Buscar

Princípio da Capacidade Contributiva

Prévia do material em texto

Texto 1: Princípio da capacidade contributiva
Autor: Caparroz, Roberto. Direito Tributário. 7ª edição. São Paulo. SaraivaJur. 2023. Páginas 409 - 416.
O princípio da capacidade contributiva é tão importante que consta do artigo inaugural do Sistema Tributário Nacional na Constituição:
 
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
(…)
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
A redação é singela e começa mal, mas não pode deixar margem para dúvidas: os impostos devem ter caráter pessoal e ser graduados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. 
Infelizmente, ao usar a expressão inicial “sempre que possível”, o constituinte abriu um enorme flanco, que enfraqueceu sobremaneira a vitalidade do princípio no ordenamento brasileiro.
O texto constitucional até hoje causa certo desconforto aos juristas, porque não faz sentido afirmar um princípio de tamanha envergadura — talvez o mais importante de qualquer sistema tributário — sob a premissa de que o legislador poderá adotá-lo “sempre que possível”.
Trata-se de construção sintática sofrível, pois nos parece incontroverso que a vontade do constituinte foi no sentido de conferir eficácia máxima ao mandamento, excluídas apenas as hipóteses nas quais não seja possível identificar, a priori, os destinatários da incidência, como ocorre nos tributos indiretos.
De outra sorte o comando seria inócuo, pois, se interpretado literalmente, a capacidade contributiva seria mecanismo facultativo, a juízo do legislador infraconstitucional, e qualquer tentativa jurídica de questionar sua não aplicação seria respondida com um singelo “lamentamos, mas não foi possível”.
Ora, graduar a tributação de acordo com a real capacidade de os contribuintes suportarem o ônus que lhes é imposto pela lei não somente é norma salutar, mas, sobretudo, indica a razão de ser de todas as garantias do direito tributário.
Negar sua efetividade ou querer, com esteio em linguagem defeituosa, subverter ou mitigar sua relevância seria afronta à inteligência e à hermenêutica, coisa que não se pode admitir, ainda mais em sede de direitos fundamentais.
Nosso sentir aponta para o desejo do constituinte de excepcionar do comando apenas os impostos ditos indiretos, ante a impossibilidade prática de dosimetria da carga tributária, com base nos argumentos que já expusemos quando de sua conceituação.
Melhor seria ter estabelecido o imperativo de modo amplo e, mediante parágrafo específico, declarar que a não aplicação do preceito seria permitida somente para os impostos com repercussão econômica.
Aliás, poderia o constituinte ter sido mais ousado, no intuito de estender o princípio às demais espécies tributárias, quando cabível, especialmente nas hipóteses de contribuições (de melhoria e sociais, que enxergamos perfeitamente adequadas ao modelo).
Contudo, confessamos tratar-se apenas da nossa vã esperança, pois não nos cabe discutir ou questionar a vontade do constituinte, mas sim interpretá-la.
Em estado puro, livre das imperfeições linguísticas, a capacidade contributiva se revela instituto essencial à distribuição da justiça em matéria tributária, pois exige do legislador prudência e criação de instrumentos aptos a aferir a situação econômica dos contribuintes, exigindo-lhes esforço possível, na exata medida em que não alcance recursos destinados à consecução de direitos fundamentais.
Corolário da igualdade, a capacidade contributiva serve de contrapeso ao princípio da progressividade, pois permite ajustar possíveis distorções concretas que este pode ensejar, haja vista só tratar das receitas, ou seja, do ingresso patrimonial, mas não dos gastos necessárias para a garantia de uma existência digna.
Como ilustração do raciocínio, observe-se o seguinte exemplo: dois candidatos a concurso público logram êxito no certame e são aprovados, respectivamente, no primeiro e segundo lugares. Ambos tomam posse no cargo e entram em exercício simultaneamente e, por coincidência, passam a desempenhar suas funções na mesma repartição. Se acrescentarmos ao caso o fato de que ambos perceberão idêntica remuneração (R$ 10.000,00, por hipótese), difícil será contestar o estado de quase absoluta igualdade entre ambos, ao menos para fins de tributação do Imposto sobre a Renda.
Utilizamos de modo proposital a expressão, deveras paradoxal, de “quase absoluta igualdade” apenas para ressaltar que, na realidade, a situação de ambos pode ser bem distinta.
Digamos agora que o primeiro candidato é solteiro e mora com os pais, de forma que o rendimento líquido, após a tributação, será destinado exclusivamente à satisfação de interesses pessoais.
Por outro lado, o segundo candidato possui duas ex-esposas (o que significa, no exemplo, que atualmente convive com a terceira) e, dessas uniões, trouxe ao mundo sete filhos, entre eles um que é portador de grave doença degenerativa, para a qual o sistema de saúde pública não tem condições de oferecer tratamento adequado.
Perceba o leitor que o exemplo é exagerado (mas não impossível) e, por si só, denota a diferença concreta abismal entre os dois contribuintes.
Ora, se utilizássemos apenas o princípio da progressividade, aliado às noções de generalidade e universalidade, teríamos que a tributação de ambos deveria ser a mesma, pois idêntica seria a sua percepção jurídica (com base na renda), ainda que a realidade nos apontasse algo bastante diferente.
Pois bem, somente o princípio da capacidade contributiva poderá equalizar o tratamento tributário no exemplo dado, pois é inegável que ao segundo candidato faltam recursos que permitam a tributação de acordo com o mesmo paradigma aplicável ao candidato solteiro.
Nem adianta ponderar que o infeliz de certo modo buscou ou contribuiu para sua situação, pois o que importa é o respeito ao
Estado de Direito e às garantias fundamentais.
Assim, se contraiu dois matrimônios anteriores e em função deles deve pagar pensão, mediante sentença transitada em julgado (norma individual concreta), e se outro enorme esforço lhe é exigido por conta da lamentável situação de um dos filhos, não pode o
Direito ignorar circunstâncias advindas da realidade e passíveis de solução pelo próprio sistema.
Claro está que o segundo candidato sequer possui capacidade econômica — ou a tem em reduzidíssima escala —, e cabe ao legislador ordinário, como homenagem ao mandamento constitucional da capacidade contributiva, oferecer-lhe tributação compatível.
Para o Imposto sobre a Renda — que infelizmente é das raras figuras que adotam, muito embora de maneira insuficiente, o princípio da capacidade contributiva —, o instrumento mais adequado para positivar as diferenças reconhecidas no mundo real é a utilização de deduções, cuja previsão legal enseja a diminuição da base de cálculo do tributo e, por decorrência, do montante a ser pago.
Destacamos que tal opinião já foi objeto de arguta questão de concurso, cuja proposição correta considerou inconstitucional hipotética lei que retirasse do mecanismo de apuração do Imposto sobre a Renda toda e qualquer dedução, reduzindo-o a uma espécie de igualdade plena e obviamente antijurídica.
Nada mais apropriado.
Nosso entendimento é no mesmo sentido, pois, se fossem retiradas as deduções do Imposto sobre a Renda, a lei, ainda que validamente colocada no sistema, faria tabula rasa entre os contribuintes, em inequívoca afronta ao mandamento constitucional da igualdade, que tem na capacidade contributiva seu mais importante pressuposto.
Contudo, bem sabemos que as deduções previstas em lei são incompatíveis com a realidade, sobretudo no Brasil, onde grande parte dos direitos fundamentais não é provida de modo adequado pelo Estado, o que exige dos particularesem melhores condições financeiras a contratação de serviços adicionais, muitos indispensáveis à própria dignidade da pessoa humana, fundamento máximo da Constituição.
Tal é o caso dos planos de saúde, dos seguros em geral e da opção, quase sempre sem alternativa equivalente, de se colocar os filhos em escola particular.
A despeito do absoluto consenso sobre a necessidade dessas despesas, resta claro que os limites de dedução, como atualmente previstos em lei, não cobrem sequer modesta fração dos efetivos gastos com saúde, educação e dependentes dos contribuintes com razoáveis condições de vida.
Se a premissa de que as despesas com garantias fundamentais não oferecidas pelo Estado (ou oferecidas de modo inadequado ou insuficiente) estiver correta, como pensamos, não há, em termos jurídicos, fundamentação que justifique sua limitação pelo legislador ordinário, ao estabelecer valores máximos de redução da base de cálculo, no mais das vezes irrisórios se comparados com as despesas incorridas.
Tão ou mais grave é a opção legal de não conferir a hipóteses indiscutivelmente essenciais a possibilidade de dedução, como ocorre com os medicamentos.
Nunca nos convenceu o argumento de que as despesas médicas são dedutíveis — integralmente, para sermos justos — e que isso bastaria para satisfazer a intenção do constituinte.
Afinal, quando consultamos um médico buscamos o diagnóstico de eventual doença, mas a cura ou tratamento efetivamente se dá por meio dos medicamentos prescritos, apesar de estes não serem dedutíveis para fins de Imposto sobre a Renda. O mesmo se pode dizer das lentes de grau para óculos e, por derivação, de outras despesas suportadas pelo contribuinte como contrapartida de direitos fundamentais (para evitarmos maiores digressões, citamos, por todas, as despesas com aluguel, que em certos países são dedutíveis; afinal, se a moradia foi alçada ao patamar de direito social por força do art. 6º do Texto Maior, com a redação oferecida pela Emenda Constitucional n. 26/2000, existiria justificativa maior para considerar dedutíveis os gastos de quem não possui casa própria?).
Ademais, se a Constituição não distingue pessoas físicas de jurídicas no caso do Imposto sobre a Renda, causa-nos espécie o fato de as primeiras serem basicamente tributadas conforme as receitas (eu e você, amigo leitor), enquanto as empresas são tributadas pelo lucro (que, em termos simples, significa receitas menos despesas).
Note-se que aquilo que é natural para uns (pessoas jurídicas) é a exceção para os demais (pessoas físicas); quando comentamos a progressividade, buscamos reforçar a ideia de que a renda é apenas um entre vários critérios possíveis de tributação.
Do mesmo modo que não podemos afirmar, com certeza, se uma empresa que tem receita bruta mensal de um milhão de reais está ou não em boa situação econômica (pois tanto pode ser a padaria da esquina ou uma companhia internacional), não tem os como garantir que pessoas físicas com iguais níveis de rendimentos se encontrem em situação equivalente, e sem a correta aplicação do princípio da capacidade contributiva jamais poderemos descobrir.
Devemos destacar, entretanto, que para alguns impostos o princípio da capacidade contributiva é de difícil aplicação, simplesmente porque não sabemos quem será o efetivo contribuinte, sujeito que alguns autores chamam de contribuinte de fato.
Exemplo: ICMS, ISS e IPI. No caso desses impostos, não sabemos, a priori, quem vai consumir o produto ou utilizar o serviço tributado, de forma que a carga tributária será igual para todos, independentemente de serem milionários ou simples assalariados.
Quando alguém compra uma camisa de R$ 100,00, está pagando, por hipótese, R$ 18,00 de ICMS, pois o valor do imposto vem embutido no preço do bem. Assim, a mesma camisa será tributada de forma idêntica, sem qualquer possibilidade de distinção em razão do adquirente. 
Essa realidade limita sobremaneira a eficácia do princípio, que ficará restrita aos chamados tributos pessoais, cujo melhor exemplo, como vimos, é o Imposto de Renda.
No Imposto de Renda verifica-se a capacidade contributiva não pelo valor recebido pelo contribuinte, cuja alíquota é graduada de acordo com a progressividade, mas sim pelo que “sobra” para ele ao final do período.
Afinal, de nada adianta ganhar muito se no fim do mês continuamos endividados, não por prodigalidade ou diletantismo, mas em razão de despesas necessárias à luz do que dispõe a própria Constituição, pois não podemos considerar inócuos e desprovidos de sentido os chamados direitos sociais.
Sempre defendemos (e não pretendemos mudar) a tese de que todos os gastos razoáveis suportados pelos indivíduos para suprir os direitos sociais previstos na Constituição e não supridos de forma satisfatória pelo Estado devem ser deduzidos do imposto sobre a renda.
Importante! A capacidade contributiva exige o reconhecimento de despesas necessárias, que devem ser deduzidas da base de cálculo do tributo. Nesse contexto, se fosse editada uma lei que acabasse com todas as deduções, ela seria inconstitucional, porque impediria a aplicação do princípio.

Mais conteúdos dessa disciplina