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José Luís Fiori 
Sistema mundial: império e pauperização para 
retomar o pensamento crítico latino-americano 
"Se por coletividade entende-se tão-somente o conjunto dos grandes paí­
ses industrializados, é verdade que o fruto do progresso técnico distri­
bui-se gradativamente entre todos os grupos e classes sociais. Todavia, se 
o conceito de coletividade também é estendido à periferia da economia 
mundial, essa generalização passa a carregar em si um grave erro". 
Introdução 
Raul Prebisch, 1949: O desenvolvimento econômico 
da América Latina e alguns de seus problemas principais 
Dois temas ocupam lugar de destaque na agenda das discussões socioeco­
nômicas neste início do século XXI: o redesenho do mapa geopolítico e a 
polarização crescente da riqueza e do poder mundiais, e a pauperização de 
grandes massas populacionais, sobretudo na periferia do sistema capitalis­
ta. Há consenso que são incógnitas de uma mesma equação, decisiva para 
compreender o lugar do desenvolvimento econômico e das lutas sociais na 
nova ordem mundial, depois da grande transformação dos últimos 25 anos 
do século XX. Não são problemas novos, vêm sendo discutidos há muito 
tempo, nos campos teórico e político. Seu retorno surpreende apenas por­
que foram temas soterrados, nas últimas décadas, pela supremacia acadê­
mica e ideológica das idéias neoliberais. 
Não cabe neste artigo nova discussão sobre as teses e as políticas domi­
nantes durante o período.' Basta relembrar o núcleo duro e utópico dessa 
visão do mundo, responsável pela popularidade da ideologia da globaliza­
ção. Nesse ponto, o importante não é novo, são idéias que vêm do país do li­
beralismo clássico, econômico e político, em particular sua crença num ca­
pitalismo sem fronteiras, gerido por Estados nacionais reduzidos a suas 
funções mais elementares e a certeza de que a desregulação dos mercados e 
1 Esta discussão aparece em destaque no ensaio de Carlos Medeiros, Instituições, Estados e 
mercados no desenvolvimento econômico, mas também está presente nos demais ensaios 
econômicos deste livro. 
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Milene_GB
Typewritten text
FIORI, José Luís & MEDEIROS, Carlos (orgs.), Polarização Mundial e Crescimento, Petrópolis, Vozes, 2001, pp. 39-75.
Germana Gabriela
Realce
José Luís Fiori 
a liberalização das economias nacionais promoveriam, no médio prazo, a 
convergência da riqueza das nações e a redução das desigualdades entre as 
classes sociais. Não é difícil perceber, portanto, por que os dois temas que 
abrem a discussão do novo século não têm nem tiveram lugar dentro dessa 
visão do mundo capitalista. A perda de soberania dos Estados nacionais é 
vista como algo_positivo e, se ainda existem desigualdades e pauperização, 
devem ser consideradas como fase dolorosa, mas transitória, no caminho 
da "terra prometida". 
Na América Latina, essas idéias também acabaram dominando o pensa­
mento político e acadêmico durante as duas últimas décadas. Transforma­
ram-se no fundamento teórico e ideológico de um novo projeto econômico 
de desenvolvimento, "associado e dependente" das grandes potências, em 
pamcular do poder e da economia norte-americanos. Por isso, também na 
América Latina, durante esse período, foram descartadas, como anacrônicas, 
todas as teses e preocupações contidas na agenda do debate latino-america­
no sobre o desenvolvimento: a respeito das restrições externas ao cresci­
mento e sobre as origens das desigualdades sociais, mas também sobre a ne­
cessidade do intervencionismo estatal e do projeto de construção de um sis­
tema econômico nacional e autônomo. 
A avassaladora hegemonia das idéias liberais e a fragilização temporá­
ria dos estruturalistas, marxistas e nacionalistas foram responsáveis pelo aca­
nhamento do debate intelectual, que ficou reduzido ao acompanhamento de 
curto prazo das políticas de privatização, desregulação e estabilização ma­
croeconômica. Esse estreitamento das idéias acompanhou a redução da mar­
gem de manobra dos Estados que aderiram ao programa de liberalização glo­
bal e ficaram, ao mesmo tempo, prisioneiros da camisa de força criada pelas 
suas próprias políticas liberais e pela fragilidade financeira de seu novo mo­
delo econômico, cujas restrições externas não lhes deixam margem para 
crescimento rápido e sustentado, nem recursos fiscais para a expansão da 
mfra-estrutura e para a sustentação de políticas sociais universalizantes, ca­
pazes de conter o processo de pauperização de suas populações. 
Depois de duas décadas desta experiência liberal-conservadora, um 
fantasma retornou e ronda hoje todos os governos latino-americanos. Aos 
poucos, até os mais convictos vão redescobrindo que, por mais que sedes­
regule e privatize a economia e a política, e por mais que se comemore o fim 
das fr~nteiras, há algumas coisas que as grandes potências não pretendem 
globalizar, como, por exemplo, os balanços de pagamentos, as dívidas pú­
blicas e a pobreza. Estas são as dificuldades que aparecem de forma cada vez 
mais destacada nos balanços estatísticos da última década nas análises de 
risco_das agências especializadas e nos documentos oficiai/dos organismos 
mulnlatera1s, como o BIRD, a ONU, o BID e até mesmo o FMI. 
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SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
Apesar disso, ainda existe enorme resistência dos intelectuais lati­
no-americanos a enfrentar uma rediscussão, que consideravam superada, 
sobre o problema do desenvolvimento desigual e pauperizante do capitalis­
mo. Uma discussão teórica e histórica decisiva para a formulação de um 
projeto econômico e de uma estratégia social capazes de alterarem uma 
rota que aponta, hoje, na direção da degradação e entropia das sociedades 
latino-americanas. 
A tradição estruturalista 
O retorno de problemas amplamente debatidos desde o fim da 2ª Guer­
ra Mundial e a desautorização progressiva das idéias que formaram o ma­
instream econômico e político, nestas duas últimas décadas, remete-nos de 
volta a uma outra tradição intelectual, a do pensamento crítico latino-am­
ericano e, dentro desse pensamento, a suas duas raízes mais importantes: o 
estruturalismo e um certo marxismo que se distanciou, na década de 1950, 
das teses e diretrizes oficiais dos partidos comunistas. 
Já faz mais de meio século que Raul Prebisch escreveu o ensaio que 
Albert Hirshman chamou de "manifesto latino-americano". Entre 1949 e 
1951, Prebisch publicou três textos fundamentais', onde desenhou a agen­
da de pesquisa e reflexão teórica da Cepa!, para as duas décadas seguintes. 
Esse corpo de idéias transformou-se na matriz de uma escola de pensamen­
to e no fundamento teórico de um projeto e de uma estratégia político-eco­
nômica para a América Latina que vigorou com sucesso, do ponto de vista 
do crescimento econômico, até o início dos anos 80, pelo menos nos casos 
do Brasil e do México. Secundariamente, suas idéias somaram-se a várias 
outras correntes e projetos de industrialização, que formaram, em conjun­
to, o caldo de cultura da ideologia desenvolvimentista da década de 50. 
No campo estritamente teórico e acadêmico, as idéias germinais de Pre­
bisch e Furtado deram origem ao que se chamou, desde aquela época, de 
"escola estruturalista", ou também, de forma menos precisa, de "pensa­
mento Cepalino". Seu ponto de partida foi uma crítica à teoria do comércio 
internacional da economia política clássica ou, mais precisamente, da leitu­
ra neoclássica da teoria do comércio internacional de Ricardo. Não há dú-
2 Os três ensaios tratam o mesmo tema de forma complementar: "O desenvolvimento eco­
nômico da AL e alguns de seus problemas principais", "Estudos econômicos da AL, 1949" e 
"Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico" e estão publicados na obra or­
ganizada por R. Bielschowsky, Cinqüenta anos de pensamento na CEPAL, Editora Record, 
Rio de Janeiro, 2000. 
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Realce
Germana Gabriela
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Germana Gabriela
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Comentário do texto
medida de desordem de um sistema. Desordem ou imprevisibilidade
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Comentário do texto
convencional
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Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
Germana Gabriela
Comentário do texto
Já no início do século XIX, David Ricardo alegaria que as relações comerciais entre nações ocorreriam segundo o princípio das vantagens comparativas, e não absolutas: os países exportariam (importariam) bens produzidos onde trabalho fosse relativamente mais (menos) eficiente, de modo que o comércio seria favorável mesmo para um país que fosse mais (menos) eficiente em todas as linhas de produção. A crítica dos autores suecos ao modelo clássico de Ricardo era a de que não bastava explicar a troca internacional pela lei dos custos comparativos, era necessário explicar por que os custos comparativos existiam. Para isso, seria necessário integrar ao fator trabalho os fatores terra e capital combinados em cada linha de produção: dadas as diferenças fatoriais entre os países, o comércio ocorreria até que o preço marginal dos fatores de produção fosse equalizado.
José Luís Fiori 
vida, entretanto, que a contribuição mais original da teoria estruturalista 
foi sua visão sistêmica do desenvolvimento desigual do capitalismo, em es­
cala mundial- sistema econômico global e hierarquizado, cujo impulso di­
nâmico, desde a revolução industrial, veio do seu "centro cíclico princi­
pal", que esteve na Inglaterra, no século XIX, e passou para os Estados Uni­
dos, durante o século XX. Segundo os estruturalistas, estes "centros cícli­
cos" é que impôem os padrões de comércio e desenvolvimento desiguais e 
hierarquizados que dão origem à "periferia" do sistema. Com isso, Prebisch 
e a Cepa! resgataram o conceito de periferia, do senso comum, dando-lhe 
um significado muito preciso, associado à dinâmica cíclica da economia 
mundial e à "deterioração secular dos termos de intercâmbio", desfavorá­
veis, no longo prazo, para as economias periféricas. Para eles, o próprio ca­
pitalismo latino-americano ficava ininteligível, caso não se tomasse em 
conta a especificidade da sua inserção econômica internacional, a partir do 
século XIX, um tipo de inserção liberal, na ordem econômica mundial, li­
derada pela Inglaterra e submetida ao seu sistema monetário internacional, 
o padrão-ouro. Para os primeiros estruturalistas, este é o ponto de partida 
da explicação da forma e do ritmo do crescimento econômico, da difusão 
desigual do progresso tecnológico, da "dualidade" e das condições de de­
semprego estrutural e concentração da renda e da riqueza na maioria das 
economias latino-americanas. Esta análise das condições em que operavam 
os mercados e o progresso tecnológico nas economias periféricas foi decisi­
va para que os estruturalistas concluíssem que cabia ao Estado e às políticas 
públicas papel central nas industrializações periféricas, tese que os aproxi­
mava das idéias mercantilistas e das políticas preconizadas pelo nacionalis­
mo econômico alemão. 
Do ponto de vista da sua sociogênese, a teoria estruturalista foi, num pri­
meiro momento, uma tomada de consciência e um diagnóstico da crise dos 
anos 30 e das mudanças econômicas pelas quais passava a economia conti­
nental, como conseqüência da longa crise mundial inaugurada pela 1 ª Guer­
ra. Nesse sentido, o estruturalismo foi a forma de pensar de uma geração de 
intelectuais que refletiu na América Latina sobre a mesma mudança global 
que inspirou as obras de Keynes e Polanyi, entre outros. Mas, progressiva­
mente, transformou-se numa teoria mais ambiciosa, sobre as causas e a forma 
dinâmica de instalação e expansão do subdesenvolvimento. Foi a primeira 
reflexão sistemática e original dos latino-americanos sobre sua própria traje­
tória político-econômica e sobre a sua especificidade com relação ao resto do 
mundo capitalista. Um programa original de pesquisa, que depois se expan­
diu para o campo da sociologia, da política e da história. 
O método histórico-comparativo e a teoria estruturalista têm parentesco 
indiscutível - apesar de nem sempre reconhecido - com o pensamento eco-
47 
.., 
SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
nômico presmithiano, dos séculos XVII e XVIII, e algumas teses da escola 
histórica e do nacionalismo econômico alemão do século XIX. Existe, em 
particular em Petty, Cantillon e Steuart, convergência notável, do ponto de 
vista de suas concepções sobre a produção, o emprego, o excedente, a impor­
tância da agricultura e a natureza desigual do comércio internacional. Além 
disso, há enorme convergência do ponto de vista de suas concepções meto­
dológicas. Nos dois casos, a preocupação com a coerência lógica e com pro­
posições formalizadas é substituída pela descrição e interpretação dos fenô­
menos econômicos reais, na sua complexidade social e histórica. Por isso, 
ambos investem no conhecimento histórico-comparativo. Além disso, o es­
truturalismo compartilhou com o nacionalismo alemão - em particular com 
Liste Schmoeler- a visão do papel do Estado, da importância da industriali­
zação e da necessidade da construção de um sistema econômico integrado e 
capaz de auto-reproduzir-se, de forma relativamente endógena, graças a uma 
integração virtuosa entre a agricultura e a indústria, ao incentivo estatal ao 
desenvolvimento tecnológico e à criação de um sistema econômico nacional 
que priorize o crescimento das forças produtivas. 
O encontro do estruturalismo com o marxismo 
A publicação recente dos principais trabalhos escritos na Cepa!, nestes 
5 O anos, organizados por Ricardo Bielchowski3
, permite identificar com 
precisão as várias etapas do desenvolvimento da escola estruturalista, desde 
os trabalhos pioneiros de R. Prebisch e C. Furtado. Permite também perce­
ber seu vigor intelectual durante as primeiras décadas, e a perda de fôlego e 
originalidade a partir dos anos 80, quando, muitas vezes, chega a abando­
nar a perspectiva estrutural e de longo prazo na análise dos problemas eco­
nômicos e sociais latino-americanos, deixando em segundo plano o que 
fora seu ponto de partida: a antiga visão sistêmica e global sobre as condi­
ções periféricas e as "restrições externas" ao ,crescimento, diagnosticadas 
na primeira hora do pensamento Cepalino. E o momento em que todo o 
pensamento econômico latino-americano submete-se à discussão de curto 
prazo dos problemas relacionados com a inflação e a desestabilização ma­
croeconômica das principais economias do continente. Foi a hora do retor­
no e da hegemonia do pensamento neoclássico e de sua defesa das políticas 
liberais e da reforma das instituições criadas durante o período desenvolvi­
mentista. Mesmo o pensamento político e sociológico, de inspiração estru-
3 R. Bielchowski, (org.) (2000), Cinqüenta anos de pensamento na CEPAL, Record/Cofe­
con/Cepal, Rio de Janeiro. 
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Sublinhado
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Sublinhado
José Luís Fiori 
ruralista, restringiu seu objeto de estudo, nesse período, à discussão exclusi­
va sobre a origem e natureza dos regimes autoritários latino-americanos 
que viviam os primeiros sinais de sua crise terminal. ' 
Antes disso, entretanto, nas décadas de 60 e 70, o pensamento estrutu­
ralista se diversificou, do ponto de vista de sua trajetória intelectual e insti­
tucional. A própria situação política chilena, na década de 60, atraiu inte­
lectuais de todo o continente, que se refugiavam numa das suas últimas de­
mocracias. Na década seguinte, uma vez mais, a situação interna chilena es­
timulou a imigração dos intelectuais críticos na direção de outros países e 
centros acadêmicos da América Latina. Nesses dois momentos dentro e 
fora do Chile, o estruturalismo estabeleceu diálogo construtivo c;m outras 
corre_ntes de pensamento social e econômico. Nos anos 60, o estruturalis­
mo viveu seu momento de maior proximidade e diálogo com algumas ver­
tentes movadoras do pensamento marxista latino-americano. Como se 
sabe, antes disso, com a ressalva de algumas contribuiçôes individuais e ex­
cepcionais,caso de Mariategui, Haya de la Torre e Caio Prado Júnior, 0 
pensamento marxista ficou prisioneiro das posiçôes oficiais dos partidos 
c?mumstas latmo-a_m~r_icanos. Sua pobreza teórica, entretanto, não impe­
dm que as teses parudanas sobre a revolução democrático-burguesa e sobre 
a natureza reacionária da aliança entre o imperialismo e o latifúndio se 
transformassem numa referência básica e simplificada, em torno à qual gi­
rou quase todo o debate teórico e ideológico da era desenvolvimentista. A 
tese _central era que a "revolução democrática" deveria passar pela indus­
tnaliza_ção, e que esta só avançaria apoiada na aliança entre a burguesia e 0 
operanado nacional, contra os interesses do latifúndio e do imperialismo. 
Contra essas teses desenvolveu-se, nos anos 60 um novo marxismo 
acadêmico, qu_e ~u~ha sob suspeita a importação ac~ítica das categorias e 
dos modelos histoncos europeus. O sociólogo Roberto Schwarz resumiria 
muitos anos mais tarde, o que foi o ponto de partida dessa releitura d~ 
Marx: "a convicção de que faria parte de uma inspiração marxista conse­
qüente um certo deslocamento da própria problemática clássica do marxis­
mo,_o~ri~ando a pe~sar a experiência histórica com a própria cabeça, sem 
suieiçao as construçoes consagradas que nos serviam de modelo incluídas 
aí a_s de Marx". A posição aproximava-se de Prebisch, de Furtad~ e dos de­
mais estruturalistas no reconhecimento de que as "categorias históricas 
plasmadas_ pela experiência intra-européia passam a funcionar num espaço 
com trave1amento sociológko diferente, diverso mas não alheio, em que 
aquel~s categonas nem se aplicam com propriedade, nem podem deixar de 
se aplicar, ou melhor, giram em falso mas são a referência obrigatória, ou, 
am?a, t~ndem a um certo formalismo. Um espaço diverso, porque a coloni­
zaçao nao cnava sociedades semelhantes à metrópole, nem a ulterior divi-
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SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
são internacional do trabalho igualava as naçôes. Mas um espaço de mesma 
ordem, porque também ele é comandado pela dinâmica abrangente doca­
pital, cujos desdobramentos lhe dão a regra e definem a pauta" (Schwarz, 
1999: 95). O encontro dessa releitura marxista com o estruturalismo teve 
papel decisivo na formulação do conceito de "dependência" e na defesa da 
viabilidade - sobretudo no caso brasileiro - de um "desenvolvimento de­
pendente e associado" às economias centrais ou industrializadas. 
Numa outra clave e espaço institucional, ocorreu-durante os anos 70-
o encontro do estruturalismo com o pensamento econômico da Escola de 
Campinas e sua releitura das idéias de Marx, Hilferding, Schumpeter, Keynes 
e Kalecki. Esse encontro deu origem à teoria do capitalismo tardio e dos ci­
clos endógenos da nova economia industrial brasileira. "Essa nova formu­
lação teórica levou também a uma nova agenda crítica do desenvolvimento 
brasileiro que sublinhava sobretudo os seus problemas decorrentes da 
não-centralização do capital; da inexistência de um sistema de financia­
mento endógeno e industrializante; da não-calibragem estratégica da polí­
tica industrial; da ausência de uma política comercial externa mais agressi­
va; da altíssima concentração da renda e da propriedade territorial agrária e 
urbana e dos pés de barro em que se sustentava o seu projeto de potência 
emergente" (Fiori, 1999, p. 35). 
No final da década de 80 era visível que, junto com a nova hegemonia 
liberal, o pensamento crítico perdera sua vitalidade, e muitos estruturalis­
tas e marxistas aderiam, de uma forma ou outra, ao projeto liberal-conser­
vador que durante a década de 90 promoveu mais uma rodada de "moder­
nização conservadora" das principais economias latino-americanas. 
O ângulo cego da teoria 
A derrota do pensamento crítico latino-americano, sobretudo na déca­
da de 90, não foi, evidentemente, um episódio acadêmico, nem, muito me­
nos, prova da superioridade teórica das teses neoclássicas ou neoliberais. 
Há que reconhecer a dificuldade dos estruturalistas e de muitos marxistas 
para compreender e se posicionar, teórica e politicamente, diante das trans­
formaçôes mundiais que acabaram atropelando e destruindo a estratégia e 
as instituiçôes desenvolvimentistas, construídas depois da 2ª Guerra Mun­
dial. Sua derrota frente à avalanche neoliberal foi sobretudo política, mas 
foi também resultado de algumas fragilidades e inconsistências teóricas, 
que já vinham de muito antes. 
Já dissemos que a grande novidade e virtude da escola inaugurada por 
Raul Prebish e Celso Furtado foi a visão sistêmica do desenvolvimento desi­
gual do capitalismo à escala global, a crítica da teoria do comércio interna-
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Comentário do texto
Que tem origem no interior.
 
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cio?al da economia neoclássica e, junto com isso, a visão hierárquica das re­
laçoes comercrars entre o centro e a periferia do sistema econômico mundi­
al. Celso Furtado foi quem melhor desenvolveu a versão histórica dess 
tese, mostr~ndo como se constituiu o sistema, a partir da revolução indus~ 
ti:ral europeia. Para Furtado, "o advento do núcleo industrial, na Europa do 
seculo XVIII,_ provocou uma rup_tura na economia mundial da época, pas­
sando a cond!c10nar o de,~envolvrmento econômico subseqüente em quase 
todas as reg10es da terra (Furtado 1961 p 178) Com · • d. . , . , , . . o Jª 1ssemos em 
outro ensa10 sobre o propno _F~rtado, "ele estiliza esta história, em vários 
momentos de sua obra, 1d~nt1f1sando a existência - como "tipos ideais"_ 
d~ duas etapas fundamentais do modelo clássico" de desenvolvimento his­
tonco de lo~go prazo do capitalismo. A primeira, mais prolongada, deu-se 
quando a mao-de-obra era abundante e o progresso tecnológico lento in­
c:emental ~ quas_e vegetativo. A segunda desenvolve-se a partir da rev~lu­
çao tecnologrco-mdustnal que colocou o norte da Europa, definitivamen­
te, no epicentro da econo_mi~ capitalista mundial" (Fiori, 2000, p. 36). 
~ss_e mesmo recorte hrstonco Celso Furtado utiliza para analisar a in­
serçao mternac10nal e a evolução estrutural da economia brasileira sobre­
tudo_ ~~ra~te_ a sua "segunda etapa", depois da "revolução industri;l". Sua 
t~s,:' Ja e dassrca_ e bem conhecida, mas vale relembrá-la, porque sintetiza a 
vrsao estrut~rahstasobre o movimento histórico de globalização do capita­
hs_mo sob a egrde mglesa. Nesse processo, "a iniciativa esteve com as econo­
~ras que se mdustnahzaram e geravam o progresso técnico; a acumulação 
raprda qu? nelas trnha lugar constituía o motor das transformações que iam 
se pr_oduzmdo em todas as partes. As regiões que neste quadro de transfor­
maçoes tmham suas est:uturas econômicas e sociais moldadas do exterior, 
m':drante a especrahza_çao do sistema produtivo e a introdução de novos pa­
droes de consumo, vmam a constituir a periferia do sistema". Implan­
tam-se nesse processo, simultaneamente, as condições originárias do sub­
desenvolvimento latmo-amencano, que ele define como uma "situação es­
trutural que reprod_uz permanentemente a assimetria entre O padrão de 
co~sumo cosmopolita de uns poucos (os modernos e modernizantes) que 
estao de fat_o mtegrados no mundo desenvolvido, e as debilidades estrutu­
rais do c~prtahsmo periférico" (Furtado, 1984, p. 109 e 110). 
A i::ohtrca, o poder e asdasses sociais ocupam lugar secundário na leitu­
ra hrstonca dos estruturah~tas, d_e conotação fortemente schumpeteriana, 
na medida em_ que a mo_vaçao e_drfosão tecnológica ocupam o lugar central 
n_a penodrzaçao da h'.swna caprtahsta e na determinação, em última instân­
cr~, do proces~o hrstonco de hrerarqmzação ou dualização do sistema eco­
nomrco _mundial. Como conseqüência, tem pouco espaço nas análises es­
truturahstas a competição entre os Estados e as determinações geopolíticas 
que atuaram favorecendo a supremacia da Inglaterra, e depois dos Estados 
Umdos, dentro e fora da Europa. 
46 
SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO... 
Mais tarde, foi Furtado, outra vez, quem melhor desenvolveu o concei­
to de construção nacional, dentro do pensamento estruturalista. Para ele, 
"a formação de um sistema econômico nacional teria três condições indis­
pensáveis: a primeira seria a criação e o fortalecimento de 'centros endóge­
nos de decisão' capazes de dar-nos a faculdade de ordenar o processo cu­
mulativo em função de prioridades estabelecidas pelos próprios brasilei­
ros; a segunda seria que este processo fosse acompanhado por uma crescen­
te homogeneização da sociedade, capaz de abrir espaço para a realização do 
potencial da cultura brasileira; e a terceira, finalmente, que a própria idéia 
da 'formação' se fizesse 'vontade coletiva' e projeto político capaz de acu­
mular a força indispensável para transformar a agenda das prioridades na­
cionais em dimensão política do cálculo econômico" (Fiori, 2000, p. 34). 
O estruturalismo, em geral, não enfrentou o problema do "interesse de 
classe" do empresariado ou da burguesia latino-americana. Em princípio, a 
maior parte dos estruturalistas parece haver suposto em suas análises e pro­
postas político-econômicas um comportamento empresarial clássico ou 
europeu, e por isso também acreditou numa vontade coletiva nacional, ca­
paz de se impor, por cima das divergências entre as classes sociais e das ali­
anças supranacionais do empresariado latino-americano. Cabe repetir aqui 
que o problema teórico de fundo foi que, para a maior parte dos estrutura­
listas, "o Estado foi sempre uma abstração, que ora aparecia como constru­
ção ideológica idealizada, ora era transformado pela teoria numa dedução 
lógica ou num mero ente epistemológico requerido pela estratégia de in­
dustrialização, sem que se tomasse em conta a natureza das coalizôes de po­
der em que se sustentava. E não há dúvida de que esta cegueira teórica aca­
bou cumprindo papel decisivo no encaminhamento de estratégias desen­
volvimentistas de natureza extremamente conservadora, autoritária e an­
ti-social" (Fiori, 1999, p. 26). 
Não é casual que o próprio conceito de classe social freqüente pouco os 
textos estruturalistas, substituído, sistematicamente, pelo conceito de 
"agentes" ou "atores" sociais e políticos. Assim se eliminou, sem resolver, o 
problema crucial da incompatibilidade entre os interesses de classe, e da 
não-convergência, na América Latina, entre os "interesses burgueses" e os 
"interesses nacionais". Os estudos clássicos da Cepa! sobre a distribuição 
de renda latino-americana partiram, quase sempre, do suposto de que hou­
vesse tendência natural do desenvolvimento econômico a produzir efeitos 
convergentes e homogeneizados, do ponto de vista social.4 Na análise do 
4 Problema diagnosticado e criticado no ensaio de M.C. Tavares eJ. Serra, "Além da Estag­
nação", publicado em 1970 e incluído na coletânea de M.C. Tavares, Da substituição de 
importações ao capitalismo financeiro, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1972. 
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comércio internacional, a Cepa! criticou corretamente a economia política 
clássica e fincou pé na diferença entre a periferia e o centro europeu; mas na 
discussão do problema da distribuição desigual da renda e da pobreza, não 
incorporou a visão clássica do conflito essencial entre o capital e o trabalho. 
Assumiu como um dado que a "convergência" da renda dos indivíduos, na 
Europa e nos Estados Unidos, depois da 2ª Guerra Mundial, era a regra e 
não uma enorme exceção na história de um capitalismo cuja tendência, sem 
intervenção do Estado, foi sempre a da "pauperização relativa". 
Um dos grandes paradoxos do pensamento Cepalino encontra-se na 
forma em que trata da questão nacional, ou da construção de um "sistema 
econômico nacional". O projeto econômico dos estruturalistas para a 
América Latina à primeira vista parece irmão siamês do projeto de Friede­
rich List para a Alemanha do século XIX. Mas a diferença fundamental está 
na forma em que cada um dos dois incorpora as idéias de "interesse nacio­
nal" e de "poder nacional". List era um nacionalista e tinha um objetivo cla­
ro, que organizava seu projeto econômico: a construção e o fortalecimento 
do Estado alemão. Os estruturalistas latino-americanos não tinham, ou não 
podiam ter, esse objetivo. Suas idéias e propostas supõem, constantemente, 
o conceito de "interesse nacional", mas eles não tomam em conta a compe­
tição e a dominação política entre os Estados, e por isso suas propostas ja­
mais mencionam a idéia listiana de fortalecimento do poder nacional. Tam­
bém neste caso, Celso Furtado é exceção, mas suas idéias sobre uma "for­
mação econômica nacional", que só estaria concluída com a criação "den­
tro do território brasileiro, de um sistema econômico articulado e capacita­
do para autodirigir-se ( ... ) (através) de centros de decisão consistentes e au­
tônomos" (Furtado, 1975, p. 79), são posteriores ao seu tempo na Cepa!. O 
mesmo se deve dizer a propósito de sua convicção, já nos anos 90, de "que o 
ponto de partida de qualquer novo projeto alternativo de nação terá que ser 
agora, inevitavelmente, o aumento da participação e do poder do povo nos 
centros de decisão do país". 
As teorias da dependência procuraram corrigir alguns desses pontos, 
introduzindo a dimensão da política e dos interesses de classes nas suas aná­
lises nacionais e internacionais. Mas sua leitura das relações hierárquicas 
mundiais é binária e linear, como se existisse sempre um Estado que manda 
e outro que resiste ou se associa e obedece. Os dependentistas nunca estu­
daram nem se interessaram pela geopolítica internacional, e por isso nunca 
compreenderam a existência nem o funcionamento do "núcleo central" do 
sistema, composto por um número limitado de Estados que competem en­
tre si e condicionam a dinâmica global a partir de sua própria competição. A 
longa guerra de 30 anos da primeira metade do século XX e a própria Guer­
ra Fria ocupam lugar absolutamente secundário na sua análise da "era de-
4R 
SISTEMA MUNDIAL, IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
senvolvimentista", uma história construída, segundo eles, por capitais, em­
presários e coalizões de poder, como se a geopolítica mundial se reduzisse a 
alguns tipos básicos de relacionamento competitivo ou associado, entre um 
mesmo centro e vários Estados e economias periféricas - uma arquitetura 
de poder estática, que iria mudando sua forma, mantendo a mesma estrutu­
ra básica, através da história. 
A maior parte dos dependentistas acabou jogando fora a água e a crian­
ça, esquecendo-se do que havia de essencial no conceito prebishiano de pe­
riferia. Além disso, como já foi dito, para que as análises da dependência ti­
vessem avançado teoricamente, "seria indispensável fazer a crítica da eco­
nomia política da Cepa! pelas raízes, e não a partir de seus resultados, como 
se procedeu: basicamente, do critério Cepalino de periodização históri­
ca.Teria sido preciso, enfim, que não se localizasse o equívoco do pensa­
mento da Cepa! na abstração dos condicionantes sociais e políticos, inter­
nos e externos, do processo econômico, mas que se pensasse, até as últimas 
conseqüências, a história latino-americana como formação e desenvolvi­
mento de um certo capitalismo. E não se podendo arrancar de uma periodi­
zação correta, nem de um esquema que apanhasse concretamente o movi­
mento econômico da sociedade, a perspectiva integradora perdeu-se, em 
boa parte, dando a impressão de que se passou, apenas, à introdução das 
classes sociais no corpo teórico Cepalino" (Cardoso de Mello, 1982, p. 26). 
Mesmo assim, a classe estudada e introduzida no esquema teórico foi o em­
presariado, olhado apenas do ponto de vista do seu interesse material "cos­
mopolita" e internacionalizante, idêntico ao de todas as burguesias e aristo­
cracias da periferia européia. A diferença é que, naqueles casos, apesardes­
se interesse e projeto de classe, as burguesias foram coagidas, muitas vezes, 
pelas circunstâncias geopolíticas e geoeconômicas, a sustentarem projetos 
nacionais e populares de afirmação do poder dos seus Estados e dos siste­
mas econômicos locais. 
Foram essas experiências históricas, aliás, dos países onde o nacionalis­
mo econômico operou com sucesso, que tiveram papel decisivo na convic­
ção "endogenista" da teoria do "capitalismo tardio". O mesmo reaparec_e 
em todas as análises e propostas político-econômicas da Escola de Campi­
nas, que nunca esteve de acordo com a afirmação de F.H. Cardoso de que "_a 
acumulação capitalista, nas economias dependentes, não completa seun­
clo" (Cardoso, 1973, p. 163). Pelo contrário, o pensamento econômico 
campineiro sublinha todo tempo o dinamismo interno e os ciclos endóge­
nos do capitalismo brasileiro, retirando importância analítica ao conceito 
de periferia, e deixando em segundo plano a discussão clássica da Cepa!, so­
bre as "restrições externas" ao crescimento latino-americano. Há uma re­
valorização do empresariado e do capitalismo nacional, colocando-se em 
49 
Germana Gabriela
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José Luís Fiori 
plano secundário o peso das relações econõmicas e políticas internacionais. 
O próprio "Estado desenvolvimentista" volta a ter, por isso, as característi­
cas de um instrumento que poderia ser redirecionado, a partir de um novo 
projeto de desenvolvimento, orientado a partir das "verdadeiras" priorida­
des nacionais e sociais da população brasileira. 
Muito simplificadamente, poder-se-ia dizer que o estruturalismo origi­
nário compreendeu a importância das relações entre o centro e a periferia, 
mas sua visão do sistema mundial é basicamente econômica; os dependen­
tistas, por sua vez, esqueceram a economia e simplificaram em excesso adi­
mensão geopolítica do sistema mundial; finalmente, a escola campineira 
não deu maior importância analítica ao próprio papel endógeno do sistema 
mundial'. O problema, nessa discussão, é que nenhuma das três vertentes 
dessa tradição do pensamento crítico incorpora simultaneamente, na sua 
leitura de longo prazo do desenvolvimento capitalista latino-americano, a 
questão das contradições e conflitos entre os Estados e entre as classes so­
ciais. O capitalismo é um sistema global, mas omite-se sistematicamente 
que sua gestão política é interestatal e competitiva. A expansão do sistema 
assenta-se sobre relações de classe, mas seu conflito não aparece na maior 
parte das análises econômicas. Além disso, os Estados, individualmente, 
são vistos-quase sempre - como instituição homogênea e iluminista, capaz 
de seguir os conselhos mais ou menos equivocados dos economistas. Tra­
ta-se de um aparelho capaz de encaminhar, desenvolver ou operar políticas 
econômicas. Não se toma em conta a heterogeneidade dos interesses que 
atravessam os Estados, nem se toma em consideração que os Estados te­
nham que cumprir objetivos incompatíveis com os ideais dos economistas. 
O pensamento crítico é tributário de toda a tradição clássica e moderna 
da teoria econômica. Uma visão do interesse de classe e do poder dos Esta­
dos que vem da economia política liberal mantém-se na teoria neoclássica, 
está presente na teoria keynesiana e também nas teorias do desenvolvimen­
to, incluindo sua versão estruturalista. O próprio Marx, que melhor perce­
beu a natureza classista do sistema, tampouco incluiu em sua análise doca­
pital, e jamais considerou o problema dos territórios e da competição entre 
as nações relevante para o estudo do desenvolvimento capitalista. De ma­
neira que, para uns e para outros, os interesses e o poder político aparecem 
como "externalidade" dentro de suas análises da dinâmica econômica. A 
competição e a hierarquia de poder entre os Estados não tem papel impor­
tante na sua teoria da distribuição da riqueza entre as nações. 
5 É óbvio que esta generalização não inclui os trabalhos posteriores ao ensaio de M.C. Tava­
res? A retomada da hegemonia americana, publicado em 1984, e discutidos no artigo De­
pois da retomada da hegemonia, incluído no mesmo livro. 
50 
,. 
SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
Esse "ângulo cego" do pensamento crítico latino-americano pesou de­
cisivamente na demora e dificuldade para compreender o que se passava no 
mundo, a partir da década de 70, em particular os processos simultâneos de 
concentração territorial do poder e da riqueza mundial e de pauperização 
das grandes massas. A maior parte dos estruturalistas, e também dos mar­
xistas, interpretou as mudanças do sistema mundial privilegiando as trans­
formações tecnológicas e institucionais dos regimes de produção e acumu­
lação. Acabaram concordando, em muitos pontos, com as teorias do "cres­
cimento endógeno" e da new institutional economics, chegando, por vezes, 
às mesmas conclusões da interpretação liberal do fenômeno da globaliza­
ção. Neste ponto encontra-se nossa principal divergência conceituai e de 
interpretação dos fatos. 
Para retomar o caminho 
Nossa releitura da tradição crítica do pensamento latino-americano 
parte, uma vez mais, do conceito e da análise da dinâmica do "sistema mun­
dial". Considera os espaços e limites dos desenvolvimentos regionais e na­
cionais do sistema capitalista a partir de suas posições, conquistadas histori­
camente dentro das hierarquias geopolíticas e geoeconômicas do próprio 
sistema.' Não temos dúvida sobre a profundidade das transformações vivi­
das pelo sistema mundial nos últimos 25 anos, mas consideramos que o fe­
nômeno da globalização não resultou de imposição tecnológica, nem é pu­
ramente econômico, envolvendo novas formas de dominação social e polí­
tica que resultaram de conflitos, estratégias e imposição vitoriosa de deter­
minados interesses, tanto no plano internacional quanto no espaço interno 
dos Estados nacionais. 7 
O mais importante é que essas transformações, que se aceleram a partir 
da década de 70, não suprimiram as leis de movimento e tendências de lon­
go prazo do sistema capitalista, nem sua forma de evoluir e transformar-se, 
movido pelas contradições entre seus processos simultâneos de acumula­
ção do poder e da riqueza, impulsionados pela competição e conflitos entre 
os Estados e entre as classes sociais. No final do século XX, como em outros 
momentos de ruptura, as grandes transformações do sistema mundial en-
6 A retomada e discussão dos temas e conceitos mais estritamente econômicos do pensa­
mento crítico sobre a questão do desenvolvimento latino-americano - como crescimento, 
distribuição, inflação, etc. - é feita em vários artigos deste mesmo livro. 
7 Este ponto aparece amplamente analisado em nosso livro, organizado junto com M.C. Ta­
vares, Poder e dinheiro, uma economia política da globalização, Editora Vozes, Petrópolis. 
51 
Germana Gabriela
Realce
Luiz
Luiz
afluente
Luiz
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José Luís Fiori 
volveram, sempre, decisões e mudanças no campo da concorrência e acu­
mulação do capital, como no campo da luta e centralização do poder políti­
co. Uma vez mais, para entender a grande transformação deste final de sé­
culo e seu impacto sobre a periferia do sistema mundial, há que olhar simul­
taneamente para as mudanças monetárias e financeiras e para os caminhos 
da centralização do capital, e para o processo de concentração do poder mi­
litar e político nas mãos da vontade imperial norte-americana. Neste últi­
mo final de século, como em outros momentos da história do sistema mun­
dial, pode-se dizer com Fernand Braudel que "o resultado de uma crise lon­
ga e generalizada (caso desta última) foi sempre o de clarificar o mapa do 
mundo, de devolver brutalmente cada um a seu lugar, de reforçar os fortes e 
inferiorizar os fracos" (Braudel, 1996, p. 65). 
Muitos consideram conspiratória esta forma de ler as mudanças do sis­
tema mundial. O problema é que " ... para eles tudo que não seja resultado 
das forças impessoais do mercado ou do progressotecnológico pertence ao 
campo metafísico da conspiração política. Na verdade, o que fazem é trans­
ferir para o plano analítico o que é apenas obsessão ideológica: a vontade de 
eliminar da análise do desenvolvimento histórico do sistema mundial a po­
lítica e o conflito de interesses entre os Estados e os grupos sociais, sobretu­
do porque a luta entre interesses e poderes, no plano internacional como no 
plano local, não se dá na forma de um 'mercado político' e não é compatível 
com a linguagem dos modelos de equilíbrio e das 'decisões racionais'. Na 
luta pelo poder, a hierarquia e objetivos diferentes e contraditórios dos 'de­
cisores' -individuais ou coletivos- são fundamentais e é isto que não entra 
ou não pode entrar nos esquemas teóricos das interpretações mecanicistas" 
(Fiori, 2001, p. 10). 
Esta proposta metodológica de interpretação das mudanças do sistema 
mundial desenha uma agenda ou programa de pesquisa de natureza históri­
ca, na qual o problema do desenvolvimento desigual do capitalismo reapare­
ce estreitamente vinculado à competição entre os Estados pelo poder e pela 
riqueza mundiais, o que recoloca a questão teórica e histórica das relações 
contraditórias: i) entre a natureza simultaneamente nacional e internacional 
do capital; ii) entre a natureza global dos fluxos econômicos e sua gestão polí­
tica pluriestatal; iii) entre a "vocação" liberal-internacionalizante do capital e 
sua permanente necessidade de associar-se às máquinas estatais de poder ter­
ritorial; iv) e entre a vocação ao império mundial, do capital financeiro, e a 
multjplicidade de "vocações imperiais" dos poderes políticos. 
E neste ponto que a tradição estruturalista pode e deve ser enriquecida 
pelas novas abordagens históricas que trabalham, desde a década de 70, com 
os conceitos de economia do mundo capitalista (Braudel) e sistema mundial 
moderno (Wallerstein). Tais abordagens se propõem estudar, exatamente, a 
52 
li""" SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
história da expansão do sistema mundial e da constituição da economia de 
mercado e do capitalismo internacional, enquanto obra conjunta do poder 
político e do capital. Como diz Fernand Braudel, "o capitalismo só triunfa 
quando se identifica com o Estado, quando é o Estado", e foi só na Europa 
dos séculos XV e XVI que ocorreu esta junção, produzindo a "poderosa mes­
cla que impeliu as nações européias à conquista territorial do mundo e à for­
mação de uma economia mundial poderosíssima e verdadeiramente global" 
(Arrighi, 1996, p. 11). Essa leitura sublinha, junto com Max Weber, a impor­
tância na história do desenvolvimento capitalista da "memorável aliança en­
tre os Estados em ascensão e as forças capitalistas". 
Esta nova abordagem histórica retoma, em muitos pontos, a leitura his­
tórico-institucional de Karl Polanyi sobre as origens dos mercados e das 
economias nacionais, e não se contradiz com os estudos de Norbert Elias e 
Charles Tilly sobre a sociogênese dos Estados. Em todos estes autores há 
preocupação comum com a constituição histórica das relações modernas 
entre o poder, o capital e o território; entre as guerras, os Estados e as cida­
des; e entre os impérios, as grandes potências e o desenvolvimento do capi­
talismo como sistema mundial. Todos se propõem entender a formação do 
capitalismo e do Estado, investigando o seu momento originário, a hora em 
que se constituem, conjuntamente, a economia-mundo européia, os mer­
cados nacionais, os impérios coloniais, o sistema interestatal e as identida­
des nacionais. A partir desse momento inicial são pensadas as hierarquias e 
os conflitos mundiais; a formação do núcleo central do sistema, de seus im­
périos coloniais e de sua periferia, constituída por Estados independentes, 
mas subordinados. Como diz Braudel, "o sucesso do centro só é possível 
quando as economias inferiores e as economias submetidas são acessíveis, 
de uma maneira ou de outra, mas regularmente, à economia dominante" 
(Braudel, 1996, p. 244). 
Braudel revolucionou a leitura da história econômica ao privilegiar o 
tempo longo e estrutural no estudo da constituição dos mercados e da eco­
nomia-mundo/capitalista, em torno do Mediterrâneo, a partir do século 
XIII. Sua visão dos tempos históricos e, sobretudo, da longa duração dases­
truturas econômicas, e sua definição do capitalismo, oposta à da economia 
de mercado, como o espaço dos "grandes predadores" associados ao pode; 
político, abriram as portas a nova teoria sobre as origens da modernidade. E 
sobretudo no terceiro volume da grandiosa Civilização material, economia 
e capitalismo, séculos XV-XVIII, que Braudel desenvolve sua teoria sobre as 
fronteiras, as hierarquias e a dinâmica expansiva das economias-mundo. 
Retoma a hipótese de Wallerstein sobre a origem do modern world system, 
mas vai buscar suas raízes mais atrás, nas redes urbanas italianas e hanseáti­
cas do século XIII. A partir daí estuda a forma como se constituem as hierar-
53 
Luiz
Luiz
José Luís Fiori 
guias e como no centro das economias-mundo "aloja-se sempre um Estado 
fora de série, ao mesmo tempo temido e admirado", constatando que, nesta 
zona dominante, "o Estado mergulha no próprio movimento da econo­
mia-mundo, servindo aos centros, servindo ao dinheiro e a si mesmo" (Braudel, 
1996, p. 30/40), ao passo que na periferia do sistema os Estados se consti­
tuem numa espécie de instituições esvaziadas, porque suas economias são 
dominadas por grupos ligados ou submetidos ao estrangeiro. 
Outro ponto importante da história braudeliana é sua descoberta que 
os Estados e sua vontade política tiveram papel decisivo na constituição dos 
próprios mercados e das economias nacionais que nascem, na França e na 
Inglaterra, como fruto da resistência à dominação mercantil e financeira da 
Holanda. Os mercados e as economias nacionais, portanto, não nasceram 
da evolução espontânea do próprio mercado; pelo contrário, foram "inje­
tados" num espaço territorial pela vontade política dos Estados que se pro­
puseram e foram capazes de articular e integrar suas economias regionais, 
internalizando, ao mesmo tempo, os ganhos e as redes construídas pelo co­
mércio de longa distância. A tese aproxima Braudel de Polanyi, contra o 
senso comum construído a partir da teoria smithiana sobre a origem da eco­
nomia de mercado. 
lmmanuel Wallerstein, por sua vez, localiza a origem do modern world 
system no século XVI, que nasce como um subproduto do fracasso do projeto 
imperial dos Habsburgo. Segundo Wallerstein, existiram dois tipos básicos ·de 
world system: os que foram dotados de um sistema político único, e que ele 
chama de world-empires, e os que foram dotados de uma só economia, mas 
com vários sistemas políticos, que ele chama de world-economies, e cujo caso 
clássico foi o do capitalismo europeu, a partir do século XVI. Foi onde e quan­
do se deu o pleno desenvolvimento da economia de mercado, que conviveu 
sempre com várias formas ou tipos de relações sociais de produção, unifica­
das pelo mesmo objetivo da "maximização sem limites" dos lucros. 
O novo sistema estabiliza-se por volta de 1640, de forma hierarquiza­
da: no centro existia um core, situado no nordeste europeu, cercado por 
uma semiperiferia, situada na Europa do leste, e uma periferia mediterrâ­
nea que depois se estende para outras regiões do mundo, colonizadas pelos 
europeus, cada uma delas especializando-se em determinado tipo de pro­
dução com diferentes tipos de relações de trabalho. Esse "sistema mundial 
moderno" não foi criado, mas se fortaleceu e afirmou definitivamente, se­
gundo Wallerstein, com o fracasso do projeto Habsburgo de constituição 
de um império-mundo. Neste ponto ele marca diferença fundamental com 
Braudel, ao sublinhar, mais do que o historiador francês, a importância do 
que chama de core states, que constitui peça essencial de todo o sistema. 
Para Wallerstein, a world economy constitui sistema único de divisão do 
54 
pa 
SISTEMA MUNDIAL, IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
trabalho,apesar de que seu dinamismo tenha muito a v'.'r com o_ fato d? que 
este sistema económico seja gerido por um conjunto d'.' Junsdiço?s poht1cas 
independentes. Apesar de sublinhar o papel dessas entidades poht1cas, ~al­
lerstein considera que esses Estados são mais ou menos fortes e centraliza­
dos, dependendo de estarem mais ou menos pró~imos da zona central?ª 
world economy. Wallerstein chega a afirmar, em vanos ?.',omentos'. ~u~ n~? 
existem Estados periféricos propnamente ditos, mas areas_ penfencas , 
administradas por Estados fracos ou simulacros de Estados. Smtetizando o 
argumento: 0 desenvolvimento do capitalismo se deu na Euro_p_a, graças ao 
fato de que seus Estados não lograram transfmmar-se em 1mpenos-mundo, 
tiveram que operar num espaço que nunca foi c~ntrol~do_ por qu.alquer en­
tidade política única e supenor. Como ele diz, o cap1tahsmo ':ode flores­
cer porque a economia mundial teve dentro de seus hmites, nao um, mas 
uma multiplicidade de sistemas políticos" _(1974, p. 3~8), a despe1~,º de 
que, em última instância, o sistema _tenha sido sempre coordenado por 
uma potência hegemónica, como foi o caso da Holanda, da Inglaterra e fi-
nalmente dos Estados Unidos. . , . 
Giovanni Arrighi inscreve-se nessa mesma abordagem h1stonca, mas 
no seu esquema analítico existe relação mais estre_ita e ativa entre o poder 
político e O capital, e esta relação ocupa papel mais importante na ongem 
do sistema capitalista e na expansão cíclica das suas estruturas de acumula­
ção e de hegemonia, através dos últimos cinco século~. Por outro lado, em 
linha com Braudel e Polanyi, Arrighi atribui às altas fmanças_papel cmtral 
na dinâmica do sistema, desde o século XV, com a formação e mternac10na­
lização do capital financeiro florentino e gen_ovês, que financiam, desde en­
tão, 0 poder territorial dos Estados. A~ngh1 sustenta, com_~,raudel, qu_e_ a 
chave para compreender o sistema capitalista moderno esta_ no dom1C1lio 
oculto onde O dono do dinheiro encontra-se com o dono, nao da força de 
trabalho, mas do poder político, lugar onde desvend_aremos o seg_redo da 
obtenção dos grandes e sistemáticos lucros que perm1tira1_11 ao cap1tahsmo 
prosperar e se expandir 'indefinidamente' nos últimos Jumhentos ou seis­
centos anos, antes e depois de suas incursões nos dom1c1hos ocultos da pro-
dução" (Arrighi, 1995, p. 25). . 
Em outro momento Arrighi diz que "a fusão entre o Estado e o capital 
foi O ingrediente vital da emergência de uma camada claramen~; capitalista 
por sobre a camada da economia de mercado e em antítese a el: (,d., P· 20). 
Como conseqüência, para Arrighi, o "regime de acum~laçao em escala 
mundial" é sempre resultante de estratégias e estruturas 1mplem_entadas e 
sustentadas por blocos de agentes governamenrnis e e_mp_resana1s capazes 
de promover e organizar a expansão_ da economia cap1tahsta mundial. Por 
sua vez, "a competição interestatal e 1nterempresanal pode assumir formas 
55 
Luiz
José Luís Fiori 
diferentes, e a forma que assumem tem conseqüências importantes para 
0 
modo como o moderno sistema mundial - enquanto modo de governo e 
enquanto modo de acumulação-funciona ou deixa de funcionar. Não bas­
ta ~nfatizar a ligação histórica entre concorrência interestatal e interempre­
sanal. Devemos também especificar a forma que ela assume e como se mo­
difica no correr do tempo" (id., p. 33). 
O ponto de partida de Charles Tilly no livro Coerção, Capital e Estados 
Europeus é um pouco diferente, mas os resultados de sua pesquisa e seu ar­
gumento são perfeitamente compatíveis com as teses principais de Braudel, 
Wallerstem e Arngh1. Ele questiona por que os Estados nacionais só nasce­
ram na Europa; por que, dentro da Europa, acabaram impondo-se às outras 
formas de exercício coercivo do poder territorial dinásticas ou imperiais· 
e, finalmente, pergunta-se se isso tem a ver com; fato de que a Europa te'. 
nha conseguido impor-se diante do mundo asiático, mais rico e sofisticado 
que a Eu~opa na ~ltura do século XV. Sua tese ou resposta é que O "milagre 
europeu se 1mpoe dentro e fora do velho continente, graças ao dinamismo 
gerado por sua fragmentação competitiva, que se desdobra num longo mo­
vimento entre 1000 e 1815. A "explosão" que está na origem desse enorme 
dmam1smo nasceu do encontro entre um conjunto de relações de troca e 
acumulação de capital, concentradas em algumas cidades européias, com 
um coniunto de relações de coerção, que estão na origem do poder territo­
nal d_os Estados. Entre 15 5 O e 165 O surge o "sistema europeu de Estados, 
mclmndo, no começo do século XVII, da Suécia até o Império Otomano, 
de Portugal à Rússia, realidade confirmada pela guerra dos 30 anos e pela 
paz de Vestfália. 
_ Desde o primeiro momento, dentro da própria Europa, coloca-se a ques­
tao: por que a polarização e oligopolização do poder mundial, na medida em 
que se formam dois tipos de Estados completamente diferentes as Grandes 
~otências e os demais? Tilly define as Grandes Potências como ,;Estados que 
tem capacidade m1htar e perseguem interesses globais que defendem por vá­
nos meios, exercendo direitos excepcionais nas relações internacionais" 
(Tilly, 1996). No alto dinamismo do sistema, como na sua hierarquização, 
Charles Tilly vê o papel central das guerras, origem e motor da "fragmenta­
ção criativa" européia. A Europa foi uma criação da guerra, e a guerra foi cri­
ando ou exigindo a homogeneização das populações e a formação de identi­
dades coletivas, que se identificaram, em primeiro lugar com os senhores e as 
dinastias, depois com as religiões, e finalmente com a~ nações. 
Na discussão da guerra e dos seus encadeamentos, Charles Tilly aproxi­
ma-se do argumento de Norbert Elias, no seu estudo sobre a formação ou 
sociogênese dos Estados modernos. No clássico Processo civilizatório Elias 
analisa a tessitura elementar do processo de concentração inicial de ~oder, 
56 
SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
por meio das guerras dinásticas do nort_e da Europa, num tempo em que a 
luta ainda não era entre Estados ou naçoes, mas no qual começavam a g:r­
minar as raízes de "toda a história posterior da ~ormação de or~a~1zaçoes 
monopolistas" (Elias, 1939, ed. 1993, p. 114). E no norte da ltaha que se 
constituem as primeiras formas de articulação dinâmica entre o poder, o 
território, a guerra e a expansão da riqueza, mas é no norte da Europa que 
se constituem os primeiros "núcleos imperiais", que nascem da fragmenta­
ção do império de Carlos Magno. Na anális_e detalhada dos primeiros pas­
sos e conflitos entre esses núcleos, Ehas registra o movimento germmal da 
concentração e centralização do poder, concluindo que "seja qual fosse a 
razão específica, a força propulsora primária foi produzida pela pr7s~ão 
competitiva intrínseca à configuração, pela luta elementar de sobrev1ven­
cia entre as unidades e por seus conflitos de status e poder" (id., p. 218). 
Esse processo independeu dos acidentes históricos, porque o simple~ fato 
de que "uma sociedade tenha numerosas unidades de poder e_de propneda­
de de dimensão relativamente igual tende, sob fortes pressoes competiti­
vas, para a ampliação de umas poucas unidades e, final_mente,_par: o mono­
pólio( ... ), tendendo a desviar-se do Estado de eqmlíbno em d1reçao a outro 
Estado em que um número cada vez menor concorrerá entre si" (id., p. 93). 
O argumento de Charles Tilly sobre a origem das novas guerras euro­
péias vai na mesma direção, quando afirma que "os europeus seguiam uma 
lógica padronizada de promoção da guerra: todo aquele que controlava 
meios substanciais de coerção tentava garantir uma área segura dentro da 
qual poderia desfrutar dos lucros do comércio e mais uma zona tampão for­
tificada para proteger as áreas de segurança. Quando esta operação estava 
assegurada por algum tempo, impunha-se nova zona tampão. Quando as 
potências adjacentes estavam perseguindo o mesmo obJenvo, com a mesma 
lógica, o resultado era a guerra" (Tilly, p. 127). . . 
Norbert Elias, entretanto, agregaum ponto decmvo quando constata 
que O processo de concentração de poder acontece de forma simultânea 
com O aumento da interdependência entre os próprios contendores: 
"cada rival é cada vez mais, ao mesmo tempo, um parceiro na linha de pro­
dução da mesma maquinaria. Todos são ao mesmo tempo adversários e 
parceiros", consolidando-se uma complementaridade de interesses con­
trários contradição que só se agravou com o estreitamento dos laços en­
tre a co,mpetição dos poderes políticos e o movimento de globalização dos 
capitais privados. . . , . • . 
Não é impossível aproximar as leituras geopohnca e geoeconom1ca 
desses autores e tentar avançar e precisar analiticamente a forma em que se 
deu a dinâmica originária e geradora do sistema: a fissão nuclear gerada 
pelo encontro dos poderes territoriais com o dinheiro, mediado pelas guer-
57 
Luiz
José Luís Fiori 
ras, cujo financiamento está na dívida pública. Nesse momento histórico 
ocorre a primeira expansão política do capital, antes que se consolidasse 
qualquer idéia de soberania nacional. Pode-se dizer que o que identifica a 
originalidade do poder do Estado moderno com relação a outras formas de 
poder territorial é esta combinação expansiva do poder com as finanças e os 
territórios, circunscritos cada vez mais pela competição e pelas guerras com 
outros poderes dotados da mesma necessidade expansiva. É isso que fez a 
originalidade e a força dos Estados que acabaram se impondo, dentro e fora 
da Europa, a outras formas de organização do poder territorial. Foram suas 
guerras que elevaram os custos de proteção dos poderes territoriais, obri­
gando-os a elevar e sofisticar suas formas de taxação e financiamento. Se­
gundo os cálculos dos historiadores, nunca houve período maior do que 20 
anos sem que houvesse uma guerra interestatal, desde o século XV. Essa for­
ma limite e duradoura de competição é que dá finalmente autonomia e vida 
própria ao capital, que se transforma em capital financeiro, a forma abstra­
ta e dominante de todas as riquezas, capaz de interatuar de forma invisível 
e ubíqua com a competição política, com a guerra e com todos os tipos de 
expansão do poder político e, ao mesmo tempo, com todas as formas de 
resistência às expansões imperiais. Em cada grande período ou século 
existiu um grande conflito central, uma guerra duradoura que foi o nú­
cleo atómico do sistema. Essa grande guerra ou bipolaridade, por sua vez, 
delimitou uma espécie de "espaço tempo geoestratégico", que acaba en­
volvendo e hierarquizando todos os demais conflitos, e, como conseqüên­
cia, todos os demais territórios. Parece existir relação estreita entre o dina­
mismo económico interno desses territórios e seu grau de proximidade 
com relação ao conflito central. 
No caminho dessas guerras, as cidades do norte italiano inventaram os 
títulos da dívida pública, sofisticados mais tarde pelos bancos de Amsterdã 
e da Inglaterra, criados nos séculos XVII e XVIII. No coração dessa engre­
nagem instalou-se a contradição entre a natureza globalizante do capital 
(aparentemente desterritorializado e apolítico) e suas raízes ou seu impulso 
originário e permanente, político e territorializado. Essa dinâmica de acu­
mulação é necessariamente conflitiva, e é por isto que repõe, a cada mo­
mento da história, novas formas de fronteiras, análogas às que existem na 
separação/competição dos capitais privados individuais- espécie de barrei­
ras a entrada, que se deslocam o tempo todo, recriando espaços de mono­
polização e fontes adicionais de poder e lucros extraordinários. Essa dialé­
tica originária acaba incluindo a competição intercapitalista dentro de um 
dilema análogo ao que foi chamado, no campo internacional, no século 
XX, de "dilema da segurança" - a necessidade implacável que os Estados 
têm de armar-se cada vez mais para manter a capacidade de defender sua so-
58 
SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
berania diante de outros Estados que também se armam com o mesmo obje-
tivo, numa escalada ascendente e sem limites. _ 
No campo económico, da mesma forma, a expansao permane_nte do 
der político e dos territórios econômicos se transforma em necessidade e 
po f d 1· -instrumento essencial para a criação de novas ormas e monopo izaçao, 
mesmo quando se possa constatar, depois da história passada, que al~umas 
·niciativas "colonizadoras" ou "periferizadoras" não tiveram os rend1men­
~os esperados, e não foram decisivas para a acumulação d~ riqueza nas me­
trópoles. Esse processo de expansão de poder/acumula5ao de nqueza, ao 
passar por rodadas sucessivas. de no':'~~ monopoh:açoes,. ªP;,ºf~nda ao 
mesmo tempo a tendência do sistema a paupenzaçao rela~1va e a pol~n­
zação progressiva do poder e da riqueza entre ,ªs classes, s?c1a1s e as naçoes, 
processo contraditório que dmam1zou, atrav_es d~ h1stona? todos os gran­
des ciclos expansivos da acumulação e globahzaçao do capital associados.ª 
projetos de poder imperiais ou hegemômc_os, co~o foi o caso none-amen­
cano no século XX, mas sobretudo depois da 2 Guerra Mundial. 
O novo sistema mundial 
Em 1944, Karl Polanyi publicou sua obra clássica sobre as mudanças 
econômicas, políticas e institucionais que permitiram, no século XIX, ? 
pleno desenvolvimento da economia de me_rcado e da época de_ouro da ci­
vilização liberal. A grande transformação f01 escnta durante a cnse que pre­
parou O nascimento, depois da 2ª Guerra Mundial, do We_lfare State e dos 
"Estados desenvolvimentistas", segundo Polanyi uma reaçao de autoprote­
ção da sociedade contra os efeitos entrópicos dos mercados auto-regula­
dos. Hoje não é difícil perceber que está en_i curso uma nova grande trans­
formação da sociedade e da economia capitalista mundial, c,uio resultado 
mais visível tem sido exatamente o retorno às crenças e pohtICas daquela 
primeira época de ouro do liberalismo econômico: . . . 
Ao analisar as mudanças do século XIX, Polanyi foi dos pnmeiros a as­
sociá-las à vitória econômica e política da Inglaterra sobre a França e ao nas­
cimento de uma nova ordem mundial, baseada no controle inglês dos ma­
res, dos portos e da moeda de referência internacional? pilares em que se 
sustentou O domínio das altas finanças e o poder impenal que a Inglaterra 
exerceu sobre O mundo, de forma exclusiva, até 1880, e de forma mais ate­
nuada ou contestada até o final da 1 ª Guerra Mundial. Agora, de_novo, de­
pois do fim do mundo socialista e da Guerra Fria, a_vitória amencana vem 
criando uma nova ordem mundial, articulada a partir do poder global, eco­
nômico e militar dos Estados Unidos. Pouco a pouco, os analistas foram 
59 
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universal, onipresente
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percebendo que as mudanças militares, financeiras e tecnológicas do últi­
mo quarto de século lhe haviam transferido enorme capacidade de coman­
do e de penalização sobre o resto do mundo. O que a princípio parecia uma 
visão conspiratória, agora já parece fato normal e consolidado: ganhou for­
ça, no fim do século XX, um novo projeto de organização imperial dopo­
der mundial. Não se discute mais a existência, mas a natureza e a originali­
dade desse novo império, em particular sua abrangência e incontestabilida­
de, sua forma peculiar de controle não colonial dos territórios e suas rela­
ções com a expansão financeira e com os interesses e objetivos estratégicos 
norte-americanos. Como disse Samuel Berger, assessor de segurança nacio­
nal da presidência dos Estados Unidos durante a administração Clinton, "a 
América comrola, hoje, o acesso às redes de informação, comércio e segu­
rança e com Isso tem influência sobre as escolhas das nações. Muitos acon­
tecimentos mundiais recentes ocorreram por causa do uso desse poder pe­
los Estados Unidos, e não por causa de alguma necessidade preestabelecida 
e imposta pela globalização" (Berger, 2000, p. 24 ). 
Muitos analistas internacionais e historiadores localizam a origem do 
projeto imperial americano na guerra hispano-americana de 1898 e na pre­
sidência de TheodoreRoosevelt (1901-1908), momento em que os Estados 
Unidos já eram - no início do século XX - a maior potência industrial do 
planeta. Mas quando entraram na 1 ª Guerra Mundial, os EUA ainda não ti­
nham forças armadas suficientemente equipadas. Só depois de Hiroshima e 
Nagasaki, e do fim da 2ª Guerra Mundial, é que os Estados Unidos se viram 
na condição de poder incontrastável nos campos militar, financeiro, pro­
dutivo e do conhecimento, superioridade que lhes permitiu construir uma 
rede de bases militares por todo o mundo (não socialista), com forte presen­
ça no território dos antigos adversários. Nesse mesmo período suas grandes 
corporações partiram na frente e lideraram o processo de internacionaliza­
ção das estruturas produtivas capitalistas, apoiadas num sistema monetário 
internacional baseado na moeda americana. 
Esta situação se altera com a crise dos anos 70, mas muitos analistas 
consideram que as próprias decisões e mudanças implementadas pela 
administração Nixon já apontavam para o mesmo objetivo imperial. Qual 
então a grande novidade do final do século XX? O fim da bipolaridade 
com a URSS, sem dúvida alguma. A grande mudança, no entanto, ocorreu 
antes, influenciando a própria maneira em que se deu a rendição soviética 
- uma transformação radical nos dois pilares em que todos os impérios 
sempre se sustentaram: o poder das armas e do dinheiro, a forma de fun­
cionamento do novo sistema monetário mundial e da "nova maneira ame­
ricana" de fazer a guerra. 
60 
SISTEMA MUNDIAL, IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
De maneira simplificada, pode-se dizer que tudo começou com a derro­
ta americana no Vietnã, seguida pelos sucessivos reveses da política externa 
dos EUA durante a década de 70: a vitória da revolução islâmica no Irã; a vi­
tória sandinista na Nicarágua; a crescente presença soviética na África e no 
Oriente Médio, e, finalmente, a invasão russa do Afeganistão. Esse conjun­
to de humilhações ajudou a eleger o conservador Ronald Reagan e a legiti­
mar seu projeto de retomada da Guerra Fria - no início dos anos 80- segui­
do da expansão dos gastos militares do governo norte-americano. Come­
çou, com o nome popular de Guerra nas Estrelas, a "revolução militar" que 
mudou completamente a concepção política e a base estratégica e logística 
do poder bélico dos EUA. Durante esse período desenvolveram-se novos 
sistemas de informação, que permitiram o melhoramento das condições de 
controle e comando dos campos de batalha, vetores e bombas teledirigidas 
de alta precisão e sistemas sofisticados de ataque furtivo, além de novos ti­
pos de equipamentos sob comando remoto, que permitiram, em conjunto, 
reduzir ao mínimo o risco de perda de soldados americanos- mudança ra­
dical no campo da tecnologia militar cujos efeitos práticos, no campo de ba­
talha e na política internacional, só se manifestaram na década de 90. 
Foi na Guerra do Golfo, em 1991, que ocorreu a primeira demonstra­
ção da nova maneira americana de fazer guerra. Quarenta e dois dias de 
ataques aéreos permitiram vitória terrestre em menos de cem horas, com 
menos de 150 mortes entre as forças aliadas que bombardearam o Iraque, 
e mais de 150.000 mortos iraquianos. Na guerra não declarada de Koso­
vo, em 1999, foi possível testar e comprovar, pela segunda vez, esse po­
der, controlado de forma quase monopólica pelos Estados Unidos. De­
pois de assistir aos 80 dias de bombardeio aéreo ininterrupto do território 
do Kosovo e da Iugoslávia, sem nenhuma perda humana entre os aliados e 
com a quase total destruição da economia adversária, os governantes e os 
generais de todo o mundo tiveram certeza de que havia nascido, na década 
de 90, uma nova guerra, uma espécie de guerra tecnocrática, que dispensa 
cada vez mais a necessidade de soldados-cidadãos ou patrióticos. Além dis­
so, as guerras do Golfo e do Kosovo anunciaram ao mundo que a nova or­
dem política global se fundaria, a partir dali, no "instinto de poder" e nos 
interesses dos mais fortes e no "instinto de medo" e rendição antecipada 
dos mais fracos. 
Nesse mesmo período, e de forma quase simultânea, desenvolveu-se, a 
partir de 1973, uma outra revolução, de natureza financeira, que teve efei­
tos tão ou mais radicais para o exercício imperial do poder americano do 
que os que foram produzidos pela "revolução militar". Só na década de 90 
pôde-se apreciar com maior nitidez o funcionamento do novo sistema mo­
netário-financeiro mundial, criado pelas políticas e reformas liberalizantes 
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que levaram à desregulação e integração dos mercados e à livre circulação 
internacional dos capitais'. A mudança alterou de maneira radical a balança 
de poder entre as autoridades públicas e os agentes e mercados financeiros 
privados, e entre as moedas dos diversos países. Na prática, essa revolu­
ção financeira deu origem a um novo sistema monetário internacional . , 
uma_espéc1e de "sistema dólar-flexível". "Nesse novo padrão, o dólar 
contmua sendo a moeda internacional, mas a ausência da conversibilida­
de em ouro dá aos EUA, e ao dólar, a liberdade de variar sua paridade em 
relação às demais moedas dos outros países conforme sua conveniência, 
pela simples movida das suas taxas de juros"'. O poder é ainda maior no 
caso da relação entre o dólar e as moedas fracas das economias periféricas, 
que também desregularam seus mercados, além do que, nesse novo siste­
ma, nascido da revolução financeira dos anos 80, os Estados Unidos po­
dem determinar - por meio do manejo de sua taxa de juros - não apenas a 
variação do valor das demais moedas, mas também a dinâmica de curto pra­
zo da economia mundial. O essencial, dentro das novas regras, é que o dólar 
deixou de ter qualquer padrão de referência que não seja o próprio poder 
norte-americano. 
A possibilidade de fazer guerras a distância e sem perdas humanas, e o 
controle de uma moeda internacional sem padrão de referência que não o 
próprio poder do emissor, mudaram radicalmente a forma de exercício do 
poder americano sobre o mundo. Com a eliminação do poder de contes­
tação soviético e a ampliação do espaço desregulado da economia mundial 
de mercado, criou-se um novo tipo de território submetido à senhoria­
gem do dólar e à velocidade de intervenção das suas forças militares. Logo 
depois da 2ª Guerra Mundial, a Pax Americana tinha parentesco com os 
velhos impérios marítimos europeus na África e na Ásia, cuja estrutura de 
poder articulava-se por meio de redes militares, mercantis e financeiras 
apoiadas por ''fortalezas" e "feitorias". Agora, o novo poder monetário e 
balístico dos EUA lhe permitiu maior distanciamento e o estabelecimento 
de uma forma de dominação que ainda mantém, em alguns casos, suas for­
talezas, mas se desfaz, cada vez mais, das feitorias, substituídas pelo con­
trole à distância dos Bancos Centrais das "províncias" incluídas dentro do 
seu território imperial, que dispensa fronteiras físicas, porque está recorta­
do por fronteiras monetário-financeiras e estratégicas, facilitando a lide­
rança do capital financeiro norte-americano nos processos de fusões que 
8 
O conjunto dessas mudanças financeiras é estudado no livro Poder e dinheiro, organizado 
por M.C. Tavares e J.L. Fiori, e editado pela Vozes, de Petrópolis, em 1997. 
9 
Serrano, F. (1988). Do ouro imóvel ao dólar flexível, mime o. Instituto de Economia 
da UFRJ. ' 
SISTEMA MUNDIAL, IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
promoveram, em todo o mundo, gigantesca centralização de capital, du­
rante os anos 1980/90. 
O espaço desse novo tipo de império americano não é contínuo nem 
homogêneo. Seu poder apóia-se no controle de estruturas transnacionais, 
militares, financeiras, produtivas e ideológicas de alcance global, mas não 
suprime os Estados nacionais nem a hierarquia do sistema interestatal. Re­
conhece a existência de Estados, que são seus adversários estratégicos, e 
exerce seu poder de maneira diferenciada com relação aos demais: vassala­
gem, no caso de alguns países do Leste Asiático e doOriente Médio; hege­
monia, no caso dos seus aliados europeus. Só na América Latina o poder im­
perial americano é exercido sobre um território contínuo, incluindo todos 
os seus Estados, com a exceção de Cuba. A Doutrina Monroe foi enunciada 
em 1823, mas só depois da guerra hispano-americana de 1898, e da crise e 
decadência da hegemonia mundial inglesa, os Estados Unidos passaram a 
exercer poder ou soberania supranacional incontrastável, com relação aos 
Estados latino-americanos. A aparente aterritorialidade e a inexistência de 
contestação levam muitos analistas a pensar que se trate de um império em 
redes que chegou para ficar. Essa forma de organização econômica e políti­
ca envolve contradições e limites que poderão erodir o poder desse impé­
rio, no longo prazo. Não cabe num artigo desta natureza discussão dessa 
complexidade, mas é possível identificar, pelo menos, alguns "limites à ex­
pansão" desse império, três limites que uma vez ultrapassados implicariam 
na sua degeneração ou desintegração. 10 
O primeiro tem a ver com a capacidade de sobrevivência do capitalis­
mo, caso desaparecesse a competição entre os Estados ou poderes políticos 
territoriais. O segundo, com o fato de que uma autoridade imperial, para 
que seja aceitável, eficaz e respeitada, requer a existência de alguma combi­
nação de forças que reduza o grau de arbítrio e egoísmo do poder imperial. 
E o terceiro e último limite relaciona-se com o fato de que para que um "po­
der global" se sustente no longo prazo é indispensável que permita aos de­
mais Estados ou "províncias independentes" que seus governantes mante­
nham a legitimidade perante os governados, evitando, sobretudo, a ten­
dência natural do sistema à "pauperização relativa" de suas populações. 
Esses três limites apontam para a mesma questão central: a necessidade ou 
não da competição interestatal como condição indispensável da acumula­
ção capitalista e da gestão global do poder político mundial. 
10 O tema é discutido, de forma mais extensa e evidenciada, no livro Poder e dinheiro, já referido. 
63 
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desgastar
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José Luís Fiori 
Impérios e Estados nacionais 
Logo depois do fim da Guerra Fria, ainda não se falava sobre esse novo 
Império Americano. Mas passada a comemoração inicial, estabeleceu-se a 
polêmica sobre o futuro do sistema político e econômico mundial, que per­
correu toda a década de 90. Seu pano de fundo foi sendo armado por acon­
tecimentos que, na maioria dos casos, contradiziam o otimismo das primei­
ras horas. No campo da economia internacional, ficava cada vez mais visí­
vel o aumento rápido e geométrico das distâncias entre a riqueza das na­
çôes. Os Estados Unidos, a China e a Índia cresciam de forma acelerada, 
mas a Europa só saiu da estagnação de forma muito lenta, enquanto as eco­
nomias do Leste Asiático sofriam abalo na segunda metade da década, so­
mando-se à longa estagnação japonesa. O Leste Europeu patinava e logo se 
percebeu que a Rússia levaria muito tempo para recuperar os padrôes de 
produção, produtividade e riqueza alcançados pela economia soviética. 
No outro extremo, as "economias emergentes" latino-americanas se 
arrastavam, prisioneiras da camisa de força criada por suas políticas liberais 
e pela fragilidade financeira do seu novo modelo econômico de desenvolvi­
mento, "dependente e associado", cujas restriçôes externas não lhes dei­
xam margem para crescimento rápido e sustentado. Enquanto isso, no 
campo político e militar, depois da Guerra do Golfo multiplicaram-se as 
guerras locais e incontroláveis, na África, e foram ficando cada vez mais 
complexos os conflitos nos Bálcãs e na Rússia, que culminaram nas guerras 
do Kosovo e da Chechênia. O Oriente Médio e a Ásia aumentavam as com­
pras de armamento, enquanto a Índia, o Paquistão e a Coréia do Norte ace­
leravam seus programas nucleares e a China assumia (ou era posta na) a 
condição de principal adversário virtual dos Estados Unidos. Por outro 
lado, a Comunidade Européia dava os primeiros sinais de que queria exer­
cer, a médio prazo, algum tipo de "direito de veto", com relação ao exercí­
cio do poder imperial americano. 
O debate sobre o futuro desse quadro confuso, como é óbvio, não po­
deria ter sido conclusivo. Henry Kissinger e Samuel Huntington, por exem­
plo, dois conotados conservadores, divergem radicalmente quando espe­
culam sobre o futuro geopolítico desse mundo. Kissinger acredita no apa­
recimento de um novo sistema de equilíbrio internacional, no qual o poder 
ficaria dividido entre oito ou nove países, mas não tem dúvidas sobre opa­
pel central dos Estados Unidos na administração desse equilíbrio de poder. 
Samuel Huntington, ao contrário, prevê um "choque de civilizações" num 
futuro em que as guerras tenderiam a ser resultado das diferenças e dos con­
flitos entre os sete ou oito grandes blocos civilizatórios em que divide a hu­
manidade. Mas ele também acredita que a gestão mundial ainda permane-
64 
SISTEMA MUNDIAL IMPÉRIO E PAUPERIZAÇÃO ... 
cerá, por muito tempo, nas mãos de dois "diretórios": um, mi~irnr, formado 
pelos Estados Unidos, a França e a Inglaterra; e o outro, econom1co, forma­
do pelos Estados Unidos, a Alemanha e o Japão. 
Do lado oposto, entretanto, as divergências não são menores entre Ro­
bert Cox e Giovanni Arrighi, dois especialistas internacionais de filiação 
neomarxista que tiveram papel importante na polêmica dos anos 90. Cox 
vê dois cenários possíveis: um, que seria o de uma nova hegemonia susten­
tada sobre as estruturas globais de poder criadas pela internacionalização 
da produção e do Estado; e o out~o, que ~e caracterizar}ª p_ela permanência 
de vários centros conflitantes. Giovanni Arngh1 preve tres desdobramen­
tos possíveis: o primeiro, em que se manteria o poder _americano, dando 
nascimento a um império mundial; no segundo, ocorrena uma mudança de 
guarda, mas o novo hegemon perderia a capacidade de gestão gl~bal do p_o­
der político e da acumulação econômica, empurrando a economia mundial 
na direção de uma economia de mercado anárquica; e um terce}ro.' fmal­
mente, que apontaria na direção de um longo período de caos s1ste_mtc~, ca­
paz de devolver o mundo a uma nova era de barbárie ou de feudahzaçao do 
poder mundial. . . . 
Passada uma década, a discussão sobre os honzontes mund1a1s se man-
tém, mas é possível identificar pelo menos u_m_ grande _deno_minador c~­
mum entre todas as especulações: a mesma duvida ou d1vergenc1a que ali­
mentou, no início do século XX, o clássico debate entre Lenin e Kautsky so­
bre a viabilidade ou não de um "supercapitalismo", gerido de forma condo­
minial e pacífica pelas grandes potências e corporações pri~adas que dispu­
tam O poder e a riqueza mundiais; ou, pelo ângulo contráno, so~re a me~1-
tabilidade ou não da competição imperialista e da guerra. Por tras dessa in­
certeza internacional esconde-se o problema histórico e teórico que ficou 
esquecido durante o ~eríodo da hegemonia das idéias liberais: as relações 
entre o poder político e a economia, no de_senvolvi~ento do sistema capita­
lista mundial, e entre a "vocação" expansiva do capital e o proJeto 1mpenal 
das grandes potências. Neste ponto, a nova abordagem histórica e sistémica 
que propomos permite uma releitura da economia política do imp_enahs­
mo e a formulação de algumas hipóteses históricas que podem a1udar a 
c01~preender as disjuntivas deste início de século XXI, hi_póteses sobre a 
história dos grandes projetos imperiais modernos, que se ongmaram _na Eu­
ropa, junto com o sistema capitalista e os Estados e mercados nac10nais. 
Quais as principais lições dessa história? . 
Em primeiro lugar, que o casamento do poder político com º. capital 
privado foi decisivo na origem da modernidade e do sistema cap1tahsta. Foi 
essa união que transformou a Europa no centro dominante do mun~o,_ no 
lugar onde a riqueza mundial começa a concentrar-se de forma geometnca, 
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a partir do século XVI. Em segundo lugar, que desse

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