano do exercício profissional do Assistente Social, afetando as suas condições e as relações de trabalho, assim como as condições de vida da população usuária dos serviços sociais.” (IAMAMOTO, 2015, P. 19) Pois além das alterações na sociedade, alterarem logicamente e diretamente as demandas profissionais (dado a atuação privilegiada do/a assistente social na dinâmica social) fazendo com que estes tenham que (re)criar novas respostas, por conseguinte, exigindo um novo perfil profissional, com novas competências e atribuições, frente a agudização das expressões da questão social que interfere visceralmente no cotidiano profissional manifestado nas demandas da população atendida; também é essencial pois as alterações em específico no mundo do trabalho e no mundo social afetam a profissão enquanto trabalhador assalariado na divisão do trabalho - estando sujeito/a(s) também ás condições de desemprego, terceirização e fragilização das relações trabalhistas - e não só por estas como também por outras expressões da questão social que também se manifestam e o afetam em sua vida pessoal - miséria, violência, fragilização dos vínculos sociais - pois não está exterior e descolado da realidade, é parte integrante desta assim como a população usuária. “O pressuposto da análise é que a história da sociedade é o terreno privilegiado para apreender as particularidades do Serviço Social: seu modo de atuar e pensar incorporados ao longo do seu desenvolvimento. Sendo um produto sócio-histórico, a profissão adquire sentido e inteligibilidade na dinâmica societária da qual é parte e expressão. Nesse sentido, decifrar essa especialização do trabalho supõe elucidar os processos sociais que geram a sua necessidade social, o significado de suas ações no campo das relações do poder econômico e político - das relações entre as classes e destas com o Estado -, assim como o envolvimento no debate teórico e cultural de seu tempo. Estabelece-se, pois, como quesito fundamental a indissociável articulação 28 entre conhecimento e história, entre teoria e realidade (prática social)." (IAMAMOTO, 2017, P. 21-22) Desta forma, a história nos serve aqui como chão (base e ponto de partida fundamental para a análise), atmosfera (atravessa de distintas formas e maneiras: permeando passado, presente e futuro) e semente, pois é a partir do seu estudo e de sua experiência que se abre as possibilidades para construção de uma “nova história", de novos frutos. “a história é a fonte de nossos problemas e a chave de suas soluções." (IAMAMOTO, 2015, P. 203) Por isso, retornaremos a década de 1930, no contexto brasileiro que permitiu que o Serviço Social nascesse e se desenvolvesse. O cenário no Brasil era de recente abolição da escravidão e de fim do Império com uma frágil república da e para a elite: os traços do colonialismo e da escravidão ainda eram fortemente presentes10 na conjuntura, em conjunto com o início de uma industrialização tardia e o crescimento de uma burguesia industrial nacional ao lado de grandes latifúndios, e a maioria população em situação de extrema pobreza e marginalizada racialmente. Getúlio Vargas era o presidente da época, o qual estava no poder por meio de um golpe de Estado que instaurou a sua ditadura. Conhecido por ser "pai dos pobres” mas também "mãe dos ricos", investiu fortemente na industrialização do país ao lado da criação de políticas sociais como as previdenciárias e trabalhistas, garantindo uma série de direitos importantes, entretanto de forma "compensatória" - isto é, de forma a compensar o ataque e a perda de outros direitos, já que as liberdades civis e políticas eram fortemente reprimidas e censuradas nesta época com uso de perseguições e torturas. Paralelamente, tinha-se no Brasil um contingente extenso de negros/as ex-escravos excluídos do mercado do trabalho e abolidos sem nenhuma política que os amparasse e com uma sociedade que os excluía também, com a importação de trabalhadores da Europa – em uma tentativa de “branqueamento” do povo brasileiro – para trabalharem nas novas fábricas e um êxodo rural crescente; a fome e a miséria se faziam cada vez mais presentes no país assim como as manifestações e reivindicações frente as violações sofridas cotidianamente pela população. A criação de políticas sociais nasce como uma necessidade de responder as expressões da questão social cada vez mais agravadas: como uma tentativa de “harmonizar” as relações sociais, já que o trato da questão social por meio de repressão policial e ações filantrópicas já não eram mais suficientes. O assistencialismo também era outro fator fundamental e predominante neste contexto, sendo organizado e realizado pela sua maioria pela Igreja Católica através de mulheres das classes mais abastadas. Era uma das respostas dadas no âmbito privado 10 Assim como são até hoje, porém atualmente se transfiguram com novas formas e roupagens. 29 a questão social desde tempo muito remotos, e também forma de a Igreja recuperar seu poderio e “evangelizar” por meio de um discurso humanitário e de generosidade. É como resultado da necessidade de um agente público que atuasse nas novas políticas públicas criadas, de forma a atenuar os conflitos11 gerados pela agudização das expressões da questão social sentidas pela classe trabalhadora e também de institucionalização e profissionalização da ação social da Igreja Católica que em 1936 nasce a primeira Escola de Serviço Social no Brasil: a Escola de Serviço Social de São Paulo12. O/a assistente social surge como um(a) profissional para “harmonizar” as tensas relações entre patrões e empregados, e servir como instrumento de reprodução do capital, fortalecendo assim os interesses da classe burguesa diferente de como se está construído hoje. “As ações do governo apresentaram-se, assim, como uma forma de resposta da própria burguesia às reivindicações da classe trabalhadora na tentativa de atenuação dos conflitos e de sua consolidação enquanto burguesia industrial. Burguesia que também empregou esforços para atendimento direto às demandas da classe trabalhadora, com a criação de instituições privadas assistenciais. Foi neste contexto que se abriram os postos de trabalhos para os assistentes sociais; para sua existência como profissão. O Serviço Social no Brasil aparecerá como uma das estratégias da burguesia nesse processo, de maneira privada ou por meio do Estado, compondo as equipes de trabalhado ao lado das recém-criadas políticas e instituições sociais, bem como da revisão de instituições já existentes.” (CARDOSO, 2013, P. 113) Estando a sua formação e atuação profissional atreladas fortemente a doutrina social da Igreja, inspirados no modelo franco-belga, o Serviço Social tem como seu primeiro referencial teórico a filosofia neotomista, com princípios e valores extremamente tradicionais e conservadores de naturalização dos fatos sociais, unindo-se a teoria positivista em um "arranjo teórico-doutrinário" como Iamamoto denomina, para exprimir uma prática13 profissional de individualização da questão social, que busca adequar e ajustar o indivíduo a sua condição. Conforme NETTO, 2005 e CARDOSO, 2013 este é o denominado projeto tradicional conservador da profissão, que se expressa no currículo mínimo de 1953, no código de ética de 1947 e na lei de regulamentação de 1957 e até os anos 60 foi o projeto hegemônico da profissão. Assim como explicitado anteriormente, a profissão acompanha as mudanças sociais de acordo com a novas formas que as expressões da questão social tomam forma requisitando assim um novo perfil profissional, e uma nova orientação para a profissão. Foi no cenário pré- golpe militar que o ServiçoSocial ganha uma nova roupagem. O capital global passava por 11 Sendo resultado e expressão da luta de classes: tanto expressão da conquista das lutas do proletariado, quanto do apaziguamento necessário para a reprodução do capital. 12 Hoje se integrou-se e tornou-se a PUC/SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, um dos mais renomados cursos e programas de pós-graduação do Serviço Social no Brasil até hoje. 13 Opto por não usar o termo "práxis" para denominar o exercício profissional neste momento histórico, tendo em vista que não era uma categoria incorporada pelo Serviço Social da época. 30 mais uma das suas crises cíclicas, simultaneamente com uma ascensão das mobilizações populares frente a dominação e opressão cada vez mais agravadas na estrutura capitalista, especialmente na América Latina estimulados pela revolução cubana – porque o período de crise do capital, também significa um período de agudização da questão social14, já que a burguesia só consegue recuperar seu lucro às custas de novas formas de superexploração da classe trabalhadora. “Historicamente, o continente latino-americano e a década de 60 situam-se como o lugar e o tempo onde se engendrou esse movimento de questionamento crítico da própria realidade e, no interior desta, da prática profissional. Os anos 60 foram particularmente difíceis para os povos latinos-americanos, que desde o imediato segundo pós-guerra vinham enfrentando crescentes dificuldades de sua participação no processo produtivo. A dinâmica da acumulação capitalista, no contexto de uma economia dependente e monopolista, produzia formas peculiares de inserção na divisão social do trabalho, excluindo amplo grupo da possibilidade de acesso às estruturas de produção. A reprodução ampliada do capital correspondia a uma reprodução ampliada da pobreza e do conjunto de problemas que a acompanham. O exército industrial de reserva e a massa de indigentes cresceram a tal ponto que a face do continente latino-americano era a desoladora face da pobreza, da fome, da doença. No plano político, a ascensão das ditaduras e o consequente cerceamento da liberdade produziam um quadro de tensão permanente, cujos reflexos atingiam a totalidade do processo social. No plano econômico, a América Latina era um continente de "veias abertas” (Galeano, 1979:14) pelos interesses imperialistas, deixando escoar suas riquezas naturais, sua riqueza social, a energia vital de seus trabalhadores” (MARTINELLI, 2000, P. 141) E o Brasil não estava imune nem da crise, nem de agitações populares que também aconteciam no globo inteiro e no território brasileiro. Após Jânio Quadros renunciar sob pressão, assume seu vice João Goulart um líder reformista e popular que propõe algumas medidas sensíveis a elite econômica como a reforma agrária15. Fato que desperta o receio das burguesias e de setores mais conservadores da sociedade para o início de processos pré- revolucionários que poderiam também ocorrer no Brasil, inspirado em outros países da américa latina. Com apoio da burguesia industrial e latifundiária, do capital estrangeiro, - especialmente o país imperialista Estados Unidos- os militares orquestram um golpe e instauram uma ditadura militar que nos roubou 21 anos de democracia, resultando em duras perdas para os direitos humanos, políticos e sociais; com o discurso de uma restauração da economia e o enfrentamento do fantasma do socialismo/comunismo - que pairava muito, e muito distante do Brasil. Na concretude do real, significou abertura ao capital estrangeiro com períodos de crescimentos seguidos por graves períodos de recessão, com índices altíssimos de inflação e violação dos direitos humanos, civis e políticos. 14 A expansão do capital e do seu lucro, se dá a partir da expansão da miséria e da exploração da classe trabalhadora. (MARTINELLI, 2000). 15 Tema sensível até hoje, dada a constituição econômica e social brasileira ancorada e enraizada no latifúndio. 31 A insurgência dos movimentos populares na América Latina com questionamentos sobre a ordem e o imperialismo, e a valorização de uma cultura nacional faz com que o Serviço Social também comece a se repensar. Em 1960 surge o denominado “Projeto de Reconceituação na América Latina" que põe em questão as diretrizes teóricas-metodológicas e ético-políticas do Serviço Social. “No período de 1965 a 1975 ocorre um marco importante no Serviço Social na América Latina: o movimento de reconceituação, impulsionado pela intensificação das lutas sociais no continente que se refratavam na universidade, nas Ciências Sociais, na Igreja, nos movimentos estudantis, com nítidas particulares nacionais. Recusa a importação de teorias e métodos alheios à nossa história, na crítica aos fundamentos das abordagens de Serviço Social de caso, de grupo e de comunidade. De base teórica e metodológica eclética, esse movimento foi, inicialmente, polarizado pelas teorias desenvolvimentistas, e no início da década de 1970 ocorrem as primeiras aproximações do Serviço Social à tradição marxista, a partir de manuais de divulgação (IAMAMOTO 2007,2015, 2016 Apud IAMAMOTO, 2017, P. 25) Embora o Serviço Social brasileiro tenha tido importantes participações no movimento de reconceituação Americo-latino como aponta alguns autores/as, o projeto de questionamento e de ruptura com o conservadorismo não foi possível naquele momento por conta da dura repressão que o país sofria pela ditadura militar, e apesar de alguns estudantes e profissionais resistirem e adotarem uma perspectiva crítica, o projeto hegemônico no Brasil era conservador. Entretanto, este conservadorismo necessitou ganhar uma nova forma, uma “modernização" dado as transformações societárias e também a necessidade do Serviço Social se consolidar e ser legitimado como profissão. O que viria a ser o segundo projeto hegemônico da profissão: o "projeto modernizador", com um caráter tecnicista e de valorização a dimensão técnica-operativa tendo em vista a necessidade de legitimação da profissão através do seu reconhecimento técnico. Desta forma, mantinha seu papel de ajuste do indivíduo e de conservação da estrutura capitalista a partir do apaziguamento dos conflitos das classes sociais, porém com uma nova "roupagem": com um adensamento dos instrumentos técnico-operativos a partir do diagnóstico social e os métodos de Teoria de Caso, Grupo e Comunidade e o aprofundamento na teoria positivista. Neste momento o Serviço Social desvincula sua formação da doutrina social da Igreja, mas permanece com alguns valores e princípios cristãos. É resultado da influência norte- americana – resultado do programa de intercâmbio cultural, que estimulou a vinda de estudantes do exterior para o Brasil, e de estudantes brasileiros para o exterior - , e também da entrada de um novo perfil de estudantes – inicialmente o Serviço Social tinha uma característica de alunos/as que buscavam a formação por motivos religiosos em uma perspectiva de filosofia de vida de preparação para uma "vocação", agora os/as estudantes já procuravam o curso em busca 32 de uma colocação melhor no mercado de trabalho a partir de uma qualificação (MARTINELLI, 2000). “Com a expansão da base de recrutamento dos agentes profissionais, ocorrida sobretudo a partir de 1940, o Serviço Social viu aderirem às suas fileiras novos segmentos sociais. Se até então os agentes procediam da alta burguesia, das elites oligárquicas paulistas, agora uma nova realidade se colocava. [...] O resultado imediato foi o ingresso de pessoas provenientes da pequena burguesia e, especialmente, daquelas que já vinham atuando em instituições sociais. Essa ampliação do contingente profissional e a diversificação de seus integrantes produziram alterações significativas no contexto da categoria. Seus novos componentes não eram movidos apenas por ideais religiosos ou vocação para