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A SEGUNDA INTRODUÇÃO DOS ALGARISMOS ARÁBICOS NA EUROPA Poderíamos esperar que o Papa Silvestre II teria aberto ao milênio para uma era de progresso no Ocidente graças aos numerais/algarismos e técnicas que o mesmo trouxe do mundo Árabe-Islamico. Entretanto, tais expectativas seriam em vão: a ignorância e o conservadorismo do mundo Cristão bloquearam esse caminho. Apesar de que os numerais modernos e as técnicas aritméticas já estivessem disponíveis a partir do final do século dez, eles foram usados, por mais de duzentos anos, apenas em suas formas mais rudimentares. Serviram exclusivamente para simplificar arcaicos métodos de contagem e incrementar regras procedurais que, segundo William de Malmesbury, nem mesmo os aspirantes à abacistas (aqueles que manipulam o ábaco compreendiam). Alguns algebristas até mesmo formaram uma sólida resistência às representações, “novas modas” vindas do Oriente, usando em suas obras números-letra gregas de α = 1 até θ = 9 ou as figuras romanas de I a IX. Qualquer coisa era melhor que recorrer aos “simbolos diabolicos” dos “cúmplices de satã”, que seriam os Árabes. Gebert de Aurillac também sofreu também sofreu nas mãos da retaguarda. Espalharam-se rumores de que ele era um alquimista e um feiticeiro, e que ele teria vendido sua alma a Lúcifer quando partiu para nutrir-se do conhecimento dos Sarracenos (Árabes). As acusações continuaram a circular por séculos até que, finalmente, em 1648, autoridades papais abriram o túmulo de Silvester II para terem certeza de que seu corpo ainda não estava infestado pelo diabo! O alvorecer da era moderna não chegou até que o rei Ricardo I, da Inglaterra, alcançou as muralhas de Jerusalém. De 1095 a 1270, soldados cristãos e príncipes tetaram impor suas religiões e tradições aos Infiéis do Oriente Médio. Todavia, o que realmente conseguiram foi trazer à Europa as riquezas culturais encontradas na Terra Sagrada. Foram essas campanhas - ou ainda, as consequências dessas - que finalmente possibilitaram a ruptura que Gebert de Aurillac, em todo seu conhecimento e energia, falhou em alcançar ao final do século dez. Pelas guerras terem implicado em enormes contatos com o mundo Islamico e um grande número de escribas viajando com os exércitos aprenderam a escrita dos algarismos e métodos aritméticos da escola Indo-Arábica. O ábaco de Gebert lentamente caiu em desuso. Gradualmente, numerais escritos na areia ou na poeira, ao invés de cravados em materiais duráveis, levaram ao desaparecimento das colunas no ábaco. Isso permitiu operações muito mais simples, mais rápidas e mais elegantes - posteriormente chamados algarismos (em referência ao pensador árabe Al-Khuwarizmi, o primeiro a generalizar suas aplicações). Fig. 26. 10 A segunda forma dos numerais europeus (algarismos). Para mais detalhes, leia Hill, 1915. Fig. 26.11 Numerais incluindo o zero em um manuscrito do século treze. Paris, BN. Ms. lat. 7413, parte II. Facsimile na Ecole des Chartes, AF 1113 Então os primeiros “algoristas” nasceram nos portões de Jerusalém. Entretanto, ao contrário dos “abacistas”, os novos especialistas da contagem foram obrigados a aderir ao zero, para tratar de ordens faltantes de magnitude, do contrário, cálculos escritos na areia levariam a representações confusas e operações erradas. Finalmente, então, verdadeiros numerais árabes (incluindo o zero) e a tradição a muito nascida na Índia puderam se disseminar pela Europa. Houveram, certamente, outros contatos com o mundo Islamico do outro lado do Mediterrneo, pela Sicília e, principalmente, pela Espanha e Norte da África. Foi na Espanha que uma grande onda de traduções começou no século doze, transcrevendo para o Latim trabalhos escritos em Árabe e, ainda mais importante, textos em grego e sânscrito já traduzidos para o árabe. Graças aos tradutores como Adelardo de Bath e os centros escolares em Cordoba e Toledo, os recursos disponíveis para adquirir conhecimentos de aritmética, matemática, astronomia, ciências naturais e filosofia aumentaram exponencialmente; e foi através das traduções do árabe que o Ocidente se familiarizou com as obras de Euclides, Arquimedes, Ptolomeu, Aristoteles, Al-Khuawarizmi, Al-Biruni, Ibn Sina e muitos outros. Entre eles, os invasores de Jerusalém e os estudiosos de Toledo, já asseguravam a morte do uso do ábaco, mais cedo ou mais tarde. Fig. 26. 12 O desenvolvimento dos numerais impressos desde o século quinze. A disseminação dos *algarismos" recebeu o novo ímpeto no começo do século 13 por um grande matemático italiano, Leonardo de Pisa (1170 d.C - 1250 d.C), mais conhecido como Fibonacci. ele visitou o Islâmico Norte da África e também viajou para o Oriente Médio. Ele encontrou algebristas árabes aprendeu com seu sistema de numeração, as técnicas operacionais, as regras da álgebra e os fundamentos da geometria. Foi essa educação que fundamentou o tratado que ele escreveu em 1202 e viria a se tornar a "bíblia" dos algoristas, o Liber Abaci (O Livro do Ábaco). Apesar do nome, esse escrito de Fibonacci (que deu grande suporte a disseminação dos algarismos indo-arábicos e o desenvolvimento da álgebra na Europa Ocidental) não tem nenhuma conexão com o Ábaco de Gebert ou os livros guias daquela tradição - que deixava de fora as regras da escrita que usam o zero e a ordem posicional. Presumidamente, Fibonacci usou o ábaco no título de seu livro para evitar ataques da elite abacista que efetivamente monopolizavam o mundo da contagem, atrelando os segredos desse mundo às suas mesas redondas. Em todo caso, a partir de 1202 a maré tornou-se favorável aos algoritas, e podemos marcar, então, esse ano como o começo da democratização dos números na Europa. A resistência aos novos métodos, entretanto, e os conservadores "mestres da contagem" continuaram a defender o arcaico ábaco e suas operações aritméticas rudimentares. Algebristas profissionais, que praticavam a arte do ábaco, constituíam uma poderosa casta, que regozijava a proteção da Igreja. entendiam a manter os segredos para si próprios; e viram nos algarismos, que tornavam a aritmética acessível às mãos, uma ameaça ao seu sustento. Conhecimento, apesar de agora ser entendido como rudimentar, trouxe poder e privilégio aos praticantes dessa arte e as perspectivas de ver esse conhecimento sendo compartilhado assombrava esses homens. Mas havia outra, mais ideológica, razão para a resistência Europeia aos numerais indo-arábicos. Embora o ensino tivesse renascido no Ocidente, a Igreja mantinha um clima de dogmatismo, misticismo, e submissão às sagradas escrituras, através das doutrinas de pecado, inferno e salvação da alma. Ciência e Filosofia encontravam-se sob controle Eclesiástico, eram obrigadas a manterem-se em concordância ao dogma, e apoiar, não contradizer, os ensinamentos teológicos. O controle do conhecimento serviu não para liberar o intelecto, mas para restringir seu alcance por vários séculos, e foi a causa de incontáveis tragédias. Algumas autoridades eclesiásticas então professavam que o Sistema Árabe, justamente por seu caráter fácil e ingênuo, exalava magia diabólica: isso deve prover do próprio Satã! Não obstante disso, ansiosos algoristas seriam empalados, junto a bruxas e hereges. Muitos encontraram, de fato, esse destino nas mãos da Inquisição. Fig. 26. 13. Escrita aritmética usando os numerais árabes. Europeus imprimindo, décimo sexto século. Paris, Palais de lá Découverte. Quando os Árabes adotaram o sistema de numeração Indiano, eles chamaram a letra sifr, significando "vazio", uma tradução direta do Sânscrito shûnya. Sifr foi encontrada em todos os manuscritos árabes lidando com aritmética e matemática, e refere-se, sem ambiguidades, à figura nula na numeração de ordem e valor. Etimologicamente, sifr significa "vazio" ou ainda "O Vazio" (essa letra pode também ser expressa por khalá ou farâgh). SFR também podem ser encontradas em palavras que significam "para esvaziar" (asfara), "para ser esvaziado" (safir) e "ter nada" (safr Al yadyn, literalmente "de mãos vazias", "ele não tem nadaem suas mãos"). Quando o conceito do zero chegou à Europa, o mundo Árabe entrou em assimilação a um quase-homônimo em Latim, zephyrus, que significa "vento do oeste" e, por uma conveniente extensão, um mero sopro de vento, uma brisa leve, ou - quase - por que uma motivação vazia, em seu Liber Abaci, Fibonacci usou o termo zephyrum, e o termo permaneceu sendo usado dessa forma até o século quinze. As nove figuras indianas [figuras Indorum] são as seguintes: 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1. É por isso que com essas nove figuras e o símbolo 0, chamado zephyrum em árabe, todos os números que desejar podem ser escritos. [Fibonacci, reproduzido por B.Boncompagni] Entretanto, em seu Sefer ha mispar (Livro Número), Rabbi Ben Ezra (1092 - 1167) usou o termo sifra. Em várias pronúncias, o termo Árabe sifra (cifra, cyfra, cypha, zypha, tzypha…) continuaram a ser usadas para representar "zero" por alguns matemático no decorrer de vários séculos; encontramos isso em Psephoria kata Indo (Métodos de Cálculo dos Indianos) do monge bizantino Maximus Planudes (1260 - 1340) [A. L. Allard, (1981)], no Institutiones matemáticas de Laurembergus, publicado em 1636, e até mesmo tão tarde quanto 1801 por Karl Frederich Gauss em Disquisitiones arithmecae (Gauss deve ter sido um dos últimos estudiosos a escrever em Latim). Na linguagem popular, palavras derivadas de sifr logo foram associadas não a figuras em geral mas com "nada" em particular: na Paris do século treze, um "camarada sem valor" era chamado de cyfrae d'angorisme ou um cifre em algorisme, traduzindo, um "nada aritmético". Entretanto, foi o termo de Fibonacci, o zephyrum, que deu vazão ao nome moderno do zero, através do termo italiano zefiro (zero é apenas uma contração da palavra zefiro, do dialeto Veneziano). A primeira ocorrência conhecida da forma moderna da palavra apareceu no De arithmerica opusculum de Philippi Calandri e que, apesar de seu nome em Latim, foi escrito em italiano e publicado em Florença em 1491. Absolutamente não há dúvidas de que o zero deve a sua disseminação para o Francês (zéro) e o Espanhol (cero) (e, posteriormente, ao inglês e outras línguas) ao enorme prestígio que a academia Italiana adquiriu no século dezesseis. Enquanto isso, o árabe sifr se desenvolveu nas palavras francesas chiffre, no inglês em chipher, no alemão Ziffer e no espanhol cifra. Para começar, os termos latinos figuris e numero eram usados para se referir ao conjunto de números-símbolos; mas em meados de 1486 na França, encontramos chiffre sendo usado não para se referir a zero mas para significar figura ou numeral: e um processo semelhante pôde ser observado nos séculos dezesseis e dezessete em textos matemáticos escritos em Latim como os de Willichius (1540), Contras Rauhfuss Dasypodius de Strasbourg (Institutionum Mathematicarum, 1593) e a Crônica de Theophanes (1655). Fig. 26. 14. Disputa entre Abacistas (à esquerda) Algoristas (à direita). Porque o nome original do zero veio a ser usado por todo conjunto dos numerais indo-arábicos? A resposta encontra-se na atitude das autoridades Católicas em face aos sistemas de contagem emprestados do mundo Árabe. A Igreja efetivamente vetou, pois esses sistemas favoreceram a democratização dos cálculos, o que desgastaria o controle da igreja sobre a educação, diminuindo seu poder e influência; a corporação dos contadores levantou suas pontes movediças contra a invasão estrangeiro; em todo caso, a Igreja preferia os usuários do ábaco (abacistas) - que eram, majoritariamente, também clérigos - para manter seu monopólio sobre a aritmética. Os numerais Arábicos e cálculos escritos foram, por muito tempo, atividades secretas. Algoristas desenvolviam suas atividades em segredo, como se usassem de código secreto. Em simultâneo, o cálculo escrito (na areia ou caneta e tinta) se espalhou por entre o povo, que era aguçadamente conhecedor do papel do zero, antes chamado de cifra, ou chifre, ou chiffre, ou tziphra, etc. Por uma comum forma de desenvolvimento linguístico, conhecida como sinédoque (uma metonímia), o nome da parte (nesse caso o zero) é usada ao invés do inteiro, como uma forma de abreviação, então palavras derivadas de sifr vieram a significar o conjunto inteiro dos numerais ou nenhum deles. Simultaneamente, também veio a significar "um segredo", ou um código secreto - uma cifra. Então a história das palavras para zero é, também, a história de nossa cultura: toda vez que usamos a palavra "cifra", estamos revivendo uma memória linguística de um tempo quando o zero era um perigoso segredo que poderia nos levar à fogueira. Agora é mais fácil compreender o porquê no meio do século dezesseis Montaigne não conseguia calcular. Pois, mesmo com a introdução da aritmética, multiplicação e divisão ficaram por muito tempo fora do alcance de meros mortais dadas as técnicas operacionais complicadas que eram usadas. Não foi até o século dezoito que técnicas mais simples trouxeram um gosto das operações aritméticas a alguns. A disputa entre os abacistas (os defensores dos numerais Romanos e cálculos em tábuas) e os algoristas, que defendiam os métodos originários da Índia, durou por vários séculos. E mesmo depois da vitória final, o uso do ábaco estava tão arraigado na vida das pessoas, que todas as contas eram conferidas no ábaco, só para terem certeza. Até recentemente, a Tesouraria Britânica ainda usava o ábaco para o cálculo de impostos. E pela tábua de contas ser chamada de exchequer (relacionada à palavra chess (xadrez) ou chess-board (tabuleiro de xadrez) em várias línguas Europeias), o Ministro de Finanças do Reino Unido ainda é chamado de Chanceler do Exchequer. Mesmo muito depois de da escrita aritmética com numerais árabes ter se tornado uma sólida ferramenta para cientistas e estudiosos, homens de negócios Europeus, financiadores, banqueiros e trabalhadores civis - que de mostraram ser mais conservadores que os estudiosos - encontraram dificuldade em abandonar totalmente os métodos arcaicos do ábaco. Apenas a Revolução Francesa teve força para acabar com a confusão e implementar claramente o que muitos conseguiam ver: a escrita aritmética era como uma rua pavimentada para aqueles que por muito andaram em um lamaçal. O uso do ábaco foi banido das escolas e escritórios de governo a partir dali. Cálculo e ciência puderam dali pra frente se desenvolver sem entraves. Seu teimoso e implacável velho inimigo havia finalmente sido colocado para dormir. Fig. 26.15. Bloco de madeira esculpido por Gregorius Reisch, Margarita Philosophica (Friburgo, 1503). Lady Arithmetic (ao centro) dando seu julgamento ao sorrir para o matemático (à nossa esquerda, à direita dela) que trabalha com os algarismos arábicos e o zero. A disputa entre abacistas e algoristas acabou, e este segundo venceu.