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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CURSO DE DIREITO Aracaju, 09 de janeiro de 2023. Prezado (a) aluno (a), A disciplina Introdução ao Estudo do Direito II, DIRE 0216, na turma 2, sob a minha docência, será, como antes o fora IED I, ministrada com a utilização da presente apostila, ao longo deste semestre letivo (2022/2), tomando por base os livros constantes da bibliografia indicada para a disciplina em apreço, mas, abordando, também, vários outros livros, conforme constam das referências bibliográficas, ao final da apostila. Contudo, quero mais uma vez lembrar que uma apostila não poderia ter a pretensão de esgotar os assuntos constantes do conteúdo programático. Assim, a presente apostila é tão somente um roteiro a ser seguido. Nada mais do que isso. Há alunos (as) que, infelizmente, se limitam à apostila. E outros nem tanto. Claro que, nesse caso, podem não lograr êxito na disciplina. Logo, para uma melhor compreensão do texto apostilado, e, especificamente, para melhor sedimentar os conhecimentos relativos à disciplina, objetivando, inclusive, um bom resultado nas provas, faz-se necessário aprofundar o estudo por meio dos livros que integram a bibliografia básica e daqueles livros indicados pelo professor. Isso é o mínimo. E sem esse mínimo, o seu aprendizado e a respectiva aferição ficarão seriamente prejudicados. Você sabe que os livros nem sempre tratam de todos os assuntos, ou, às vezes, não o fazem a contento. Portanto, não espere encontrar tudo que precisa em um só livro. E lembro que, se queira ou não, cada um dos alunos ou um grande profissional do Direito não será nada, absolutamente nada, se não for, sobretudo, um grande cidadão, na essência da palavra. Se não compreender, no mínimo, que todos são iguais perante a lei. Essa igualdade deve ser exercitada e defendida por todos e para todos. Quem entender diferente disso, não será digno do Direito. E parodiando Tobias Barreto, “poderá até mesmo ganhar o pão, mas certamente não ganhará honra”. Resta saber se a lei é igual para todos. No Brasil de agora, parece que não. Isso, porém, não deve demover a nossa crença no Direito e na Justiça. Cordialmente, José Lima Santana Professor 2 P R O G R A M A D A D I S C I P L I N A I - CONTEÚDO PROGRAMÁTICO (de acordo com o ementário da disciplina, na forma do que consta do projeto pedagógico do curso, que, por dever de ofício e por respeito aos alunos, eu cumpro). 1 Conhecimento Jurídico 2 Técnica Jurídica 3 Teoria do Ordenamento Jurídico 4 Escolas do Pensamento Jurídico e Teorias Jurídicas Pós-positivistas 5 Hermenêutica Jurídica. Obrigatoriedade e aplicação da lei 6 Hierarquia e constitucionalidade das leis 7 Interpretação da lei: espécies e resultados 8 Procedimentos de integração 9 Eficácia da lei no tempo Observação: achei por bem juntar os conteúdos dos itens 5 e 7, pois entendemos que os mesmos devem ser ministrados em conjunto: interpreta-se a lei para aplicá-la. Por outro lado, acrescentamos o item Relações Jurídicas, no final, como meio complementar ao que foi estudado em IED I, referente ao Direito Subjetivo e, também, a fim de proporcionar uma ponte para a parte introdutória ao Direito Civil. II – OBJETIVOS DA DISCIPLINA São objetivos da disciplina: a) Geral – Sequenciar o processo de adaptação do aluno ao curso jurídico. b) Específicos – Apresentar as diferentes escolas do pensamento jurídico; – Ensinar sobre a hermenêutica jurídica; – Ensinar sobre a interpretação a aplicação das leis. 3 III – METODOLOGIA E RECURSOS A disciplina será ministrada através de aulas expositivas com discussões coletivas. Os discentes serão encorajados a participar dos debates, pois a aula não deve ser um monólogo. Serão utilizados esta apostila e os textos que o professor indicar. IV – CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO E FREQUÊNCIA A avaliação será feita por meio de duas avaliações, por meio de trabalhos escritos em número que o professor solicitar. A frequência às aulas síncronas será também forma de avaliação. V – BIBLIOGRAFIA BÁSICA 1. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 21 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. 2. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 44 ed. Rio de Janeiro: Editora Gen/Forense, 2011. 3. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 5 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007. 4. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 33 ed. Rio de Janeiro: Editora Gen/Forense, 2011. 5. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. 9 reimpressão. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. VI – BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR Toda aquela referenciada no texto apostilado. 4 1 CONHECIMENTO JURÍDICO 1.1Conhecimento científico Estudamos em IED I que o termo ciência tem caráter não unívoco, ou seja, não apresenta um único sentido. Ao menos é o que afirmam alguns estudiosos com base no fato de que a ciência, no geral, assim mesmo deve ser entendida. Outros, em contrapartida, consideram o caráter unívoco da ciência. Compreendemos que há de prevalecer a primeira impressão, com respeito aos que pensam o contrário. Sabe-se que a ciência é constituída por um conjunto de enunciados, que são constatações. O conhecimento científico procura dar às constatações um caráter estritamente descritivo, genérico, comprovado e sistematizado. Assim, o conhecimento científico constitui um corpo sistemático de enunciados verdadeiros. E faz oposição ao saber vulgar. Trata-se, pois, de um saber metodicamente fundado, demonstrado e, como dito antes, sistematizado. Em outras palavras, o conhecimento científico não é um saber pronto e acabado, mas, sim, um saber obtido e elaborado deliberadamente com consciência dos fins a que se propõe; é, enfim, saber metódico (pesquisa, experimentação, descrição). Bem explana HUGO DE BRITO MACHADO ao dizer que: O conhecimento é uma relação que se estabelece entre um objeto e um sujeito pensante, que o apreende e assim o faz seu conhecido. Como depende sempre das referências consideradas pelo sujeito, o conhecimento é sempre relativo. Essa relatividade, aliás, pode ser constatada facilmente em uma situação que costumamos colocar como exemplo em nossas aulas. Se todos os alunos, em uma sala de aula, fizerem, individualmente, a descrição da sala em que se encontram, seguramente teremos tantas descrições diferentes quantos são os alunos. Cada um dará ênfase a um aspecto do objeto, que é a sala, e por isto mesmo, embora a sala seja exatamente a mesma, teremos várias descrições diferentes. Com o Direito, enquanto objeto do conhecimento, ocorre coisa semelhante. Vários são os aspectos pelos quais pode ser conhecido, examinado, vivenciado pelas diversas pessoas, de sorte que são várias as suas versões (2004, p. 43-44). 1.2 Concepções epistemológico-jurídicas referentes à cientificidade do conhecimento jurídico A Filosofia do Direito, enquanto epistemologia jurídica trata dos problemas inerentes à Ciência do Direito, delimitando o sentido de ciência, a especificidade do objeto e do método da especulação jurídico-científica, além de refletir sobre o caráter teórico, prático ou crítico do Direito. Como lembra MARIA HELENA DINIZ, partindo da sugestão de CARLOS 5 COSSIO, várias são as teorias espistemológico-jurídicas dos dois últimos séculos voltadas para a Ciência do Direito, compreendendo seis direções: racionalismo metafísico ou jusnaturalista, empirismo exegético, historicismo casuístico, sociologismo eclético, racionalismo dogmático, egologia existencial (2008, p. 35). Outras podem ser encontradas. EDITH MARIA BARBOSA RAMOS dá a seguinte contribuição para o debate acerca da análise que devemos fazer do Direito: Analisar o direito de modo científico,envolvido no fenômeno social, é de extrema importância para a compreensão da realidade jurídica e se faz objeto de análise de todos os estudiosos e aplicadores do direito que têm um mínimo de consciência crítica. O direito vinculado apenas à concepção dogmática tem falhado nos seus objetivos fundamentais, quais sejam, a justiça e segurança sociais, o que ocasiona, ainda, o distanciamento de seu escopo socioeconômico (consagração de uma igualdade concreta, e não meramente formal, e que ao mesmo tempo não resulte num prejuízo da liberdade). Vinculado a uma relação absolutamente positivista, o direito direciona-se a uma estrutura dominadora e autoritária (2003, p. 2). É óbvio que os positivistas dogmatizados em excesso não pensam assim. Observamos, nos diversos livros de Direito, a partir dos que tratam da parte introdutória, que a formação dos nossos juristas, em maioria, tem sido caracterizada pelo dogmatismo. Estes acabam inibidos de “analisar criticamente as antinomias, as lacunas, os defeitos, as falhas e a incompletude do direito, [impedindo-os] de posicionar-se criticamente no dever de superação dos problemas e conflitos sociais”, como diz a autora acima citada (2003, p. 3). E diz mais: “Dessa forma, constata-se, a alienação do próprio direito, que se conforma em afirmar e reafirmar suas verdades como válidas, semelhantes a dogmas de uma fé religiosa” (RAMOS, 2003, p. 3). É preciso enfatizar que uma ciência deve conter teoria, juízos e princípios. A teoria é a essência de qualquer ciência. Não pode haver ciência sem pressupostos. Logo, a ideia de princípio (pressuposto) é essencial à ciência. Quanto aos juízos são eles apreciações da realidade, ou seja, “algo”, que pode negar ou afirmar sua qualidade (qualidade de ciência). Enfim, os juízos são os enunciados. Os princípios dão a formação da base científica. 1.3 O Direito como objeto de conhecimento: perfil histórico 1.3.1 Direito e conhecimento do Direito: origens A visão do Direito como simbolismo remete às noções de: a) Direito como ideia de retidão e equilíbrio; b) Direito como símbolo de retidão e equilíbrio. Noções, contudo, vagas e que, por isso mesmo, exigem algumas 6 precisões. Portanto, partindo-se da Grécia, a palavra grega diké (que, como sabemos, designava a deusa da Justiça) derivava de um vocábulo significando “limites à terra de um homem”. Daí veio outra conotação: aquilo que é ligado ao próprio, à propriedade, ao que é de cada um. Donde se seguia que o Direito se vinculasse também “ao que é devido, ao que é exigível e à culpa”. Culpa daquele que afrontasse as normas jurídicas. Na mesma conotação encontram assento a propriedade, a pretensão e o pecado. Na sequência dessa conotação viriam o processo, a pena e o pagamento. Desta forma, diké era o poder de estabelecer o equilíbrio social, de maneira abrangente. Nas sociedades primitivas esse poder estava dominado pelo elemento organizador através, de início, do princípio do parentesco. O princípio valia para as relações políticas (sucessão do poder → trono), econômicas (sucessão econômica → herança) e culturais (conhecimento passado de geração a geração). Produzia-se, então, uma segmentação que organizava a comunidade em famílias, grupos de famílias, clãs, grupos de clãs. Dentro da comunidade, todos eram parentes; o não-parente era uma figura esdrúxula. As alternativas de comportamento eram pobres: isto ou aquilo; tudo ou nada (FERRAZ JR., 2007, p. 52-53). 1.3.2 O indivíduo, a comunidade e a ordem Na comunidade, o indivíduo só era alguém por causa de sua pertinência parental ao clã. O poder de estabelecer o equilíbrio social ligava- se ao parentesco. No Direito arcaico só havia lugar para a única ordem possível: a ditada pela divindade e, por isso, sagrada. Logo, o Direito era a ordem querida (e não criada) por uma divindade. Como ordem não criada, mas, sim, querida, o Direito obrigava tanto o homem quanto a divindade, que o defendia, o impunha, mas não o produzia nem o modificava. A ideia de um Deus criador surgiu na tradição judaica e passa, depois, à tradição cristã (FERRAZ JR., 2007, p. 53). 1.3.3 O Direito como forma rígida de distribuição social O estabelecimento do “que é de cada um”, isto é, o “seu” de cada qual (aquilo que é devido), variava conforme a posição social. Firmava-se a predileção pelo Direito como uma forma rígida de distribuição social. Quem contrariava essa forma (o contraventor) era imediatamente expulso da comunidade. Em suma: ou se estava dentro dela (comunidade) e, portanto, com o Direito, ou se estava fora dela, ou seja, contra o Direito. O Direito, assim, confundia-se com os modos característicos de agir do povo. Os usos e costumes manifestavam-se na forma de regras gerais. O Direito era 7 percebido, primariamente, quando o comportamento de alguém ou de um grupo infringia a expectativa consagrada pelas regras. Apareceram, então, sacerdotes ou juízes esporádicos que, como guardiões do Direito, regulavam sua aplicação. Mas esta (a aplicação) não se separava do próprio Direito. Diante disto, o conhecimento do Direito não era algo separado dele (do Direito). O conhecimento do Direito e a sua prática (de aplicação) não se distinguiam. Confundiam-se a guarda, a aplicação e o saber do Direito. 1.3.4 O desenvolvimento das sociedades e o Direito O desenvolvimento das sociedades pelo aumento quantitativo ou pelo aumento da complexidade das interações humanas possíveis levou à substituição do princípio do parentesco (por sua pobreza, isto é, pela sua restrição) como base da organização social. Nas culturas antigas (China, Índia, Grécia, Roma) apareceram, por exemplo, os mercados. E estes possibilitaram o atendimento das necessidades entre os não-parentes. A posição do comerciante deixava de ser determinada por uma situação na família, no clã. O comércio deixava de ser uma atividade só permitida aos patriarcas. Começava a aparecer o domínio político, localizado em centros de administração. Esse domínio político diferenciava- se da organização religiosa, guerreira, cultural etc. (FERRAZ JR., 2007, p. 53). As primeiras cidades edificadas foram importantes para esse estágio do desenvolvimento das sociedades. 1.3.5 O primado do centro político A primazia do centro político teve grande importância para o Direito como poder de estabelecimento do equilíbrio social. As comunidades organizaram-se como sociedade política (polis), criando-se uma forma hierárquica de domínio baseada em prestígio. Essa forma hierárquica levava a símbolos que determinavam quem era quem na sociedade, relações de status, modos distintos de linguagem etc. De tal forma, o Direito que ordenava, que regrava, passou a ligar-se aos homens como tais: os homens como seres livres. A liberdade era, assim, um status próprio do cidadão. 1.3.6 As fórmulas prescritivas A transformação do centro político exigia que o Direito se manifestasse através de fórmulas prescritivas de validade permanente. Essas fórmulas prescritivas não se prendem mais às relações de parentesco, porém reconhecem certos modos de escolha (liberdade participativa). O Direito, 8 então, firmava-se como uma ordem que alcançava todos os setores da vida social (político, econômico, religioso, cultural etc.), mas com eles não se confundia. Assim sendo, tornava-se possível contrapor o sacerdote ao guerreiro, o pai ao filho, o comerciante ao governante, sem que o Direito, de antemão, se identificasse com um ou com outro. O contraventor, então, deixava de ser banido da comunidade, para invocar esse mesmo Direito que alguém levantou contra ele, dentro da comunidade, e não fora dela (tratava-se do direito de defesa, que, hoje, se diz ampla, conforme dispõe o art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal). Na comunidade que o acusava, ele se defendiaaté provar ou não a sua inocência. Como ordem (ou ordenamento), o Direito perdeu seu caráter maniqueísta (o lícito como bem e o ilícito como mal), herança das religiões. O tratamento que passou a ser dado a quem tinha comportamento desviante era regulado, passando por procedimentos decisórios. Surgiram as formas de jurisdição: partes, advogados, juízes, tribunais etc. O Direito abarcou o lícito e o ilícito, pois este (ilícito), embora proibido, era também um comportamento jurídico (que interessava ao Direito, para a devida punição). 1.3.7 O surgimento dos juristas A procedimentalização do Direito fez surgir um grupo especializado, com um papel social peculiar: os juristas. Estes desenvolveram uma linguagem peculiar, com critérios próprios, formas probatórias etc. Separaram-se outras formas de exercício do poder (político, econômico, religioso) do exercício do poder argumentativo. A partir daí nasceu a arte de conhecer, elaborar e operar o Direito. 1.3.8 Conquista tardia da cultura humana O conhecimento do Direito como algo diferenciado dele, foi, pois, uma conquista tardia da cultura humana. Passou-se a diferenciar o direito- objeto do Direito-ciência, exigindo que o fenômeno jurídico alcançasse uma abstração maior, desligando-se de relações concretas, como as de parentesco (o pai não tinha poder de vida e morte sobre o filho apenas por que era pai; havia, ali, uma relação jurídica). Como programa decisório, o Direito fez surgir a possibilidade de o direito-objeto separar-se de sua interpretação, de seu saber, de suas figuras teóricas e doutrinárias que criaram técnicas de persuasão, de hermenêutica, que distinguiam entre leis, costumes, religião etc. 9 1.3.9 O saber jurídico não linear O desenvolvimento do saber jurídico não é linear. Em diferentes culturas, ele se faz na forma de programas e de recuos. Acompanhar esse desenvolvimento é tarefa que ultrapassa uma introdução ao estudo do Direito. Mas para compreender o direito-objeto é importante mostrar como uma cultura teorizou o próprio Direito. Quem tem a missão de conhecer o Direito deve tomar em suas mãos o seu entendimento. Para o estudante, o ponto inicial é a própria dogmática, ou seja, o modo como paulatinamente ela se formou (FERRAZ JR., 2007, p. 53-55). 1.4 O desenvolvimento do pensamento dogmático 1.4.1 Os Direitos dos povos sem escrita Antes de adentrarmos na questão da dogmática, vamos abordar, ainda que superficialmente, a questão dos Direitos dos povos pré-históricos, ou seja, que viveram antes da invenção da escrita. Esses povos tiveram mesmo Direitos constituídos? Muitos estudiosos não os admitem como lembra JOHN GILISSEN, professor da Universidade de Bruxelas: Numerosos juristas contestaram mesmo que os povos sem escrita possam ter um sistema jurídico porque eles não encontram aí instituições tais como definidas nos sistemas romanistas ou de common Law, por exemplo, a noção de justiça, de regra de direito (rule of Law), de lei imperativa de responsabilidade individual. Marx e Engels consideram, sob influência do pensamento de Hegel, que o direito está ligado ao Estado e afirmam que não há direito nos grupos sociais que não atingiram o estádio de organização social (1995, p. 36). O autor, contudo, acredita na possibilidade descartada pelos pais do Manifesto Comunista: Mas, sob a influência dos trabalhos dos etnólogos e dos sociólogos, admite-se agora em geral que os costumes dos povos sem escrita têm um caráter jurídico porque existem aí meios de constrangimento para assegurar o respeito das regras de comportamento. Admite-se assim que não existe uma noção universal e eterna de justiça, podendo esta noção variar com o tempo e com o espaço (1995, p. 36). Comentando o pensamento de GILISSEN, diz PAULO DE BESSA ANTUNES: John Gilissen admite a existência do direito nos povos sem escrita, chegando mesmo a arrolar as suas características básicas: a) é limitado o seu grau de abstração; b) os direitos são muito variados em razão do isolamento das comunidades que os adotam; c) guardam semelhanças entre si e d) guardam imensa proximidade com as normas religiosas, sendo praticamente impossível distingui-los (1992, p. 21). 10 1.4.2 Direitos da Antiguidade Os mais antigos escritos de natureza jurídica datam de mais de dois mil anos antes de Cristo. Vieram do Egito e da Mesopotâmia. Até o fim do século XIX nada se conhecia dos Direitos da Antiguidade, a não ser o Direito romano, o Direito grego e o Direito hebraico. As descobertas arqueológicas a partir do início do século XX trouxeram vários textos jurídicos do Egito e, sobretudo, da Mesopotâmia. Daremos voz a GILISSEN: O Egito não nos transmitiu até à data códigos nem livros jurídicos; mas foi a primeira civilização na história da humanidade que desenvolveu um sistema jurídico que pode chamar-se individualista. Rompendo com as solidariedades ativas e passivas dos direitos arcaicos e feudais, o direito egípcio da época da III à V dinastia (cerca de 3000 a 2600) e o da XVIII dinastia (1500-1300) parecem ter sido tão evoluídos e tão individualistas como o direito romano clássico. A Mesopotâmia foi o país que conheceu as primeiras formulações do direito. Os sumérios, os acadianos, os hititas, os assírios, redigiram textos jurídicos que se podem chamar de “códigos”, os quais chegaram a formular regras de direito mais ou menos abstratas. Os hebreus, situados entre o Egito e a Mesopotâmia, não atingiram um desenvolvimento do seu direito tão grande como os seus vizinhos; mas registraram na Bíblia, o seu livro religioso, um conjunto de preceitos morais e jurídicos que foram perpetuados, não somente no seu próprio sistema jurídico até os nossos dias, mas sobretudo no direito canônico, direito dos cristãos, e mesmo no direito muçulmano. A Grécia, como o Egito, não deixou grandes recolhas jurídicas, nem vastas codificações. Mas com os seus pensadores, sobretudo Platão e Aristóteles, fundou a ciência política, ou seja, a ciência do governo, da polis ou cidade; ela é assim a base do nosso direito público moderno (1995, p.51-52). BILLIER et MARYIOLI dão-nos esta impressão acerca do Direito grego: O objeto dos grandes legisladores gregos [no caso, Drácon, Sólon, Licurgo e Clístenes] é a politeia. Esse conceito [...] deve ser entendido em sentido amplo. Não corresponde exatamente, por exemplo, à expressão moderna ‘regime político’. Em grego antigo, o vocábulo politeia tem múltiplas acepções; organização política, constituição, vida política, política da cidade, república, democracia, poder político, governo, direito da cidade, direito político do cidadão. Contudo, é possível remeter o campo semântico do termo para uma definição global e fundamental: a politeia é a própria questão do direito, uma vez que ela orienta a questão das instituições e do direito de cidadania. Participar da politeia é simplesmente desfrutar de seus direitos; quer dizer, beneficiar-se do direito como tal. Note-se que se trata essencialmente do direito ‘público’ (2005, p. 53). Os romanos vão nos legar um portentoso monumento jurídico. Ainda GILISSEN: 11 Enfim Roma, na época da República e sobretudo no tempo do Império, fez a síntese de tudo o que os outros direitos da antiguidade não tinham trazido. Como os egípcios, os romanos realizaram, nos primeiros séculos da nossa era, um sistema jurídico que atingiu um nível inigualável até então. Muito mais que os mesopotâmicos, eles tiveram de formular as regras do seu direito e redigiram vastos livros de direito. Sobretudo os romanos criaram a ciência do direito; o que os jurisconsultos romanos dos II e III séculos da nossa era escreveram, serve ainda hoje de base a uma importante parte do nosso sistema jurídico. Antes dos romanos, os povos da antiguidade não puderam, parece, construirum sistema jurídico coerente; mas esta constatação é provavelmente a consequência da insuficiência das fontes jurídicas atualmente disponíveis. É possível que um dia a descoberta de novos documentos permita fazer recuar de vários séculos, ou mesmo milênios, o aparecimento de uma ciência do direito, baseada em princípios jurídicos gerais e abstratos (1995, p. 52). 1.4.3 A jurisprudência romana I – Roma como referência inicial Examinando a dogmática jurídica dentro de um panorama histórico, tem-se como sua finalidade: a) identificar o papel que ela desempenhou na vida social; b) identificar o desenvolvimento do pensamento dogmático na cultura ocidental. O objeto dessa investigação é delimitado pelos argumentos da doutrina em justificar como a dogmática conseguiu afirmar-se. Antes de estudar as teorias dogmáticas, estudam-se as teorizações jurídicas que constituíram a Ciência Dogmática do Direito. No Brasil, parte-se das origens do pensamento jurídico europeu continental, excluindo-se, claro, o pensamento jurídico insular anglo-saxão. A referência inicial é sempre Roma. O Direito (jus) era tido como um fenômeno sagrado, desde a fundação daquela cidade. O Direito marcaria a cultura romana desde o começo. Como forma cultural sagrada, o Direito romano era o exercício de uma atividade ética. Era também a prudência, virtude moral do equilíbrio e da ponderação nos atos de julgar. De tal modo que a prudência ganhou relevância especial, recebendo a qualificação particular de jurisprudência (juris + prudentia). A jurisprudência romana desenvolveu-se num ordenamento jurídico que, na prática, dizia respeito a um quadro regulativo geral, pois a legislação romana restringia-se a regular matérias especiais. Surgiu, assim, o direito pretoriano (não legislado, no sentido de que não era advindo de leis votadas pelo Senado). 12 II – O direito pretoriano O direito pretoriano surgiu entre 201 e 27 a. C, e era produzido pelos pretores através dos editos (magistratuum edicta). Não era um direito legislado, pois o pretor não legislava, e, tecnicamente, não criava direito novo (lembrar de IED I: só a lei em sentido técnico cria direito novo), mas as suas decisões gozavam de proteção legal e com frequência serviam de fonte para novas regras de direito. Surgiu paralelamente ao ius civile, para complementá-lo e corrigi-lo. O direito pretoriano assim foi definido pelo famoso jurista romano Papiniano: Ius praetorium est quod praetores introduxerunt adiuvandi vel supplendi vel corrigendi iuris civilis gratia propter utilitatem publicam (O direito pretoriano é o que os pretores introduziram para complementar e corrigir o direito civil para a utilidade pública). O ius civile e o direito pretoriano seriam fundidos no Corpus Iuris Civilis. O direito pretoriano representava apenas uma forma supletiva de ordem jurídica vigente. Servia para ajudar a superar ou corrigir o Direito Civil. E não se constituía de proposições jurídicas materiais. O edito do pretor (direito pretoriano) era formado por esquemas de ações para determinados fatos-tipos (lembrar o juízo disjuntivo de COSSIO, na apostila de IED I: Dado Ft [fato-tipo], deve ser P; não-dado P, deve ser SP) e por fórmulas para a condução de processos. Eram, a bem dizer, proposições jurídicas formais. Ao direito pretoriano faltavam certas regras como, por exemplo, regras de preenchimento de contratos. Também no aspecto de fórmulas, como no caso dos contratos de compra e venda, estas eram apenas espécies de molduras, que deveriam ser preenchidas para uma aplicação prática. Eram, pois, espécies de modelos de contratos. Na época da República e do Principado (antes da fase imperial) tudo isso ocorria. Os juízes que exerciam a jurisprudência eram leigos. Somente no período imperial, com a atuação dos jurisconsultos, que se transformaram na mais alta instância judicante do Império, surgiu a teoria jurídica, a partir do trabalho de juízes profissionais (FERRAZ JR., 2007, p. 55-56). Vide item 4.8. 1.4.4 A influência dos jurisconsultos A influência dos jurisconsultos deu-se sob a forma das respostas que eles davam às consultas que eram feitas por uma das partes, quando ocorria um conflito diante do tribunal. Isso já foi estudado em IED I, nas fontes do Direito. As respostas deles (responsa) constituem o início de uma teoria jurídica entre os romanos. 13 Os responsa, de início, continham pouca argumentação quando se tratava do desenvolvimento coordenado e lógico de premissas e conclusões, limitando-se a apoiar decisões posto que afirmadas por ilustres personalidades da vida jurídica romana. Mais tarde apareceriam o principia e o regulae por conta do grande número de responsa, que levava à escolha de premissas e ao fortalecimento das opiniões por meio de justificações. Advém daí o recurso a conhecimentos técnicos aprendidos dos gregos, tais como a retórica, a gramática, a filosofia etc. Alguns autores, contudo, contestam essa influência grega, atribuindo aos próprios romanos. Sobre o trabalho do jurisconsulto romano diz o norte-americano ROSCOE POUND: O jurisconsulto não tinha poder legislativo nem imperium. A autoridade de seu responsum, logo que a Lei deixou de ser uma tradição de classe, encontrar-se-ia em sua racionalidade intrínseca; no apelo que fazia à razão e senso de justiça do judex. Na frase grega, se acaso era direito, era-o por natureza (1965, p. 20). De qualquer forma, os romanos desenvolveram um modo peculiar de teorizar o Direito. Era um modo de pensar característico, que se podia chamar de jurisprudencial. A palavra jurisprudência – juris + prudentia, como anotado no item 1.4.3, uma das formas usadas pelos romanos, ao lado de disciplina, scientia, ars, notitia, para designar o saber jurídico – liga-se ao que a filosofia grega chamava de fronesis (discernimento). Fronesis era uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar, e consistia numa virtude desenvolvida pelo homem prudente, capaz de avaliar soluções, apreciar situações e tomar decisões. Para o exercício da fronesis, era preciso o desenvolvimento de uma arte ou técnica no trato e no confronto de opiniões, proposições e ideias. Era o que Aristóteles chamava dialética. Dialéticos, segundo ele, eram discursos meramente verbais, mas suficientes para fundamentar um diálogo coerente (discurso comum). A dialética enquanto arte das contradições tinha por utilidade o exercício escolar da palavra, propiciando um método eficiente de argumentação (FERRAZ JR., 2007, p. 56-57). 1.4.5 O objeto do conhecimento jurídico 1.4.5.1 Questionamento inicial Ao se estudar o objeto do conhecimento jurídico, um questionamento deve de início ser feito: o objeto em comento é o estudo das leis ou do Direito? Esta pergunta e outras afins nos levam a filosofar sobre o Direito. E não apenas uma é a resposta que se pode obter. Ao contrário, são muitas, 14 a depender da corrente doutrinária à qual se apega este ou aquele estudioso do Direito. Para HANS KELSEN e seus discípulos “o objeto do conhecimento jurídico é exclusivamente a norma”, ou seja, “o estudante do Direito estuda leis”. Para certos positivistas, liderados pelo inglês JOHN AUSTIN, seriam objeto do conhecimento jurídico “as leis, no exato sentido em que se costuma empregar esta palavra”. Para outros positivistas, seguidores do francês LÉON DUGUIT, seria o fato social o objeto do conhecimento jurídico. Mas para outro francês, FRANÇOIS GÉNY, seria a ação humana. Há uma posição intermediária provinda do italiano BENVENUTO DONATI, para quem o objeto do conhecimento jurídico é a ação humana enquanto regulada pela norma (MENDONÇA, 2002, p. 18). 1.4.5.2 A norma jurídica O pensamento kelseniano de que a norma é o objeto do conhecimento jurídico tem raiz kantiana, ou seja, recebe influênciada obra de IMMANUEL KANT, embora KELSEN tenha afirmado que não conhecia essa obra quando escreveu a Teoria Pura do Direito. Se assim foi, ao menos não se pode ignorar que ele sofreu, no mínimo, uma influência indireta de KANT. O difícil é acreditar que KELSEN não tenha lido KANT. Todos, basicamente, o leram. Para o austríaco, “o pensamento humano não seria capaz de aprender a natureza do Direito, mas deveria limitar-se a um registro meramente fenomenal de sua realidade”. KELSEN partiu dessa compreensão. Dessa forma, a Ciência do Direito (por ele tida como pura) tem “como objeto o fenômeno jurídico, a aparência do Direito, por ele identificada com a norma jurídica”, como diz MENDONÇA, que acrescenta: Lamentavelmente, tornou-se impossível para KELSEN qualquer investigação sobre o Direito como fato social (objeto da Sociologia Jurídica e não da Ciência lógica do Direito) e, mais ainda, qualquer aprofundamento relativo à natureza do Direito, ou seja, sobre a Justiça (objeto específico da Filosofia do Direito). Pensar um Direito ideal, pensar como o Direito deveria ser, seria para ele, uma impureza metodológica, uma impureza em relação ao método científico (positivista) a que se autolimitava (2002, p. 20). Outros positivistas tinham o mesmo pensamento de KELSEN. Os exegetas (Escola Exegética do Direito) tinham na lei o objeto do conhecimento jurídico. Logo, conhecer a lei seria conhecer o Direito, como, aliás, afirmava DEMOLOMBE, que era professor: “Eu não conheço Direito Civil; ensino apenas o Código de Napoleão”. AUSTIN, na Inglaterra, e MERKEL, na Alemanha, ambos positivistas, asseguravam que o objeto do 15 conhecimento jurídico devia se limitar à lei. Porém, DUGUIT via no fato da solidariedade humana, e não na lei, o dado limite para a Ciência do Direito (MENDONÇA, 2002, p. 20). 1.4.5.3 A ação humana FRANÇOIS GÉNY, diferentemente de outros positivistas, não via na lei, mas, sim, na ação humana, possuidora de juridicidade imanente, o objeto do conhecimento jurídico. Eis como MENDONÇA explica, e o faz muito bem, o pensamento de GÉNY a esse respeito: Partiu da distinção entre o dado e o construído no Direito. O dado seria a própria ação humana, com suas características específicas e imutáveis, que o Direito, enquanto construído [situado, portando, no mundo cultural, como foi estudado em IED I], enquanto técnica, pretenderia modelar. Essa técnica consistiria num conjunto de processos destinados: a) à confecção da norma jurídica (técnica legislativa); b) à sua aplicação (técnica judiciária); e c) à sistematização dos conceitos a ela relativos (técnica doutrinária). Processos técnicos do Direito seriam, por exemplo, as ficções e presunções (por exemplo, admitir que o homem, no dia em que atinge 18 anos de idade, adquire suficiente maturidade e passa a ser responsável). Processo técnico jurídico seria, também, a criação de categorias jurídicas, como a figura do crime e da contravenção, dos direitos reais, dos contratos etc. A ação legislativa não poderia, no entanto, desrespeitar o dado, a natureza, onde se encontram elementos imutáveis, físicos (como a situação geográfica, o clima etc.), biológicos (como a bissexualidade, a idade etc.), psíquicos (como a idade, a maturidade, a sanidade), ou ainda psicossociais (como as correntes de economia dominantes etc.). A juridicidade não brota para GÉNY da norma, não resulta da criação da lei, mas está ínsita na própria ação, no próprio ser. Numa afirmação manifesta de jusnaturalismo, a norma apenas a reconhece, se e quando, naturalmente, ela existe na ação (2002, p. 20-21). 1.4.5.4 A ação humana enquanto regulada pela norma Para BENVENUTO DONATI o conhecimento jurídico tem como objeto “a ação humana regulada pela norma”. Ou seja, o Direito não se ocuparia nem da ação humana em si mesma, nem da norma, mas da norma aplicada à ação. A sua posição é eclética, isto é, mescla o aproveitável das posições anteriores (a norma jurídica e a ação humana). Mas, como em toda teoria mista ou eclética, essa teoria junta também as deficiências das outras duas. 1.5 Filosofia da ação humana Os positivistas e os normativistas kelsenianos não negam que a ação humana seja a base fundamental do Direito, como lembra MENDONÇA. E 16 diz ele que tão somente “por razões metodológicas, entendem que a Ciência do Direito não pode se ocupar dela (que seria objeto de outras disciplinas) e, por isso, deve ocupar-se apenas do fenômeno normativo” Acrescenta o autor citado que: Esta reflexão só pode ser feita em plano filosófico, tipo de reflexão com a qual o estudante de Direito deve acostumar-se o mais rápido possível (2002, p. 22). Partindo do filósofo francês MAURICE BLONDEL, o autor acima mencionado repete que “não existe no ser inércia total nem espontaneidade pura”. E mais: “Todos os seres estão permanentemente em ação. O ser que não age não é”. Até mesmo na pedra imóvel pode-se descobrir, no mínimo, o movimento atômico, “assemelhado ao movimento sideral das estrelas e planetas”. MENDONÇA disserta, filosofando: O ser humano participa também desse movimento. O existencialismo explorou ao máximo o fato de que nós não somos seres prontos, acabados, mas nos fazemos, na medida em que somos, e somos, na medida em que nos fazemos – isto é a existência. O que nos caracteriza e diferencia dos demais seres é nossa capacidade de um agir consciente e livre, um agir que brota de nossa interioridade, fruto de uma decisão interior. [...] Toda ação humana é condicionada pelo pensamento. A Psicologia Experimental explorou a interioridade expressa pela ação humana, a compulsória objetivação das ideias, chegando ao que se denominou a lei da motricidade das ideias: toda imagem representada num campo de consciência, tende a realizar-se, a tornar-se ato (2002, p. 22-23). Assim, para o pensador inglês G. K. CHESTERTON, “se o homem não age como pensa, acaba pensando como age”. MENDONÇA continua sua preleção: Todo comportamento humano é fruto de uma filosofia de vida. Viver é filosofar. Por isso, as palavras podem enganar, enquanto as ações revelam a verdadeira realidade de qualquer um. Voltando a BLONDEL, a ação humana é o lugar de encontro entre a causalidade e a finalidade. Como todos os demais seres, somos empurrados pelas leis de causalidade, mas, livremente, elegemos e buscamos nossos próprios fins. A força da liberdade faculta-nos a opção entre o bem e o mal, proporciona sermos mais e melhores, quando exercemos, adequadamente, nossa racionalidade e optamos em função dela, embora seja também ela que gera a possibilidade do mal, a vitória do irracional sobre o racional em nossas decisões. Nós somos feitos para o bem, para o justo, para a perfeição, para a realização dos valores de nossa natureza. Nós somos axiotrópicos, isto é, buscamos sempre os valores pelos quais e para os quais somos chamados. A ação boa ou justa não é convencional, fruto da vontade de alguém, fruto da lei, nem mesmo do poderoso, mas decorre de nossa natureza. A ação é essencialmente boa ou justa, 17 independentemente dos poderosos. A ação má ou injusta é um escândalo da natureza, que só o homem, graças a sua liberdade, pode criar (2002, p. 23). Diante do exposto, pode-se dizer que ação moral é a ação boa por sua natureza, estudada pela Moral. E ação justa é aquela que se dirige ao bem comum, nas relações intersubjetivas (relações de uns com outros), regidas pelas leis jurídicas e estudadas pela Ciência do Direito, que se ocupa da ação e do fato justos. 1.6 Direito, estado e política 1.6.1 Considerações preliminares Muitas e diferentes são as concepções acerca das relações entre o Direito e o Estado, como veremos no item 1.6.2.2. PAULO NADER sustenta que: “A visão do fenômeno jurídico não pode ser completa se não for acompanhadapela noção de Estado e seus fins”. Citando ALESSANDRO GROPPALI, diz, ainda, que, entre o Direito e o Estado, “há uma interdependência e compenetração” (2011, p. 129). Logo, nessa concepção, o Direito emerge do Estado, que é uma instituição jurídica. Este detém o poder político, que controla a produção jurídica e sua aplicação. Enquanto isso, a ordem jurídica estabelecida “impõe limites à atuação do Estado, definindo seus direitos e obrigações”, como acrescenta NADER (vide item 1.6.2.2 – III). 1.6.2 Estado Vimos, em IED I, que se entende que o Estado é a mais complexa e perfeita das sociedades. Se, sociologicamente, o Estado é visto como uma espécie de sociedade, politicamente, ele é um ente jurídico. Já sabemos que, na definição clássica de GEORG JELLINEK, o Estado é “a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotado de um poder originário de mando” (Apud SIQUEIRA JR., 2001, p. 28). A doutrina atual toma três direções para a compreensão e conceituação do Estado. I – Sociológica É a que analisa o Estado sob o aspecto social, abarcando os seus aspectos jurídico, econômico e espiritual, bem como o seu processo de formação e composição étnica; nessa visão, o Estado é objeto da Sociologia. 18 II – Política É a que se refere “à pesquisa dos meios a serem empregados pelo Estado, a fim de promover o bem-estar da coletividade, que é seu objetivo”; nesse aspecto o Estado é objeto da Política. III – Jurídica É aquela que analisa “a estrutura normativa do Estado, a partir das constituições até a legislação ordinária” ou infraconstitucional; assim, o Estado é objeto da Ciência Jurídica, e é exatamente isso o que nos interessa, neste estudo. 1.6.2.1 Poder de mando Dotado de poder de mando, o Estado avoca a si a criação do Direito, como foi visto, constituindo, assim, o chamado monismo jurídico. Aliás, como é sabido, cabe ao Estado enquanto unidade de poder, a aplicação da sanção jurídica. Como ordenação de poder, o Estado regula as formas e os processos de execução coercitiva do Direito. Esta é a visão tradicional, enfim, conservadora. 1.6.2.2 Teorias sobre a relação entre o Direito e o Estado Nesta disciplina não nos parece razoável descer a detalhes acerca das teorias que tentam justificar as origens e os fins do Estado. Disso hão de encarregar-se a Sociologia do Direito e a Teoria Geral do Estado, cabendo, aqui, a análise das teorias que dizem respeito à relação entre o Direito e o Estado. São elas: I - Teoria dualística Por esta teoria, Direito e Estado constituiriam duas ordens completamente distintas, ignorando-se mutuamente. Esta teoria é absurda, pois o Estado é uma instituição social, é uma pessoa jurídica, portanto, portador de direitos e deveres. E o Direito, por seu turno, só obtém efetividade graças à ação estatal. II – Teoria monística Assegura que Direito e Estado formam uma só entidade. HANS KELSEN é seu principal defensor. O Estado seria tão somente a personalização de uma ordem jurídica, antecedendo o Direito. A maioria da doutrina, contudo, afiança que o Direito, historicamente, antecedeu ao aparecimento do Estado. Ao menos o Direito rudimentar. 19 III – Teoria do paralelismo Essa teoria “afirma que Direito e Estado são entidades distintas, mas que se acham interligadas e em regime de mútua dependência” (NADER, 2011, p. 137). Esta teoria parece ter sido ditada pelo bem senso. Sobre as relações de interdependência entre o Estado e o Direito, deve- se considerar esta lição de HUGO DE BRITO MACHADO: Relações nas quais ora predomina o Direito, ora predomina o poder, em face do que a história nos oferece o testemunho da existência arbitrária, e de estados nos quais o poder é no mais das vezes exercido de forma arbitrária, e de estados nos quais o poder é no mais das vezes exercido segundo o Direito. Daí podermos falar em estados de arbítrio, para designar os primeiros, e em Estado de Direito, para designar os últimos (2004, p. 39). 1.6.3 Arbitrariedade e estado de direito 1.6.3.1 Arbitrariedade Pode-se dizer que “arbitrariedade é conduta antijurídica praticada por órgãos da administração pública e violadora de formas do Direito”, como ensina NADER (2011, p. 137). Ora, é preciso considerar que arbitrariedade e Direito não se conformam; são, portanto, ideias inconciliáveis. A arbitrariedade é caracterizada pelo fato de uma ação pôr-se de encontro à ordem jurídica estabelecida. Pode materializar-se mediante uma ação, quando o poder público, por exemplo, exorbita a sua competência, ou por omissão, que pode ocorrer na hipótese de um órgão administrativo negar-se à prática de um ato de sua competência. A violação do Direito pode atingir o aspecto de forma ou o de conteúdo, caracterizando, em ambos os casos, a infração jurídica. No caso de violação da forma, pode-se tomar como exemplo o fato de o Poder Legislativo, numa determinada votação, não observar o quorum estabelecido por lei para aquele tipo de deliberação. Isso se verifica quando o quorum previsto seria maioria absoluta, ou seja, metade mais um da totalidade dos membros, mas a deliberação ocorreu por maioria simples, ou seja, metade mais um dos membros presentes à sessão em que se deu a votação. Já no caso do conteúdo, pode-se exemplificar com o fato de o Poder Executivo não respeitar os limites de sua competência e vir a dispor sobre assunto de competência do Poder Legislativo, ou seja, o conteúdo, legalmente, não lhe diz respeito (é o caso, p. ex., de o chefe do Poder 20 Executivo conceder o título de cidadania a alguém, cuja competência é legislativa). É preciso fazer coro com HUGO DE BRITO MACHADO quando diz que na “elaboração das prescrições jurídicas o uso do conhecimento jurídico a serviço do arbítrio é extremamente perigoso, porque permite que o artífice da norma a construa de modo a, salvando as aparências, dar oportunidade para a prática do [próprio] arbítrio” (2004, p. 38). 1.6.3.2 Estado de direito Houve um tempo, no chamado ancien régime, no qual prevalecia o Estado de polícia, arbitrário, em que os cidadãos não gozavam de direitos fundamentais, devidamente protegidos pelo império da lei. Naqueles idos do absolutismo, imperava a vontade do monarca, cristalizada na expressão egocentrista atribuída ao rei LUIZ XIV: “L’ État c’est moi”. Com o advento da Revolução Francesa, em que os direitos dos cidadãos foram garantidos e o Estado foi estruturado seguindo o modelo dos poderes independentes e harmônicos, tal como concebido por MONTESQUIEU, tem-se que a ordem jurídica seja um conjunto orgânico coerente e bem definido. Nesse estágio, o Estado não é apenas um órgão sancionador, ou seja, não se limita a aplicar as sanções cabíveis aos transgressores da norma jurídica, mas se torna uma pessoa jurídica portadora de obrigações, exatamente porque se encontra fundado na lei, e em princípios jurídicos claros e previamente definidos. Nesse sentido, diz PAULO DE BESSA ANTUNES: Nos princípios jurídicos adotados pelo Estado de Direito Democrático prevalecem a impessoalidade e a generalidade. A lei não é mais a vontade singular de um governante ou grupo autocrático, a lei passa a ser concebida como fruto e consequência da própria nação que nela expressa a sua vontade, tida como vontade geral (1998, p. 89). Não se quer dizer que, hoje, todos os Estados se constituem em Estado de Direito. Ainda há, lamentavelmente, Estados que vivem no limbo do arbítrio. E não são poucos. HUGO DE BRITO MACHADO afiança que se poderia “entender como Estado de Direito aquele que é regulado por normas jurídicas”. Ora, se isso fosse levado em consideração, poder-se-ia dizer que “todo Estado seria Estado de Direito, pois todos os Estados são de algum modo regidos por normas”, como ele mesmodiz. E não é bem assim. Por exemplo, o Estado brasileiro, no período da ditadura militar (1964-1985) era regido por normas jurídicas. Nem por isso se constituía em Estado de Direito. 21 O raciocínio do jurista acima citado é complementado da seguinte maneira: Na verdade, somente se deve considerar Estado de Direito aquele dotado de regramento jurídico capaz de colocar limites ao poder, evitando as práticas arbitrárias dos governantes. Não basta a existência de um estatuto jurídico do poder, pois estatuto jurídico do poder e Estado de Direito na verdade não são sinônimos (2004, p. 40). Também, e, sobretudo, se pode falar em Estado de Direito, em toda sua plenitude, quando o povo participa da administração pública, quer pela escolha de seus legítimos representantes, na chamada democracia representativa, quer pela sua participação direta, na forma prevista em lei, no que se chama democracia participativa, que se manifesta por meio do controle social da Administração Pública. Em memorável publicação, intitulada ‘Carta aos Brasileiros’, GOFFREDO TELLES JÚNIOR identificou o Estado de Direito por três pontos básicos: “por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica”. Por sua vez, com base no jurista alemão ULRICH KLUG, NADER afirma que “não haverá Estado de Direito quando uma pessoa puder exercer sobre outra um poder incontrolado” (2011, p. 139). A característica essencial do Estado de Direito está na submissão deste à ordem jurídica estabelecida de forma legítima, e, especialmente, no cumprimento das decisões judiciais. Mais uma vez, a lição de HUGO DE BRITO MACHADO, que, acertadamente, combate a edição (pelo Estado) de normas com eficácia retroativa em detrimento do cidadão: A irretroatividade das leis, como princípio de garantia do cidadão, na verdade faz parte da própria essência do Direito. A irretroatividade das leis é o mínimo que um ordenamento jurídico pode oferecer para preservar a liberdade humana. A liberdade do ser humano, de se conduzir, conhecendo o significado jurídico e assim a consequência de seus atos. Sem o princípio da irretroatividade não existe ordenamento jurídico. Segurança, valor protegido pela irretroatividade, e justiça são valores universais e perenes que se confundem com a própria ideia de Direito. Integram a essência deste (2004, p. 41). Já o norte-americano JOHN RAWLS (1921-2002) diz: O Estado de direito implica, sobretudo, o papel determinante de algumas instituições, assim como práticas judiciárias e legais que lhes estão associadas. Pode implicar, entre outras coisas, que todos os empregados do governo, 22 inclusive o poder executivo, sejam submetidos à lei, que seus atos estejam sujeitos a investigação judicial, que o poder judicial seja suficientemente independente e que a autoridade civil prevaleça sobre a autoridade militar (2000, p. 371). Em tudo o que foi dito anteriormente repousa o Estado de Direito. Apenas para fechar este item, lembramos que alguns juristas fazem a distinção entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito. No primeiro caso ter-se-ia o Estado regido por leis, pura e simplesmente; no segundo, ter-se-ia o Estado regido por leis legítimas. 1.6.4 Conjugação estado/interesse dos cidadãos JOSÉ FERNANDO DE CASTRO FARIAS lembra que, para HEGEL, “o Estado é bem constituído quando os seus fins gerais conjugam-se com o interesse peculiar dos cidadãos; um encontra no outro a sua satisfação e a sua realização: ‘o momento de tal união representa os períodos do seu (Estado) florescimento, da sua virtude, da sua força e de sua felicidade’” (2004, p. 29). Lembra MIGUEL REALE, discorrendo sobre o maior dos pensadores sergipanos, TOBIAS BARRETO, que ele considera “o maior dos pensadores do Nordeste”, que este nosso valoroso patrício disse que “o cidadão é a forma social do homem, como o Estado é a forma social do povo”, devendo o Estado ser “a sabedoria do poder” (1998, p. 182; 187). 1.6.5 Política Como já é amplamente sabido, o termo política provém de polis, politikós, significando tudo aquilo que diz respeito à cidade e, desse modo, ao cidadão no seu convívio social, segundo nos transmitiu ARISTÓTELES, o genial filósofo estagirita. O jurista português MÁRIO BIGOTTE CHORÃO conceitua a política, em termos amplos, como “a atividade humana concernente à organização e governo da sociedade civil ou política, v.g., da comunidade que modernamente se define como Estado” (2000, p. 210). É preciso salientar de pronto que Estado e Política são assuntos tratados em disciplinas apropriadas. Aqui interessa-nos apenas as relações de ambos com o Direito. 23 1.6.6 Direito e Política VENOSA afirma que o aplicador do “Direito utiliza-se de leis elaboradas pelo Poder Legislativo e, por vezes, excepcionalmente, no Estado de Direito, pelo Poder Executivo. Nesse sentido, não pode ser esquecido que o Direito é um produto da Política. O operador do Direito também exerce uma função política. O Direito é, na verdade, um limitador da atividade política, pois, ao ser aplicado ao caso concreto, cerceia e limita a atividade política” (2006, p. 235). Já DIMITRI DIMOULIS alerta para o fato de que os “políticos deveriam respeitar o Direito, que impõe o princípio da probidade na administração do dinheiro público, pune a corrupção e obriga a cuidar do bem-estar de todos. Dessa forma, o Direito aparece como um instrumento mais poderoso do que a vontade política” (2007, p. 119). É importante conhecer as relações entre o Direito e a Política. Para tanto, é imperioso distinguir entre poder legítimo e ilegítimo. Legítimo é o poder que é exercido por quem foi autorizado por uma norma ou por um conjunto de normas, absorvidas e aceitas pela sociedade. Ilegítimo, por exemplo, é o poder paralelo estabelecido atualmente por sociedades criminosas que atuam no seio social. Tais sociedades também exercem o poder e a política, mas à margem do Estado. Inegavelmente, a política gira “em torno do Estado e suas estruturas. Não resta dúvida que o Estado é a mais importante das instituições políticas (vide item 1.6.2). É no Estado que a política se realiza em toda sua magnitude. Não é o Estado, contudo, o reduto exclusivo da política, pois política existe onde está presente o relacionamento humano. Assim, há uma política na empresa, no local de trabalho, nas associações, nas pessoas jurídicas em geral, na família, nas escolas e nas universidades, nas ruas. O que importa, porém, como ciência política, é a política do Estado, que traça as normas e a direção da Administração” (VENOSA, 2006, p. 236). A política do Estado é institucional, ou seja, cuida dos desígnios da nação. Como ser social e, por conseguinte, político, o homem comum faz política na escola, nas ruas, dentro de casa. Entretanto, somente a política do Estado cuida de estruturar as instituições. Mas a política também tem por fim agir como mecanismo de convencimento e, assim, procura transformar as instituições. Nesse sentido, as leis que emanam do Estado são reflexos de sua política. Verifica-se, portanto, que há uma estreita relação entre Política e Direito. 24 1.7 Direito da Política Não se pode negar que o Direito é um instrumento da Política. No Direito existe uma esfera técnica e uma esfera política. Cabe à Política escolher um caminho e ao Direito cabe instrumentalizar esse caminho ensejando a realização das diretrizes políticas. Pode-se dizer, então, que existe o Direito da política. A Política serve-se do Direito para realizar seus objetivos. Há quem entende que nem todas as normas jurídicas têm cunho político, pois algumas normas são eminentemente técnicas. Todavia, as normas técnicas complementam as normas quetêm inspiração política. 1.8 Crise da Política e Direito Há, sim, uma crise da Política. Isto fica bastante acentuado quando se percebe que a sociedade é colocada à margem das discussões e decisões políticas, por aqueles que detêm cargos públicos e deles fazem uso não para a busca constante do bem-estar social, mas para que sejam trampolins para suas conquistas pessoais ou fins escusos. Percebe-se que há uma ligação estreita entre Política e Moral, pois ambas deixam transparecer a ideia de ação, de conduta. Porém, os critérios são diferentes, posto que nem sempre o que é obrigatório na Moral o é na Política. Nem sempre o que é moralmente lícito é politicamente correto. O ideal mesmo é que as condutas políticas se aproximem o quanto possível da Moral e com ela se harmonizem, sustentam alguns. Na visão de NORBERTO BOBBIO a dicotomia entre Política e Moral é impossível de ser equacionada no mesmo plano, no mesmo nível em que são colocadas outras esferas de conduta. Diz ele: Não que não tenham existido teorias que sustentaram a tese contrária, a tese na qual também a política se submete, ou melhor, deve se submeter, à lei moral, mas nunca puderam se firmar com argumentos muitos convincentes, e foram considerados tão nobres quanto inúteis (2000, p. 180). Em que pese o pensamento bobbiano, é preciso considerar que deve haver uma conduta na política, ou seja, uma ética, que sempre deve ser avaliada em cada momento histórico. CELSO ANTÔNIO CASTRO e LEONOR PEÇANHA FALCÃO, avaliando que cultura e desenvolvimento somente podem obter sucesso dentro do campo ético, dizem: Todo comportamento social deve pautar-se pela ética. No entanto, no domínio político, a ética é tida como algo extraordinário. É a posição inversa da obediência das leis. Os políticos falam da ética como se fosse uma virtude rara. Isso só denuncia que para eles o normal é desconhecê-la (2004, p. 15). 25 1.9 Política do Direito Quando se fala em política do direito, fala-se, segundo CHORÃO, no “entrecruzamento do direito e da política [visando ao] estudo da adequação dos meios jurídicos, nomeadamente legislativos, à realização dos fins da sociedade política” (2000, p. 217). VENOSA alerta: Podemos distinguir dois conceitos de política do direito, ainda que intimamente relacionados. Há um primeiro conceito que diz respeito à determinação dos objetivos da atividade normativa indicados pela autoridade legislativa. Em um segundo conceito, podemos nos referir à política do direito como a técnica e os instrumentos jurídicos mais adequados para atingir os objetivos anteriormente fixados. Esses dois conceitos correspondem, sem dúvida, às principais atividades políticas dos agentes do Estado (2006, p. 241). Pode-se afirmar, em princípio, que “o sujeito ativo da política do direito é o órgão constitucional dotado de legitimação política, principalmente o legislador, mas também, em menor grau, o Poder Executivo e o Poder Judiciário”, como diz VENOSA, acrescentando que o Estado “terá uma política do Direito tanto mais eficaz quanto maior for sua capacidade de alterar eficazmente os rumos estabelecidos, de acordo com as necessidades históricas”. Ou seja, o Direito é dinâmico porque dinâmica é a sociedade que o cria e dele depende para manter-se em ordem e paz (2006, p. 241). VENOSA ainda afirma: A capacidade de adaptação do Estado talvez seja hoje o maior obstáculo à sua correta atuação. Essa capacidade depende, por demais, como é óbvio, da cultura jurídica dos responsáveis pelo Estado. Cada vez mais há tendência, que deve ser tanto quanto possível sofreada, de invasão do direito público na esfera privada e na autonomia da vontade. Essa é uma tendência universal. Muitas vezes, sob a alegação de conceder-se maior proteção geral, violam-se a autonomia da vontade e os direitos fundamentais. A cada passo, essa política do Direito deve ser questionada (2006, p. 241-242). É sempre bom lembrar que nenhum ordenamento estatal funcionará de forma adequada se não forem fornecidos aos cidadãos instrumentos procedimentais para a proteção de seus direitos. JOSÉ EDUARDO FARIA, analisando a correlação existente entre Direito e Poder, em termos nitidamente tridimensionais, e dentro do tema ‘a política do direito’, salienta: De fato, dada a tensão existente entre as situações de conflito que existem na vida em sociedade, fica evidenciada a visão da correlação fundamental existente entre 26 direito e poder, em termos de solução normativa positivada: a ordenação dos fatos segundo valores, encontrando seu momento culminante num ato de poder que expressa a opção por uma, entre diversas proposições normativas, e instaura uma norma jurídica. Daí o fenômeno da objetivação do poder, que está na essência do conceito de legalidade e na raiz da moderna ideia de Estado de Direito: o poder objetivado é aquele exercido de acordo com certas normas impessoais que se desligam das vontades que o prescreveram, convertendo-se em intencionalidades objetivadas. Esta ordenação dos fatos segundo critérios de valor é que permite entender o direito, como o faz Freund, como a intermediação entre as atividades políticas e os valores morais, ou seja, a ‘dialética entre a política e a ética’ (1978, p. 22). OBSERVAÇÃO: leitura obrigatória, inclusive para fins de avaliação: 1. Nader: Capítulo XIII. 2. Venosa: Capítulo 9. 27 2 TÉCNICA JURÍDICA 2.1 Considerações preliminares MIGUEL REALE afirma, com acentuada propriedade, que “a Revolução Francesa atinge um ponto culminante com a publicação do Código Civil de Napoleão”, o que se deu em 1804, para viger no ano seguinte. Esse Código Civil francês era “um monumento da ordenação da vida civil, projetado com grande engenho e não menor arte”, diz o mestre paulista (2002, p. 277). Um dos elaboradores do citado Código, PORTALIS (Jean-Étienne- Marie - 1746/1807), reconheceu que o estatuto civil francês continha insuficiências e lacunas. Entretanto, os seus primeiros intérpretes e aplicadores não pensavam dessa maneira, considerando “que não havia parcela da vida social que não tivesse sido devida e adequadamente regulada, razão pela qual haviam sido revogadas todas as ordenações, usos e costumes até então vigentes” (REALE, 2002, p. 277). Ora, já sabemos que naquele instante mesmo da edição do Código de Napoleão o monismo jurídico aflorava com vigor. A Escola Dogmática, também chamada Exegética ou Legalista, pregava a estreita observância dos ditames da lei. REALE mostra o porquê disso: Compreende-se essa atitude. A Revolução Francesa vinha declarar a igualdade de todos perante a lei e, ao mesmo tempo esfacelava os núcleos nos quais ainda subsistiam sistemas jurídicos particularistas com pretensão de ‘soberania’ perante o Estado. Os privilégios e as prerrogativas da nobreza e do clero desapareceram para que o Direito se revelasse apenas através da vontade geral. ‘Todos os direitos são fixados pela lei’, como expressão da vontade geral, proclamou Jean Jacques- Rousseau, fundando criadoramente o pensar político do seu tempo. Surgia, assim, o Código Civil, como expressão da vontade comum, não admitindo qualquer concorrência por parte dos usos e costumes e, também, por parte de elaborações legislativas particulares (2002, p. 277-278). Como já estudamos, a lei foi elevada a um plano tão distinguido que, nos sistemas de inspiração romana, passou a ser a fonte única do Direito. Logo, o problema da Ciência do Direito “resolveu-se, de certa maneira, no problema da interpretação melhor da lei”, criando-se, de pronto, duas verdades paralelas: “o Direito positivo é a lei; e, outra: a Ciência do Direito depende da interpretação da lei segundo processos lógicos adequados” (REALE, 2002, p. 278). A interpretação da lei acabaria sendo a base da Escolada Exegese francesa, que, no decorrer do século XIX, prelecionou que na lei positiva 28 (elaborada pelo Estado, na concepção monista) repousava toda e qualquer possibilidade de uma solução para todos os casos concretos da vida social. Dependia de saber interpretar o Direito. A lei era o ápice, era tudo. O dever do jurista era ater-se ao texto legal. Fora dele não havia soluções possíveis. Estavam lançadas “as bases do que se costuma denominar Jurisprudência conceitual, por dar mais atenção aos preceitos jurídicos, esculpidos na lei, do que às estruturas sociais, aos campos de interesses aos quais aqueles conceitos se destinam” (REALE, 2002, p. 278). PAULO NADER anota que o homem para alcançar “os fins que deseja, necessita utilizar um conjunto de meios e recursos adequados, ou seja, de empregar a técnica”. E acrescenta: “Os antigos definiam-na como recta ratio factibilium (reta razão no plano do fazer), para distingui-la, consoante expõe a doutrina, da recta ratio agibilium (reta razão no plano de agir). Técnica, no dizer de Legaz e Lacambra, como lembra NADER, consiste no ‘conjunto de operações pelas quais se adaptam meios adequados aos fins buscados ou desejados’” (2011, p. 221). A ciência dirige o conhecimento humano, ao passo que a técnica objetiva a atividade humana. 2.2 Breve compreensão sobre a técnica jurídica Diz NADER que para que “o Direito cumpra a finalidade de prover o meio social de segurança e justiça, é indispensável que, paralelamente ao seu desenvolvimento filosófico e científico, avance também no campo da técnica”. Para ele, “somente com a conjugação da filosofia, ciência e técnica, a ordem jurídica pode apresentar-se como um instrumento apto a orientar o bem comum” (2011, p. 222). 2.3 O que é técnica jurídica Denomina-se técnica jurídica “o conjunto de meios e de procedimentos que tornam prática e efetiva a norma jurídica”. De tal forma, quando “o legislador [por exemplo] elabora um código, as normas ficam acessíveis ao conhecimento; ao desenvolver a técnica de interpretação, o exegeta revela o sentido e o alcance da norma jurídica; com a técnica de aplicação, os juízes e administradores dão efetividade à norma jurídica. Para cumprir as suas tarefas, o técnico obrigatoriamente deverá possuir o conhecimento científico do Direito” (NADER, 2011, p. 222). 29 2.4 Espécies de técnica jurídica A Doutrina costuma distinguir, em parte, três espécies de técnica jurídica, a saber: técnica de elaboração, técnica de interpretação e técnica de aplicação. Alguns doutrinadores aludem à técnica doutrinária, “desenvolvida pelos juristas no preparo de seus trabalhos científicos e no ensino do Direito”, como salienta NADER. O mesmo autor considera, todavia, que a “elaboração de monografias está ligada às técnicas de comunicação de pensamento e o magistério do Direito às técnicas da didática especial” (2011, p. 223). Com ele comungamos plenamente. 2.4.1 Técnica de elaboração Diz respeito ao Direito escrito e se desdobra em técnica legislativa e processo legislativo. O processo legislativo foi estudado em IED I, no capítulo destinado às Fontes do Direito, no item referente à lei. Por oportuno, faremos uma ligeira apresentação da técnica legislativa, embora, no presente estudo, nos caiba, sobretudo, apreciar a técnica de interpretação e a técnica de aplicação. 2.4.2 Técnica de interpretação Objetiva revelar o significado das expressões jurídicas. É tarefa de todos os destinatários da norma jurídica, e não apenas de seus aplicadores (juízes, nos processos judiciais, e administradores, nos processos administrativos). O fim da técnica de interpretação consiste em propiciar ao espírito humano o conhecimento do Direito (normas escritas ou consuetudinárias). Os meios mais utilizados na interpretação do Direito são o gramatical, o lógico, o sistemático, o histórico, e, modernamente, o teleológico, que serão analisados adiante, no capítulo 5. 2.4.3 Técnica de aplicação Alguns autores a denominam técnica judicial. Sua finalidade é orientar os juízes e administradores, na tarefa de julgar. Aos juízes, claro, nos processos judiciais e aos administradores, nos processos administrativos. Essa espécie de técnica não se limita “à simples aplicação das normas aos casos concretos, mas compreende os meios de apuração das provas e pressupõe o conhecimento da técnica de interpretação”. Por tradição, “a aplicação do Direito é considerada um silogismo, em que a premissa maior é a norma jurídica, a premissa menor é o fato e a conclusão é a sentença ou decisão” (NADER, 2011, p. 223). 30 2.5 Conteúdo da técnica jurídica Segundo NADER, o jurista argentino ABELARDO TORRÉ (Apud NADER, 2011, p. 224) divide o conteúdo da técnica jurídica em meios formais e substanciais. Os meios formais são a linguagem (compreendendo os vocábulos, as fórmulas, o aforismo e o estilo), as formas e o sistema de publicidade. Quanto aos meios substanciais são: as definições, os conceitos, as categorias, as presunções e as ficções. 2.5.1 Meios formais Referem-se às formalidades e seus elementos estruturais, indispensáveis aos atos da vida jurídica. I – Linguagem A linguagem é o instrumento básico do entendimento humano. O Direito depende da linguagem, pois ela expressa os modelos de comportamento a serem seguidos pelos indivíduos no seio social. Os textos legais devem ser redigidos numa linguagem sem distorções. Do contrário poderão advir distorções na aplicação da lei. Além das leis, as decisões judiciais, os contratos e outras modalidades de negócios jurídicos devem ser elaborados com simplicidade, clareza e concisão, sem perder-se de vista o estilo próprio do Direito e a precisão dos conceitos. a) Vocábulos: a linguagem jurídica deve buscar a conciliação entre os interesses da ciência e os referentes ao conhecimento do Direito pelo povo, evitando o tecnicismo desnecessário. Saliente-se, todavia, que a linguagem jurídica faz uso de vocábulos que lhes são próprios, como: debênture (forma de captação de recursos mediante a emissão de títulos; confere a seu detentor um direito de crédito contra a companhia emissora), codicilo (forma de declaração de últimas vontades, que se destina a disposições sobre coisas de pequeno valor, tais como funeral, legado de pequenos objetos etc.), anticrese (o devedor transfere ao seu credor a posse e os frutos do imóvel de sua propriedade; o credor colhe os frutos e abate o valor da dívida; é de pouco uso atualmente). Também são usados vocábulos de uso comum, mas com sentido jurídico específico, tais como repetição (direito do consumidor de receber valores pagos indevidamente; fala-se em repetição de indébito como decisão judicial), tradição (é a entrega efetiva da coisa móvel feita pelo proprietário-alienante ao adquirente, em virtude de um contrato, com a intenção de transferir o domínio), 31 penhor (quando alguém deixa algum bem em garantia de um empréstimo, como joias, por exemplo). b) Fórmulas: no passado o Direito era constituído por fórmulas de cunho religioso, que eram adotadas nos negócios jurídicos e nos atos judiciais. Tais fórmulas tendem a desaparecer, embora algumas ainda sejam usadas em termos judiciais e até mesmo em contratos particulares ou públicos. No caso do casamento, na forma do art. 1.535 do Código Civil, exige-se que o presidente do ato profira esta fórmula sacramental: “De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”. c) Aforismos: são brocardos, sentenças breves e conceituosas, que ainda são usados nos trabalhos científicos, nas decisões judiciais, nas peças jurídicas em geral; certos aforismos são de origem romana: acessio temporis(acessão do tempo); ad argumentandum tantum (apenas para argumentar); ad nutum (à vontade, ao agrado); fumus boni juris (fumaça do bom direito); honoris causa (por título honorífico); in limine litis (no começo da lide); locus regit actum (o lugar determina o ato); summuum jus, summa injuria (suprema justiça, suprema injúria); sub judice (pendente do juiz); tempus regit actum (o tempo rege o ato); verbo ad verbum (palavra por palavra) etc. d) Estilo: o estilo jurídico deve ser sóbrio, simples, claro e conciso. A clareza da linguagem deve ser a preocupação do legislador e do jurista. “A beleza do estilo, diz NADER, se justifica apenas quando vem ornamentar o saber jurídico” (2011, p. 226). II - Formas Afirma NADER que as “formalidades exigidas pelo ordenamento jurídico têm a finalidade de proteger os interesses dos que participam na realização dos fatos jurídicos, bem como a de manter organizados os assentamentos públicos, como o de registro das pessoas naturais e jurídicas e de imóveis” (2011, p. 227). Há negócios jurídicos que só têm validade se forem produzidos de acordo com a forma prevista em lei. São os chamados atos formais ou solenes. Quando não há condição legal para a celebração do ato, este é tido como ato não formal. Na atividade jurisdicional é constante a formalidade, uma vez que o rito das ações judiciais é cheio de exigências formais, ditadas pelo Direito Processual. 32 III - Sistema de publicidade Os atos da vida jurídica que afetam o bem comum devem constar de registros públicos e, quando necessário, devem ser publicados. Se esses atos que interessam ao convívio social ficassem na penumbra o Direito não se configuraria numa vitória dos povos civilizados. Dentre os atos jurídicos que devem ser publicados acham-se as fontes escritas do direito (leis, decretos etc.), fatos ligados à organização das pessoas jurídicas, atos do poder público, formalidades relativas ao casamento civil etc. Os atos que não precisam ser publicados, mas devem constar de assentamentos públicos são, dentre outros, as escrituras públicas lavradas nos tabelionatos, inscrições nos cartórios de registro civil (nascimento, casamento, morte etc.), registro de imóveis etc. 2.5.2 Meios substanciais Esses meios são de natureza lógica e derivam do intelecto. I - Definições Não cabe ao legislador definir os elementos integrantes do Direito. Essa tarefa é própria da doutrina, a quem compete estudar, interpretar e explicar a fenomenologia jurídica, como, aliás, vimos em IED I. Definir é dar precisão ao “sentido de uma palavra ou revelar um objeto por suas notas essenciais”. Todavia, às vezes o legislador dá-nos certas definições, a fim de: a) evitar insegurança na interpretação, quando ocorre divergência doutrinária sobre a matéria; b) atribuir a um fenômeno jurídico sentido especial, distinto do habitual; c) apresentar um instituto novo, não divulgado suficientemente pela doutrina (NADER, 2011, p. 227-228). II - Conceitos Atenção para a explicitação de NADER: Conceito ou noção é a representação intelectual da realidade. Enquanto a definição é um juízo externo, que revela o conhecimento de alguma coisa mediante a expressão verbal, o conceito é um juízo interno, conhecimento pensante, que pode ou não vir expresso objetivamente por palavras. O termo lei é a expressão verbal de um conceito. Este consiste no fato de o espírito possuir a ideia de um objeto por seus caracteres gerais. Para que alguém possa definir um ser deve, primeiramente, possuí-lo intelectualmente, isto é, conhecê-lo (2011, p. 228). Os conceitos jurídicos têm a função de simplificar os textos legislativos e de lhes imprimir maior rigor e precisão lógica. É comum 33 recorrer-se aos conceitos de culpa, dolo, insolvência, justa causa, legítima defesa, contrato etc. III - Categorias Com vistas à simplificação da ordem jurídica, dotando-a de sistematização e praticidade, a doutrina cria a categoria, que é um gênero agregador de várias espécies que têm afinidades comuns. Por exemplo: a pessoa jurídica de Direito Privado é uma categoria que reúne várias espécies tais como: sociedade civil, comercial, associações, fundações, organizações religiosas, partidos políticos, na forma do art. 44 do Código Civil (vide item 9.13.2.2). As categorias são de grande utilidade à técnica dos códigos, vez que permitem ao legislador referir-se apenas ao gênero, ao invés de enumerar as várias espécies que o compõem. IV - Presunções Buscando inspiração no Código Civil francês (Código de Napoleão), CLÓVIS BEVILACQUA definiu a presunção como a “ilação que se tira de um fato conhecido para provar a existência de outro desconhecido”. É considerar verdadeiro o apenas provável. Ou como diziam os romanos, “tomar-se por verdadeiro o fato antes de claramente demonstrado”. Usa-se muito a presunção de inocência, presunção de veracidade etc. A presunção divide-se em: simples ou comum e legal. a) Presunção simples ou comum: também chamada “de homem”, é feita pelo juiz, baseado no senso comum, ao examinar a matéria de fato. A sua dedução deve ser feita com prudência e somente quando for possível fundar-se em matéria de prova. Segundo MOACYR AMARAL SANTOS, citado por NADER, dar-se-á tal presunção quando o “juiz, fundado em fatos provados, ou suas circunstâncias, raciocina, guiado pela sua experiência e pelo que ordinariamente acontece, e conclui por presumir a existência de um outro fato” (2011, p. 229). b) Presunção legal: é a estabelecida por lei e subdivide-se em: b1) absoluta: também denominada peremptória e juris et de jure (direito e de direito), não admite prova em contrário. Caso a parte interessada consiga provar o contrário, tal fato será insubsistente. Tomemos como exemplo o art. 163 do Código Civil, que configura esta espécie: “Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros 34 credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor”. b2) relativa: chamada de condicional e juris tantum (até onde o direito permite), caracteriza-se por admitir prova em contrário. Como diz NADER, a “conclusão que a lei atribui a determinadas situações prevalece somente na ausência de prova em contrário”. Citamos como exemplo o art. 1.231 do Código Civil: “o domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário”. b3) mista ou intermédia: a lei estabelece uma presunção que, em princípio, não admite prova em contrário, a não ser através de determinado tipo por ela previsto. No Código Civil atual pode ser citado o teor do art. 1.545 como exemplo da presunção legal mista: “O casamento de pessoas que, na posse do estado de casadas, não possam manifestar vontade, ou tenham falecido, não se pode contestar em prejuízo da prole comum, salvo mediante certidão do Registro Civil que prove que já era casada alguma delas, quando contraiu o casamento impugnado”. V - Ficções Ocorrem as ficções quando o legislador, por necessidade, aplica a uma categoria jurídica o regramento próprio de outra. Dessa forma ele se utiliza do elemento ficção jurídica que, segundo FERRARA, “é um instrumento de técnica legislativa para transportar o regulamento jurídico de um fato para fato diverso que, por analogia de situações, ou por outras razões, se deseja comparar ao primeiro” (Apud NADER, 2011, p. 230). Exemplos: as embaixadas estrangeiras, por ficção jurídica, são consideradas como se elas fossem uma extensão do território de seus respectivos Países; os acessórios de um imóvel são móveis por natureza, mas recebem o tratamento jurídico próprio de imóveis. Observemos, entretanto, que a ficção jurídica não tem o condão de transformar em verdadeiro o que é evidentemente falso. Assim sendo, não procede a crítica de IHERING, para quem a ficção jurídica é a “mentira