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Das Salinas ao Sindicato - A trajetória da utopia salineira

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PREFÁCIO 
 
A história da sociedade brasileira exprime as particularidades e as 
contradições da implantação e do desenvolvimento das relações sociais de 
produção típicas do capitalismo moderno. Desde os seus primórdios a 
nossa formação social sofreu os efeitos do caráter desigual e combinado 
do desenvolvimento capitalista. Nos diferentes momentos da nossa 
história, desde o período colonial aos nossos dias, o avanço das relações 
sociais de produção capitalistas nunca foi acompanhado de um processo 
simétrico e homogêneo de expansão e afirmação da modernização 
capitalista sobre o conjunto das várias regiões e dos diversos grupos e 
classes sociais que compõem a sociedade brasileira. 
A sociabilidade, a cultura e as instituições políticas próprias da 
modernidade capitalista aqui encontram formas de manifestações 
extremamente desiguais e excludentes, que estruturam a sociedade 
brasileira. A casa-grande X a senzala, o sobrado X o mocambo, os 
condomínios de luxo X as favelas, o milionário agronegócio de 
exportação X as ocupações e os assentamentos de trabalhadores rurais 
sem-terras são exemplos paradigmáticos do padrão de desenvolvimento 
capitalista adotado por nossas classes dirigentes e proprietárias. 
A lógica excludente do desenvolvimento capitalista brasileiro 
possui como sua necessária contraface uma tradição política autoritária e 
elitista praticada por nossas classes mandatárias e proprietárias. Há uma 
incapacidade crônica das classes dominantes brasileiras para protagonizar 
 
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um projeto civilizatório que contemple minimamente os interesses 
materiais e as aspirações espirituais das grandes massas populares. A 
dominação capitalista é assegurada com o uso preponderante da força e 
da coerção na relação com as classes subalternas, revelando uma 
dificuldade reiterada de se tornar dirigente e obter o consenso ativo e/ou 
passivo da maioria da população. 
Diante dessa debilidade histórica para se conquistar a hegemonia 
na sociedade brasileira, as classes proprietárias resolvem seus conflitos 
internos e as contradições sociais representadas pelas classes subalternas 
enfrentando os momentos cruciais de crise ao longo da história brasileira 
através do mecanismo da “conciliação pelo alto”. As transformações 
históricas nunca são resultantes de rupturas revolucionárias entre forças 
políticas e sociais que se enfrentam direta e radicalmente. O movimento 
histórico que ocorre na sociedade brasileira possui um caráter molecular, 
com a conservação relativa e a predominância de fortes traços de 
continuidade com o passado. O novo nunca se impõe totalmente diante 
do velho. As classes dominantes sempre procuram e encontram saídas 
políticas para os impasses históricos através da composição interna entre 
suas diferentes frações de classe e respectivas facções políticas e a 
constante exclusão política das classes trabalhadoras e das massas 
populares. 
A “revolução passiva” brasileira vem encontrando, até hoje, 
formas inusitadas de reprodução de mecanismos que asseguram que as 
transformações sociais sejam sempre adiadas. A “revolução sem 
 
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revolução”, como dizia Gramsci, é a chave explicativa para os impasses 
ainda vividos pela sociedade brasileira. Como são incapazes de assegurar a 
hegemonia, as classes dominantes usam e abusam do autoritarismo e do 
“transformismo” para cooptar, anular ou neutralizar as possibilidades de 
ação verdadeiramente transformadora das classes subalternas e suas 
organizações comunitárias, sindicais e partidárias. Disso resultou que o 
Estado moderno ganhou uma configuração assimétrica com uma 
sociedade política hipertrofiada - conjunto de aparatos institucionais de 
governo e aparelhos de repressão e manutenção da ordem social – e uma 
sociedade civil frágil e “gelatinosa” – conjunto de organizações e 
instituições responsáveis pela produção espiritual e ideológica e que 
constituem a arena de confrontação política e cultural entre os diferentes 
grupos e classes sociais que aspiram à hegemonia de sua concepção de 
mundo. 
Essa lógica passiva no desenvolvimento e na difusão das relações 
sociais de produção capitalistas é reproduzida em escala quase 
exponencial no Rio Grande do Norte. A inserção da nossa sociedade nos 
circuitos de circulação e produção capitalista ocorreu através da produção 
da cana-de-açúcar, da pecuária, da produção algodoeira, da indústria 
salineira e da mineração. O processo de industrialização era rarefeito e 
estava circunscrito às pequenas indústrias de beneficiamento dessas 
matérias-primas. A indústria salineira despontava como exceção porque, 
apesar de ser composta por grandes, médias e pequenas salinas, era 
liderada por grandes empresas capitalistas, sediadas no sudeste do país. 
 
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No processo de produção, colheita e transporte do sal, as grandes 
empresas salineiras adotavam uma complexa divisão de trabalho, com a 
contratação temporária de milhares de trabalhadores assalariados, numa 
condição tipicamente operária. 
No final dos anos 1950 e nos anos 1960, a sociedade brasileira, 
em suas diferentes regiões, experimenta um dos raros momentos 
históricos em que os trabalhadores urbanos e rurais se tornam efetivos 
sujeitos políticos e sociais, através de uma inusitada demonstração de 
capacidade de organização, mobilização e luta pelos seus direitos e 
interesses de classe. Numa crescente radicalização, às vésperas do Golpe 
Militar de 1964, começa a se delinear a possibilidade de uma efetiva 
ruptura política e o desencadear de um processo de transformação social, 
que poderia por fim à modorrenta lógica conservadora da “revolução 
passiva” no Brasil. 
A política potiguar, até então comandada pelos interesses agrários 
e oligárquicos representados pelas duas facções dominantes do PSD e da 
UDN, que se revezavam no poder estadual, também começa a sofrer os 
efeitos nas mudanças políticas nacionais. O jovem deputado federal 
Aluízio Alves, integrante da UDN, liderada pelo governador Dinarte 
Mariz, insurge-se contra a indicação do candidato oficial ao governo do 
Estado, o deputado federal Djalma Marinho, e articula uma aliança que 
envolve desde o amplo leque de partidos políticos, obtendo, inclusive, o 
apoio do “adversário” PSD. Aluízio Alves é eleito governador e firma-se 
como a nova grande liderança política de massas, trazendo uma proposta 
 
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modernizante e um discurso desenvolvimentista, segundo a velha lógica 
passiva de fazer mudanças parciais que conservam parte do atraso 
pretérito. A face mais progressista deste processo de renovação da política 
potiguar, gestada na mesma trama passiva mas que rompe com o seu 
“transformismo” conservador, é encarnada pelo surgimento da liderança 
de Djalma Maranhão, eleito prefeito de Natal, inspirado por uma 
orientação nacionalista de esquerda e com forte inserção nos setores 
populares. 
 A cidade de Macau, principal produtora de sal, é um dos palcos 
privilegiados da luta e da organização das classes subalternas no Rio 
Grande do Norte nesse período. Surgem inúmeros sindicatos de 
trabalhadores, que representam as diversas categorias profissionais 
envolvidas na produção, extração, transporte e embarque do sal. Aos 
poucos, vão rompendo com o “transformismo” da tutela patronal e 
assumindo uma postura de independência política e sindical. Com o 
passar do tempo, em consonância com a radicalização nacional do 
movimento operário e sindical, são vários os sindicatos de trabalhadores 
que se destacam pela intensa atuação política e orientação política de 
esquerda. A força política dos trabalhadores macauenses não ficou 
limitada ao plano sindical. Foram capazes de aspirar ao poder político 
local e conseguiram eleger o líder sindical dos salineiros, Venâncio 
Zacarias de Araújo, como prefeito da cidade. Essa rica experiência de 
efervescência política e social das classes subalternas foi duramente 
interrompidacom o Golpe Militar de 1964. Os trabalhadores 
 
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macauenses conheceram a crueza da força da repressão militar e sofreram, 
na companhia solidária dos seus familiares e amigos, com a prisão em 
massa dos seus líderes políticos e sindicais. 
O livro "Das salinas ao sindicato: a trajetória da utopia salineira" é 
uma contribuição imprescindível para quem quer conhecer esse 
inesquecível capítulo da história das nossas classes subalternas. O 
professor Francisco Carlos demonstra grande e promissora competência 
intelectual e sua vocação para a historiografia social, conjugando sua 
formação de historiador e seu conhecimento sociológico. O livro, que o 
público leitor agora tem a oportunidade de conhecer, é o resultado de 
uma investigação científica que combina, com equilíbrio, a serenidade e o 
distanciamento do pesquisador e a paixão e o arrebatamento do 
intelectual comprometido com a democracia e a justiça social. 
Representa, ainda, algo de importante significação: um justo e necessário 
resgate histórico das nossas próprias origens macauenses. 
 
 
 
Natal, fevereiro de 2008. 
João Emanuel Evangelista 
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN

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